Domingo, Maio 25, 2025

O Purgatório na Igreja Primitiva: Uma Resposta à Objeção Protestante

Dada a introdução no item anterior (pode ser visto aqui), nossa análise aos escritos dos padres da Igreja, também constará com uma refutação da tentativa de negação de um protestante deste blog [https://medium.com/@murylokennedy78/pais-da-igreja-contra-o-purgat%C3%B3rio-respostas-ao-site-apologistas-cat%C3%B3licos-7d00a36a41f7] a respeito das claras citações dos padres da Igrejas a respeito do fogo purgatorial e da oração pelos mortos.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS


Nos últimos anos, alguns sites protestantes têm tentado refutar o artigo publicado em 2013, de autoria de Miguel Arraiz sobre o purgatório na Igreja Primitiva, utilizando argumentos que já foram devidamente respondidos no texto anterior. Diante disso, optamos por responder a esta contestação, por ser a mais recente que encontramos, no entanto, se revela apenas uma repetição de objeções anteriores.

A fim de esclarecer os pontos levantados, analisemos algumas falhas na argumentação protestante:

  1. Desconhecimento sobre a doutrina do purgatório

Um dos principais equívocos do autor sobre o purgatório se encontra em sua interpretação de São Basílio Magno e São João Crisóstomo. Ele argumenta que o bispo de Cesareia rejeitava o purgatório ao afirmar que “não há chance de arrependimento após esta vida”.

Contudo, esse raciocínio demonstra uma compreensão equivocada da doutrina católica. O purgatório não é um estado de arrependimento, mas de purificação. Ele se destina exclusivamente aos que já estão salvos, ou seja, àqueles que morreram na graça de Deus, mas que ainda precisam ser purificados de faltas leves ou pecados veniais antes de alcançarem a visão beatífica. A mesma coisa ele repete quando argumenta com São João Crisóstomo: este tempo é para arrependimento, aquele para o julgamento”. Ele não concebe a ideia de perdão de pecados no porvir como os romanistas fazem.”

O fato de Crisóstomo destacar a necessidade de arrependimento nesta vida não significa que negava o Purgatório, pois o Purgatório não é para arrependimento, mas para a purificação daqueles cristãos que já estão salvos, mas que morreram com certas faltas. Vamos demonstrar mais adiante, claramente, são Crisóstomo falando sobre o perdão dos pecados para os mortos através das orações dos vivos.

Assim, as afirmações de São Basílio e São João Crisóstomo estão perfeitamente alinhadas com a teologia católica, e a tentativa do autor de distorcer esse conceito para refutar o purgatório revela desconhecimento um erro fundamental na sua argumentação.

Antes de criar espantalhos  para tentar refutar o purgatório, o autor teria que entender primeiro: 

  1. Não é uma “segunda chance” após a morte – A salvação ocorre durante a vida terrena. Após a morte, a alma é julgada por Deus no chamado Juízo Particular, conforme Hebreus 9,27 e 2 Coríntios 5,10. Nesse momento, o destino eterno da alma é selado, não havendo mais oportunidade de arrependimento.

  2. Não é um destino alternativo entre céu e inferno – O purgatório não é um “terceiro lugar”. As Escrituras ensinam apenas dois destinos finais: céu ou inferno (Mateus 25,34.41.46; Romanos 2,6–8). O purgatório é, sim, um estado temporário de purificação para as almas salvas que ainda precisam ser purificadas antes de entrar no céu.

  3. Não é um lugar de méritos ou conquistas espirituais pós-morte – A alma no purgatório não ganha méritos; ela apenas passa por purificação. A conquista da salvação já foi decidida na vida terrena.

Em resumo, o purgatório é destinado às almas salvas, não aos condenados, e não se trata de uma “segunda chance” de salvação, mas de uma purificação final antes da visão beatífica. Compreender esse princípio fundamental já pouparia a leitura de muitas objeções sem sentido presentes no seu texto.

  1. Admissão das orações pelos mortos, mas negação da purificação

O protestante admite que os Padres da Igreja oravam pelos mortos — um consenso unânime entre os os Padres que é comumente rejeitado ou minimizado pelo protestantismo tradicional. No entanto, ao reconhecer essa prática, ele tenta dissociá-la de qualquer crença na purificação das almas após a morte. Essa postura é profundamente contraditória.

Se as orações pelos falecidos não produzem efeito algum, por que então a Igreja primitiva, tão zelosa pela verdade, as mantinha como parte integrante de sua liturgia e piedade? Orar por almas que já estariam irrevogavelmente no Céu ou no Inferno — sem possibilidade de auxílio — seria um gesto vazio, sem sentido teológico ou espiritual. A própria prática da oração pelos mortos implica, necessariamente, a crença de que tais orações podem de algum modo beneficiá-los — seja atenuando penas, apressando sua entrada na glória ou intercedendo por sua purificação.

Em suma, o testemunho dos primeiros cristãos e dos Padres da Igreja em favor da oração pelos mortos é tão sólido e abundante que nenhum historiador sério o nega. Mais ainda: revela-se uma continuidade natural e ininterrupta entre o judaísmo do Segundo Templo — que já cultivava orações e sacrifícios pelos falecidos (cf. 2Mac 12,45) — e o cristianismo nascente.

  1. Critério inconsistente para negar a crença no purgatório

Após reconhecer a existência das orações pelos mortos e tentar minimizar as passagens patrísticas que mencionam purificação, salvação e sacrifícios em favor dos falecidos, o autor conclui que os Padres da Igreja não criam no purgatório simplesmente porque não utilizaram as mesmas expressões e definições que foram formalizadas posteriormente no Concílio de Lião.

Esse critério é claramente falacioso. Se aplicássemos a mesma lógica, teríamos que rejeitar até mesmo o dogma da Santíssima Trindade, pois os Padres anteriores aos concílios cristológicos não usavam os termos técnicos que foram posteriormente definidos. A fé da Igreja se desenvolve e é esclarecida ao longo do tempo, sem que isso signifique uma ruptura com as crenças apostólicas.

Em suma, a argumentação protestante se sustenta em falácias e na deturpação da doutrina católica, pois a prática das orações pelos mortos e a crença na purificação post-mortem são realidades bem documentadas na Tradição da Igreja e não podem ser descartadas por meros jogos de palavras.

4. O uso do historiador Jaques Legoff:

O erro do protestante ao utilizar Jacques Le Goff para tentar refutar a base doutrinária do Purgatório está na má interpretação do escopo do historiador. Le Goff, como medievalista, não estava preocupado com a fundamentação teológica do Purgatório enquanto doutrina cristã, mas sim com a construção histórica da ideia do Purgatório como lugar na mentalidade ocidental. Conforme a resenha que pode ser encontrada na revista da USP, e evidencia essa distinção fundamental:

De imediato, surge uma diferença fundamental com relação ao enfoque teológico: este se atém ao Purgatório como estado — conforme sancionarão sucessivos concílios — e Le Goff se volta para o Purgatório-lugar. Discorre sobre as várias, nem sempre consecutivas, concepções de um modo de se purgarem as penas — primeiro, gelo e fogo, verdadeira ”ducha escocesa” probatória; depois, fogo apenas — mas sua maior preocupação é detectar a construção de um espaço específico, ocorrida em fins do século XII. Para ele, o melhor de todos os “teólogos” no enfoque do tema é Dante Alighieri, formulador definitivo da espacialização do Purgatório na imagem de uma montanha terrena, concêntrica, ascendente, voltada para o. Céu estrelado.” [https://revistas.usp.br/revhistoria/article/view/61802/64665]

Ou seja, a teologia cristã, tanto nos escritos patrísticos quanto nos concílios, trata o Purgatório como um estado da alma após a morte, onde há purificação para aqueles que morreram em amizade com Deus, mas ainda necessitam de purificação final. Já Le Goff analisa o desenvolvimento cultural e iconográfico da ideia do Purgatório como um local geográfico, especialmente no imaginário medieval, culminando na representação de Dante na Divina Comédia.

Portanto, utilizar Le Goff para tentar refutar a existência do Purgatório dentro da teologia cristã é um erro categorial. O historiador não está argumentando em cima da doutrina teológica do Purgatório, mas apenas rastreando como a mentalidade medieval concebeu esse conceito em forma de lugar. Assim, o protestante comete um erro metodológico ao usar um estudo histórico como se fosse um argumento teológico, desconsiderando a distinção fundamental entre a abordagem teológica e a abordagem histórica da questão.

Passaremos agora a analisar os escritos comentados pelo escritor protestante.

ATOS DE PAULO E TECLA


Apesar deste trecho está na terceira posição do texto publicado no site, começaremos por ele devido a algumas considerações importantes.

Os Atos de Paulo e Tecla, escritos no século II (ano 160), narram a história de uma convertida que se converteu ao ouvir as pregações de São Paulo e, após desfazer o compromisso com seu noivo, se dedica a assistir Paulo na evangelização. Lemos aí uma oração de intercessão para que uma cristã falecida seja levada para o lugar dos justos:

E após a exibição, Trifena novamente a recebeu. Sua filha Falconila havia morrido e disse para ela em sonhos: ‘Mãe: deverias ter esta estrangeira, Tecla, como a mim, para que ela ore por mim e eu possa ser levada para o lugar dos justos” (Atos de Paulo e Tecla).[5]

Sobre esta passagem o protestante alega:

O romano cita os atos de Paulo para apoiar o purgatório. Essa é uma obra apócrifa provavelmente da segunda metade do século II, com claras influências gnósticas. Quando se trata de defender as doutrinas romanistas, até apócrifos são utilizados. Tecla seria uma virgem que conheceu Paulo e resolveu segui-lo. A obra possui uma série de narrativas exageradas e fantasiosas que não lembram nem de perto o apóstolo Paulo do Novo Testamento. Nenhum historiador acredita que esse seja um relato real, portanto, seria temerário sustentar alguma doutrina com base nela, mas vejamos:[…] Não há como ver purgatório ai. Trifena não era cristã antes de conhecer Tecla, assim como sua filha Falconila. Portanto, ela não poderia estar no purgatório, já que morreu sem ter abraço a fé e ter sido batizada. A oração que Tecla faz é para sua salvação, o que fica bem claro no trecho: “eu possa ser levada para o lugar dos justos”. De todas as provas do purgatório na Igreja Primitiva, esta definitivamente é mais desqualificada. O que essa obra defende de fato é a oração do cristão poderia tirar alguém do inferno e leva-lo para o céu – uma heresia do séc. II.

O protestante para tentar refutar o texto claro, primeiro tenta desqualificar a obra, como é típico de quem não está querendo discurtir provas e sim simplesmente ignorá-las, depois passa a sugerir interpretações que sobre as quais não traz prova alguma.

No texto que o protestante tenta refutar, Miguel Arraiz estava, na verdade, respondendo a um argumento equivocado de outro protestante, que afirmava que práticas como a oração pelos mortos teriam sido inventadas por São Gregório Magno no século VII. O que o protestante atual aparentemente não compreende é que a simples citação de um texto antigo não significa que este seja a base doutrinária da Igreja. A menção de tais fontes serve apenas para ilustrar que a prática da oração pelos falecidos possui testemunhos históricos concretos, muitos dos quais são anteriores a São Gregório Magno, e jamais foram considerados heréticos por este motivo. A doutrina católica não se fundamenta em qualquer texto antigo isolado, mas sim no consenso dos Padres da Igreja, na Tradição Apostólica e no Magistério. Portanto, apresentar registros históricos dessa prática serve apenas para reforçar que ela era conhecida, aceita e vivida desde os primeiros séculos do cristianismo.

Ainda que os “Atos de Paulo e Tecla” não sejam uma fonte canônica, eles refletem uma prática que estava presente na comunidade cristã. O valor dessas obras apócrifas reside na sua capacidade de mostrar as crenças e práticas das primeiras comunidades cristãs, mesmo que não sejam usadas como base doutrinal, embora apócrifo, não quer dizer que o exemplo que ela dá é herético, ou que não possa haver verdades ou testemunhos históricos.

Interpretação da passagem: A passagem citada dos “Atos de Paulo e Tecla” pode ser interpretada de diferentes maneiras. Não há relato na obra que Trifena e Falconila não fossem cristãs antes de conhecerem Tecla, a visão de Falconila solicitando orações para ser levada ao “lugar dos justos” é um reflexo da crença na eficácia das orações pelos mortos, e ela pode ter se convertido, ainda em vida, algo que não é mencionado, mas é naturalmente possível. E demonstra uma prática de intercessão pelos falecidos. Engraçado é que não vemos os padres da Igreja e também Tertuliano mencionando este relato como algo herético e impossível. Como já vimos no texto anterior, ao que parece todos os padres da Igreja caíram em heresia, porque praticamente todos mencionam a oração pelos mortos, e não há um que condene, e não ser o herege Aério.

Alegação de Heresia: A acusação de que com a oração de Tecla ela pensava que poderia tirar alguém do inferno e levá-lo para o céu é uma interpretação que necessita de provas, as quais ele não dá. 

O protestante afirma:

A oração que Tecla faz é para sua salvação, o que fica bem claro no trecho: ‘eu possa ser levada para o lugar dos justos’. […] O que essa obra defende de fato é que a oração do cristão poderia tirar alguém do inferno e levá-lo para o céu – uma heresia do séc. II.

