O Novo Ordo Missae e a Ortodoxia
Aos 30-11-1969, conforme previsto na Constituição Missale Romanum, devia entrar em vigor o novo Ordo Missae. Considerando esta nova reforma heterodoxa e perigosas para a unidade da fé, os Cardeais Ottaviani e Bacci fizeram chegar ao Papa uma carta pedindo-lhe a ab-rogação dos novos ritos. Eis como o Pe. Vagaggini (cf. carta publicada em La Revista del Clero Italiano, dezembro de 1969, pp. 688-699), não sem uma pontinha de ironia, comenta a respeito de sua argumentação e desfaz os seus receios de heterodoxia e perigo contra a fé.
30 de novembro próximo entra em vigor também na Itália o novo Ordo Missae. O comunicado oficial da Conferência Episcopal Italiana (CEI) foi precedido de pouco, na imprensa, pela notícia de uma carta agora pública, dos cardeais Ottaviani e Bacci ao Santo Padre, em que os dois Eminentíssimos tomam posição contra o novo documento da reforma litúrgica. Este, a seu ver, “representa, tanto em seu conjunto como em seus pormenores, um impressionante afastamento da teologia católica da Santa Missa”. Tendo em vista a “gravíssima ruptura” que esse documento introduz, sempre conforme o pensamento deles, na doutrina católica, consideram eles ter “mais que o direito de pedir, com filial confiança, ao legislador a ab-rogação da própria lei, isto é, solicitar ao Papa que ab-rogue as disposições que impõe o novo Ordo”.
Acusação, portanto de heterodoxia em pontos graves da doutrina católica num texto capital da liturgia, aprovado e promulgado pelo Papa (Constituição Apostolica Missale Romanum, de 3-4-1969), preparado pelo Conselho para a execução da reforma litúrgica e previamente examinado, segundo costumeiro caminho, por Deus sabe quantas subcomissões de especialistas, como também por outras congregações romanas, inclusive, naturalmente, a Congregação da Fé (ex-Santo Ofício), da qual o Cardeal Ottaviani é Prefeito emérito, sempre muito ativo, pelo que se diz. A imprensa fez amplo eco a opinião dos dois cardeais. “Pesada acusação” (Corriere della Sera): “Missa herética” (Il Candido): “Simplesmente se acusa o Papa de heresia” (Panorama). No Avvenire Don Mario Lodi fez algumas observações justíssimas do ponto de vista pastoral, mas que não resolvem a questão de fundo que é da ortodoxia ou não. Nem o informado artigo de Panorama (13-11-1969 pp. 54-55) resolve este problema.
Pretendo aqui limitar-me a esta acusação precisa de heterodoxia lançado contra o Ordo Missae. Os fiéis e o clero, no momento em que estão para usar esses novos textos e novos ritos, tem o direito de terem a sua disposição elementos necessários para poderem formar uma ideia pessoal sobre o bem fundado ou não das opiniões dos dois cardeais.
Sobre o que, então, fundamentam eles as suas acusações? Neste caso eles se rementem em tudo e por tudo a um opúsculo anônimo de 29 pp. que anexam à sua carta enviada ao Santo Padre: Breve esame crítico Del nuovo Ordo Missae (Copyright Lumen Gentium, via Nerola 10-00199 Roma). Os dois cardeais não somente estão persuadidos de que o mencionado opúsculo “demonstra suficientemente” a sua posição, como também a mínima alusão que deixe suspeitar que eles discordam em algum ponto desse escrito e não aprovam todas as suas afirmações.
Tese e linguagem– Das seguintes passagens, que alinhamos a título de exemplo, poderá o leitor perceber que a tese do libelo, o caráter peremptório e a natureza da sua linguagem.
