A doutrina católica do purgatório parte da convicção de que algumas pessoas morrem ainda portando faltas leves (pecados veniais) não plenamente arrependidas, ou com a pena temporal devida ao pecado não completamente satisfeita nesta vida. Essas almas, contudo, podem ser purificadas após a morte pela misericórdia divina, sendo auxiliadas também pelas orações e sufrágios oferecidos pelos vivos. Neste texto, apresentaremos as evidências dessa doutrina cristã no pensamento da Igreja primitiva.
As provas para a posição católica, tanto nas Escrituras quanto na Tradição, estão vinculadas também à prática de orar pelos mortos . Pois por que orar pelos mortos , se não há crença no poder da oração para proporcionar consolo àqueles que ainda estão excluídos da visão de Deus ? Tão verdadeira é essa posição que orações pelos mortos e a existência de uma purgação são mencionadas em conjunto nas passagens mais antigas dos Padres, que alegam razões para socorrer as almas dos que partiram.
Existem várias passagens no Novo Testamento que apontam para um processo de purificação após a morte. Assim, Jesus Cristo declara ( Mateus 12:32 ):
“E qualquer que disser uma palavra contra o Filho do homem , isso lhe será perdoado; mas aquele que falar contra o Espírito Santo , isso não lhe será perdoado, nem neste mundo, nem no mundo vindouro.”
De acordo com Santo Isidoro de Sevilha no século VI e VII essas palavras provam que na próxima vida:
“alguns pecados serão perdoados e expurgados por um certo fogo purificador.” (Deord. creatur., c. xiv, n. 6)
Santo Agostinho também argumenta:
“que alguns pecadores não são perdoados nem neste mundo nem no próximo não seria verdadeiramente dito a menos que houvesse outros que, embora não perdoados neste mundo, são perdoados no mundo vindouro.”( Cidade de Deus XXI, 24 ).
A mesma interpretação é dada por Gregório Magno (Dialogo., IV, 39):
“Mas ainda assim, devemos acreditar que antes do dia do julgamento há um fogo de purgatório para certos pequenos pecados, porque nosso Salvador diz que aquele que blasfema contra o Espírito Santo, não será perdoado, nem neste mundo, nem no mundo vindouro (Mateus 12:32)”.
Um argumento adicional é fornecido por São Paulo em 1 Coríntios 3:11-15 :
“Quanto ao fundamento, ninguém pode pôr outro diverso daquele que já foi posto: Jesus Cristo. Agora, se alguém edifica sobre este fundamento, com ouro, ou com prata, ou com pedras preciosas, com madeira, ou com feno, ou com palha, a obra de cada um aparecerá. O dia (do julgamento) irá demonstrá-lo. Será descoberto pelo fogo; o fogo provará o que vale o trabalho de cada um. Se a construção resistir, o construtor receberá a recompensa. Se pegar fogo, arcará com os danos. Ele será salvo, porém passando de alguma maneira através do fogo.”
Embora esta passagem apresente considerável dificuldade, ela é considerada por muitos dos Padres e teólogos como evidência da existência de um estado intermediário no qual os resquícios das transgressões mais leves serão queimados, e a alma assim purificada será salva . Esta, de acordo com S. Belarmino (De Purg., I, 5), é a interpretação comumente dada pelos Padres e teólogos ; e ele cita para este efeito:
-
-
Orígenes (Homilia VI – Sobre Êxodo).
-
Santo Ambrósio (Comentário sobre o texto e Sermão XX Sobre Salmo 117)
-
São Jerônimo , (Comentário sobre o profeta Amós IV)
-
Santo Agostinho (Sermão sobre o Salmo 37)
-
São Gregório (Diálogo, IV, 39)
-
Assim a doutrina do purgatório tem tanto uma base bíblica, quanto uma base na tradição da Igreja e ensinamento dos padres, passaremos então em analisar objeções e o ensinamento universal dos diversos padres da Igreja.
OBJEÇÕES AO PURGATÓRIO: APOCATÁSTASE, CONSOLO, ENTENDIMENTO DIFERENTE.
Alguns opositores da doutrina do purgatório, ao se depararem com as inúmeras referências ao fogo purgatorial, mencionadas principalmente pelos Padres Gregos, argumentam principalmente que:
-
-
Que o fogo expiatório para os Padres, é só no dia do julgamento.
-
Que alguns Padres acreditavam na apocatástase que é a doutrina de uma purificação (salvação) universal (universalismo), até para os demônios, e que vai além da ideia do purgatório.
-
Essa ideia foi trazida do platonismo.
-
Que alguns padres diziam que até percados mortais poderiam ser perdoados após a morte, o que não é compatível com o purgatório católico que só aceita veniais.
-
É falacioso negar o purgatório devido a erros em matérias distintas. O fato de uma doutrina ainda não estar definida com todos os seus limites e nuances não significa que não era crida, mesmo que Padres diferentes utilizassem termos distintos para descrevê-la. Assim como os Padres anteriores aos concílios cristológicos não tinham uma formulação explícita do conceito da Trindade e alguns demonstravam tendências ao subordinacionismo em maior ou menor grau, isso não invalida a doutrina da Trindade que foi definida posteriormente.
O consenso universal (consensus patrum) entre os Padres da Igreja é a crença em um fogo expiatório após a morte para aqueles cristãos que morreram com pecados e que a oração dos vivos seria eficaz para tal, isto independe se esse fogo abrangia mais ou menos pessoas, e o tamanho dos pecados. Portanto, temos dentre os padres um Consenso sobre:
1. Oração pelos Mortos
2. Fogo Purificador para os pecados e faltas.
A partir dessas realidades transmitidas pelos apóstolos os padres tentaram explicar como esse fogo agiria e como as orações dos vivos seriam eficazes para tal. Por exemplo, Clemente de Alexandria e Orígenes, cada um à sua maneira, foram pioneiros nas tentativas de sistematizar a ideia de uma expiação purificadora para as almas que ainda poderiam se reconciliar plenamente com Deus. Para essa explicação eles se apoiaram em categorias platônicas, não porque estivessem extraindo de Platão a noção cristã da purificação dos eleitos, mas porque tanto os primeiros cristãos quanto os teólogos medievais e escolásticos viam na filosofia grega um instrumento útil à teologia. Os filósofos gregos, ainda que limitados à razão natural, alcançaram profundas verdades sobre a realidade espiritual, mesmo sem atingir o pleno conhecimento de Deus revelado em Cristo. Portanto, embora Orígenes tenha caído no erro da apocatástase — a salvação universal — isso não nos impede de reconhecê-lo, junto com Clemente, como testemunha explícita da crença em um estado intermediário de purificação, que mais tarde seria plenamente desenvolvido na doutrina do purgatório.