Essa interpretação é, no mínimo, forçada. O protestante parte da suposição da sua cabeça de que a alma de Falconila estaria no inferno e que, portanto, a oração de Trifena visaria tirá-la de lá — o que transformaria o relato em herético. Porém, o trecho em questão apenas expressa apenas o desejo de que a alma fosse levada “ao lugar dos justos”, algo completamente coerente com a doutrina da purificação pós-morte.

Todas as almas que se encontram em estado de purificação anseiam justamente isso: serem finalmente levadas ao repouso entre os justos. Estranho seria se uma alma em purificação estivesse esperando ser levada ao lugar dos condenados. O pedido é, portanto, totalmente compatível com a teologia do purgatório, e não uma tentativa de transferir alguém do inferno para o céu. A acusação revela mais uma pirueta argumentativa do que um exame honesto do texto.

Além disso ele parece querer limitar ou policiar a oração, como que os primeiros cristão ou atuais ficariam levantando a ficha ou antecedentes criminais da pessoa para saber se podem orar por ela ou não, se ela está no inferno ou não. A Igreja simplesmente ora, sem qualquer presunção de saber o destino da pessoa, em caso de pecadores públicos, ora-se reservadamente.

PERPÉTUA


Santa Perpétua foi uma mártir cristã martirizada em 203 com outros cinco cristãos (Felicidade, Revocato, Saturnino, Segundo e Saturo). O trecho do texto de sua paixão diz o seguinte:

Imediatamente, nessa mesma noite, isto me foi mostrado em uma visão: eu vi Dinocrate saindo de um lugar sombrio, onde se encontravam também outras pessoas; e ele estava magro e com muita sede, com uma aparência suja e pálida, com o ferimento de seu rosto quando havia morrido. Dinocrate foi meu irmão de carne, tendo falecido há 7 anos de uma terrível enfermidade… Porém, eu confiei que a minha oração haveria de ajudá-lo em seu sofrimento e orei por ele todo dia, até irmos para o campo de prisioneiros… Fiz minha oração por meu irmão dia e noite, gemendo e lamentando para que [tal graça] me fosse concedida. Então, certo dia, estando ainda prisioneira, isto me foi mostrado: vi que o lugar sombrio que eu tinha observado antes estava agora iluminado e Dinocrate, com um corpo limpo e bem vestido, procurava algo para se refrescar; e onde havia a ferida, vi agora uma cicatriz; e essa piscina que havia visto antes, vi que seus níveis haviam descido até o umbigo do rapaz. E alguém incessantemente extraía água da tina e próximo da orla havia uma taça cheia de água; e Dinocrate se aproximou e começou a beber dela e a taça não reduziu [o seu nível]; e quando ele ficou saciado, saiu pulando da água, feliz, como fazem as crianças; e então acordei. Assim, entendi que ele havia sido levado do lugar do castigo” (Paixão de Perpétua e Felicidade 2,3-4).

Para tentar argumentar sobre esse texto, o artigo protestante em questão, diz o seguinte:

Nesta citação, Perpétua tem uma visão do seu irmão Dinocrate, que morreu ainda criança de alguma doença. A questão é se Perpétua acredita que ele estava no purgatório – muito provavelmente não. Não há evidência alguma de que seu irmão fosse um cristão. O lugar descrito por Perpétua nas duas visões (antes e após a oração) é o mesmo. A condição de Dinocrate é melhor, não apresentando mais a ferida, agora ele está num lugar de refrigério – uma clara referência ao seio de Abraão, lugar de consolo para onde as almas dos justos iriam. Não há também nenhuma qualificação que aponta para a doutrina romana, não há menção ao passado cristão de Dinocrate, nem descrição do lugar como de purificação de pecados.

Há várias falacias nessas afirmações. 

Não há evidência alguma de que seu irmão fosse um cristão

O autor assume, sem qualquer prova, que Dinócrates não poderia estar no purgatório porque não há menção explícita de que ele era cristão. Mas esse detalhe é irrelevante para o propósito da visão, cujo foco está na eficácia da oração de Perpétua, não na biografia teológica de seu irmão. Além disso, é mais plausível supor que Dinócrates tenha sido cristão, visto que sua irmã era uma cristã fervorosa e mártir, oriunda de uma família de fé. O protestante tenta desqualificar a visão com base em uma ausência de informação, e não em evidência contrária. Isso é uma falácia do argumento pelo silêncio.

Mesmo se Dinócrates não tivesse recebido batismo sacramental, a Igreja ensina que a salvação pode ocorrer por meios extraordinários — como o batismo de desejo, de sangue — especialmente no caso de crianças ou jovens inocentes.

O lugar descrito nas duas visões é o mesmo

Sim, o purgatório. Embora o local da visão pareça o mesmo em aparência, a condição da alma de Dinócrates se transforma radicalmente entre as duas visões:

Antes da oração:

  • Sofrimento evidente (magreza, sede, ferida no rosto)

  • Tristeza e exclusão da fonte de água

  • Ambiente sombrio

Depois da oração:

  • Cura visível

  • Alegria e liberdade para beber da fonte

  • Paz e alívio

Essas mudanças demonstram progresso espiritual após a oração de intercessão, o que corresponde exatamente ao que a Igreja ensina sobre o purgatório: um estado temporário de purificação, que pode ser abreviado ou aliviado pelas orações dos fiéis.

Resistência doutrinária disfarçada de análise histórica

A rejeição protestante ao purgatório não se baseia numa leitura honesta da visão, mas numa resistência teológica prévia à doutrina católica. O que o texto de Perpétua mostra de maneira clara é:

  • Um falecido em sofrimento (não está no céu);

  • Um estado reversível (não está no inferno);

  • Um processo de alívio pela oração de um cristão fiel.

Esse estado intermediário e purificatório é exatamente o que a doutrina católica sempre ensinou. Negar isso é aplicar categorias protestantes modernas a um texto patrístico do século III, o que desrespeita tanto a cronologia quanto o contexto.

Mesmo nos tempos mais antigos, a Igreja orava por todos os falecidos, mesmo sem saber ao certo sua condição. Até hoje a liturgia inclui orações por pecadores públicos, suicidas e pessoas falecidas sem sinais claros de fé. Isso porque a Igreja confia na misericórdia de Deus e reconhece que só Ele pode julgar as almas.

A visão de Perpétua se insere nessa tradição: ela ora com insistência por seu irmão, e Deus a atende. Isso valida a intercessão pelos mortos como prática apostólica, anterior a qualquer formulação doutrinal tardia.

“Suposta influência de obras apócrifas”

Tentando desqualificar a obra o protestante sugere que a visão de Perpétua foi influenciada pelos Atos de Paulo e Tecla, mas essa alegação é infundada. O próprio texto não menciona tal influência, e mesmo que houvesse paralelos temáticos, isso não anula a validade da crença.

Muitos escritos considerados apócrifos preservam ecos legítimos da fé da Igreja primitiva, especialmente em questões litúrgicas e devocionais. Tertuliano, citado pelo próprio protestante, menciona esses textos por familiaridade, não como autoridade doutrinal.

Conclusão

A tentativa protestante de desqualificar o episódio da oração de Perpétua por Dinócrates é falha em todos os níveis:

  • Baseia-se em suposições frágeis e falácias argumentativas;

  • Ignora a natureza da tradição e prática da Igreja;

  • Desconsidera o progresso espiritual evidente na narrativa;

  • E tenta reinterpretar um testemunho patrístico claro à luz de pressupostos modernos.

Perpétua viu seu irmão sofrendo, orou por ele, e depois o viu liberto e feliz. Isso é, em essência, a doutrina do purgatório em sua forma mais primitiva e pura. Portanto, ao invés de enfraquecer a fé católica, esse episódio a confirma com clareza histórica, teológica e espiritual.

ABÉRCIO


Bispo de Hierápolis, na Frígia, na segunda metade do século II e início do III, foi desde cedo bastante venerado pela Igreja grega e, posteriormente, pela Igreja latina. Sabe-se que visitou Roma regressando logo depois pela Síria e Mesopotâmia. Antes de morrer, compôs seu próprio epitáfio, datado de finais do século II ou início do III, em que pede que se ore por ele:

Cidadão de pátria ilustre, / Construí este túmulo durante a vida, / Para que meu corpo – num dia – pudesse repousar. / Chamo-me Abércio: / Sou discípulo de um Santo Pastor, / Que apascenta seu rebanho de ovelhas, / Por entre montes e planícies. / Ele tem enormes olhos que tudo enxergam, / Ensinou-me as Escrituras da Verdade e da Vida / […] / Eu, Abércio, ditei este texto / E o fiz gravar na minha presença / Aos setenta e dois anos. / O irmão que o ler por acaso / Ore por Abércio.” (Epitáfio de Abércio).[4]

A esse texto o protestante diz:

Não há nem sombra de purgatório ai, no máximo provaria que Abércio acreditava na oração pelos mortos, mas até mesmo essa conclusão estaria sob suspeita. O bispo estava vivo quando ditou o texto, então as orações pedidas poderiam ser para ele enquanto estava vivo e não morto. O argumento de que orar pelos mortos implica em purgatório é uma falácia da apologética católica.

Resposta:

Contexto Histórico: O protestante parece não saber que esse texto se refere a uma inscrição funerária, ou seja, a inscrição para a lápide de Abércio, e sim, nos remete ao purgatório, porque ele pede para quem ler a lápide ore por ele, crendo obviamente que essa oração vai lhe ser benéfica após a morte. Os primeiros cristãos frequentemente pediam orações em suas lápides, tanto por si mesmos após a morte quanto por outros falecidos, refletindo uma crença na comunhão dos santos e na eficácia das orações intercessoras.

Evidências de Purgatório nas Inscrições: Embora a inscrição de Abércio possa não mencionar explicitamente o purgatório, a prática de orar pelos mortos é um indicativo de uma crença em um estado intermediário. A oração pelos mortos está ligada à crença de que as almas podem se beneficiar dessas orações, o que é consistente com a doutrina do purgatório. Já postamos um texto com inúmeras provas das inscrições funérárias primitivas tal qual a de Abércio: https://apologistascatolicos.com.br/inscricoes-monumentais-e-a-oracao-pelos-mortos-nas-catacumbas-cristas/

Falácia Alegada: A alegação de que associar a oração pelos mortos ao purgatório é uma falácia ignora o desenvolvimento histórico e teológico da doutrina. A doutrina do purgatório não surgiu de uma única prática ou crença formal e já formulada, mas de uma síntese de várias tradições e ensinamentos da Igreja primitiva sobre a vida após a morte, a purificação das almas e a comunhão dos santos.

Portanto, a inscrição na lápide de Abércio contribui para a compreensão de uma tradição contínua de oração pelos mortos, que é um componente fundamental da doutrina do purgatório. Essas práticas são parte de um desenvolvimento coerente e orgânico da fé cristã.

ORÍGENES E CLEMENTE DE ALEXANDRIA


O protestante alega:

Em 1274 no concílio de Lyon, nós vimos os gregos se oporem fortemente à doutrina do PURGATÓRIO vinda então, dos latinos-ocidentais. Essa briga se estendeu até o concílio de Florença (1438-1439). Por que isso é importante? Porque os “criadores” do Purgatório, Clemente de Alexandria e Orígenes, se basearam em um estudo da escatologia e de uma tradição pagã grega para basear essa doutrina.[5]

Aqui sim, encontramos um argumento risível. O protestante parece desconhecer que atualmente uma das posições comumente aceitas dentre os gregos, dito ortodoxos, é a apocatástase, justamente a doutrina de Orígenes de salvação universal. Uma rápida pesquisa na internet veremos diversos autores ortodoxos defendendo essa posição, que alegam que não foi condenada pelo segundo concílio de Constantinopla em sua integralidade, apenas com alguns erros de Orígenes, uma vez que não condenaram as posições de São Gregório de Nissa que vão na mesma linha.Tambéms adotaram os chamados Telônios ou “Pedágios aéreos”, que é a mesma coisa que um purgatório com detalhes diferentes. Sugiro uma atualização sobre a teologia ortodoxa.

O argumento de que os gregos rejeitaram o Purgatório nos Concílios de Lião e Florença não prova que a doutrina era “latina-ocidental”. A Igreja Oriental sempre teve uma crença na purificação pós-morte, ainda que expressa de forma diferente. Os Padres gregos como São Gregório de Nissa e São João Crisóstomo mencionam essa purificação.

  • São Gregório de Nissa († 395) escreve sobre uma purificação necessária após a morte para aqueles que não alcançaram a perfeição em vida.

  • São João Crisóstomo incentiva orações pelos mortos para que possam ser libertados de suas faltas.

Portanto, a resistência grega não era contra a ideia da purificação pós-morte, mas contra certos aspectos da teologia latina. No texto anterior mostramos como o próprio autor protestante Philip Schaff admite que era consenso dos padres gregos uma purificação pelo fogo pós-morte.

Orígenes e Clemente de fato se apoiaram em categorias platônicas para explicarem o fogo purificador, não porque estivessem extraindo de Platão a noção cristã da purificação dos eleitos, mas porque tanto os primeiros cristãos quanto os teólogos medievais e escolásticos viam na filosofia grega um instrumento útil à teologia. Os filósofos gregos, ainda que limitados à razão natural, alcançaram profundas verdades sobre a realidade espiritual, mesmo sem atingir o pleno conhecimento de Deus revelado em Cristo. Orígenes viu a similaridade entre o que a doutrina cristã ensinava e o que o platonismo trazia, por isso tentou explicar em detalhes a doutrina a partir das reflexões da filosofia grega.