“Não subsistindo portanto os motivos para apoiar esta reforma, a própria reforma se mostra privada de fundamento racional, que justificando-a, a torne aceitável ao povo católico” (p.5). O novo Ordo, é “de tal espécie que contenta em muitos pontos os protestantes mais modernistas (p.5). No novo Ordo “tudo isso mais não faz do que frisar, de maneira ultrajante, o implícito repúdio da fé no dogma da Presença Real” (p.14). ‘Os novos sacerdotes que, num futuro próximo, não tiverem recebido a formação tradicional e se confiarem ao Novus Ordo com o fito de ‘fazerem aquilo que a Igreja faz, consagrarão validade? É lícito duvidar” (p. 17, nota 15). No Novo Ordo o sacerdote “aparentemente nada mais é do que um ministro protestante” (p.19). Do segundo dos novos cânones (o breve) pensa o opúsculo que se possa escrever com razão, entre outras muitas coisas, “que pode ser celebrado com plena tranquilidade de consciência por um padre que não creia mais nem na transubstanciação nem na natureza sacrificial da Missa, e portanto, se prestaria muito bem até para a celebração por parte de um ministro protestante” (p.24). “É evidente que o Novus Ordo não quer mais representar a fé de Trento. A essa fé, entretanto, acha-se a consciência católica vinculada eternamente. O verdadeiro católico é portanto colocado pela promulgação do Novus Ordo, numa trágica necessidade de opção” (p 25, o grifo é do original). Por conseguinte, para o verdadeiro católico, a partir do momento que Paulo VI publicou o novo Ordo, o dilema é o seguinte: ou conservar a própria fé e recusar-se a receber o novo Ordo Missae, ou aceitar o novo Ordo e renunciar a própria fé. E a prova de tese tão singular?
A definição da Missa – O opúsculo tenta fundamentar as suas afirmações num grande número de pormenores. Mas a sua máquina de guerra contra a ortodoxia do novo Ordo Missae é aquilo que chama a “definição” que o documento teria dado a Missa no n. 7 da Institutio generalis Missalis Romani, p. 15 da edição oficial. Lê-se neste numero: “Cena dominicasive Missa est sacra synaxis seu congregatio Populi Dei in unum convenientis, sacerdote praeside, ad memoriale Domini celebrandum” (Na REB, traduzimos esta passagem: “A Ceia do Senhor ou Missa é a sagrada sinaxe ou assembleia do Povo de Deus que se congrega, presidida pelo sacerdote, para celebrar o memorial do Senhor”, 1969, p. 376).
Eis o comentário do libelo: “A definição de Missa é portanto limitada à de ‘ceia’, o que depois continuamente se repete (n. 8, 48, 55d, 56). Tal ceia é além disso caracterizada pela assembleia presidida pelo sacerdote e pela realização do memorial do Senhor, recordando aquilo que ele fez na Quinta feira Santa. Tudo isto não implica nem a Presença Real, nem a realidade do Sacrifício, nem a sacramentalidade do sacerdócio consagrante, nem o valor intrínseco do sacrifício eucarístico independentemente da presença da assembleia. Não implica, numa palavra, nenhum dos valores dogmáticos essenciais da Missa e que constituem por conseguinte a sua verdadeira definição. Aqui a omissão voluntária equivale a sua ‘superação’, portanto, ao menos na prática, à sua negação (pp. 6-7), grifo no orginal).
Neste comentário são essenciais duas coisas. 1. O Ordo Missae no n. 7 da Institutio pretende dar uma “definição” da Missa. É essencial para o libelo que se trate de uma definição propriamente dita, no sentido escolástico, da ontologia teológica da Missa. Ou seja, de uma definição em que se queria exprimir tudo aquilo que pertence à essência ontológica de uma coisa, e assim aquilo que não está expresso na definição é julgado como pertencendo a tal essência. Dai – e só daí – pode o libelo concluir que a definição de Missa dada pela Institutio, não é afirmada nem a Presença Real, nem a realidade do sacrifício, isto ocorre necessariamente por voluntária omissão, equivalente ao menos a negação prática destas doutrinas. 2. Outro ponto essencial: segundo o opúsculo, na “definição” do Ordo Missae não está implicada nem a Presença Real, nem a realidade do sacrifício, etc. Portanto, a seu ver estas doutrinas são negadas pelo novo Ordo Missae.