Na tradução do protestante Philip Schaff da Obra Homilias sobre as estátuas ao povo de Antioquia de São João Crisóstomo, quando este fala sobre a passagem do fogo em I Coríntios, há a seguinte na nota de Rodapé:
“Era a opinião comum dos Padres Gregos que o fogo do dia do julgamento causaria um sofrimento severo a alguns daqueles que seriam finalmente salvos, e que esse sofrimento poderia ser mitigado por um arrependimento severo, em certa medida pelo sofrimento aqui, e pelas orações de outros.” Nota 1318 [https://ccel.org/ccel/schaff/npnf109.xix.viii.html]
Embora ele queira colocar a opinião dos padres como sendo crentes em um fogo tardio só lá para o dia do julgamento final, o que veremos que não é verdade, admite que existe sim um senso ou opinião comum sobre o fogo que atormentará os salvos e que as orações dos outros aliviariam estes tormentos, o que é exatamente a doutrina do purgatório. Ainda assim, a diferença de tempo não invalida a similaridade conceitual, ainda que existisse essa distinção cronológica não muda o fato de que os padres gregos são unânimes em descrever um processo de purificação pelo fogo antes da entrada dos justos na imortalidade, o que mantém a conexão conceitual com a doutrina do Purgatório.
Depois de elencar vários exemplos da interpretação de 1 Cor 3,15, ele menciona ainda:
“Não há uma doutrina minuciosamente definida e universal sobre o assunto. Veja Fleury, livro 19, c. 31.”
O que de fato é verdade, isso foi apenas definido mais tarde, mas a base da doutrina já está ali, desde as escrituras. Portanto, enquanto as nuances e os entendimentos específicos possam variar, a crença na purificação após a morte tem um forte fundamento nos ensinamentos dos Padres da Igreja.
O II Concílio de Constantinopla sabiamente rejeitou a ideia de uma restauração universal ou apocatástase para impios e demônios:
“Se alguém diz ou pensa que a punição dos demônios e de homens ímpios é apenas temporária, e um dia terá fim, e que uma restauração (ἀποκατάστασις) abrangerá demônios e homens ímpios, que ele seja anátema.
Anátema a Orígenes e Adamâncio, que estabeleceram estas opiniões em conjunto com a sua doutrina nefasta, execrável e má e a quem pense assim, ou defenda essas opiniões, ou de qualquer forma daqui por diante em qualquer tempo a quem tiver a presunção de protegê-los.” (II concílio de Constantinopla – Cânon IX)
Assim, se os padres rejeitassem a ideia do fogo purgatório após a morte, seria aqui o momento exato, quando já estavam condenando Orígenes, pelo erro da purgação universal, também condenarem o fogo purgativo mencionado por dezenas de outros padres após Orígenes, porém rejeitaram apenas a ideia da restauração universal. Logo, mesmo que a apocatástase de Orígenes tenha sido rejeitada, a ideia de uma purificação pós-morte permanece como uma crença significativa e bem fundamentada na tradição patrística.
Os padres do Primeiro concílio ecumênico de Lião no século XIII, onde a doutrina do purgatório foi primeiramente traçada, estavam bem cientes das ideias dos padres gregos e sua crença no fogo purgatório por isso promulgou:
“…Finalmente, afirmando a Verdade no Evangelho, que se alguém blasfemar contra o Espírito Santo não ser-lhe-á perdoada nem neste mundo nem no futuro [Mat. 12,32], o que dá a entender que algumas culpas são perdoadas no século presente e outras no futuro, bem como também disse o Apóstolo, que o fogo provará a obra de cada um; e aquele cuja obra arder sofrerá dano; ele, porém, se salvará, mas como quem passa pelo fogo [1Cor. 3,13.15]; e como os próprios gregos dizem que creem e afirmam verdadeira e indubitavelmente que as almas daqueles que morrem, recebida a penitência, porém sem cumpri-la; ou sem pecado mortal, mas apenas veniais e pequenos; são purificadas após a morte e podem ser auxiliadas pelos sufrágios da Igreja; visto que [os gregos] dizem que o lugar desta purificação não lhes foi indicado com nome certo e próprio por seus doutores, como nós que, de acordo com as tradições e autoridades dos Santos Padres, o chamamos ‘Purgatório’, queremos que daqui por diante também eles o chamem por este nome. Porque com aquele fogo transitório certamente são purificados os pecados, não os criminais ou capitais que antes não tenham sido perdoados pela penitência, mas os pequenos ou veniais, que pesam mesmo depois da morte, ainda que tenham sido perdoados em vida…” (Concílio Ecumênico de Lião I, 13º Ecumênico).
Portanto, é falacioso e intelectualmente desonesto usar as tentativas dos Padres da Igreja de explicarem como o fogo purificador atuaria, ou como nossas orações beneficiariam os falecidos, para alegar que eles não criam no purgatório, pois a evidência em favor dessa crença é ampla, consistente e inegável.
OS PADRES ORAVAM PELOS MORTOS PRA NADA?
A oração em favor dos mortos é tão abundante nos escritos dos padres da Igreja, que podemos dizer que há mais evidências patrísticas apoiando a oração pelos mortos do que para os dogmas centrais da Trindade ou da Cristologia. No entanto, os opositores não podendo negar todas essas evidências argumentam também:
1) Oravam pelos mortos, mas não quer dizer que acreditavam no purgatório.
2) Oravam pelos mortos só por amor ou luto.
Resposta a legação 1:
Essa alegação falha ao ignorar o contexto e a teologia subjacente às práticas dos primeiros cristãos e dos Padres da Igreja. A oração pelos mortos implica uma crença em um estado pós-morte onde as almas podem se beneficiar dessas orações. Se não houvesse uma crença em algum tipo de purificação ou necessidade de ajuda espiritual após a morte, a prática de oração pelos mortos seria teologicamente incoerente.
Os Padres da Igreja, como São Cipriano, São João Crisóstomo e São Gregório Magno, entre outros, falaram explicitamente sobre a necessidade de interceder pelas almas dos falecidos, sugerindo que essas almas estavam em um estado onde podiam se beneficiar de tais intercessões. Isso é consistente com a doutrina do purgatório, onde as almas são purificadas antes de entrarem na plena presença de Deus.
O famoso concílio Africano de Cartago no seu Cânone 41 fala sobre a oração dos mortos durante o sacrifício da Missa:
“Que os homens que jejuam devem oferecer sacrifícios a Deus
Que os Sacramentos do Altar não devem ser celebrados exceto por aqueles que estão em jejum , exceto no aniversário da celebração da Ceia do Senhor; pois se a celebração de alguns dos mortos, sejam bispos ou outros, for feita à tarde, que seja somente com orações, se aqueles que oficiam já tiverem tomado café da manhã.”.