O protestante continua:

Clemente foi o primeiro a distinguir dois tipos de castigo, o punitivo e o educativo,[6] isso vem muito da teoria de Platão, onde o castigo é algo bom vindo dos deuses para educar. Clemente argumenta que o punitivo é para aqueles que serão condenados, ou seja, os ímpios. O castigo educativo é o castigo que os que estão em Cristo passarão para serem educados, purificados e entrarem no reino.[7]

A distinção entre castigo punitivo e educativo

O argumento tenta sugerir que Clemente de Alexandria foi o primeiro a distinguir dois tipos de castigo e que isso derivaria diretamente da filosofia platônica. Entretanto, essa distinção não é uma inovação filosófica, mas encontra eco na própria Escritura. A Bíblia já apresenta essa diferenciação entre o castigo para a condenação eterna (inferno) e o castigo corretivo para os justos:

    • Hebreus 12,6: “Pois o Senhor corrige a quem ama, e castiga todo aquele que recebe como filho.”

    • 1 Coríntios 3,13-15: “A obra de cada um se tornará manifesta, pois o Dia a demonstrará. (…) Se a obra construída resistir, o construtor receberá recompensa. Se a obra se queimar, sofrerá prejuízo, porém será salvo, mas como alguém que passa pelo fogo.”

A doutrina do purgatório se fundamenta nessa noção de purificação dos justos antes de entrarem na visão beatífica. Portanto, Clemente não cria nada novo, apenas explicita um conceito já presente na Revelação divina.

O protestante continua com outras interpretações a respeito do pensamento de Orígenes, as quais não vamos colocar as palavras para o texto não ficar longo, mas responderemos a seguir:

Orígenes e o fogo purificador

O argumento tenta desqualificar Orígenes ao dizer que sua concepção de fogo purificador seria vaga e que sua escatologia não corresponderia à doutrina do purgatório. Contudo:

  • O desenvolvimento da doutrina do purgatório não depende exclusivamente das formulações individuais desse ou de qualquer outro Padre da Igreja, mas do conjunto da Tradição Apostólica.

  • O próprio conceito de fogo purificador, ainda que explicado de formas variadas pelos Padres, é uma constante na Tradição cristã. Santo Agostinho, São Gregório de Nissa, São Cirilo de Jerusalém e outros já faziam menção à purificação após a morte antes mesmo da definição formal do purgatório.

Além disso, Orígenes, mesmo tendo interpretações errôneas em certos aspectos (como a apocatástase, que foi rejeitada pela Igreja), não invalida o fato de que a ideia de purificação pós-morte já estava presente nos primeiros séculos. A Igreja reconhece que os Padres podem ter elementos corretos em suas teologias, mesmo que algumas de suas conclusões individuais sejam equivocadas.

A suposta incompatibilidade de Orígenes com a doutrina do purgatório

Em Orígenes, a doutrina do purgatório é muito clara. Se um homem parte desta vida com faltas mais leves, ele é condenado ao fogo que queima os materiais mais leves e prepara a alma para o Reino de Deus, onde nada impuro pode entrar.

Pois, se sobre o fundamento de Cristo você construiu não apenas ouro, prata e pedras preciosas (1 Coríntios 3), mas também madeira, feno e palha, o que espera quando a alma for separada do corpo? Você gostaria de entrar no céu com sua madeira, feno e palha e assim contaminar o Reino de Deus? Ou, por causa desses impedimentos, ficaria de fora e não receberia nenhuma recompensa por seu ouro, prata e pedras preciosas? Isso também não seria justo.

Resta então que você seja entregue ao fogo, que queimará os materiais leves; pois o nosso Deus, para aqueles que podem compreender as coisas celestes, é chamado de fogo purificador. Mas esse fogo não consome a criatura, e sim aquilo que a criatura construiu — madeira, feno e palha. É evidente que o fogo destrói a madeira das nossas transgressões e depois nos devolve a recompensa das nossas grandes obras.” (Patrologia Grega, vol. XIII, col. 445, 448)

Este trecho de Orígenes é uma das formulações mais claras e antigas da doutrina que a Igreja posteriormente desenvolveria como purgatório, mesmo que o termo e os contornos dogmáticos ainda não estivessem plenamente definidos em sua época.

1. Base bíblica e patrística sólida

Orígenes faz referência direta a 1 Coríntios 3, passagem frequentemente utilizada para justificar a ideia de uma purificação pós-morte:

A obra de cada um será provada pelo fogo […] se a obra se queimar, sofrerá prejuízo; ele, porém, será salvo, mas como que através do fogo (1Cor 3,13-15).

Ele interpreta esse “fogo” como um processo de purificação das imperfeições residuais da alma — os pecados veniais ou as faltas leves — antes de entrar na presença de Deus.

2. Conceito de Justiça e Misericórdia

Orígenes argumenta que não seria justo que as obras más ou imperfeitas simplesmente fossem ignoradas, nem tampouco que impedissem completamente a entrada no Reino. A justiça divina exige uma purificação, mas essa purificação não é condenação eterna — é uma forma de misericórdia que aperfeiçoa o justo.

3. Distinção entre pessoa e pecado

Outro ponto importante é a distinção entre o pecador e os pecados. O fogo não destrói a criatura, mas aquilo que ela construiu de modo imperfeito: madeira, feno e palha. Isso é absolutamente coerente com a doutrina católica do purgatório, que afirma que as almas no purgatório já estão salvas, mas ainda não totalmente purificadas.

Conclusão

O argumento protestante falha por três razões principais:

  1. Interpretação equivocada do desenvolvimento doutrinário – A Igreja não precisa encontrar a definição exata do purgatório nos primeiros séculos, mas apenas seus fundamentos. Da mesma forma que a Trindade foi definida posteriormente, a doutrina do purgatório foi explicitada ao longo do tempo.

  2. Deturpação do pensamento dos Padres da Igreja – O fato de Orígenes e Clemente explicarem a purificação de diferentes formas não significa que negavam a purificação pós-morte. Pelo contrário, suas reflexões mostram que esse conceito já estava presente na teologia cristã primitiva.

  3. Ignorância sobre a prática cristã das orações pelos mortos – A existência da oração pelos falecidos na Igreja Primitiva confirma que havia uma crença na eficácia dessas intercessões, o que só faz sentido dentro de uma doutrina de purificação pós-morte.

Portanto, a argumentação protestante contra o purgatório nesses dois escritores primitivos é insustentável, pois ignora a continuidade da Tradição e tenta usar equívocos individuais dos escritores como alguma testemunha contra a doutrina.

TERTULIANO


O autor protestante se alonga em várias considerações sobre Tertuliano, mas, para evitar uma resposta excessivamente extensa, optamos por nos limitar à argumentação central, sem citar diretamente seu texto. O trecho completo pode ser consultado na matéria original, cujo link foi fornecido no início deste texto. Agora, passaremos às nossas considerações.

1. Tertuliano acreditava em orações e sacrifícios pelos mortos

A citação:

Oferecemos sacrifícios pelos mortos em seus aniversários.

é inequívoca. Tertuliano está falando de uma prática litúrgica em favor dos mortos, um ato de intercessão. Ora, rezar ou oferecer sacrifícios por alguém que já está no céu (não precisa), ou no inferno (não adianta), implica logicamente que Tertuliano considerava a possibilidade de um estado intermediário em que essas orações tivessem eficácia espiritual.

2. A objeção “não há base bíblica, é tradição” não anula a doutrina

O autor do texto tenta invalidar o peso da prática porque Tertuliano reconhece que se baseia na tradição:

Se procurar nas Escrituras uma lei formal destas práticas e de outras semelhantes, não a encontrarás. É a tradição que as assegura, o costume que as confirma e a fé que as cumpre.

Mas isso, longe de ser uma confissão de erro, é uma reivindicação do valor da Tradição, que é justamente uma das colunas da fé cristã primitiva. A própria Bíblia foi transmitida dentro da Tradição Apostólica, e os cristãos dos primeiros séculos não viviam num “só a Escritura”.

Além disso, é um erro anacrônico exigir que autores do século II pensem em algo que só surgiu com o protestantismo do século XVI. Tertuliano está provando 3 pontos: Canonicidade de Macabeus, Tradição apostólica e oração em favor dos mortos.

3. O refrigerium não exclui a ideia de Purgatório

O autor do texto tenta contrapor o refrigerium interim com o Purgatório. Mas isso é uma falsa dicotomia. O refrigerium, de fato, é um estado de bem-aventurança provisória — uma espécie de consolo temporário antes da ressurreição. Mas não é mutuamente exclusivo de um processo purificatório.

Esse lugar, quero dizer o seio de Abraão, ainda que não seja celestial, mas superior aos infernos, oferece às almas dos justos um refrigério intermédio…

Note: ele fala dos “justos”. Ou seja, não exclui que outros — não totalmente justos — passem por outro processo. Se existe refrigério para uns, pode haver provação para outros.

4. O uso de 2 Macabeus é legítimo e reforçado por Tertuliano

O autor critica o uso de 2 Macabeus 12 como base para a oração pelos mortos, chamando-o de “apócrifo”. Mas:

    • O próprio Tertuliano não rejeitava o livro de Macabeus.

    • A prática descrita em Macabeus é paralela à mencionada por Tertuliano (sacrifício pelos mortos).

    • A prática é aproximadamente contemporânea a Tertuliano, e é muito anterior à formulação sistemática da doutrina do Purgatório no século XII. O argumento de que ela é “medieval” é historicamente fraco.

5. A questão do Hades e da espera da ressurreição

O texto final do “Tratado da Alma” é uma longa reflexão sobre o que acontece entre a morte e a ressurreição. Tertuliano fala de consolo e castigo antecipados, ou seja, recompensas e punições antes do juízo final. Isso já configura um estado intermediário.

Ele afirma que a alma pode sofrer sem o corpo, o que desmonta a tese protestante de “sono da alma” e sugere que há um sofrimento consciente. Isso não é o inferno eterno nem o paraíso eterno. É um estado transitório de espera que pode ser de alegria ou dor — exatamente o conceito embrionário do Purgatório.

6. O autor protestante recorre mais uma vez a historiadores como Goff e Christine Mohrmann para interpretar questões de natureza teológica. Contudo, é fundamental destacar que há outras autoridades amplamente reconhecidas nos estudos patrísticos que identificam, em Tertuliano, uma antecipação clara de elementos da doutrina do purgatório. A seguir, apresentamos alguns exemplos que reforçam essa perspectiva:

Cesar Vidal Manzareas, Manual de Patrística

Escatologicamente, Tertuliano acreditava na existência de um inferno eterno para os condenados (Apologético, capítulo XLVIII) e baseava-se na passagem de Mateus 5,25 para defender uma ideia de purgatório ou purificação da alma “após a morte”, que, no entanto, ele localizava no inferno e durante o período que vai da morte até a ressurreição (De Anima, capítulo LVIII). Mais ainda, Tertuliano sustentava que desse purgatório “avant la lettre” (antes do termo existir formalmente), somente os mártires estavam excluídos (De resurrectione carnis, capítulo XLIII). A situação das almas que se encontram nesse estado pode ser aliviada pelas orações dos vivos, como fazem as esposas que rezam por seus maridos falecidos (De monogamia, capítulo X).” (Adversus Marcionem, livro III, capítulo 24).” (Cesar Vidal Manzareas, Manual de Patrística PG 184-185)

J.N.D. Kelly – Early Christian Doctrines

A Eucaristia era também, evidentemente, o grande ato de culto dos cristãos — seu sacrifício. Os escritores e as liturgias da época são unânimes em reconhecê-la como tal. Clemente aplica o termo “sacrifício” (προσφορά, prosphora) à Eucaristia, citando a oferta de Melquisedeque como seu tipo (figura). Tertuliano define a função sacerdotal como a de “oferecer” (offere); a “oferta do sacrifício” é para ele uma ocasião cristã tão importante quanto a pregação da Palavra. Embora tenha sido o primeiro a mencioná-la, ele trata a oferta da Eucaristia pelos mortos (oblationes pro defunctis) como um dos costumes estabelecidos e santificados pela Tradição. (J.N.D. Kelly, Doutrinas Cristãs Antigas, p. 214)

Por fim, em sua argumentação, o autor protestante busca refutar a ideia de purgatório em Tertuliano com base em nuances terminológicas, que, no final, não conseguem contestar o ponto central: Tertuliano claramente sustentava a crença na purificação pós-morte e na eficácia das orações pelos mortos. Esses elementos estão em plena consonância com a doutrina do purgatório, ainda que o termo específico não fosse utilizado em sua época

SÃO CIPRIANO DE CARTAGO.


