Trecho do Capítulo VI do livro “Papa Sarto, o Papa Santo”, que pode ser adquirido aqui.
Com uma mão firme e segura, o novo Papa traçou o programa de seu pontificado: restaurar todas as coisas em Cristo, mas não foi a primeira vez que usara aquelas palavras. Já vimos como, quando foi pároco, bispo e patriarca, elas estavam em seus pensamentos como ideal e objetivo da vida sacerdotal. Finalmente, chegara o momento em que, da cátedra de Pedro, iria mostrá-las ao mundo como remédio para todo o mal, convocando todos os filhos da Igreja para ajudarem-no nesse grande trabalho.
Não somente indicou os males que haveria de curar, mas lhes dava os meios: oração sincera, a formação de um sacerdócio erudito, zeloso e devoto, instrução religiosa tanto para adultos quanto para crianças, sábios esforços para melhorar a condição dos pobres, resolver a questão social, a caridade cristã tanto para amigos quanto para inimigos, a fidelidade aos mandamentos de Deus, o uso frequente dos Sacramentos. Desse modo, a “restauração de todas as coisas em Cristo” foi realizada.
Durante toda sua vida, Pio X foi um trabalhador infatigável, e apesar disto, aos sessenta e oito anos, continuava a ser um homem são e vigoroso. Levantava-se cedo, fazendo uma hora de meditação e recitando seu Ofício antes de rezar a Missa, que era feita, geralmente, às seis horas. O dia de trabalho era cuidadosamente organizado para que nenhum tempo fosse perdido. Organizador nato, o Papa, em breve, familiarizar-se-ia, completamente, com o trabalho de administração e de governo da Igreja, empreendendo algumas reformas severas necessárias no trabalho de diferentes congregações. Prático, pontual e exato em todas as coisas, requeria a mesma atitude dos outros. Não havia nenhuma questão do dia na qual sua rápida inteligência não se interessasse.
“Ele é um admirável ouvinte”, disse um estadista francês que teve uma audiência nos primeiros dias de seu pontificado. “Compreende rápida e completamente a questão em discussão, indo direto ao ponto, que resume em poucas e precisas palavras. Para mim, ele possui as qualidades de um verdadeiro estadista, tanto quanto Leão XIII. Ele observa em um olhar compreensivo o que é possível e o que não o é. Entretanto, o que me surpreendeu ainda mais foi sua calma e coragem inabalável. Não há nenhuma precipitação nele: ele quer ser lento para condenar, mas, quando o faz, é inflexível. Se circunstâncias difíceis surgem, ele mostrar-se-á tanto como um herói quanto como um Santo. ”.
Pio X nunca frequentou uma escola de diplomacia, mas o mesmo fim pode ser atingido por caminhos diferentes. “Um homem nascido do povo”, disse outro escritor, “que viveu entre homens trabalhadores, um estudante da Bíblia e dos Padres da Igreja, de filosofia e de teologia: um homem com rica experiência e com conhecimento a respeito dos homens e das coisas”.
Os amantes da música eclesiástica em todos os países ficaram repletos de alegria com a notícia da eleição do Cardeal Sarto ao papado, uma vez que as mudanças ocorridas em Veneza não ficaram sem ser noticiadas no mundo musical e uma necessidade de reforma era sentida universalmente.
— Podemos esperar que Sua Santidade faça no mundo o que fez em Veneza? — Perguntou um músico francês.
— Será feito e logo. Contudo, será um trabalho difícil e não o único. — Acrescentou o Papa pensativo, meditando a respeito de seu trabalho.
Leão XIII exortara, mais de uma vez, para que os fiéis estudassem a música tradicional da Igreja. Ele mesmo enviara a Veneza Dom Lorenzo Perosi para fazer a mudança da música da Capela Sistina, mas os italianos prendiam-se aos seus efeitos operísticos, tornando pouco notáveis os resultados esperados.
Em 22 de novembro de 1903, o motu próprio sobre a música sagrada ditou, definitivamente, as regras sobre o assunto. “Nada deverá ter lugar na igreja que seja indigno de uma casa de oração e da majestade de Deus”, disse o Papa. “A música sagrada contribui para a adequação e para o esplendor dos ritos eclesiásticos e, uma vez que seu principal trabalho é vestir com melodia adequada o texto litúrgico proposto para o entendimento dos fiéis, seu objetivo próprio é acrescentar a maior eficácia possível às palavras, a fim de que, por meio delas, o povo possa ser mais facilmente movido à devoção e a estar melhor disposto para os frutos da graça pertencentes à celebração dos mais santos mistérios. Ela deve ser santa, deve ser uma verdadeira arte, ser universal e, uma vez que essas qualidades são encontradas no mais alto grau no canto gregoriano, […] o tipo de composição mais ligado à Igreja […] é a forma gregoriana, a forma mais sacra e litúrgica e quanto menos harmonia houver em relação a esse supremo modelo menos merecedor será do templo”.