O resto, no opúsculo, vai por ai afora. O Ordo todo é interpretado sobe esse ponto de vista; pois, de fato, o libelo se refere continuamente ao pecado original da mencionada “definição”.
Substancialmente idêntica é a posição de Gianni Baget Bozzo, num recente artigo de Renovatio (4, 1969, p. 667), revista notoriamente próxima do Arcebispo de Gênova, cardeal Siri. “O que surpreende em tal Institutio, diz Baget Bozzo, é a definição de Missa… na definição da Institutio o caráter sacrificial é omitido: a presença do Senhor na Missa não se acha expressa como ligada ao sacrifício e ao sacramento, mas como realizada na assembleia mesma, definida como ‘Igreja local’”.
O que observar a respeito de tudo isto? Em primeiro lugar, a questão se trata de uma “definição”. Estão perfeitamente seguros nossos teólogos que o n. 7 da Institutio tenha pretendido dar nada menos que a “definição” da ontologia teologia da Missa, de modo que uma nota omitida em tal “definição” seja omitida precisamente porque se nega que ela pertença a ontologia da coisa assim “definida”? Os nossos escolásticos, porém, sabem que nem toda “predicação” é definição no sentido acima e existem definições descritivas ou descrições que se contentam com precisar uma coisa suficientemente, em relação ao objetivo imediatamente perseguido, sem com isto negar-se aquilo que na descrição é eventualmente omitido. Que motivo tinha a Institutio para dar no n. 7 uma “definição” da Missa? Será justamente necessário que uma Institutio generalis Missale Romani de 1969 seja um tratado escolástico de teologia eucarística? Ou será que nossos teólogos seriam incapazes de lerem um texto sem impor-lhes as categorias de seus manuais fora dos quais não sabem a que santo apelar? Simples hipóteses de trabalho a controlar lealmente, e antes de tudo a controlar nos textos.
Ora o ponto de vista da Institutio, quando no n. 7 propõe a incriminada “definição”, está expresso com toda a clareza no próprio título que em negrito o versalete domina esse número: “De structura Missae eiusque elementis et partibus”, que vale para todo capitulo II: “De generali structura missae”, e vale exatamente os números 7 e 8. Fala-se portanto de structura, elementis, partibus, não de essentia nem definitio. Dirão talvez nossos teólogos: mas o que significa structura, quando se fala de Missa? Ninguém precisa ser onisciente. Mas um teólogo – tanto mais quando se arvora em grande inquisidor da fé – deve ter cautela antes de pronunciar-se e, eventualmente, a humidade em reconhecer a própria ignorância para compreender expressões e textos, como também o esforço leal para compreender uma expressão a partir do contexto em que se encontra.
De que estrutura se trata no n. 7 a propósito da Missa? Da ontológica, como quando, em boa escolástica, dizemos por exemplo que o homem é um animal racional? Evidentemente que não. Para tanto o Ordo Missae teria usado a expressão: de essentia, ou definitione Missae. Simplesmente se trata da estrutura global litúrgico-ritual da Missa, de sua morfologia litúrgica, de sua fenomenologia litúrgico-pastoral. A estrutura morfológica da Missa em seu conjunto (De generali structura Missae), eis pois o que o n.7 da Institutio quer frisar para depois poder compreender as regras litúrgico-pastorais que devem guiar uma boa (do ponto de vista litúrgico-pastoral) celebração da Missa, que é afinal o objetivo expresso de toda Institutio (n. 6).