São Cipriano fala sobre a purificação após a morte:

Uma coisa é pedir perdão; outra coisa, alcançar a glória. Uma coisa é estar prisioneiro sem poder sair até ter pago o último centavo; outra coisa, receber simultaneamente o valor e o salário da fé. Uma coisa é ser torturado com longo sofrimento pelos pecados, para ser limpo e completamente purificado pelo fogo; outra coisa é ter sido purificado de todos os pecados pelo sofrimento. Uma coisa é estar suspenso até que ocorra a sentença de Deus no Dia do Juízo; outra coisa é ser coroado pelo Senhor (Epístola 51,20)

A objeção do protestante tenta demonstrar que São Cipriano:

  • Não acreditava em um Purgatório pós-morte, mas apenas em uma disciplina penitencial na Igreja.

  • Defendia uma visão de destino imediato após a morte, indo direto ao Paraíso.

  • Se contradiz se aceitasse Purgatório.

No entanto, essa leitura ignora o significado completo de suas palavras e a tradição da Igreja.

Ele fala:

Essa citação é a mais famosa utilizada na conta de Cipriano para sinalizar, supostamente, uma crença no purgatório. Não irei me estender muito, pois o objetivo deste trabalho é ser breve. Vamos para a análise de Goff usando o estudo de P. Jay que “poderiam ter sido definitivas. Considero pertinente a opinião de P. Jay que refutou a pseudo doutrina do Purgatório de S.
Cipriano. Do que se trata na carta a Antoniano é de uma comparação entre os cristãos que renegaram durante as perseguições (os lapsi e os apóstatas) e os mártires. Não se trata de «purgatório» no além mas de penitência cá em baixo. A prisão mencionada não é a de um purgatório, aliás ainda inexistente, mas a disciplina penitencial eclesiástica.”[25]”

A objeção apresentada contra a interpretação de Cipriano como alguém que acreditava no Purgatório recorre a um apelo à autoridade em vez de apresentar provas concretas. Em vez de analisar diretamente os textos de Cipriano e interpretá-los de maneira objetiva, o autor da objeção simplesmente cita um autor (P. Jay) que já havia “refutado” a doutrina do Purgatório em Cipriano, sem demonstrar com base nos próprios escritos do santo por que essa interpretação seria incorreta.

Esse tipo de argumento é problemático porque:

  1. Evita uma análise direta das fontes – Ao invés de confrontar os escritos de Cipriano e demonstrar por meio de exegese textual que ele não acreditava em um Purgatório, o autor se apoia na opinião de outro estudioso, como se isso encerrasse a questão.

  2. Não fornece evidências alternativas – Se a interpretação tradicional de Cipriano sugere uma crença em uma purificação pós-morte, a resposta deveria oferecer outra explicação para suas palavras, e não apenas negar essa interpretação com base na autoridade de um autor.

  3. Falsa impressão de consenso – Ao citar um estudioso específico, a objeção pode dar a falsa impressão de que essa é a única interpretação válida, quando, na realidade, há uma ampla discussão sobre o tema entre historiadores e teólogos, muitos dos quais defendem que Cipriano acreditava em uma purificação após a morte.

O apelo à autoridade, embora válido em alguns contextos, não substitui uma argumentação baseada em evidências textuais e históricas. Se Cipriano realmente não acreditava no Purgatório, seria necessário demonstrar isso diretamente a partir de seus próprios escritos, e não simplesmente afirmar que outro autor já refutou a ideia.

A citação de Cipriano mencionada na objeção é crucial para entendermos sua visão. Ele diz:

Uma coisa é aguardar o perdão, outra coisa é alcançar a glória; outra coisa ainda é ser mandado para a prisão (incarcere) para só sair depois de pago o último óbolo… outra coisa é ser libertado e purificado dos pecados por um longo sofrimento no fogo...

Aqui, Cipriano está claramente distinguindo diferentes estados após a morte. A noção de um sofrimento purificador no fogo não pode ser confundida com uma penitência meramente terrena, pois a expressão usada sugere um processo pós-morte.

Além disso, a menção à “prisão” da qual se pode sair após pagar o último óbolo remete diretamente a Mateus 5,25-26, onde Cristo fala sobre a necessidade de se pagar até o último centavo antes de ser libertado. A tradição cristã posterior usou essa passagem para fundamentar a ideia do Purgatório.

Se a passagem de Cipriano falasse apenas de penitência terrena, então não faria sentido falar de “prisão” e de um sofrimento pelo fogo purificador como processos distintos.

Depois de citar um texto a respeito do destino dos justos o protestante conclui:

Se a doutrina do Purgatório como é ensinado hoje e nos dias medievais é uma realidade para Cipriano, ele estaria se contradizendo em toda sua argumentação onde o mesmo procura alertar para que os cristãos fiquem felizes porque encontraremos muitos conhecidos e pessoas importantes no paraíso, e toda a argumentação dele gira em torno de um destino pós morte direto, se Cipriano acreditasse no Purgatório, isso seria contraditório pois quebraria toda a argumentação dele por causa da existência de um lugar que precisamos passar anos no fogo – sofrimento – sendo purificados para depois de muito tempo, chegar ao paraíso.

O trecho citados na objeção, onde Cipriano fala sobre a alegria de encontrar os santos no Céu, não excluem a possibilidade do Purgatório, o protestante está tirando uma conclusão pessoal, e querendo obrigá-lo a citar uma coisa para que confirmasse sua aceitação.

Na teologia católica, o destino final do justo é o Céu, mas isso não significa que ele não possa passar antes por uma purificação. Cipriano, ao enfatizar a esperança da glória futura, não está negando que alguns possam precisar ser purificados antes. O fato de ele falar sobre o destino final no Céu não exclui um estágio intermediário de purificação.

Mesmo que Cipriano não tivesse desenvolvido uma doutrina sistematizada do Purgatório, sua visão se encaixa perfeitamente na tradição cristã que levou à formulação dessa doutrina.

A objeção também ignora que Cipriano defendia a eficácia das orações pelos mortos em dezenas de outros textos, o que já pressupõe que as almas podem se beneficiar espiritualmente após a morte, algo coerente com a doutrina do Purgatório.

  1. Ele claramente distingue estados pós-morte, mencionando uma prisão e um fogo purificador.

  2. Seu discurso sobre a esperança na glória não exclui um processo de purificação intermediário.

  3. Sua visão está em harmonia com a tradição cristã primitiva e a posterior formulação do Purgatório.

Portanto, Cipriano não contradiz a doutrina católica do Purgatório, mas sim a reforça ao falar de um fogo purificador, da oração pelos falecidos e da necessidade de satisfação após a morte.

O renomado historiador protestante J.N.D. Kelly resume assim a doutrina de São Cipriano sobre o santo Sacrifício da Missa e a oração pelos mortos:

Como Cipriano expressa: ‘Quanto a mencionarmos Sua paixão em todos os nossos sacrifícios — pois é na paixão do Senhor que consiste o sacrifício que oferecemos (passio est enim Domini sacrificium quod offerimus) — devemos fazer nada além do que Ele próprio fez.’ O sacerdote, ao que parece, reencena sacramentalmente a oblação de Sua paixão, que o Salvador originalmente apresentou ao Pai. Além disso, fica claro, a partir do que ele diz em outros trechos sobre oferecer o sacrifício em favor de pessoas necessitadas e, especialmente, em favor dos mortos, que Cipriano concebia o sacrifício eucarístico como possuidor de uma eficácia objetiva.” (J.N.D. Kelly, Doutrinas Cristãs Antigas, p. 216)

Em outras palavras, São Cipriano via na Eucaristia não apenas uma memória simbólica, mas uma verdadeira atualização do sacrifício redentor de Cristo. E é justamente por acreditar na eficácia real e misteriosa desse sacrifício que ele a oferecia também pelos falecidos: para interceder por suas almas, a fim de que alcançassem mais depressa a purificação necessária e a entrada na glória eterna.

A oração pelos mortos, nesse contexto, está enraizada na fé de que a Igreja, como Corpo de Cristo, continua a exercer caridade e comunhão com seus membros falecidos, sustentando-os espiritualmente por meio do sacrifício eucarístico.

LACTÂNCIO


Porém, quando julgar os justos, Ele também os provará com fogo. Então aqueles cujos pecados excederem em peso ou número, serão chamuscados pelo fogo e queimados; mas aqueles a quem imbuiu a justiça e plena maturidade da virtude não perceberão esse fogo porque eles têm algo de Deus neles mesmos, que repele e rejeita a violência da chama. Tão grande é a força da inocência, que a chama se encolhe diante deles sem fazer mal; os quais receberam de Deus esse poder, que queima os ímpios, e está sob o comando dos justos. No entanto, não deixemos alguém imaginar que as almas são imediatamente julgadas após a morte. Todos são detidos num lugar comum de confinamento, até a chegada do tempo em que o grande juiz deve fazer uma investigação de sua culpa. Então, aqueles cuja piedade tiver sido aprovada, receberão a recompensa da imortalidade; mas eles dos quais os pecados e crimes devem ter sido trazidos à luz não irão subir novamente, mas serão escondidos na mesma escuridão com os ímpios, sendo destinados a determinada punição.”[29]

A respeito de Lactâncio o protestante argumenta:

Essa citação é importante porque foi utilizada pelo Veritatis em defesa do purgatório. Será Lactâncio uma testemunha da doutrina romanista? O site católico apenas coloca a citação até a parte negritada. Por que não continuaram a citação? A resposta parece óbvia, o que se segue é a prova de que Lactâncio não cria no purgatório. Ele realmente descreve algo semelhante ao purgatório, porém isso apenas aconteceria no futuro, após o julgamento, que não se dá logo após a morte. Para ele – “todos são detidos num mesmo lugar de confinamento”- o julgamento a qual nosso autor se refere irá acontecer após a volta triunfal de Cristo no juízo final, só então os justos pagarão pelas faltas ainda devidas. Portanto, há uma distinção primordial entre Lactâncio e a doutrina romana. A Igreja Romana ensina que o purgatório está em funcionamento no momento atual e que precede o juízo final, já o Pai da Igreja menciona um tipo de punição a ocorrer no futuro, após o juízo.

Esta interpretação é apontada por Le Goff:

Lactâncio (morto depois de 317) pensa que todos os falecidos, incluindo os justos, terão de sofrer a prova do fogo, mas situa esta prova no momento do juízo final.”[30]

Aqui, mais uma vez, vemos um apelo à autoridade sendo utilizado em vez de uma argumentação baseada em provas diretas. O autor da objeção não refuta diretamente o uso da citação de Lactâncio em favor do Purgatório, mas simplesmente invoca a interpretação de Le Goff para afirmar que Lactâncio não poderia sustentar a “doutrina romana”. Esse método de argumentação apresenta alguns problemas:

  1. Não confronta a citação original – A citação de Lactâncio claramente menciona um processo de purificação pelo fogo que afeta os justos, algo que se alinha com a ideia de um estado intermediário de purificação. Em vez de analisar o texto detalhadamente e demonstrar que esse conceito difere essencialmente do Purgatório, a objeção apenas declara que ele se refere ao fogo do juízo final, sem justificar essa afirmação com base no próprio texto.

  2. Supõe que a diferença de tempo invalida a similaridade conceitual – O autor argumenta que Lactâncio não poderia falar do Purgatório porque coloca a purificação no contexto do juízo final e não imediatamente após a morte. No entanto, essa distinção cronológica não muda o fato de que Lactâncio ainda descreve um processo de purificação pelo fogo antes da entrada dos justos na imortalidade, o que mantém a conexão conceitual com a doutrina do Purgatório.

  3. Novamente recorre a um estudioso para encerrar a questão – Em vez de apresentar uma análise textual aprofundada, o autor simplesmente cita Le Goff, sugerindo que sua interpretação deve ser aceita sem questionamento. Esse é um claro exemplo de apelo à autoridade, que tenta encerrar o debate com base na opinião de um “especialista” em vez de demonstrar o ponto por meio de uma argumentação sólida.

Se a intenção fosse realmente refutar a interpretação de que Lactâncio apoiava a ideia de purificação pós-morte, o correto seria apresentar um exame contextualizado da teologia de Lactâncio, mostrando como sua visão do pós-morte se diferencia da ideia de Purgatório. Em vez disso, o autor apenas usa a opinião de Le Goff como uma espécie de argumento de “autoridade definitiva”, sem explorar os detalhes do pensamento do próprio Lactâncio.

ÉFREM DA SÍRIA

Quando se cumprir o trigésimo dia [da minha morte], lembrai-vos de mim, irmãos. Os falecidos, com efeito, recebem ajuda graças a oferenda que fazem os vivos (…) Se como está escrito, os homens de Matatias encarregados do culto em favor do exército expiaram, pelas oferendas, as culpas daqueles que tinham perecido e eram ímpios por seus costumes, quanto mais os sacerdotes de Cristo, com suas santas oferendas e orações, expiarão os pecados dos falecidos” (Testamento, 72,28:EP 741).[18]

Sobre este trecho o protestante argumenta:

De fato Efrém acreditava que os falecidos seriam beneficiados pelas orações dos vivos. Porém, o trecho em que eu coloquei entre “{{{{{ }}}}}” não é encontrado em nenhum dos manuscritos gregos de Efrém, apenas no Siríaco, o que torna totalmente duvidoso, e alguns historiadores como Goff concordam que parece ser algo incluído posteriormente na tradução siríaca. O estudioso William Palmer diz: “Esta última passagem é de autoria muito duvidosa, pois não aparece em nenhum dos manuscritos gregos de obras de Efrém, somente é encontrado no siríaco.”