O motu próprio, entretanto, não excluía o uso da música moderna, desde que fosse digna de estar associada com a liturgia, mas a música teatral não era tolerada. Algumas regras foram ditadas para garantir a dignidade e a solenidade dos ofícios da igreja: cantores pagos, especialmente mulheres, não deveriam fazer parte do coro; bandas e orquestras estavam proibidas. Os bispos deveriam criar comissões de pessoas especializadas em música sacra para fazer as regras serem cumpridas. As escolas de música sacra deveriam ser estabelecidas nos seminários onde ainda não existiam, assim como nas cidades e nas paróquias rurais. A partir de sua experiência pessoal em Tombolo, Salzano, Treviso e em Mantua, Pio X sabia que tudo isso poderia ser posto em prática.
Na carta ao Cardeal Respighi, cardeal vigário de Roma, escrita poucas semanas depois, o Papa lamenta, novamente, que a beleza da tradição musical da escola clássica de Roma tenha quase desaparecido. “Pois as devotas salmodias do clero”, escreve, aludindo ao canto da Véspera, no qual o povo também se juntava, “foram substituídas por composições musicais intermináveis sobre as palavras dos salmos, todas modeladas em trabalhos com expressões excessivas e a maioria de tão pobre qualidade que não deveriam ser toleradas nem mesmo em um concerto. O canto gregoriano, assim como nos foi transmitido pelos Pais e encontra-se nos códices das várias igrejas, é nobre, sereno, fácil de aprender, além de possuir uma beleza tão fresca e cheia de surpresas que, por onde quer que tenha sido introduzido, nunca falhou em excitar um entusiasmo real nos jovens cantores”.
O motu próprio foi recebido com alegria por muitos, mas com consternação por aqueles que acreditavam que a música de ópera era uma atração para a multidão. “Logo teremos boa música na igreja”, disse Pio X a Dom Perosi. “O Papa não demorou para pôr em prática suas palavras”, disse um escritor na Revista Eclesiástica. “Deus queira que este amante do santuário e da beleza da santidade possa viver muito e consiga sua amável face suavizar aqueles corações duros que talvez ainda tragam a si mesmos para cantar por bravata, para não dizer palhaçada, com ousadia diante do Santíssimo Sacramento, com medonhos tremores e garganteios”.
Alguns corações não se abrandaram. Pio falou a verdade quando disse que, “o prazer de um gosto depravado cria hostilidade à música sacra. Por isso, não se pode negar que a música profana, de tão fácil compreensão e repleta de ritmo, é preferida em proporção direta a uma boa e verdadeira educação musical entre os que a escutam”.
Que essa reforma era necessária na Inglaterra é possível observar pela impressão de alguns ouvintes de fora a respeito da música em uso em algumas de nossas igrejas católicas. “Temos a senhorita ‘A’ cantando duetos com a senhorita ‘B’ para as palavras ‘Domine Fili Jesu Christe’ como se elas estivessem cantando ‘O que nós duas estamos fazendo no mês de maio’, ou ‘Ainda há vida no velho cavalo’, e tudo isso com um acompanhamento que envergonharia um músico de terceira. Ou, se for o caso de um coro masculino, os baixos não acertam o tom, isso sem contar os tenores afeminados […] engajados em destroçar as mais solenes palavras do Credo como se fossem cães de caça ou um grupo de ratos”.
Não que o Papa só gostasse da música clássica da Igreja e do canto gregoriano. Ele era um amante de toda boa música, seja ela sacra ou secular, mas considerava que a música de ópera, apesar de toda a beleza, era inadequada para o santuário. É possível admirar as pinturas de Watteau, sem desejar colocá-las no altar.
Em sua primeira encíclica, Pio já tinha tocado na questão da ação social católica. Entretanto, falou com mais precisão sobre o assunto em seu motu próprio de dezembro de 1903. Tendo nascido e crescido no meio do povo, podia entender completamente suas necessidades. Ele também previa os perigos de uma ação precipitada e imprudente que pudesse depender demasiadamente de um esforço popular e influente. Não era o movimento social em si que deveria ser reprimido, mas as extravagâncias de alguns reformadores com entusiasmo excessivo.