Além de formalizar a oração pelos mortos, ainda diz que o sacrifício da missa deve ser oferecido em jejum. Assim para que colocar no culto cristão a oração pelos mortos para nada, já que não se aceitavam em nenhuma eficácia dessas orações?
Resposta a alegação 2:
Embora o amor e a caridade sejam, sem dúvida, motivadores para a oração pelos mortos, reduzir essa prática apenas a uma expressão de afeto ignora a teologia subjacente das orações de intercessão. A tradição cristã ensina que as orações pelos mortos têm um efeito real e concreto no estado das almas que estão sendo purificadas.
Santo Agostinho, por exemplo, em suas Confissões e em outros escritos, fala sobre as orações pelos mortos como um meio de ajudá-los a alcançar a paz e a purificação necessárias para entrar no céu. Se a oração fosse apenas uma expressão de amor sem eficácia real, os ensinamentos e a prática contínua da Igreja ao longo dos séculos seriam logicamente inconsistentes.
O luto é outro argumento fraco, uma vez que era costume orar pelos falecidos em seus aniversários de morte. Assim, é improvável que os lutos comuns durassem anos a fio, ao ponto de se continuar orando por um ente querido apenas por mero luto, tanto tempo após sua morte.
A oração pelos mortos, praticada pelos Padres da Igreja, está intimamente ligada à crença em um estado intermediário de purificação após a morte. Negar essa ligação é falacioso e ignora a rica tradição teológica e prática da Igreja primitiva. As orações pelos mortos são tanto uma expressão de amor quanto uma intercessão eficaz para as almas que estão sendo purificadas, conforme ensinado pela Igreja desde os seus primórdios.
A seguir vamos ler quatro coisas que Calvino diz em suas Institutas, livro 3, cap. 5, §10:
Primeiro ele diz:
“Há 1300 anos, o costume de oferecer orações pelos mortos foi adotado.”
E, após interpor alguns comentários, ele acrescenta:
“Mas eu declaro que todos foram levados ao erro.”
Esta confissão é certamente suficiente para condenar Calvino, pois como é crível que a Igreja persistiu em tal erro grosseiro por 1300 anos até o iluminado Calvino aparecer, e não houve um dos antigos que o resistisse, com exceção de Aério, a quem tanto nós quanto os calvinistas consideramos herege?
Em segundo lugar, ele diz que os antigos oravam pelos mortos não para ajudá-los, mas para demonstrar afeição piedosa por eles e para se consolar. Mas isso é uma mentira, já que claramente os Padres dizem que ajuda as almas, e eles distinguem o consolo dos vivos da ajuda conferida aos mortos, especialmente Santo Agostinho no Enchiridion, cap. 110 e ao longo de seu livro d O Cuidado devido aos mortos.
Em terceiro lugar, ele diz que o povo cristão comum começou a orar pelos mortos por imitação dos pagãos, e além disso, os Padres acomodaram-se à opinião do rebanho. A respeito disso, Calvino diz:
“Ele argumenta de forma tão duvidosa, hesitante e tíbia, que com sua frieza poderia extinguir o zelo daqueles que defendem o Purgatório. Ele orou por sua mãe porque não examinou as escrituras e atendeu o desejo dela, e quis aprovar tudo isso a partir de uma certa emoção privada.”
Mas isso também é uma mentira, pois, em primeiro lugar, nunca houve alguém mais diligente do que os Padres em proibir os ritos pagãos, especialmente quando muitos pagãos estavam se convertendo. Certamente Tertuliano e Cipriano foram castigadores severíssimos de toda superstição pagã, a ponto de Tertuliano repreender amargamente os soldados cristãos que usavam uma coroa no costume dos soldados pagãos, e ainda assim eles incentivavam a oração pelos mortos. Além disso, os Padres não apenas não repreendem este costume, mas até decidem em seus Concílios que deve ser feito, e incentivam que seja feito, e dão o exemplo por suas próprias ações, e finalmente muitos deles dizem que isto é tradição Apostólica, e consideram Aério entre os hereges por ensinar o contrário.
O que mais poderiam dizer? Além disso, Santo Agostinho, em seu livro O cuidado devido aos mortos, cap. 4, diz precisamente que não há dúvida de que as almas são ajudadas, e em todo o livro não há uma única sílaba que insinue a menor dúvida, da qual Calvino fala. Além disso, o fato de ele chamar o desejo de Santa Mônica de “desejo dela” e culpar Santo Agostinho por se preocupar em cumpri-lo, não é de surpreender, pois Calvino costuma repreender e ridicularizar os santos.
Em quarto lugar, ele diz que os Padres nunca afirmaram nada precisamente sobre o purgatório, então consideravam isso uma questão incerta. Mas isso também é uma intolerável impudência, ou então ignorância. Mesmo que nunca tivessem usado a palavra Purgatório, ainda assim, o que os Padres pensavam sobre isso poderia ser suficientemente entendido pelo fato de que ensinaram claramente que as almas de certos fiéis precisam de descanso e são ajudadas pelas orações dos vivos.
PURGATÓRIO PROCESSO X PURGATÓRIO ESTADO
Embora ao longo da história da Igreja muitos autores tenham se empenhado em especular sobre a natureza e as circunstâncias do purgatório, tanto os concílios ecumênicos quanto o Catecismo da Igreja Católica sempre definiram o purgatório como um processo ou estado de purificação das almas salvas, não como um “terceiro lugar” ao lado do céu e do inferno. O Catecismo da Igreja Católica sintetiza esse ensino da seguinte forma:
“Os que morrem na graça e na amizade de Deus, mas não estão completamente purificados, embora tenham garantida sua salvação eterna, passam, após sua morte, por uma purificação, a fim de obter a santidade necessária para entrar na alegria do Céu. A Igreja denomina Purgatório esta purificação final dos eleitos, que é completamente distinta do castigo dos condenados. ” (CIC §1030).
Durante a Idade Média, diversos autores e escolas teológicas buscaram especular sobre o “local” onde ocorreria essa purificação, bem como sobre a natureza das penas envolvidas — se físicas ou apenas espirituais —, contribuindo para o desenvolvimento de um imaginário simbólico do purgatório como um lugar físico, o que se refletiu fortemente na arte, na literatura e na piedade popular.