Essa estrutura morfológica da Missa pode ser idealmente deduzida da celebração da Missa chamada privada, sem participação do povo; pois esta, do ponto de vista ritual, é uma forma de celebração menos perfeita. É lógico que a partir da “Missa privada” não se podem proceder normas de uma boa celebração litúrgico-pastoral da Missa em geral. Embora, como é obvio e como observa explicitamente a Institutio no n. 4, do ponto de vista teológico e ontológico também “a Missa (privada) sempre conserva a sua eficácia e dignidade, uma vez que é ação de Cristo e da Igreja, em que o sacerdote sempre age pela salvação do povo”. Para compreender deveras a estrutura morfológica geral da Missa é preciso, portanto, partir da Missa em que participa o povo em assembleia normal. Portanto, para exprimir “a estrutura geral da Missa” (título do n.7) é perfeitamente correto e até necessário dizer: “A Missa é a sagrada sinaxe ou assembleia do Povo de Deus que se congrega, presidida pelo sacerdote, para celebrar o memorial do Senhor”.
Será pedir demais ao “seleto grupo de teólogos, liturgistas e pastores d’almas”, em que se apoiam os cardeais Ottaviani e Bacci, como também a Baget Bozzo de Renovatio, que aprendam a ler e analisar lealmente os textos antes de empreenderem a caça às “definições” e se precipitarem contra moinhos de vento da heresia no Ordo Missae?
Memorial e Sacrifício – Mas há mais e melhor. Os nossos teólogos alimentam a plena certeza de que na descrição morfológica do incriminado n. 7 não se implica, ou melhor, até se omite o caráter sacrificial da Missa e a Presença Real, como eles, com tranquila segurança, afirmam?
Na incriminada “definição” existem três palavras capitais… memorial do Senhor. Será que nossos teólogos entenderam o que pretende dizer o Ordo Missae com essas palavras? De jeito nenhum, pelo visto! Para o opúsculo a celebração da “ceia” no Ordo Missae é “caracterizada pela assembleia, presidida pelo sacerdote e pela realização do memorial do Senhor recordando aquilo que ele fez na Quinta feira Santa” (p. 6 grifo meu). Assim, para o opúsculo, a realização do memorial ocorre simplesmente recordando aquilo que Cristo realizou na Quinta feira Santa. Também para Baget Bozzo, na Institutio “nada nos leva além do conceito vétero-testamentário de memorial. Essa presença parece consistir apenas na repetição dos gestos do Senhor por parte do sacerdote: uma representação simbólica e apenas simbólica” (p. 668). Dessa forma, nem por sombra de dúvidas imaginam os nossos teólogos que na Institutio memorial possa significar alguma coisa diversa de recordação e imitação puramente simbólica. Só assim, para eles, é obvio que, na famosa definição, sacrifício e presença real foram omitidos.
Mas existe uma regra elementar na interpretação dos textos. Conhece-a qualquer aluno do primeiro ano de Teologia que tenha aprendido os primeiros princípios da interpretação de um texto: quando num texto não está claro o sentido de uma palavra ou expressão é necessário em primeiro lugar perguntar se tal significado não pode ser deduzido primeiramente do contexto imediato, em segundo lugar do contexto do livro, em terceiro lugar do próprio autor, e finalmente, do ambiente.
Em nosso caso, o opúsculo e Baget Bozzo ignoram tranquilamente esta regra de simples honestidade cientifica. De fato, se antes de aventurar-se a fantásticas acusações de heterodoxia, tivessem lido a mesma Institutio no n. 2 – portanto 25 linhas antes da passagem por eles considerada praticamente herética e contaminando de espírito herético todo o novo Ordo – teriam encontrado o seguinte texto: “É por isso de máxima conveniência ordenar a celebração da Missa, ou Ceia do Senhor, de tal forma que os ministros e os fiéis, dela participando cada um conforme sua condição, recebam com plenitude aqueles frutos que o Cristo Senhor quis prodigalizar, instituindo o sacrifício eucarístico de seu Corpo e Sangue e confiando-o à sua dileta esposa, a Igreja, como memorial de sua paixão e ressurreição” (… Christus Dominus sacrificium eucharisticum sui Corporis et Sanguinis instituit, illudque, velut memoeriale passionis et resurrectionem suae, Ecclesiae, dilectae sponsae, concredidit: n. 2). É, portanto, evidente que, para a Institutio, a celebração da Ceia, celebração do Sacrifício eucarístico do Corpo e Sangue do Senhor, celebração do memorial inclui necessariamente a celebração do sacrifício eucarístico do Corpo e do Sangue do Senhor.