“A democracia cristã”, declarou, “deve ter sua base nos princípios da fé e da moral católica e deve estar livre de partidos políticos”. Seu grande predecessor, Leão XIII, tendo traçado, luminosamente, as regras da ação popular em sua famosa encíclica (continuada por Pio X), seu próprio desejo foi o de que aquelas regras prudentes fossem observadas completa e exatamente. Ele decidiu, portanto, colecioná-las em uma forma abreviada que pudesse ser, para todos os católicos, uma regra constante de conduta. Assim, após recordar o direito do homem em usar e possuir sua propriedade, abordou as obrigações da justiça entre patrões e empregados e a utilidade dos grêmios e dos sindicatos. A democracia cristã, sustentou, tem como principal objetivo a solução das dificuldades entre o trabalho e o capital, mas, a fim de que isso seja feito baseado nos princípios da fé e da moral católicas, não deveria ser usada com propósitos partidários, pois deve ser uma atividade beneficente para o povo, fundada na lei natural e nos preceitos do Evangelho. Escritores católicos, ao defender a causa do povo e dos pobres, deveriam abster-se de usar uma linguagem calculada a fim de inspirar má vontade entre as classes. Aqui, como em outros assuntos, a obediência às leis de Deus e da Igreja deveria ser entendida como a solução de muitas dificuldades existentes. “A piedade é útil em tudo”, disse em sua primeira encíclica, “e quando ela é completamente vigorosa, o povo estará completamente em paz”.
Em 1905, uma carta apostólica aos bispos italianos definia, com mais clareza, as linhas da ação social católica. “Tamanho é o poder da verdade e da moralidade ensinada por Jesus Cristo”, diz, “que mesmo o bem-estar material dos indivíduos, da família e da sociedade humana recebem suporte e proteção”. A civilização do mundo é a civilização cristã, mais sincera, mais verdadeira, duradoura e produtora de bons frutos, quanto mais distintamente cristã. Longe desse ideal, toda a civilização decai, com imenso prejuízo à sociedade. A Igreja tem sido guardiã e protetora da civilização cristã por todas as eras. “Quanta prosperidade e felicidade, paz e concórdia, respeito e submissão à autoridade, e quão excelentes governos seriam fundados e mantidos no mundo se o ideal perfeito da civilização cristã pudesse ser realizado. Entretanto, dada a guerra constante entre a carne e o espírito, entre as trevas e a luz, entre Satanás e Deus, tamanho bem dificilmente poderá ser esperado em sua plena medida. Entretanto, isso não é razão para perder a coragem. Assim, a Igreja vai com coragem, enquanto estende o Reino de Deus em locais em que ainda não foi pregado, e procura recuperar o que se perdeu no que fora conquistado”. Mais uma vez, os meios para alcançar o fim desejado são apontados: “Reinstaurar Jesus Cristo na família, na escola e na sociedade; reestabelecer o princípio de que a autoridade humana representa a de Deus; preocupar-se, de coração, com os interesses do povo, especialmente dos trabalhadores industriais e agrícolas, tornar as leis conformes à justiça e corrigir ou suprimir aquelas que não estão […] defender e sustentar os direitos de Deus em tudo e os não menos sagrados direitos da Igreja.”
— O que eu posso fazer pela Igreja? — Perguntou uma senhorita a Pio X em uma audiência privada.
— Ensinar o catecismo! — Foi a resposta imediata e talvez inesperada.
“É impossível”, disse o Papa, “reestabelecer as instituições que se demonstraram úteis no passado, pois os instrumentos devem ser adequados ao trabalho empregado. Deve haver unidade, cooperação no trabalho e métodos adaptados ao nosso tempo. Em todo trabalho social católico, deve haver submissão à autoridade católica. Que todos, portanto, esforcem-se para melhorar […] a condição econômica do povo, dando-lhes suporte e promovendo instituições que conduzam a esse fim […] e todos aqueles nossos filhos que se dedicam à ação católica escutem novamente as palavras que brotam espontaneamente de nosso coração. Em meio a amargas tristezas que nos rodeiam diariamente, diremos, com o apóstolo São Paulo, que, se há qualquer consolação em Cristo, se há qualquer conforto em nossa caridade […], tornai perfeita nossa alegria, e que possais permanecer unidos […] com um mesmo sentir, com humildade e devida submissão, não procurando vossas próprias conveniências, mas o bem comum, e imprimindo em vossos próprios corações os sentimentos de Jesus Cristo, Nosso Salvador. Que esse seja o começo de vossos projetos. Tudo o que fizerdes no mundo ou no trabalho, todas as coisas sejam feitas no nome do Senhor Jesus Cristo’, fazendo-O ser a finalidade de todo seu trabalho; ‘pois dEle, por Ele e para Ele são todas as coisas; a Ele a glória para sempre. Amém’”.