Essa visão alcançou uma representação marcante na obra A Divina Comédia de Dante Alighieri, onde o purgatório é descrito como uma montanha cônica composta por círculos sucessivos de purificação moral. Contudo, é importante notar que essa concepção literária não representa uma definição doutrinária, mas uma expressão cultural e espiritual da fé da época.
Assim, apesar das múltiplas tentativas de ilustrar ou descrever o purgatório, a doutrina oficial da Igreja permanece clara: trata-se de um estado (não necessariamente um lugar físico) onde os salvos são purificados antes de entrarem na visão beatífica.
O TESTEMUNHO SOBRE A ORAÇÃO E O FOGO PURGATÓRIO
INSCRIÇÕES MONUMENTAIS
As inscrições encontradas nas catacumbas romanas datam desde o século I (a mais antiga registrada é de 71 d.C.) até o início do século V. Publicamos um artigo anteriormente a respeito que pode ser lido aqui.
LITURGIAS ANTIGAS
O testemunho das primeiras liturgias está em plena consonância com o dos monumentos cristãos antigos. Isso inclui as liturgias nestorianas, monofisitas e católicas, tanto em siríaco, armênio e copta, quanto em grego e latim. Publicamos um artigo anteriormente a respeito que pode ser lido aqui.
CONCÍLIOS PRIMITIVOS
Desde os primeiros séculos do cristianismo, a Igreja desenvolveu uma prática litúrgica e teológica consistente em relação à oração pelos mortos. Essa tradição não surgiu de forma isolada, mas está amplamente documentada em diversos concílios regionais e locais do cristianismo primitivo, os quais desempenharam papel crucial na definição de doutrinas e na padronização da vida eclesial. Publicamos um artigo anteriormente a respeito que pode ser lido aqui.
O APOCALIPSE DE PEDRO
Escrito por volta de 132–135 d.C., este livro oferece uma visão de como o cristianismo judaico palestino compreendia a vida após a morte. Ele existe em duas versões: uma mais antiga, em grego, e outra posterior, em etíope. Clemente de Alexandria, considerava o Apocalipse de Pedro como escritura inspirada.
A obra descreve em detalhes as crenças cristãs sobre a purificação após a morte daquela época específica. No entanto, a versão etíope — uma continuação da grega — remove alguns trechos da versão original.
O manuscrito original grego (Capítulo 14) contém o seguinte:
“Então Eu darei aos Meus chamados e aos Meus escolhidos, por qualquer um por quem eles Me pedirem, fora do tormento, e lhes concederei um belo batismo em (ou para) a salvação do Lago Aquerusiano, como os homens o chamam, nos Campos Elísios, até mesmo uma porção de justiça com os santos.” — Fragmento de Rainer, Grego, tradução de M. R. James
Esse trecho é particularmente notável porque mostra Jesus concedendo salvação pós-morte a almas que estavam no tormento, a pedido dos justos — um tema muito importante para o desenvolvimento da doutrina da intercessão e até da ideia de purificação pós-morte.
CLEMENTE DE ALEXANDRIA
Clemente nasceu por volta do ano 150, provavelmente em Atenas, em uma família pagã. Após sua conversão ao cristianismo, iniciou uma longa jornada em busca de mestres cristãos, passando pelo sul da Itália, Síria e Palestina, até chegar a Alexandria.
No ano 202, durante a perseguição promovida pelo imperador Sétimo Severo, foi forçado a abandonar Alexandria, refugiando-se na Capadócia, onde faleceu pouco antes do ano 215.
O conhecimento de Clemente tanto dos escritos pagãos quanto da literatura cristã é extraordinário. Segundo o estudioso Johannes Quasten, suas obras contêm cerca de 360 citações de autores clássicos, 1.500 do Antigo Testamento e 2.000 do Novo Testamento. Por isso, é considerado, em termos cronológicos, o primeiro grande sábio cristão, profundo conhecedor não apenas das Sagradas Escrituras, mas também da tradição cristã anterior e da literatura profana.
Em sua obra “Stromata” (do grego Στρωματεῖς, “Tapeçarias”), Clemente trata, entre outros temas, da purificação da alma após a morte — especialmente daquelas que, embora batizadas, não alcançaram a plena santidade em vida. Ele escreve:
“Através de rigorosa disciplina, o crente se despoja de suas paixões e alcança uma morada melhor do que a anterior; passa pelo maior dos tormentos, assumindo o arrependimento pelas faltas cometidas após o batismo. Então, é afligido sobretudo ao perceber que não alcançou o que outros já obtiveram. Os maiores tormentos são destinados ao crente, pois a justiça de Deus é boa e Sua bondade é justa. Esses castigos completam o processo de expiação e purificação de cada um.” (Stromata, Livro 7, Capítulo 14)
E ainda:
“Dizemos, porém, que o fogo não santifica a carne, mas sim as almas pecadoras — referindo-se não ao fogo material, mas ao da sabedoria, que penetra na alma ao atravessar o fogo.” (Stromata, Livro 7, Capítulo 6)
TERTULIANO
Tertuliano nasceu em Cartago, provavelmente antes do ano 160. Por volta de 195, converteu-se ao Cristianismo, vindo a se tornar um dos primeiros e mais prolíficos escritores eclesiásticos do Ocidente. Infelizmente, por volta do ano 207, aderiu abertamente ao montanismo — um movimento herético de cunho apocalíptico — e acabou por fundar seu próprio grupo dissidente, posteriormente conhecido como os “tertulianistas”.
Apesar de seu afastamento da ortodoxia, seus escritos primitivos preservam importantes testemunhos da fé cristã primitiva, inclusive em relação à crença na purificação das almas após a morte — o que mais tarde a Igreja definiria como Purgatório.
Nos seus textos encontram-se diversas referências claras a essa realidade. Destacam-se, entre outras:
-
Em De Anima (“Sobre a Alma”), Tertuliano trata da purificação da alma após a morte, sugerindo que nem todos os justos entram imediatamente na presença de Deus.
-
Em De Resurrectione Carnis (“Sobre a Ressurreição da Carne”), afirma que apenas os mártires entram diretamente no céu, o que pressupõe um processo purificatório para os demais.
-
Em De Monogamia (“Sobre a Monogamia”), defende a eficácia das orações em favor dos falecidos, reconhecendo que os vivos podem interceder pelos mortos.
-
Em De Corona (“Sobre a Coroa”), menciona expressamente o costume da Igreja de oferecer a Eucaristia pelos mortos, em sufrágio por suas almas.
Essas passagens são testemunhos relevantes da antiguidade e universalidade da prática cristã de orar pelos falecidos, assim como da crença na possibilidade de purificação pós-morte, muito antes da formulação doutrinária oficial sobre o purgatório nos concílios medievais.