Se esse texto, que se encontra no contexto imediato da passagem acusada, não obstante a nossos autores, podiam informar-se pelo contexto do livro e abrir o Ordo Missae na IV Oração Eucarística (p. 132 da edição oficial). Ai se lê, logo depois das palavras da consagração e da ordem do Senhor: fazei isto em memória de mim – “Por isso, celebrando agora, ó Pai a memória da nossa redenção, anunciamos a morte de Cristo e sua descida entre os mortos, proclamamos a sua ressurreição e ascensão à vossa direita, e, esperando a sua vinda gloriosa, nós vos oferecemos o seu corpo e sangue, sacrifício do vosso agrado e salvação do mundo inteiro. Olhai, com bondade, o sacrifício que destes à vossa Igreja…Redemptionis nostrae memoriale nunc celebrantes… offerimus tibi eius Corpus et Sanguinem, Sacrificium tibi acceptabile et toti mundo salutare. Respice, Domini, in Hostiam quam Ecclesiae tuae ipse parasti…”
Basta portanto saber ler os textos para ficar persuadido ao menos do seguinte: que para o novo Ordo não existe celebração do memorial do Senhor sem o oferecimento do sacrifício eucarístico de seu Corpo e Sangue, e que isto é feito para a salvação do mundo. Memorial, para o Ordo Missae, é conceito mais amplo que o de simples sacrifício, pois se refere a toda obra salvifíca do Senhor e em especial a sua ressurreição. Mas, para o mesmo Ordo, não existe celebração do memorial sem celebração e o oferecimento do sacrifício do Corpo e Sangue de Cristo pressupondo a presença eucarística da Vítima que Deus mesmo preparou para a sua Igreja.
Qualquer leitor honesto pode julgar que espécie de crédito merece o julgamento teológico do “seleto grupo de teólogos, liturgistas e pastores d’almas” que caem em semelhantes barbaridades.
Memorial e Eucharisticum Mysterium– Nossos teólogos, que acusam de espírito herético ou de heresia a “definição” da Missa na Institutio por não compreenderem o texto, ignorando o contexto imediato e o contexto do livro da passagem incriminada, podem, com não menos desenvolta tranquilidade, ignorar o contexto do autor. Não se perguntaram se, por acaso, o Consilium para a reforma litúrgica, por eles posto sob suspeita, não teria explicado em outras ocasiões o seu pensamento sobre o sentido de memorial e, em geral, sobre a teologia eucarística que, não se encaixando de maneira alguma nos esquemas de seus manuais lhes causa tanta desorientação. Ora, esse documento existe e é a Instructio de cultu de mysterii eucharistici: Eucharisticum Mysterium de 25-5-1967. Preparada pelo Consilium, promulgada pela Congregação dos Ritos, passou também, como de costume, e até mais do que de costume, pelo exame da Congregação da Fé.
Não queria também Baget Bozzo opor a Instructio Eucharisticum Mysterium a Encíclica Mysterium Fidei. Como poderia haver entre elas contradições doutrinais, depois do exame que aludimos? Existe, é verdade, uma ênfase um tanto diversa no modo de apresentar o conjunto da mesma doutrina: em primeiro lugar pelo simples fato do objetivo diferente dos dois documentos. A Mysterium Fidei é antes de tudo um documento polêmico, que devia justamente realçar aqueles aspectos da doutrina católica postos em perigo em diversas teorias da época (transfinalização).