Essa argumentação apresenta falhas metodológicas e argumentativas. O argumento se baseia em uma estratégia comum: levantar dúvidas sobre a autenticidade de um trecho para invalidar seu conteúdo. No entanto, a ausência de um texto em manuscritos gregos não significa necessariamente que ele seja uma inserção posterior. A literatura de Efrém foi escrita originalmente em siríaco, e não em grego, o que enfraquece a crítica do protestante.

  • Se a obra original foi escrita em siríaco, então a versão siríaca tem mais peso do que a grega.

  • A existência de uma versão grega sem esse trecho pode ser explicada por omissões, já que muitas traduções gregas de textos siríacos são parciais e fragmentadas.

Aceita um trecho e rejeita outro por conveniência. O protestante não nega que Efrém acreditava que os falecidos poderiam ser ajudados pelas orações dos vivos. Ele apenas tenta desqualificar a parte mais explícita sobre a expiação dos pecados. Essa abordagem seletiva é inconsistente:

  • Se ele aceita que Efrém defendia orações pelos mortos, então já há um reconhecimento de que existe algum tipo de purificação pós-morte.

  • Por que confiar na autenticidade de parte da citação, mas rejeitar o restante apenas porque não consta em alguns manuscritos? Isso é cherry picking (seleção tendenciosa da evidência).

Mesmo se ignorarmos a passagem contestada, Efrém ainda ensina que os falecidos podem ser ajudados por oferendas e orações dos vivos. Isso já indica uma crença em um estado intermediário, onde as almas podem ser beneficiadas após a morte.

A objeção não apresenta uma explicação alternativa para essa crença. Se não há um estado intermediário de purificação, por que Efrém e outros Pais da Igreja ensinariam orações pelos mortos? A prática em si já reflete uma mentalidade purgatorial.

Apelo à William Palmer

O autor cita William Palmer, que é protestante e não acreditava no purgatório tanto quanto ele, para dar credibilidade ao argumento, mas sem apresentar uma análise crítica do porquê a versão siríaca deveria ser rejeitada. Isso é um apelo à autoridade, que na realidade não é autoridade nenhuma, apenas outro protestante em 1841, que segue negando a veracidade de uma citação com base em nada. Isso aqui que é realmente risível: um protestante citando outro protestante de mais de 100 anos atrás, sem qualquer base em atualização de pesquisas modernas sobre o assunto.

Além disso, muitos historiadores patrísticos consideram os escritos siríacos de Efrém autênticos, pois ele era um teólogo siríaco. Descartar um texto apenas porque está em siríaco seria uma forma de preconceito textual, ignorando o contexto da obra original.

Conclusão

A tentativa de refutar o uso de Efrém como testemunha da crença no Purgatório se baseia em suspeitas sobre um trecho específico, mas não responde ao ponto principal:

  • Efrém já acreditava na eficácia das orações pelos mortos, o que implica uma purificação pós-morte.

  • A ausência de um trecho em grego não prova que ele seja uma adição tardia, especialmente porque Efrém escreveu originalmente em siríaco.

  • A objeção falha ao não oferecer uma explicação alternativa para a prática de interceder pelos mortos.

Mesmo se ignorássemos a parte contestada, o pensamento de Efrém permanece alinhado com a crença em uma purificação após a morte, o que reforça a base patrística da doutrina do Purgatório.

BASÍLIO MAGNO

Penso que os valorosos atletas de Deus, os quais durante toda a sua vida estiveram frequentemente em luta contra os seus inimigos invisíveis, após terem superado todos os seus ataques, ao chegarem ao fim de suas vidas serão examinados pelo príncipe do século, a fim de que, se em consequência das lutas tiverem algumas feridas ou certas manchas ou vestígios de pecado, sejam detidos; porém, se são encontrados imunes e incontaminados, como invictos e livres encontram o descanso junto a Cristo” (Homilias sobre os Salmos 7,2: PG 29,232).

A tentativa de usar Basílio Magno para refutar o Purgatório apresenta falhas interpretativas e metodológicas, baseando-se em três principais estratégias falhas:

(1) distorção da citação principal,

(2) seleção tendenciosa de trechos isolados e

(3) falsa dicotomia entre purgatório e julgamento eterno.

Sobre a citação de São Basílio Magno, o protestante argumenta:

É muito cômico (e diz muito sobre os romanos) o fato de eles citarem apenas UMA citação de Basílio que supostamente apoia o Purgatório.

Ele tenta invalidar a evidência patrística com base em um suposto “critério de quantidade”, como se a verdade de uma doutrina dependesse do número de vezes que foi mencionada. No entanto, esse tipo de argumentação é falaciosa: uma única citação clara e direta de um Padre da Igreja pode ter mais peso do que inúmeras menções ambíguas.

Mas para não deixar dúvidas — e já que o interlocutor exige mais de uma citação — apresentamos uma passagem ainda mais explícita do próprio São Basílio, que evidencia com clareza seu entendimento sobre a purificação pós-morte:

Se, portanto, manifestamos nossos pecados por meio da confissão, teremos secado a erva enquanto ela crescia, claramente adequada para ser consumida e devorada pelo fogo purgatorial... Esse fogo não ameaça totalmente com destruição e extermínio, mas convida à purificação, conforme o ensinamento do Apóstolo: ‘será salvo, porém como que através do fogo.” (Comentário Sobre Isaías, cap. 9)

Esse trecho não apenas contradiz frontalmente a tese protestante de que Basílio não cria na purificação após a morte, como também confirma a doutrina do Purgatório com base nas Escrituras (cf. 1 Cor 3,15) e na Tradição patrística. Ou seja: não se trata de uma questão de quantidade, mas de clareza. E São Basílio foi bastante claro.

Depois continua:

Aqueles que forem encontrados manchados pelo pecado serão detidos pelo príncipe deste mundo – Satanás. É Satanás que irá examiná-los e detê-los, portanto, temos um qualificador que afasta a possibilidade de se referir ao purgatório. Provavelmente Basílio estava se referindo a condenação eterna.

O protestante afirma que em Basílio é Satanás quem examina as almas, o que afastaria qualquer conexão com a doutrina do Purgatório. No entanto, essa leitura é equivocada por três razões:

a) A purificação antes do Céu está presente no texto

Basílio descreve que aqueles que morrem ainda com feridas, manchas ou resquícios do pecado são retidos pelo “príncipe deste mundo”. Ora, isso implica que mesmo os justos podem morrer sem estar completamente purificados, o que já sugere um estado intermediário de purificação.

  • O texto diz que os que são puros entram diretamente no descanso de Cristo.

  • Os que possuem resíduos de pecado são detidos pelo “príncipe deste mundo”.

Se essa “detenção” fosse o inferno, não haveria distinção entre os “heróis invencíveis” e os “detidos”, mas Basílio claramente diferencia os dois grupos.

b) O Exame Final e a Purificação

A menção ao “príncipe deste mundo” deve ser entendida no contexto da teologia ascética de Basílio, que via a luta contra Satanás como parte da jornada espiritual. A provação no final da vida não significa condenação, mas sim um último teste antes de entrar no descanso. Portanto, essa interpretação não exclui o Purgatório, mas pode até reforçá-lo.

Seleção Tendenciosa de Outras Citações

O protestante tenta reforçar a ideia de que Basílio “desconhecia” o Purgatório com trechos que falam sobre julgamento e necessidade de obediência a Deus nesta vida. Contudo, esses trechos não são incompatíveis com a ideia de purificação após a morte.

a) A Distorção sobre o Perdão Pós-Morte

O argumento diz que Basílio não distingue pecados mortais e veniais e que ele afirma que não há mais chance de arrependimento depois da morte. Isso, supostamente, invalidaria o Purgatório.

No entanto, isso é um equívoco sobre a doutrina católica. O Purgatório não é um segundo arrependimento; ele é a purificação daqueles que já morreram na graça de Deus.

  • O Purgatório não existe para pecados mortais não arrependidos. Quem morre em pecado mortal vai para o inferno.

  • O Purgatório existe para os justos que ainda precisam de purificação, e isso não contradiz a necessidade de conversão nesta vida.

Basílio enfatizar a urgência do arrependimento nesta vida não exclui o Purgatório, isso é apenas a pura doutrina católica.

b) O Descanso é um Dom de Deus

Basílio diz que o descanso eterno não é um pagamento por méritos, mas um dom da graça de Deus. Mas isso não contradiz a purificação após a morte.

  • A Igreja ensina que a salvação é pela graça, mas que os justos ainda podem precisar de purificação.

  • O fato de Basílio falar sobre o descanso como um dom não implica que todos os justos entram imediatamente no Céu sem purificação.

Falsa Dicotomia Entre Purgatório e Condenação Eterna

O protestante tenta argumentar que, para Basílio, ou a alma está pura e vai para o Céu, ou está manchada e vai para o inferno. No entanto, Basílio claramente fala de pessoas que ainda possuem resíduos de pecado, o que implica um estado intermediário.

  • Se a alma com resquícios de pecado fosse imediatamente para o inferno, não haveria distinção entre os “heróis invencíveis” e os que precisam de purificação.

  • O conceito de purificação após a morte não é contrário ao ensino de Basílio, mas sim uma continuação lógica da sua teologia ascética.

Conclusão

A objeção falha por:

  1. Interpretar erroneamente o texto de Basílio sobre o exame das almas.

  2. Selecionar passagens que falam sobre julgamento, ignorando o contexto da purificação dos justos.

  3. Criar uma falsa oposição entre necessidade de conversão nesta vida e possibilidade de purificação após a morte.

Basílio pode não ter usado o termo “Purgatório”, mas sua teologia não exclui a purificação pós-morte – pelo contrário, reforça a ideia de que apenas os totalmente puros entram no descanso eterno, enquanto os outros passam por um processo final de purificação. Isso é exatamente o que a Igreja Católica ensina sobre o Purgatório.

CIRÍLO DE JERUSALÉM


Mais uma vez, o protestante tenta minimizar uma citação patrística — desta vez, de São Cirilo de Jerusalém — alegando que ela apenas atesta a prática de orações pelos mortos, sem, segundo ele, indicar qualquer doutrina de purificação pós-morte. No entanto, essa crítica ignora um ponto crucial da tradição patrística: a própria prática de orar pelos defuntos está intrinsicamente ligada à crença em um estado intermediário de purificação, ainda que este não esteja descrito nos moldes posteriores do purgatório escolástico.

O argumento protestante se apoia em uma suposta fragilidade da fonte citada — a quinta catequese mistagógica — questionando sua autoria e autenticidade:

O apologista romano traz uma citação de Cirilo que em nada endossa a doutrina do purgatório, apenas prova que ele recomendava a oração pelos mortos. Porém, importa destacar que a obra (quinta catequese mistagógica) de onde se tirou a citação é de origem duvidosa mais uma vez. O editor da série Fathers of Church escreveu: “De novo, a Mystagogiae, quer como obra teológica quer literária, parece imprópria de Cirilo. Em comparação com as virtudes do batismo nas Catequeses Quaresmais, definidas num rico contexto de teologia bíblica, a Mystagogiae parece um pouco insípida e falha, assim como obscura. Estupefação e exclamações de admiração tomaram o lugar da compreensão. Cirilo, por outro lado, empregava consideráveis recursos bíblicos e teológicos, a que correspondia um domínio notável da linguagem, um vocabulário muito rico e alguma imaginação. A dicção da Mystagogiae é, por comparação, indigente; eu deliberadamente, na minha tradução, deixei algumas das suas infelicidades não corrigidas.”

No entanto, trata-se aqui de mais um exemplo da falácia do cherry picking, ou seja, a seleção tendenciosa de opiniões que favorecem uma tese, ignorando o conjunto mais amplo das evidências. Essa tentativa de desqualificar a obra se baseia na opinião de um editor, sem apresentação de provas conclusivas que desautorizem sua atribuição tradicional a Cirilo.

Já tratamos dessa questão anteriormente em uma refutação detalhada sobre a autenticidade e valor das Catequeses Mistagógicas. A crítica protestante tem recorrido insistentemente à tentativa de desacreditar esses escritos — não por evidências históricas consistentes, mas porque eles confrontam diretamente seus erros doutrinários. Alegam que são apócrifos, de autoria desconhecida e tardia, uma invenção católica dos séculos posteriores. No entanto, tais acusações carecem de fundamentação documental sólida e não resistem ao exame honesto da tradição patrística, que reconhece o valor catequético e teológico dessas obras atribuídas a São Cirilo de Jerusalém.

Sobre a opinião de São Cirilo o protestante JND Kelly diz:

Embora grande parte da linguagem que eles utilizam seja convencional, encontramos uma declaração elaborada sobre o aspecto sacrificial em Cirilo de Jerusalém. Em conformidade com a tradição, ele se refere à Eucaristia como “o sacrifício espiritual” e “o culto incruento”, mas também a descreve como “o santo e mais temível sacrifício” e “o sacrifício de propiciação” (τῆς θυσίας … τοῦ ἱλασμοῦ), diante do qual Deus é suplicado pela paz das igrejas e por nossas necessidades terrenas em geral. De fato, a intercessão pode ser oferecida tanto pelos mortos quanto pelos vivos, enquanto a vítima temível jaz diante de nós, pois o que oferecemos é “Cristo imolado por causa dos nossos pecados, propiciando o Deus misericordioso tanto em favor deles quanto de nós mesmos.” (JND Kelly PG 451)

Muito longe do que o protestante acha o autor protestante Norman Kelly reforça fortemente a compreensão sacrificial e propiciatória da Eucaristia em são Cirilo de Jerusalém. A noção de que Cristo é verdadeiramente oferecido na Missa – como “vítima” diante de Deus – aponta para uma concepção da Eucaristia não apenas como memória simbólica, mas como atualização sacramental do sacrifício da Cruz, com efeitos reais. Isso se acentua com a afirmação de que se pode interceder tanto pelos vivos quanto pelos mortos, pois é Cristo, o mesmo que se entregou na cruz, quem está sendo misticamente oferecido, o que implica diretamente na purificação após a morte.