A Bíblia foi o estudo favorito de Pio X durante toda sua vida. Em cada encíclica publicada, havia o testemunho de seu íntimo conhecimento e amor tanto ao Antigo quanto ao Novo Testamento. As palavras pelas quais ele, insistentemente, recomendava o cuidado e o amor ao estudo das Sagradas Escrituras aos padres e ao povo eram surpreendentes aos nossos irmãos separados que persistiam na crença de que a Igreja Católica proibia a leitura da Bíblia aos seus filhos. Ao receber representantes da Sociedade de São Jerônimo para a difusão das Sagradas Escrituras, o Papa falou com o maior louvor a respeito do esplêndido trabalho desta digna instituição que, em quinze meses, foi capaz de distribuir mais de 200 mil cópias dos evangelhos. Para aqueles teólogos católicos que estavam engajados nos estudos históricos e na pesquisa bíblica, sempre teve palavras de estímulo e de encorajamento. “A fé católica não tem receio do conhecimento, mas da ignorância”, era a verdade da qual ele estava mais do que convencido.
O Papa, que em sua juventude participava com entusiasmo de todos os jogos e esportes do seminário, foi um forte defensor das atividades físicas feitas pelos jovens. “Eu abençoo, com todo o meu coração, vossos jogos e divertimentos”, disse na ocasião de uma demonstração no jardim do Vaticano feita por clubes de atletismos. “Eu aprovo vossas ginásticas, ciclismos, canoas, alpinismos, corridas e todos esses passatempos que os livram da indolência, que é a mãe de todos os vícios. Uma vez que essas competições serão para vós símbolo da emulação na prática da virtude […], sejam fortes em guardar e em defender vossa fé quando muitos estão perdendo-a; sejam fortes para permanecer como filhos devotos da Igreja quando tantos estão rebelando-se […], sejam firmes em superar os obstáculos que encontrareis na prática da religião católica, para vosso mérito e para o bem de vossos irmãos”.
Aos peregrinos que convergiam de todas as partes do mundo em sua homenagem, Pio X endereçou palavras de simpatia e de encorajamento: “Abençoo a todos vós, grandes e pequenos, ricos e pobres”, disse a um grupo de camponeses da Moravia, “para que vossos bons mantenham-se bons e para que aqueles que se afastaram do caminho reto possam voltar; para que os pais eduquem bem os seus filhos e para que os filhos possam honrar os cabelos brancos de seus pais e o país em que foram nutridos”.
“Dizei aos ricos para serem generosos nos atos de caridade”, disse em outra ocasião, “e dizei aos pobres para que tenham orgulho de serem a viva representação de Cristo na Terra. Não odeiem e nem invejem os outros, mas tenham resignação e paciência”.
Sua ternura era especialmente revelada com seus provincianos. “Se eu pudesse dizer tudo o que está em meu coração”, disse um dia em uma peregrinação a Treviso, “a noite viria e eu ainda estaria falando”. Era difícil para ele acreditar que nunca veria seus queridos venezianos novamente. Andando, um dia, nos jardins do Vaticano com um amigo, ele ouviu distante um agudo assobio. “Escuta!”, disse triste, “talvez seja o trem para Veneza!” Embora amasse muito a sua família, nunca passou em sua cabeça, nem na deles, as vantagens de que poderiam tirar proveito por meio de sua posição. “Graças a Deus, somos capazes de manter-nos”, disse uma de suas irmãs pouco depois de sua eleição, “e não precisamos pedir-lhe nada. Nosso pobre”, acrescentaram com compaixão, “terá de pensar agora em todos os pobres do mundo”. Eles tinham um lugar reservado na capela privada do Papa nos dias de gala em São Pedro, sendo esses os seus únicos privilégios e tudo o que queriam.
Se dizia do novo Papa que sua expressão usual era de avassaladora tristeza e, para aqueles que somente viam-no em público, poderia parecer verdade. Seu espirito humilde odiava a pompa e a exibição e o fardo de sua estrondosa responsabilidade pesava em sua alma. Quando era sustentado nas multidões por meio da sedia gestatória, parecia mais ainda consciente do peso da cruz que seu divino Mestre carregou. “Sua face entre a cena de triunfo expressava quão vã é a glória terrena. Ele sempre tinha o olhar de pesar pelos pecados e pelas dores da humanidade: olhar próprio do vigário d’Aquele que dizemos ser o Homem de Dores”, escreveu Wilfrid Ward. Nas festas de São Pedro, ele proibiu os aplausos costumeiros nos serviços papais. “Não convém que o servo seja aplaudido na casa de seu Senhor”, disse severamente quando deu a ordem. Assim, passava em silêncio no meio de seu povo, mas num silêncio tenso e estremecedor, com uma emoção que poderia, ocasionalmente, ser expressa, apesar de toda tentativa em restringi-la.
Aqueles, entretanto, que o conheciam intimamente tinham outra opinião a respeito dele. Seu antigo modo genial e alegre de ser, embora ofuscado no início de seu pontificado, não estava completamente morto. Ele possuía o dom de fazer-se tudo para todos, pois podia ser alegre e divertido com os jovens e maravilhosamente terno e gentil para com os tristes e sofredores: “ele tinha o maior coração que existia naquela época”, disse alguém que o conhecia bem.