A Eucharisticum Mysterium, como pretende dar normas práticas quanto à Eucaristia aos católicos na posse pacifica da sua fé, preocupa-se, quando muito, em lembrar sobre este ponto a doutrina católica considerada na harmonia recíproca de todos os seus elementos, sem particulares acentos polêmicos. Ela diz claramente (nn. 2 e 3g) que tal é o seu intento. Ora, se nossos teólogos, antes vociferarem concitados pela suposta irrupção dos gauleses devastadores no sagrado bastião da ortodoxia, tivessem lido a Eucharisticum Mysterium poderiam ter percebido que seu incubo não passa de um sonho. Entre outras coisas, no n. 3 a, que tem como título: Praecipua capita doctrinae in his documentis notanta (trata-se dos últimos grandes documentos eucarísticos do magistério) poderiam ter lido o seguinte texto conclusivo sobre as relações entre sacrifício, memorial, ceia ou banquete na Missa: “Unde Missa, sive Cena Dominica, est simul et inseparabiliter: – sacrificium, quo sacraficium crucis perpetuatuar; – memoriale mortis et resurrectionis Domini dicentis; ‘hoc facite in meam commemorationem’ (Lc 22,19); – sacrum convivium in quo, per communionem corporis et sanguinis Domini, populus Dei bona sacrificii paschalis participat, renovat novum foedus semel in sanguine Christi a Deo cum hominibus factum, ac fide et spe convivium eschatologicum in regno Patris praefiguratet praevenit, mortem Domini annuntians ‘donec veniat’ (grifo meu).
Calma, senhores, os gauleses não estão para entrar no sagrado bastião. Acordai e… aprendei as regras elementares da interpretação de texto.
As “novas e grotescas modalidades de oferecimento” – Partindo do fundamento que vimos, a construção de nossos arquitetos teólogos não podia ser mais do que espetacular. Eis a primeira consequência que Baget Bozzo deduz da “definção’ que leu no n.7 da Institutio: “A assembleia cristã é definida simplesmente ‘Igreja local’: falta qualquer referência ao bispo que é o elemento que permite distinguir entre uma assembleia de cristãos e uma Igreja local” (p. 667). O caso é que o n. 7 da Institutio não “define” assembleia cristã nem a Igreja local, porque não “define” nada. Diz simplesmente que “para a reunião local da Santa Igreja”, quando reunida sob a presidência do sacerdote, para celebrar o memorial do Senhor, “vale de maneira toda particular a promessa de Cristo: ‘onde dois ou três…’”. Qualquer um que tiver procurado entender o que significa para a Institutio celebrar o memorial do Senhor não terá dificuldades, creio, para admitir a verdade desta afirmação. Se Baget Bozzo encontrar dificuldades, releia a n.26 da Lumen Gentium. Seu escândalo que no n.7 da Institutio falte “qualquer referência ao bispo”, provem de simplesmente pressupor arbitrariamente que o n. 7 quis “definir” a assembleia cristã ou Igreja local. Todavia admito que Baget Bozzo é curiosamente generoso quando cala a não menos escandalosa falta de qualquer referência ao Papa, certamente não menos necessária que a referência ao bispo numa “definição” da Igreja local. Ou será que no teólogo de Renovatio não se escondem traiçoeiras intenções protestantes negadoras do primado pontifício e da necessidade da comunhão com o Papa?
Segunda consequência deduzida por Baget Bozzo: a formal oposição entre o modo como a Missa é definida pelo Concílio (a partir da Presença Real de Cristo nas espécies eucarísticas e depois a partir de sua presença no sacerdote) e pela Institutio que a “define” – pensa o nosso teólogo, a partir da presença de Cristo na comunidade local. “A Institutio define Missa a partir da última, enquanto o Concílio a definiu a partir das primeiras” (p. 668). Obsessão das “definições”. Mas a Institutio não “define” como quereria Baget Bozzo. Desejando descrever a morfologia litúrgico-ritual da Missa, ela devia necessariamente partir da assembleia, embora, como faz precisamente, da assembleia reunida para celebrar o memorial do Senhor em que se atualiza a presença eucarística de Cristo.