Cabe aqui outras considerações:

A Prática da Oração pelos Mortos Pressupõe um Estado Intermediário:

Se os mortos já estivessem imediatamente entregues ao seu destino final, seja o Céu ou o Inferno, não haveria razão para orar por eles. A prática de interceder por aqueles que já partiram pressupõe que as almas ainda podem ser beneficiadas ou purificadas. Esse entendimento é coerente com a doutrina do Purgatório, que sustenta que há um estado intermediário onde as almas dos fiéis são purificadas antes de desfrutarem a visão beatífica.

O Argumento Não Se Limita ao Literalismo:

Minimizar a citação por afirmar que ela “só demonstra a prática da oração” desconsidera que o ritual litúrgico e a teologia subjacente estão intimamente conectados. O fato de se orar pelos mortos é uma prática que encontra sua justificativa teológica justamente na existência de um estado em que as almas ainda podem ser auxiliadas, o que é uma característica fundamental do Purgatório segundo a doutrina católica.

Em suma, reduzir a citação de Cirilo à mera recomendação de orações pelos mortos é desconsiderar o contexto teológico que a torna significativa. Essa prática, comum na Igreja primitiva, pressupõe que há um estágio pós-morte no qual as almas podem receber a graça purificadora, evidenciando uma crença que se alinha com a doutrina do Purgatório.

EPIFÂNIO DE SALAMISSA


Santo Epifânio ensina:

Quanto à recitação dos nomes dos falecidos, o que pode haver de mais útil, oportuno e digno de louvor do que permitir que os presentes percebam que os falecidos continuam vivos, não foram reduzidos ao nada, mas existem e vivem junto do Senhor? Dessa forma, fortalece-se a esperança daqueles que rezam por seus irmãos falecidos, considerando-os como se estivessem em viagem para outra terra. São úteis, com efeito, as preces feitas em seu favor, ainda que não possam eliminar todas as suas culpas.[39]

Diante disso, o protestante argumenta:

Basta ler o contexto desta citação. Epifânio estava respondendo a Aério, que negava a oração pelos mortos, argumentando que isso incentivava uma conduta moral relaxada. Se Epifânio acreditasse na purgação de pecados após a morte, certamente teria explicado que a oração pelos falecidos é útil porque eles estão sendo purificados de pecados veniais ou cumprindo penitências não realizadas em vida. No entanto, ele não menciona nada disso, apenas afirma que nossas orações os beneficiam e que já vivem junto do Senhor.

Essa leitura ignora o verdadeiro contexto. O herege Aério rejeitava a oração pelos mortos com o argumento de que bastaria pedir intercessão antes de morrer para ser salvo, sem necessidade de arrependimento ou vida santa. Isso mostra que ele entendia que a oração pelos falecidos implicava expiação ou purificação após a morte—e Epifânio não nega essa implicação, mas apenas esclarece que nem todas as culpas podem ser apagadas dessa forma.

Se seguirmos a recomendação protestante de “ler o contexto”, encontramos a refutação clara de Epifânio:

E, quanto a nomear os mortos, o que poderia ser mais útil? O que poderia ser mais oportuno ou maravilhoso do que os vivos acreditarem que os falecidos ainda vivem, que não deixaram de existir, mas continuam a existir e a viver com o Senhor? E que a doutrina mais sagrada deva declarar que há esperança para aqueles que oram por seus irmãos, como se estes estivessem em viagem? (Panarion 75,7,1)

E, mais adiante:

E, embora a oração que oferecemos por eles não possa eliminar todas as suas faltas—[como poderia?], visto que frequentemente tropeçamos neste mundo, tanto de forma involuntária quanto deliberada—ela ainda é útil como indicação de algo mais perfeito. Pois nós recordamos tanto os justos quanto os pecadores. Embora oremos pelos pecadores, pela misericórdia de Deus […].”** (Panarion 75,7,3)

O trecho Embora oremos pelos pecadores, pela misericórdia de Deus reforça o propósito expiatório da oração pelos mortos. Afinal, se a intercessão pelos falecidos não tivesse nenhum efeito sobre seu estado espiritual, por que Epifânio destacaria a necessidade de pedir misericórdia para os pecadores?

Portanto, longe de negar a purificação após a morte, Epifânio confirma que nossas orações são eficazes para os falecidos, especialmente para os pecadores, a fim de que Deus lhes conceda misericórdia. Esse é exatamente o conceito de expiação pós-morte que o protestante tenta negar.

SÃO GREGÓRIO DE NISSA

Sobre a citação de são Gregório de nissa em sua Obra Da alma e A ressureição, claramente mostrando o fogo purgatorial, o protestante afirma:

O apologista traz uma citação de Gregório que segundo eles é “uma referência tão clara ao Purgatório que não necessita de nenhum comentário”. Porém, qualquer um que se dê o trabalho de pesquisar sobre este pai da Igreja perceberá que se trata do contrário, o bispo de Nissa também não é uma testemunha a favor da doutrina romanista.”

O argumento protestante tenta separar a visão de Gregório de Nissa da doutrina do Purgatório, alegando que ele cria em uma purificação universal (apokatástasis) e não em uma purificação punitiva ou expiatória. No entanto, essa argumentação comete alguns erros fundamentais:

1. São Gregório de Nissa realmente cria na purificação pós-morte? Sim.

O próprio autor da objeção admite que Gregório de Nissa ensinava que, após a morte, a alma deveria passar por um fogo purificador antes de entrar na presença de Deus. O trecho citado afirma claramente:

Quando ele renuncia a seu corpo e a diferença entre a virtude e o vício é conhecida, não pode se aproximar de Deus até que seja purificado com o fogo que limpa as manchas com as quais a sua alma está infectada. Esse mesmo fogo em outros cancelará a corrupção da matéria e a propensão ao mal

Essa é a definição clássica do Purgatório: um estado pós-morte onde as almas são purificadas antes de verem Deus face a face. A objeção tenta minimizar isso, argumentando que a visão de Gregório era diferente da “doutrina romana”, mas o fato central permanece: ele ensinava a purificação pós-morte.

2. A purificação universal anula a existência do Purgatório? Não!

O autor da objeção tenta associar Gregório à apokatástasis (restauração universal), afirmando que ele cria que todos seriam purificados e salvos, mesmo os pecadores impenitentes. No entanto, há dois problemas aqui:

  1. A apokatástasis não é ensinada de maneira unívoca por todos os Padres. Gregório menciona a ideia, mas ela não foi adotada como doutrina pela Igreja e, na verdade, foi condenada pelo II Concílio de Constantinopla (553) e São Gregório não é mencionado nas condenações como Orígenes.

  2. Mesmo que Gregório defendesse uma purificação universal, isso não contradiz a existência do Purgatório. A única diferença seria que, em sua visão, essa purificação seria aplicada a todos, enquanto a doutrina católica afirma que se restringe aos salvos que ainda necessitam de purificação, em tempos onde os concílios não haviam tratado do tempo, tais opiniões abrangentes são perfeitamente compreensíveis.

Ou seja, mesmo que Gregório tenha especulado sobre a salvação de todos, isso não elimina a crença na purificação pós-morte para aqueles que morreram na amizade de Deus.

Conclusão: Gregório de Nissa e o Purgatório

  • Gregório claramente ensina que existe uma purificação pelo fogo após a morte, algo essencial à doutrina do Purgatório.

  • A tentativa de ligá-lo exclusivamente à apokatástasis ignora que sua crença na purificação pós-morte está em acordo com a tradição patrística sobre o Purgatório.

  • O fato de ele não usar os termos teológicos desenvolvidos séculos depois não muda o conteúdo do que ele ensinava, assim como a ausência da palavra “Trindade” na Bíblia não significa que a doutrina não esteja presente.

Portanto, Gregório de Nissa é, sim, um dos Pais da Igreja que testemunham a crença em um processo de purificação após a morte, exatamente como ensina o Purgatório.


GREGÓRIO DE NAZIANZO


O autor traz Gregório de Nazianzo como uma prova contra o purgatório, embora não tenhamos mostrado no nosso texto e diz o seguinte:

O apologista não cita Nazianzo, porém, vou cita-lo por ter uma declaração interessante: “Após esta vida não há purgação.”[44]

O protestante coloca como a fonte desta citação a seguinte referencia: “Oratio 5 in Plagam grandinis, et orat. 42 in pascha. de Eccl. dogm., c. 79.” contudo não encontramos nas obras de São Gregório de Nazianzo disponíveis, não duvidando que seja verdade ou inventada, vamos explicar a luz da teologia deste Santo, mesmo não sabendo se é dele mesmo.

A afirmação que “após esta vida não há purgação” parece contradizer a doutrina do Purgatório à primeira vista, mas vamos analisar o contexto e sua posição geral sobre a purificação pós-morte.

1. O Contexto da Citação

A frase isolada pode dar a entender que Gregório negava qualquer tipo de purificação pós-morte. No entanto, os Padres da Igreja frequentemente usavam expressões categóricas para enfatizar aspectos específicos de suas doutrinas, sem necessariamente negar outros elementos.

Se analisarmos outras declarações de Gregório de Nazianzo, veremos que ele reconhecia a possibilidade de uma purificação após a morte. Por exemplo, em seu Sermão 7, ele menciona orações pelos mortos como uma prática válida e útil:

Quero dizer prazeres e sofrimentos, pois a razão reconhece que até mesmo estes frequentemente são instrumentos de salvação; encomendando a Ele as nossas próprias almas (cf. 1 Pedro 4,19) e as almas daqueles companheiros de jornada que, estando mais preparados, alcançaram o repouso antes de nós.” (Gregório de Nazianzo, Oração 7)

Nesta passagem, Gregório de Nazianzo expressa uma visão madura da vida cristã, na qual tanto os prazeres quanto os sofrimentos são aceitos como caminhos possíveis para a salvação, conforme a razão iluminada pela fé. Ao mencionar a entrega das próprias almas e das almas dos que já morreram, ele afirma a continuidade espiritual entre vivos e mortos e legitima a oração por aqueles que já partiram, indicando uma compreensão da comunhão dos santos e da esperança na salvação pós-morte. É um testemunho claro da confiança cristã na misericórdia divina para todos os que seguem o caminho de Deus, mesmo após a morte.

Em sua Obra sobre a Teofania ele fala:

Que esses homens, então, se quiserem, sigam o nosso caminho, que é o caminho de Cristo; mas, se não quiserem, sigam o seu próprio. Talvez nele sejam batizados com fogo, naquele último batismo que não é apenas mais doloroso, mas também mais longo, que devora madeira como capim e consome a palha de todo o mal.” (Teofania 39,19)

Serão batizados com fogo” — o último batismo Aqui ele faz umalusão direta a uma purificação pós-morte. Esse “batismo com fogo” é:

Mais doloroso — implica sofrimento;

Mais longo — denota duração, embora temporária (diferente do inferno, que é eterno);

Purificador — pois “devora madeira como capim” e “consome a palha de todo o mal”, linguagem simbólica comum para as imperfeições humanas, pecados e apegos mundanos.

Esse texto é claramente compatível com a doutrina católica do purgatório. O batismo com fogo mencionado não é o batismo sacramental, mas sim uma purificação dolorosa após a morte para os que não foram plenamente santificados em vida.

A imagem do fogo que consome madeira, capim e palha remete à passagem de 1 Coríntios 3:13-15, frequentemente citada nos textos patrísticos como base para a ideia do purgatório.

3. Como entender a declaração “Após esta vida não há purgação”?

Se Gregório afirmasse categoricamente que não há purificação pós-morte, estaria contradizendo a si mesmo em outras passagens. O mais provável é que ele estivesse se referindo a uma purgação voluntária, ou seja, à necessidade de buscar a santidade nesta vida, pois depois da morte o processo de purificação já não depende mais de uma vontade ou ação pessoal, mas exclusivamente da misericórdia de Deus.

Esse mesmo tipo de expressão aparece em outros Padres da Igreja, como São João Crisóstomo, que às vezes enfatizava que “após a morte não há penitência, mas ao mesmo tempo falava sobre a purificação das almas no além.

4. Conclusão

A citação isolada de Gregório de Nazianzo não pode ser usada como uma negação do Purgatório, pois:

  • Ele mesmo admite que orações pelos mortos são benéficas.

  • Ele fala de um fogo purificador que age após a morte.

  • A frase provavelmente enfatiza que a purificação voluntária só acontece nesta vida, mas isso não exclui uma purificação passiva pela misericórdia divina após a morte.

Portanto, longe de ser um argumento contra o Purgatório, a teologia de Gregório de Nazianzo reforça a crença em uma purificação das almas após a morte.