“Por isso, é muito conveniente que a alma, sem esperar a carne, sofra um castigo pelo que tenha cometido sem a cumplicidade da carne. E, igualmente, é justo que, em recompensa pelos bons e piedosos pensamentos que tenha tido sem a cooperação da carne, receba consolos sem a carne. Mais ainda: as próprias obras realizadas com a carne, ela é a primeira a conceber, dispor, ordenar e pô-las em alerta. E ainda naqueles casos em que ela não consente em pô-las em alerta, no entanto, é a primeira a examinar o que logo fará no corpo. Enfim, a consciência não será nunca posterior ao fato. Consequentemente, também a partir deste ponto de vista, é conveniente que a substância que foi a primeira a merecer a recompensa seja também a primeira a recebê-la. Em suma: já que por esta lição que nos ensina o Evangelho entendemos o inferno, já que ‘por esta dívida, devemos pagar até o último centavo’, compreendemos que é necessário purificar-se das faltas mais ligeiras nesses mesmos lugares, no intervalo anterior à ressurreição; ninguém poderá duvidar que a alma recebe logo algum castigo no inferno sem prejuízo da plenitude da ressurreição, quando receberá a recompensa juntamente com a carne” (Da Alma 58: PL 2,751).
“Ao deixar o seu corpo, ninguém vai imediatamente viver na presença do Senhor – exceto pela prerrogativa do martírio, pois então adquire uma morada no paraíso e não nas regiões inferiores” (Da Ressurreição da Carne 43).
“Certamente, ela roga pela alma de seu marido; pede que durante este intervalo ele possa encontrar descanso e participar da primeira ressurreição […] Oferece, a cada ano, o sacrifício no aniversário de sua dormição” (Da Monogamia 10).
“O sacramento da Eucaristia, encomendado pelo Senhor no tempo da ceia e para todos, o recebemos nas assembleias, antes do amanhecer, e não das mãos de outros que não sejam os que as presidem. Fazemos oblações pelos falecidos, a cada ano, nos dias de aniversário” (Da Coroa 3: PL 2,79).
Comentanto sobre o texto de Mateus 12,32, ele afirma:
“Além disso, se o crime de Himeneu e Alexandre — a saber, a blasfêmia — é imperdoável neste século e no vindouro (cf. Mateus 12:32), é claro que o apóstolo não teria, em oposição à decisão determinada do Senhor, entregue a Satanás, na esperança de perdão, homens que já haviam naufragado na fé e caído na blasfêmia. Por isso também ele os declarou “naufragados quanto à fé” (1 Timóteo 1:19), não tendo mais o consolo do navio, isto é, da Igreja.” (Tertualiano Sobre a Modéstia – XIII)
A imagem do “naufrágio da fé” e da perda do “consolo do navio, isto é, da Igreja”, reforça a ideia de que estar fora da comunhão plena pode ter consequências escatológicas graves — o que, por outro lado, também implica que aqueles ainda vinculados à Igreja, mesmo após a morte, podem se beneficiar da sua intercessão e comunhão, especialmente por meio da oração e do sacrifício eucarístico, fundamentos práticos da crença no purgatório.
A seguir o comentário do autor protestante J.N.D. Kelly em seu livro Early Christian Doctrines:
“A Eucaristia era também, evidentemente, o grande ato de culto dos cristãos — seu sacrifício. Os escritores e as liturgias da época são unânimes em reconhecê-la como tal. Clemente aplica o termo “sacrifício” (προσφορά, prosphora) à Eucaristia, citando a oferta de Melquisedeque como seu tipo (figura). Tertuliano define a função sacerdotal como a de “oferecer” (offere); a “oferta do sacrifício” é para ele uma ocasião cristã tão importante quanto a pregação da Palavra. Embora tenha sido o primeiro a mencioná-la, ele trata a oferta da Eucaristia pelos mortos (oblationes pro defunctis) como um dos costumes estabelecidos e santificados pela Tradição.” (J.N.D. Kelly, Doutrinas Cristãs Antigas, p. 214)
Kelly confirma que Tertuliano reconhecia a eficácia da oração e da eucaristia pelos mortos
Cesar Vidal Manzareas, Manual de Patrística
“Escatologicamente, Tertuliano acreditava na existência de um inferno eterno para os condenados (Apologético, capítulo XLVIII) e baseava-se na passagem de Mateus 5,25 para defender uma ideia de purgatório ou purificação da alma “após a morte”, que, no entanto, ele localizava no inferno e durante o período que vai da morte até a ressurreição (De Anima, capítulo LVIII). Mais ainda, Tertuliano sustentava que desse purgatório “avant la lettre” (antes do termo existir formalmente), somente os mártires estavam excluídos (De resurrectione carnis, capítulo XLIII). A situação das almas que se encontram nesse estado pode ser aliviada pelas orações dos vivos, como fazem as esposas que rezam por seus maridos falecidos (De monogamia, capítulo X).” (Adversus Marcionem, livro III, capítulo 24).” (Cesar Vidal Manzareas, Manual de Patrística PG 184-185)
É impossível ignorar a clareza com que Tertuliano afirma sua fé na eficácia das orações pelos defuntos.
CIPRIANO DE CARTAGO
São Cipriano nasceu em torno do ano 200, provavelmente em Cartago, de família rica e culta. Dedicou-se, em sua juventude, à retórica. O desgosto que sentia diante da imoralidade dos ambientes pagãos contrastados com a pureza de costumes dos cristãos o induziu a abraçar o Cristianismo por volta do ano 246. Pouco depois, em 248, foi eleito bispo de Cartago. Durante a perseguição de Décio, em 250, julgou melhor afastar-se para outro lugar, para continuar a se ocupar com seu rebanho de fiéis. Dele conservamos uma dezena de opúsculos sobre diversos temas de então e, particularmente, uma coleção de 81 cartas.
Em São Cipriano encontramos, da mesma forma que nos anteriores, referências ao Purgatório feitas séculos antes de São Gregório Magno:
“Uma coisa é pedir perdão; outra coisa, alcançar a glória. Uma coisa é estar prisioneiro sem poder sair até ter pago o último centavo; outra coisa, receber simultaneamente o valor e o salário da fé. Uma coisa é ser torturado com longo sofrimento pelos pecados, para ser limpo e completamente purificado pelo fogo; outra coisa é ter sido purificado de todos os pecados pelo sofrimento. Uma coisa é estar suspenso até que ocorra a sentença de Deus no Dia do Juízo; outra coisa é ser coroado pelo Senhor” (Epístola 51,20).