Ainda uma “definição”. “As leituras litúrgicas, diz Baget Bozzo (p 668), são definidas – cá estamos! – ‘maximi momenti’ da Missa (sic!) na Institutio (n. 9). Com tantas referências a Sacrosanctum Concilium, como esquecer que o ‘maxime’ conota ai a presença do Senhor sob as espécies eucarísticas distinguindo-se de todas as outras formas de presença?”. Assim, pensa Baget Bozzo, o fato de a Institutio dizer no n. 9: … lectiones verbi Dei, quae elementum maximi momenti liturgiae praebent… insinuaria a oculta tendência herética de antepor a Missa, contrariando a Constituição Sacrosanctum Concilium, a importância da leitura da leitura bíblica à da Presença Real. Naturalmente Baget Bozzo, hipnotizado pela ideia de descobrir o fantasma do protestantismo atrás de todas as “definições” que ele vê abundantemente dispersas, como outras tantas armadilhas, atrás de toda a Institutio, como também hipnotizado pela ideia de pôr o Ordo Missae em contradição com o Concílio, não se deu conta de que a expressão lectiones verbi Dei, quae elementum maximimo menti liturgicae praebent (Institutio, n. 9), provem da Constituição Sacrosanctum Concilium. Esta, em seu n. 29, diz: maximum est momentum sacrae Scripturae in Liturgia celebranda. E nesta frase, que faz parte de um contexto onde não se faz nenhuma comparação com a respectiva importância da Presença Real na Missa, não se deve suspeitar, evidentemente, nenhum sentido heterodoxo, o que vale perfeitamente também da frase n.9 da Institutio. Mas Baget Bozzo não pensa desta maneira, pois o maximi do n. 9 da Institutio lhe relembra o maximi (praesens adest) sub speciebus eucharisticis, do n, 7 da Constituição. Admire-se o finíssimo faro filológico e crítico de Baget Bozzo. Só nos resta dizer: o sentido da ortodoxia e da sadia renovatio, na Igreja, faz milagres.
Basta, basta. Peço desculpas ao leitor. Queria apenas mostrar com exemplos concretos o nível teológico do artigo da Renovatio. Julgue o próprio leitor.
Julgue também o próprio leitor a respeito de outras coisas amenas – além das que se referem as heresias contidas na “definição” de Missa – que se podem ler no opúsculo que teve a boa sorte de encontrar o pleno apoio dos cardeais Ottaviani e Bacci.
Para o libelo (p. 9). O louvor de Deus no novo Ordo “desapareceu” do ofertório. Para o opúsculo, desta maneira, as novas formulas do ofertório: Benedictus es Domine Deus universi… (cf. Ordo, p. 84, nn. 19 e 21) não incluem o louvor de Deus. A berakah bíblica, para o opúsculo, não é louvor de Deus.
O mesmo louvor, para o libelo, “desapareceu” também do “Prefácio que, no ciclo dominical, não será mais o da Santíssima Trindade, reservado agora só à festa e que portanto será pronunciado uma só vez por ano” (p. 9). Assim, para o opúsculo, o louvor a Deus, entre todos os prefácios, se encontra apenas no da SS. Trindade.