SÃO JOÃO CRISÓSTOMO

A argumentação protestante tenta negar que São João Crisóstomo acreditava na purificação pós-morte, mas ignora o contexto de seus escritos. Ele não apenas defendeu a oração pelos mortos, mas também fez referência a uma purificação no além. O fato de ele destacar a necessidade de arrependimento nesta vida não significa que negava o Purgatório, pois o conceito católico sempre enfatizou que o Purgatório não é para o perdão de pecados mortais, mas para a purificação daqueles que já estão salvos.

João Crisóstomo Ensinava a Oração Pelos Mortos

Os protestantes tentam minimizar a citação onde João Crisóstomo incentiva a oração pelos falecidos, mas seu significado é claro. Ele afirma que os mortos recebem consolo por meio dos sacrifícios oferecidos por eles:

Se os filhos de Jó foram purificados pelo sacrifício de seu pai, porque deveríamos duvidar que quando nós também oferecemos [o sacrifício] pelos que já partiram, recebem eles algum consolo? (Homilia sobre Filipenses 3, 9-10)

Se não houvesse um estado intermediário de purificação, qual seria o propósito de orar pelos mortos? João Crisóstomo claramente reconhecia que as almas podiam ser ajudadas após a morte, o que se alinha com a doutrina do Purgatório.

Ele reforça essa ideia ao dizer:

Levemos socorro a eles e celebremos sua memória. Se os filhos de Jó foram purificados pelo sacrifício de seu pai, por que duvidamos de que nossas oferendas pelos mortos levam-lhes algum consolo? (Homilias sobre 1Corintios 41,8)

Se não houvesse possibilidade de purificação no além, essa prática não faria sentido.

A argumentação Protestante Ignora a Distinção Entre Inferno e Purgatório. O protestante cita algumas passagens onde João Crisóstomo diz que o arrependimento deve ocorrer nesta vida e que o juízo virá após a morte, tentando sugerir que ele negava qualquer purificação depois da morte. No entanto, a doutrina católica não ensina que o Purgatório seja um segundo arrependimento ou uma segunda chance, mas sim uma purificação dos que já estão salvos.

O trecho citado:

Este tempo é para arrependimento, aquele para o julgamento. (Homilia sobre Mateus 6,12)

O Purgatório é destinado apenas àqueles que já foram salvos, mas ainda necessitam de purificação. João Crisóstomo não está negando a existência de um estado intermediário, apenas enfatizando que não há segunda chance para os condenados.

Ele reforça essa ideia em outro trecho:

O arrependimento é poderoso na terra; somente no hades é impotente.”(Homilia sobre a Parábola do Rico e Lázaro)

Essa afirmação não nega o Purgatório, pois a Igreja Católica nunca ensinou que há arrependimento no Purgatório. O que ocorre lá é purificação, não perdão de pecados mortais.

O protestante então entra em completo delírio argumentativo ao declarar:

O romanista não pode endossar as palavras de João Crisóstomo. Ele teria que dizer ironicamente: ‘Se vocês cometem pecados, arrependam-se e os confessem ao sacerdote. Depois que ele te absolver, faça a penitência prescrita; caso contrário, você pode ir para o inferno ou, no caso de pecados veniais, ter que passar um tempinho no purgatório.’ João Crisóstomo não era católico romano.

Na tentativa de ser irônico, o protestante acaba, inadvertidamente, reafirmando o que São João Crisóstomo de fato cria. Acreditava na confissão sacramental e no poder do sacerdote de perdoar pecados — como se vê claramente em sua obra O Sacerdócio (Livro 3, §5). E sim, João Crisóstomo também acreditava no perdão de pecados após a morte, como atesta de forma inequívoca sua  Homilia 41,8 sobre 1 Corintios 15,46: onde destaca a eficácia das orações dos vivos em benefício das almas dos falecidos:

Mas suponha-se que ele tenha partido com pecado sobre si; ainda assim, por esse motivo, deve-se alegrar-se, pois foi interrompido em seus pecados e não acrescentou mais à sua iniquidade; e deve-se ajudá-lo, tanto quanto possível, não com lágrimas, mas com orações, súplicas, esmolas e oferendas. Pois essas coisas não foram instituídas sem propósito, nem em vão fazemos menção dos falecidos durante os santos mistérios, nem nos aproximamos de Deus em favor deles, suplicando ao Cordeiro que está diante de nós, Aquele que tira o pecado do mundo — não em vão, mas para que algum alívio lhes advenha por isso.

Não em vão clama aquele que está junto ao altar, quando os tremendos mistérios são celebrados: “Por todos os que adormeceram em Cristo”, e por aqueles que fazem comemorações por eles. Pois, se não houvesse comemorações por eles, essas palavras não teriam sido ditas; já que o nosso culto não é uma mera encenação teatral — Deus nos livre! — mas é por ordenação do Espírito que essas coisas são feitas.

Prestemos, pois, ajuda a eles e façamos a comemoração por eles. Pois, se os filhos de Jó foram purificados pelo sacrifício do pai, por que duvidas de que, quando também oferecemos pelos falecidos, algum consolo lhes é concedido? Pois Deus costuma conceder as súplicas daqueles que intercedem pelos outros. E isto Paulo declarou, dizendo que, “pela intercessão de muitos, o dom concedido a nós seja reconhecido com ações de graças por muitos” (2 Coríntios 1:11).

Não nos cansemos, portanto, de socorrer os falecidos, tanto oferecendo em seu favor como obtendo orações por eles; pois a expiação comum do mundo está diante de nós. Portanto, com ousadia intercedemos pelo mundo inteiro, e mencionamos seus nomes juntamente com os dos mártires, dos confessores, dos sacerdotes. Pois, na verdade, somos todos um só corpo, ainda que alguns membros sejam mais gloriosos do que outros; e é possível obter perdão para eles de todas as formas: das nossas orações, das nossas ofertas feitas por eles, e daqueles cujos nomes são lembrados junto com os deles.

Por que, então, te entristeces? Por que lamentas, se está em teu poder reunir tanto perdão para os que partiram?” (Homilia 41,8 sobre 1 Corintios 15,46)

Esse trecho da Homilia 41 de São João Crisóstomo sobre 1 Coríntios é um testemunho claro e contundente da fé antiga da Igreja na eficácia das orações, esmolas e oferendas eucarísticas em favor dos mortos. Crisóstomo afirma que essas práticas não foram instituídas em vão, mas fazem parte da ordenação do Espírito Santo, e que por elas as almas dos falecidos recebem alívio, consolo e perdão. Ele ainda reforça que, assim como os filhos de Jó foram purificados pelos sacrifícios do pai, também os fiéis podem interceder pelos seus mortos.

Ele repete o mesmo ensinamento em outras homilias: Homilia 32 sobre Mateus, Homilia 84 sobre João, e Homilia 21 sobre os Atos dos Apóstolos.

Também na Homilia 6 sobre as Estátuas, ao povo de Antioquia descreve como o próprio sofrimento da cristão na terra serve como pagamento pelos seus pecados após sua morte:

Se, então, vês alguém nos mesmos pecados, e alguns deles lutando continuamente com a fome e mil aflições, enquanto outros se fartam, vivem luxuosamente e se entregam à gula, considera mais bem-aventurados aqueles que suportam os sofrimentos. Pois não apenas a chama da voluptuosidade é extinta por esses males, mas também eles partem para o Julgamento futuro — aquele terrível tribunal — tendo já pago aqui a maior parte da pena por seus pecados, pelos males que sofreram. (Homilia 6 sobre as estátuas)

Nesta passagem, São João Crisóstomo, ainda que escrevendo séculos antes da formulação explícita da doutrina do Purgatório pelo Magistério da Igreja, já expressa um pensamento que se harmoniza com essa crença. Ele afirma que aqueles que sofrem na vida — mesmo estando em pecado — estão, de certo modo, “pagando” por suas faltas através das tribulações, assim muitos já começam esse processo de purificação ainda nesta vida, ” tendo já pago aqui a maior parte da pena por seus pecados” por meio do sofrimento, da pobreza e das tribulações, a outra parte claramente será paga após a morte no Julgamento futuro

O próprio J.N.D. Kelly, que era anglicano reconhece que essa prática de intercessão pelos mortos em Crisóstomo:

É também, como já havia indicado Cirilo de Jerusalém, um sacrifício propiciatório tanto pelos mortos quanto pelos vivos. Não é em vão’, observa Crisóstomo, ‘que fazemos memória dos que partiram durante os divinos mistérios e intercedemos por eles, suplicando ao Cordeiro que está diante de nós e que tirou o pecado do mundo.‘” (J.N.D. Kelly, Early Chirstian Doctrines pg 252)

Esse trecho é extremamente importante do ponto de vista teológico e histórico.

1 – O termo “sacrifício propiciatório” é fortíssimo e central aqui. Ele indica que a Missa (ou a Liturgia Eucarística) não é apenas um memorial simbólico, mas uma real atualização sacramental do sacrifício de Cristo, oferecida em favor de vivos e mortos. Esse é um ponto-chave da doutrina católica, especialmente no que diz respeito à comunhão dos santos e ao purgatório.

2 – A menção de que a memória dos falecidos é feita durante os mistérios divinos (isto é, na Eucaristia) mostra que essa prática está inserida no coração do culto cristão primitivo. Isso não era uma devoção isolada ou algo secundário, mas parte integral da celebração litúrgica. Isso confere peso doutrinal e pastoral ao costume de rezar pelos defuntos durante a Missa, como a Igreja ainda faz hoje.

3 – Ao mencionar que as intercessões são feitas “ao Cordeiro que está diante de nós” Crisóstomo reforça a real presença de Cristo na Eucaristia e a sua função expiatória. Essa referência a João 1,29 — “Eis o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo” — aponta para o caráter salvífico do sacrifício de Cristo que continua sendo eficaz na Missa.

SANTO AGOSTINHO

O trecho mais cômico de todo o texto, digno de uma gargalhada teológica, é a tentativa quase desesperada de reduzir os ensinamentos de Santo Agostinho sobre o purgatório a meras “especulações”, ou pior, a algo “inconsistente” e “incerto”. Eis o que se diz:

Agostinho é largamente considerado o pai do Purgatório. Os católicos romanos citam-no muitas vezes referindo-se a algo semelhante à moderna doutrina católica. Mas o que esses não explicam é que Agostinho reconheceu que estava especulando. Em outras palavras, não estava transmitindo alguma tradição apostólica proferida de geração em geração em sucessão ininterrupta desde os apóstolos. Ao contrário, ele estava especulando sobre o que pode acontecer na vida após a morte.

Pois bem. Após uma leitura de seus escritos tais como Comentário ao Gênesis contra os Maniqueus (Livro II, 30), Confissões (IX, XIII, 34-37), Comentário ao Salmo 37,3, Enchiridion (69-70 e 109-110), Do Cuidado devido aos Mortos (1,2; 1,3; 4,2; 4,4), Das Oito Questões de Dulcício (II, 1-4) e, sobretudo, A Cidade de Deus (21,13; 21,16; 21,24; 21,26), o que encontramos não é hesitação, mas convicção. Não há uma “sombra” de dúvida. Ao longo de quase quarenta anos — de 388 a 427 d.C., até os últimos anos de sua vida — Agostinho fala de forma coerente, constante e articulada sobre a realidade do purgatório.

E mais: ele não apenas fala, ele define. Suas expressões são inequívocas:

Poenae purgatoriae – penas purgatórias (Cidade de Deus, XXI, 13 e 16)

Tormenta purgatoria – tormentos purgatórios (Cidade de Deus, XXI, 16)

Ignis purgatorius – fogo purgatório (Enchiridion, 69)

Poenae temporariae – penas temporárias, em contraste com as eternas (Cidade de Deus, XXI, 13)

Ignis purgationis – fogo da purgação (De Genesi contra Manichaeos, II, 30)

Ignis emendatorius – fogo corretivo (Enarrationes in Psalmos, 37,3)

E, como se não bastasse, na Cidade de Deus XXI, 13, em apenas doze linhas ele menciona poenae purgatoriae três vezes — e ainda usa como sinônimo poenae expiatoriae, penas expurgatórias. A insistência terminológica revela não especulação ocasional, mas uma doutrina amadurecida e reiterada.

Diante disso, cabe a pergunta: qual a probabilidade de um autor mencionar continuamente uma mesma “especulação” durante quatro décadas, com a mesma linguagem, em contextos teológicos distintos, sem jamais retratar-se ou relativizar suas afirmações?

A menos, é claro, que Agostinho tenha decidido especular com impressionante consistência, clareza e fidelidade à Tradição Apostólica — nesse caso, talvez seja a noção de “especulação” que precise ser revista.

É evidente que certas questões, como a natureza do fogo, permaneciam obscuras ou incertas para Santo Agostinho — o que é compreensível, dado que os Padres anteriores pouco haviam tratado do desas naturezas. Ele mesmo reconhece essas limitações em algumas de suas obras. A partir disso, alguns protestantes concluem, de forma precipitada, que o purgatório está totalmente ausente ou indefinido, o que configura uma clara falácia de se negar o todo com base em uma parte, ainda que o todo seja bastante evidente.