São Cipriano também atesta o comum costume de se fazer orações e oferecer a Eucaristia pelo descanso eterno dos falecidos, o que seria inútil caso as orações não pudessem ajudá-los:
“Oferecemos por eles sacrifícios, como percebeis, sempre que na comemoração anual celebramos os dias da paixão dos mártires” (Epístola 33,3).
No seguinte texto também podemos ver São Cipriano atestando de maneira implícita o costume de se oferecer a Eucaristia pelos falecidos. É negado para o caso particular de Victor em razão da violação das decisões conciliares, por ter ordenado ilegitimamente Gemínio Faustino como presbítero:
“…E quanto a Victor, visto que contrariamente à forma prescrita pelo recente Concílio dos sacerdotes se atreveu a constituir tutor ao presbítero Gemínio Faustino, não há razão para que se celebre, entre vós, a oblação pela sua morte ou se reze por ele qualquer oração na Igreja; desta forma, observaremos nós o decreto dos sacerdotes, elaborado religiosamente e por necessidade, dando-se, ao mesmo tempo, exemplo aos demais irmãos, para que ninguém deseje as moléstias mundanas aos sacerdotes e ministros de Deus dedicados ao seu altar e Igreja” (Epístola 65,2).
Outro texto similar:
“Finalmente, anotai também os dias em que eles morrem, para que possamos celebrar suas comemorações entre as memórias dos mártires; por mais que Tertuliano, nosso fidelíssimo e devotíssimo irmão, com aquela solicitude e cuidado que reparte com os irmãos sem se orgulhar da sua atividade, e como no cuidado dos cadáveres remanescentes ali, tenha escrito e me faça saber, entre outras coisas, os dias em que nossos ditosos irmãos partiram do cárcere para a imortalidade através de uma morte gloriosa, celebramos aqui nossas oblações e sacrifícios em comemoração deles, as quais prontamente celebraremos convosco, com a ajuda de Deus” (Epístola 36,2).
No texto atribuído a são Cipriano sobre a glória do martírio:
“Você lê que está escrito que devemos pagar até o último centavo. Mas somente os mártires estão isentos dessa obrigação; porque aqueles que confiam em seus desejos pela salvação eterna e venceram seus anseios por esta vida, foram, pelos preceitos do Senhor, libertos do sofrimento universal. Portanto, principalmente por isso, amados irmãos, seremos capazes de mostrar quão grandes são as coisas que a virtude do martírio pode realizar..” (Sobre a Glória do Martírio, capítulo 13)
O renomado historiador protestante J.N.D. Kelly resume assim a doutrina de São Cipriano sobre o santo Sacrifício da Missa e a oração pelos mortos:
“Como Cipriano expressa: ‘Quanto a mencionarmos Sua paixão em todos os nossos sacrifícios — pois é na paixão do Senhor que consiste o sacrifício que oferecemos (passio est enim Domini sacrificium quod offerimus) — devemos fazer nada além do que Ele próprio fez.’ O sacerdote, ao que parece, reencena sacramentalmente a oblação de Sua paixão, que o Salvador originalmente apresentou ao Pai. Além disso, fica claro, a partir do que ele diz em outros trechos sobre oferecer o sacrifício em favor de pessoas necessitadas e, especialmente, em favor dos mortos, que Cipriano concebia o sacrifício eucarístico como possuidor de uma eficácia objetiva.” (J.N.D. Kelly, Doutrinas Cristãs Antigas, p. 216)
Em outras palavras, São Cipriano via na Eucaristia não apenas uma memória simbólica, mas uma verdadeira atualização do sacrifício redentor de Cristo. E é justamente por acreditar na eficácia real e misteriosa desse sacrifício que ele a oferecia também pelos falecidos: para interceder por suas almas, a fim de que alcançassem mais depressa a purificação necessária e a entrada na glória eterna.
A oração pelos mortos, nesse contexto, está enraizada na fé de que a Igreja, como Corpo de Cristo, continua a exercer caridade e comunhão com seus membros falecidos, sustentando-os espiritualmente por meio do sacrifício eucarístico.
ORÍGENES
Ilustre teólogo e escritor eclesiástico. Nascido em Alexandria por volta do ano 231, foi reconhecido como o maior mestre da doutrina cristã em sua época, exercendo uma extraordinária influência como intérprete da Bíblia. Em Orígenes, a doutrina do purgatório é muito clara. Se um homem parte desta vida com faltas mais leves, ele é condenado ao fogo que queima os materiais mais leves e prepara a alma para o Reino de Deus, onde nada impuro pode entrar.
“Pois, se sobre o fundamento de Cristo você construiu não apenas ouro, prata e pedras preciosas (1 Coríntios 3), mas também madeira, feno e palha, o que espera quando a alma for separada do corpo? Você gostaria de entrar no céu com sua madeira, feno e palha e assim contaminar o Reino de Deus? Ou, por causa desses impedimentos, ficaria de fora e não receberia nenhuma recompensa por seu ouro, prata e pedras preciosas? Isso também não seria justo. Resta então que você seja entregue ao fogo, que queimará os materiais leves; pois o nosso Deus, para aqueles que podem compreender as coisas celestes, é chamado de fogo purificador. Mas esse fogo não consome a criatura, e sim aquilo que a criatura construiu — madeira, feno e palha. É evidente que o fogo destrói a madeira das nossas transgressões e depois nos devolve a recompensa das nossas grandes obras.” (Patrologia Grega, vol. XIII, col. 445, 448)
Este trecho de Orígenes é uma das formulações mais claras e antigas da doutrina que a Igreja posteriormente desenvolveria como purgatório, mesmo que o termo e os contornos dogmáticos ainda não estivessem plenamente definidos em sua época.
Orígenes faz referência direta a 1 Coríntios 3, passagem frequentemente utilizada para justificar a ideia de uma purificação pós-morte:
“A obra de cada um será provada pelo fogo […] se a obra se queimar, sofrerá prejuízo; ele, porém, será salvo, mas como que através do fogo” (1Cor 3,13-15).
Ele interpreta esse “fogo” como um processo de purificação das imperfeições residuais da alma — os pecados veniais ou as faltas leves — antes de entrar na presença de Deus.
Orígenes argumenta que não seria justo que as obras más ou imperfeitas simplesmente fossem ignoradas, nem tampouco que impedissem completamente a entrada no Reino. A justiça divina exige uma purificação, mas essa purificação não é condenação eterna — é uma forma de misericórdia que aperfeiçoa o justo.
Outro ponto importante é a distinção entre o pecador e os pecados. O fogo não destrói a criatura, mas aquilo que ela construiu de modo imperfeito: madeira, feno e palha. Isso é absolutamente coerente com a doutrina católica do purgatório, que afirma que as almas no purgatório já estão salvas, mas ainda não totalmente purificadas.