Segundo o opúsculo, “novo Ordo se desnatura o oferecimento numa espécie de troca de dons entre o homem e Deus: o homem leva o pão e Deus o transforma em “pão da vida”; o homem leva o vinho e Deus o transforma em “bebida espiritual”… Supérfluo notar a absoluta indeterminação das duas fórmulas: “panis vitae” e “potus spritualis” que podem significar qualquer coisa” (p. 10). Alude-se aos mesmos textos do novo ofertório. O autor, que ironiza sobre a teologia desses textos e se escandaliza com eles, ignora, não preciso dize-lo, a passagem do Concílio Vaticano II (GS 38, final): “O Senhor deixou para os seus um penhor desta esperança (que o homem e a criatura sejam libertados do pecado para se tornarem oblação aceita por Deus), e um viático para esta caminhada: aquele sacramento de fé no qual os elementos da natureza, cultivados pelo homem, se convertem no Corpo e Sangue glorioso, na ceia da comunhão fraterna e prelibação do banquete celeste”. O autor do opúsculo não tem a mínima desconfiança de que essa ideia (o conceito do divinum commercium aplicado à eucaristia) está expressa abundantemente nas liturgias antigas e modernas, é essencial no cânon romano tradicional e está incluída na formula: offerimus tibi… de tuis donis ac datis, na qual parece o teólogo jamais refletiu. Quanto as palavras “panis vitae”, “potus spiritualis”, o autor não percebeu que são substancialmente entre outras, do cânon romano: … offerimustibi… panem sanctum vitae aeternae et calicem salutis perpetuae. Confira igualmente Jo 6,48.55. É verdade que a expressão tomada em si, isolada, é indeterminada. Mas o autor não refletiu por que a esta altura da Missa, o Ordo a preferiu: para não antecipar indevidamente a ideia em que se deve ser expressa no cânon mesmo, como o é efetivamente em todos os cânones do Ordo, na epiclese, antes da consagração: … ut corpus et sanguis fiant Domini nostri Iesu Christi.
Para o autor do opúsculo (p. 20) no novo Ordo “somente num caso, da Missa sine populo, é que se digna admitir que a Missa é ‘actio Christi et Ecclesiae’ (n. 4). O autor não leu no n. 1 da Institutio, em que desde o princípio se diz que toda Missa e ação de Cristo e da Igreja: Celebratio Missae, ut actio Christi et Populi Dei hierarchice ordinati...”. Além disso, entendeu exatamente às avessas o sentido do n. 4 em que, evidentemente, se quer dizer que também uma Missa sem povo é sempre actio Christi et Ecclesiae, como aliás qualquer outra Missa.
Mas a esta altura não precisamos mais continuar: não vale a pena. O autor chama de “grotescas” as novas modalidades do ofertório no Ordo Missae. Julgue o leitor a quem é que se aplica melhor este adjetivo.
Permita-me não formular juízos pessoais sobre os cardeais Ottaviani (79 anos) e Bacci (84 anos) que, “depois de longa reflexão e oração”, julgarem dever fazer o que fizeram. Qualquer leitor prudente já fez a propósito o seu julgamento. Bastam os fatos lembrados. Basta acrescentar, quando muito, que o cardeal Bacci é reincidente. Lembre-se La túnica stracciata de Tito Casini. São tristes os fatos, e quem ama a Igreja não há de se alegrar com eles. Todavia, nada de desanimar, por caridade. É uma pequena, pequenina borrasca de meia estação nesta magnífica primavera que – disso estou pessoalmente convencido, malgrado todas as nuvens momentâneas – se está difundindo pela Igreja. Também nesse pequeno episódio Deus purifica a sua Igreja, tão necessitada de purificação, como demonstra a possibilidade de os fatos acima terem podido ocorrer.
Basta-nos a nós receber sopro primaveril, que exala do novo Ordo Missae, com alma dilatada, cum gaudio Spirtus Sancti. Aos filhos que lhe pedem pão a Igreja não deu um escorpião, isto é certo. Deu, pelo contrário, um alimento e uma bebida fortíssimos. Com eles o povo de Deus poderá sempre restaurar as forças no deserto usque ad montem Dei Horeb.
Pe. Cipriano Vagaggini, O.S.B.
FONTE
VAGAGGINI, Pe. Cipriano. O Novo Ordo Missae e a Ortodoxia. Revista Eclesiástica Brasileira, março de 1970, pp. 93-101.
PARA CITAR
VAGAGGINI, Pe. Cipriano. O Novo Ordo Missae e a Ortodoxia. Disponível em <http://www.apologistascatolicos.com.br/index.php/concilio-vaticano-ii/diversos/906-ordo-missae-e-a-ortodoxia> Desde 31/08/2016. Transcritor: Edmilson Martins.