Para sustentar uma alegação sem fundamento, ele recorre novamente a Jacques Le Goff como se ele testemunhasse uma suposta mudança ou incerteza na doutrina de Santo Agostinho sobre o purgatório. Para isso, utiliza uma citação recortada e costurada a partir de trechos desconexos do livro The Birth of Purgatory :

[Joseph Ntedika] pôs o dedo num ponto chave, mostrando não apenas que a posição de Agostinho evoluiu ao longo dos anos, o que era de se esperar, mas que passou por uma mudança acentuada num ponto específico no tempo, que Ntedika situa no ano 413 (…) Na Carta a Dardinus (417), ele [Agostinho] esboçou uma geografia do além, onde não há lugar para o Purgatório.

Esse tipo de montagem – extraída de páginas distintas e de contextos completamente diferentes – surgiu em sites protestantes em inglês e, posteriormente, foi traduzida por protestantes brasileiros alguns anos atrás e até hoje utilizam como “trunfo” para alegar que Agostinho teria mudado de opinião ou vacilado. O problema é duplo: além de basearem seu argumento em uma obra que evidentemente não leram, ainda recorrem a uma citação manipulada, cujo contexto desconhecem por completo.

Vejamos o que de fato diz Le Goff. A primeira parte da citação está na página 85 da obra:

No seu excelente estudo sobre a evolução da doutrina do Purgatório em Santo Agostinho (Évolution de la doctrine du Purgatoire chez saint Augustin, 1966), Joseph Ntedika recenseou o conjunto dos numerosos textos agostinianos que constituem o processo do problema. Destacou, na maioria das vezes com acerto, o lugar de Agostinho na pré-história do Purgatório e mostrou o fato fundamental: a posição de Agostinho não só evoluiu, o que é normal, mas também se modificou consideravelmente a partir de determinado momento – que Ntedika situa em 413 – e cuja causa ele atribui à luta contra os laxistas do além, os misericordiosos (misericordes), contra os quais Agostinho se engaja com veemência a partir dessa data.

Le Goff, portanto, não está dizendo que Agostinho deixou de acreditar no purgatório ou mudou sua opinião, mas que sua posição se tornou mais rigorosa diante de doutrinas excessivamente indulgentes, como a dos misericordiosos, que pregavam que até homicidas poderiam ser purificados após a morte. Contra essa visão, Agostinho insiste que apenas aqueles que morreram na fé, fizeram o bem e acumularam boas obras podem passar por um processo de purificação, caso ainda reste algo a ser purificado.

Le Goff aprofunda essa análise nas páginas 90-91:

Depois de 413: duras penas purgatórias entre a morte e o Juízo para aqueles que não são inteiramente bons. A partir de 413, as convicções de Agostinho sobre a sorte dos mortos e, em particular, sobre a possibilidade de redenção após a morte tornam-se mais precisas e evoluem para posições mais restritivas. A maioria dos especialistas no pensamento agostiniano – especialmente Joseph Ntedika – viu com razão nesse endurecimento uma reação às ideias dos laxistas ‘misericordiosos’, que Agostinho considerava perigosas. (…) Reagindo, Agostinho afirmará que existem dois fogos: um fogo eterno, destinado aos condenados – para os quais qualquer sufrágio é inútil – e sobre o qual ele insiste com vigor; e um fogo purgatório, em relação ao qual demonstra mais hesitações. O que realmente importa para Agostinho, se assim podemos dizer, não é o futuro Purgatório, mas sim o Inferno.

Essa passagem desmonta por completo a alegação protestante, opinião dele ficou ainda mais clara depois de 413, contrariando a sugestão da montagem. A última parte da citação, retirada da página 93, também é distorcida. Vejamos o trecho com seu devido contexto:

A oposição de Agostinho aos ‘misericordiosos’ e a evolução do seu pensamento sobre a sorte dos mortos aparece no tratado De fide et operibus, de 413, mas se expressa sobretudo no Enchiridion, de 421, e no Livro XXI da Cidade de Deus, de 426-427.
Entretanto, ele fizera certas precisões a pedido de amigos. Na
Carta a Dardano, de 417, esboçava uma geografia do além na qual não havia lugar para o Purgatório. Ao comentar a história de Lázaro e do rico, Agostinho distinguia, de fato, uma região de tormentos e uma região de repouso, mas não as situava ambas nos infernos, como alguns afirmavam, pois a Escritura diz que Jesus desceu aos infernos, mas não que tenha visitado o seio de Abraão. Este, segundo ele, é apenas o paraíso – um nome genérico que não designa o Paraíso terrestre onde Deus havia colocado Adão antes do pecado.

Aqui, novamente, Le Goff não está dizendo que Agostinho rejeita a existência do purgatório, mas apenas que, na Carta a Dardano, ele não menciona um purgatório como lugar. Isso é coerente com o entendimento católico: a Igreja nunca definiu o purgatório como um “lugar” geográfico. O próprio Catecismo da Igreja Católica (n. 1031) afirma:

A Igreja denomina Purgatório esta purificação final dos eleitos, que é completamente distinta do castigo dos condenados.

Portanto, o purgatório é descrito como uma condição ou processo, não certamente ou dogmaticamente um local. Se Agostinho, ao descrever a geografia do além, não inclui um “lugar” purgatório, isso ainda assim está em perfeita consonância com o magistério católico e de modo algum implica uma negação da doutrina.

Além disso, o próprio Agostinho admite que a natureza do “fogo purificador” após a morte é uma “questão obscura” (obscura quaestio), reconhecendo as dificuldades de compreendê-lo plenamente – o que não é o mesmo que rejeitá-lo. Na Carta a Dardano, ele trata especificamente do céu e do inferno, ou seja, da salvação e condenação, e não da purificação dos salvos – tema que ele aborda em outras obras posteriores, como o Enchiridion e Cidade de Deus.

A crença dele no purgatório é atestado pela maioria dos especialistas em Santo Agostinho, embora ainda complementem que certos aspectos não eram claros em seu pensamento, por exemplo, citarei aqui Francisco Moriones que em seu livro “A Teologia de Santo Agostinho”, fala sobre a questão da dúvida em relação as penas:

Como tal, é claro, não se pode duvidar da crença de Agostinho na existência no purgatório. Em vez disso, a sua doutrina sobre a natureza das penas que as almas sofrem permanece obscura. Diversamente interpreta os versos de São Paulo (1 Cor 3,11-15), em particular as palavras , “como que através do fogo” (quasi per ignem), significando as tribulações desta vida, ou penalidades próprias da morte ou as explicou no sentido de um fogo real.” (Francisco Moriones – A Teologia de Santo Agostinho Pg 634. Editora BAC)

A Duvida de Agostinho se refere à natureza do castigo sofrido as almas detidas no purgatório, não na existência do mesmo” (Francisco Moriones – A Teologia de Santo Agostinho Pg 635. Editora BAC)

Vou colocar aqui também o A. Michel que fonte e é citado várias vezes por LeGoff em seu Livro:

Naturalmente, a doutrina do purgatório se insere entre o momento do julgamento particular e a entrada das as almas justas no céu. Parece que as hesitações de Santo Agostinho Sobre a natureza do fogo desaparecem, e os autores consideram como um fogo real semelhante ao do inferno. Assim, chegamos assim por ele a concepção Latina como encontramos nos teólogos sistemáticos na Idade Média.” (A. Michel – “Purgatoire” – Dictionnaire de Théologie catholique, col. 1192-1196)

Por fim, negar que a doutrina do purgatório está plenamente delineada no pensamento de Santo Agostinho é não apenas intelectualmente desonesto, mas também demonstra um nível de argumentação que beira a infantilidade — como alguém que, sem base alguma, insiste em impor sua vontade. As afirmações de Agostinho sobre a purificação após a morte são claras, recorrentes e amadurecidas ao longo de mais de quatro décadas de escritos. Não há espaço legítimo para dúvidas quanto à presença dessa doutrina em sua teologia, sobretudo quando se analisa o conjunto coerente de suas obras com honestidade intelectual.

REFUTAÇÃO DA CONCLUSÃO


A conclusão apresentada pelo apologista protestante parte de premissas falsas e interpretações seletivas dos escritos patrísticos. Vamos desmontar ponto por ponto a tese de que o Purgatório seria uma “invenção medieval”.

1. A Omissão da Tradição Patrística

O autor afirma que a evidência histórica contra a doutrina romanista do purgatório é esmagadora, mas ignora ou minimiza diversas evidências patrísticas que apontam para a crença em um processo de purificação após a morte.

Já demonstramos aqui em textos anteriores, mais de 29 padres da Igreja afirmando a purificação, fogo purgatório e a oração pelos mortos, bem como a inscrições funerárias desde o século I, os concílios da Igreja e também as próprias liturgias antigas todas em consonância sobre o auxílio que se deve ser dado aos mortos para sua purificação e descanso eterno.

Ora, se os mortos já estivessem no céu ou no inferno, a oração por eles seria inútil. Esse costume pressupõe a crença de que as almas podem ser ajudadas após a morte, o que é a base da doutrina do Purgatório.

Santo Agostinho, por exemplo, afirma:

Não se deve negar que as almas dos falecidos são aliviadas pela piedade de seus vivos, quando se oferece por elas o Sacrifício do Mediador, ou esmolas são dadas na Igreja.” (Santo Agostinho, Sermão 172, 2)

Isso refuta a ideia de que o Purgatório surgiu apenas na Idade Média.

2. A falsa afirmação de que os pais da igreja rejeitavam a purificação pós-morte

A conclusão protestante tenta fazer parecer que a crença no Purgatório não existia na Igreja primitiva. Isso é falso. Diversos Padres da Igreja falam explicitamente sobre um processo de purificação após a morte:

  • Tertuliano (†220): menciona sufrágios e sacrifícios pelos falecidos (De Monogamia, 10).

  • Clemente de Alexandria (†215): fala de um fogo purificador para as almas (Stromata, 7,6).

  • Orígenes (†253): fala de uma purificação após a morte (Contra Celso, 2, 30).

  • Cipriano de Cartago (†258): menciona que as orações ajudam os mortos (Epístola 4,2).

  • Basílio Magno (†379): fala sobre a purificação das almas (Homilia sobre o Salmo 7).

  • Gregório de Nissa (†394): menciona o fogo purificador (Sobre a Alma e a Ressurreição).

  • João Crisóstomo (†407): defende orações pelos mortos (Homilia 41 sobre 1 Coríntios).

3. A Falácia sobre Orígenes e Gregório de Nissa

O apologista argumenta que a crença na purificação pós-morte entre Orígenes e Gregório de Nissa estaria ligada à apokatastasis (salvação universal), e que por isso o conceito não poderia ser associado ao Purgatório. Isso é uma distorção. O fato de alguns Padres defenderem a salvação universal não significa que o conceito de purificação pós-morte fosse rejeitado pelos demais e que não estivessem ali. Mesmo aqueles que não acreditavam na apokatastasis ainda falavam de purificação.

Por exemplo, Santo Agostinho, que rejeitou veementemente a doutrina da salvação universal, ainda defendia a purificação das almas após a morte:

Não há dúvida de que as orações da Igreja, do santo sacrifício e das esmolas ajudam os falecidos, para que o Senhor os trate com mais clemência do que seus pecados merecem.” (Cidade de Deus, XXI, 24)

4. O Uso Equivocado de Santo Agostinho

O autor afirma que Agostinho estava apenas especulando sobre a existência do Purgatório, e que isso não passou de uma ideia medieval. Isso é falso.

Santo Agostinho não via a purificação pós-morte como mera especulação, mas sim como uma realidade:

Mas por que não se haveria de acreditar que as almas dos mortos são aliviadas pelos méritos de seus amigos quando, durante esta vida, Deus permite que um homem seja ajudado por outro? (Enquirídio, 110)

O fato de a doutrina ter sido definida oficialmente posteriomente não significa que tenha sido inventada nessa época. Da mesma forma, a definição da Trindade no Concílio de Niceia (325) não significa que a Trindade tenha sido inventada no século IV.

5. A Definição Dogmática Não Implica Invenção

A conclusão afirma que o Purgatório só foi aceito oficialmente no segundo milênio, tentando sugerir que isso prova sua origem tardia. No entanto, muitas doutrinas cristãs só foram dogmatizadas séculos depois dos apóstolos, como:

  • A divindade de Cristo (Concílio de Niceia, 325)

  • A dupla natureza de Cristo (Concílio de Calcedônia, 451)

O próprio Calvino admite que sua doutrina da predestinação não foi ensinada por nenhum dos padres (exceto Agostinho) e não se importava se isso foi aceito antigamente ou não.

Ainda assim o fato de a Igreja ter definido o Purgatório dogmaticamente no Concílio de Florença (1439) e no Concílio de Trento (1563) não significa que a crença não existisse antes.

CONCLUSÃO


O argumento protestante falha em vários aspectos:

1 – Confunde, Ignora e tenta minimizar o testemunho patrístico sobre orações pelos mortos.

2 – Desconsidera a crença na purificação pós-morte presente nos primeiros séculos.

3 – Interpreta erroneamente o pensamento de Orígenes e Gregório de Nissa, São João Crisóstomo e vários outros.

4 – Deturpa o pensamento de Santo Agostinho.

5 – Confunde o momento da definição dogmática com a origem da doutrina.

Portanto, a doutrina do Purgatório não é uma invenção medieval, mas uma crença enraizada na Tradição Cristã desde os primeiros séculos.

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