“Consequentemente, o crente, por meio de uma grande disciplina, despojando-se das paixões, passa para a morada que é melhor do que a anterior, ou seja, para o maior tormento, levando consigo a característica do arrependimento pelos pecados que cometeu após o batismo. Ele é então torturado ainda mais, não alcançando ainda ou não totalmente o que vê outros terem adquirido. Além disso, ele também se envergonha de suas transgressões. Os maiores tormentos, de fato, são atribuídos ao crente. Pois a retidão de Deus é boa, e Sua bondade é justa. E embora os castigos cessem no curso da conclusão da expiação e purificação de cada um, aqueles que se mostram dignos do outro rebanho têm uma dor muito grande e permanente, por não estarem junto com aqueles que foram glorificados pela retidão.” (Stromata, 6,14) (A.D.202)
LACTÂNCIO
Lactâncio foi conhecido como “o Cícero cristão”, título que lhe foi atribuído em razão do refinado domínio da língua latina. Nascido no norte da África por volta do ano 250, em uma família pagã, acredita-se que tenha se convertido ao Cristianismo em Nicomédia. Durante a última grande perseguição aos cristãos, iniciada por volta do ano 303, foi forçado a deixar sua cátedra de professor e buscar refúgio na Bitínia.
Em sua principal obra, Institutiones Divinae (“Instituições Divinas”), especialmente no livro VII, Lactâncio interpreta 1Coríntios 3 em consonância com a leitura de Orígenes: como uma alusão clara à purificação pós-morte — o que, posteriormente, a tradição ocidental chamaria de Purgatório. Ele escreve:
“Porém, quando julgar os justos, Deus também os provará com fogo. Então, aqueles cujos pecados forem mais numerosos ou mais graves, serão chamuscados e queimados pelo fogo; mas aqueles que tiverem sido preenchidos pela justiça e pela plena maturidade da virtude não perceberão esse fogo, pois carregam em si algo de divino, que repele e resiste à violência das chamas.” (Instituições Divinas, 7,21). [17]
Essa passagem sugere uma compreensão profunda da justiça divina, que não exclui a misericórdia: mesmo os justos, embora salvos, podem ser submetidos a um processo de purificação. Trata-se de uma das mais antigas formulações patrísticas da ideia de um fogo purificador, que prepara a alma para a comunhão plena com Deus.
EFRÉM DA SÍRIA
Nasceu por volta do ano 306, na cidade de Nísibis — atualmente Nusaybin, na Turquia. Foi diácono, escritor eclesiástico e é venerado como Doutor da Igreja. Estima-se que tenha falecido por volta de 373, embora algumas fontes sugiram datas posteriores, como 378 ou 379.
Em seu testamento espiritual, Efrém expressa de forma tocante sua fé na eficácia das orações pelos falecidos, pedindo aos irmãos na fé que intercedessem por sua alma:
“Quando se completar o trigésimo dia [da minha morte], lembrai-vos de mim, irmãos. Os falecidos, com efeito, recebem ajuda por meio das oferendas feitas pelos vivos. (…) Se, como está escrito, os homens de Matatias — encarregados do culto em favor do exército — expiaram, pelas oferendas, as culpas dos que haviam morrido em pecado por causa de seus costumes, quanto mais os sacerdotes de Cristo, por meio de suas santas oferendas e orações, não expiarão os pecados dos falecidos?” (Testamento, 72,28: EP 741)
Efrém não apenas reafirma a prática das orações pelos mortos, mas ancora sua argumentação na Sagrada Escritura, especificamente em 2 Macabeus 12 — evidência tradicionalmente rejeitada por muitos reformadores, mas firmemente aceita pela Igreja desde os tempos antigos.
Sua voz, unida à de tantos outros Padres, testemunha a fé viva da Igreja primitiva na comunhão entre vivos e defuntos, e na eficácia espiritual da oração em favor das almas que ainda estão em purificação.
BASÍLIO MAGNO
Nasceu por volta do ano 330, do seio de uma família profundamente cristã. No ano 364 foi ordenado sacerdote e, 6 anos depois, sucedeu a Eusébio, bispo de Cesaréia, metropolita da Capadócia e exarca da diocese do Ponto. Faleceu no ano 379.
Fala como aqueles atletas de Deus, logo após terem sido salvos, podem ser “detidos” se por acaso conservarem algumas manchas de pecado:
“Penso que os valorosos atletas de Deus, os quais durante toda a sua vida estiveram frequentemente em luta contra os seus inimigos invisíveis, após terem superado todos os seus ataques, ao chegarem ao fim de suas vidas serão examinados pelo príncipe do século, a fim de que, se em consequência das lutas tiverem algumas feridas ou certas manchas ou vestígios de pecado, sejam detidos; porém, se são encontrados imunes e incontaminados, como invictos e livres encontram o descanso junto a Cristo” (Homilias sobre os Salmos 7,2: PG 29,232).[19]
Em seu comentário sobre o Livro de Isaias ele diz:
“‘E [ela] será devorada pelo fogo’, — diz Isaías, — ‘como a erva do campo seca, e [ela] será queimada nos matagais do carvalhal.’ Enquanto a alma estiver sepultada sob paixões terrenas, suas paixões, brotando do desejo da carne, se expandem como a erva do campo, tendo origem umas nas outras e sendo produzidas uma após a outra. Pois assim como a erva do campo é a mais prolífica entre as plantas, e sua geração nunca cessa — o fim da primeira procriação se torna o início de outra consecutiva —, assim também é a natureza do pecado: ele se reproduz. Assim, a fornicação gera fornicação; o hábito da mentira torna-se a mãe das mentiras; e aquele que praticou furtos facilmente se aventura num crime; pois o pecado anterior torna-se ocasião para um novo pecado. Portanto, se expusermos um pecado por meio da confissão, tornamo-lo uma erva do campo seca, digna de ser completamente devorada pelo fogo purificador, e ela é queimada nos matagais do carvalhal¹. Observe o que é dito sobre os carvalhais no Primeiro Livro dos Reis. O povo, fazendo guerra, entrou em um carvalhal e estava desfalecendo de fome². Mas Absalão, também guerreando, entrou em um carvalhal³.
Assim, se nosso pecado não se tornar como a erva do campo seca, ele não será consumido pelo fogo, nem será queimado. O profeta chama os **”matagais do carvalhal”**⁴ de homens falsos e reticentes em sua mente, que, em um lugar oculto do coração, preservam muitos males.
[231.] Então Isaías acrescenta: **”Toda a terra foi posta em chamas por causa da ira da cólera do Senhor”**⁵. Ele mostra que as coisas terrenas são entregues ao fogo purificador para o benefício da alma, assim como o Senhor indica ao dizer: *”Eu vim lançar fogo sobre a terra, e gostaria que já estivesse aceso”*⁶.
E o povo será como um homem queimado pelo fogo⁷. A profecia não ameaça com aniquilação, mas indica purificação, de acordo com o que é dito pelo Apóstolo: *”Se a obra de alguém se queimar, ele sofrerá perda; contudo ele mesmo será salvo, mas como que através do fogo“. ” (Comentário Sobre Isaías, cap. 9)
Em resumo em vez de um fogo destruidor, trata-se de um fogo divino, que consome o pecado e purifica a alma. Isso está em linha com várias passagens bíblicas e patrísticas, onde o fogo representa o juízo e, ao mesmo tempo, a santificação:
“Se alguém edifica… e sua obra se queimar, sofrerá perda; ele, porém, será salvo, todavia como que através do fogo.“ (1 Cor 3:15)
Esse “passar pelo fogo” é apresentado como uma forma de salvação por purificação, não por destruição. Isso mostra uma dimensão medicinal do juízo divino: Deus não deseja a morte do pecador, mas sua cura.
Este trecho faz com São Gregório de Nissa, São Máximo e Orígenes. Ele mostra:
-
-
Que a alma humana precisa de purificação constante.
-
Que confissão é uma forma de expor o pecado à luz.
-
Que Deus quer purificar, não destruir.
-
Que a vida espiritual exige vigilância interior, pois os pecados escondidos enraízam-se e crescem em nós.
-
É uma bela imagem da teologia do fogo purificador, que aparece tanto no Oriente quanto no Ocidente cristão .
CIRILO DE JERUSALÉM
Nascido em Jerusalém ou em suas proximidades por volta dos anos 313 a 315, São Cirilo de Jerusalém foi um destacado Padre da Igreja e serviu como arcebispo da cidade santa. Faleceu provavelmente no ano 386. Em suas célebres catequeses, reafirma com clareza a antiquíssima Tradição da Igreja de oferecer orações pelos fiéis falecidos, em súplica por seu descanso eterno e purificação final.
“Recordamos também de todos os que já dormiram; em primeiro lugar, os patriarcas, os profetas, os apóstolos, os mártires, para que, por suas preces e intercessão, Deus acolha a nossa oração. Depois, também pelos santos padres, bispos falecidos e, em geral, por todos cuja vida transcorreu entre nós, crendo que isso será da maior ajuda para aqueles por quem se reza. Quero vos esclarecer isso com um exemplo: visto que muitos ouviram dizer: para que serve a uma alma sair deste mundo com ou sem pecados se depois faz-se menção dela na oração? Suponhamos, por exemplo, que um rei envia ao desterro alguém que o ofendeu; porém, depois, os seus parentes, afligidos pela pena, lhe oferecem uma coroa. Por acaso não ficarão agradecidos pelo relaxamento dos castigos? Do mesmo modo, também nós apresentamos súplicas a Deus pelos falecidos, ainda que sejam pecadores. E não oferecemos uma coroa, mas sim Cristo morto por nossos pecados, pretendendo que o Deus misericordioso se compadeça e seja propício tanto com eles quanto conosco” (Catequese 13,9-10).[20]
Sobre São Cirilo assim comenta o autor protestante JND Kelly:
“Embora grande parte da linguagem que eles utilizam seja convencional, encontramos uma declaração elaborada sobre o aspecto sacrificial em Cirilo de Jerusalém. Em conformidade com a tradição, ele se refere à Eucaristia como “o sacrifício espiritual” e “o culto incruento”, mas também a descreve como “o santo e mais temível sacrifício” e “o sacrifício de propiciação” (τῆς θυσίας … τοῦ ἱλασμοῦ), diante do qual Deus é suplicado pela paz das igrejas e por nossas necessidades terrenas em geral. De fato, a intercessão pode ser oferecida tanto pelos mortos quanto pelos vivos, enquanto a vítima temível jaz diante de nós, pois o que oferecemos é “Cristo imolado por causa dos nossos pecados, propiciando o Deus misericordioso tanto em favor deles quanto de nós mesmos.”” (JND Kelly Early Christina Douctrines, PG 451)
Esse trecho reforça fortemente a compreensão sacrificial e propiciatória da Eucaristia nos escritos patrísticos. Cirilo de Jerusalém, um dos grandes catequistas do século IV, não apenas mantém a linguagem tradicional de “sacrifício espiritual”, mas eleva sua descrição a um patamar teológico mais profundo ao chamá-lo de “o mais temível sacrifício” – evidenciando a solenidade e a reverência que cercam a liturgia eucarística.
A noção de que Cristo é verdadeiramente oferecido na Missa – como “vítima” diante de Deus – aponta para uma concepção da Eucaristia não apenas como memória simbólica, mas como atualização sacramental do sacrifício da Cruz, com efeitos reais. Isso se acentua com a afirmação de que se pode interceder tanto pelos vivos quanto pelos mortos, pois é Cristo, o mesmo que se entregou na cruz, quem está sendo misticamente oferecido.
Esse pensamento está plenamente em linha com a doutrina católica da Missa como sacrifício propiciatório – algo que, segundo os deformadores protestantes, foi posteriormente “inovado”, mas que, como vemos, já está presente com clareza nos Padres da Igreja do século IV.
EUSÉBIO DE CESARÉIA
Eusébio de Cesareia (c. 260–339) foi um bispo, historiador e teólogo cristão, conhecido como o “Pai da História da Igreja”. Sua obra mais influente é a História Eclesiástica, onde registra os primeiros séculos do cristianismo. Além disso, foi próximo do imperador Constantino e autor da Vida de Constantino, onde combina biografia e exaltação teológica do imperador.
No livro IV, capítulo 71 da Vida de Constantino, Eusébio relata:
“Uma imensa multidão de pessoas, juntamente com os sacerdotes de Deus, ofereceu suas orações a Deus pela alma do imperador com lágrimas e grande lamentação.”
Esse testemunho é significativo porque mostra que já no século IV era prática comum da Igreja orar publicamente pelos mortos, inclusive por figuras de alta posição como o imperador. A comoção coletiva e a menção explícita à oração “pela alma” confirmam a crença de que os falecidos podiam se beneficiar espiritualmente das orações dos vivos — exatamente a base da doutrina católica do purgatório.
EPIFÂNIO DE SALAMINA
Nasceu por volta do ano 315 na Judéia. Fundou um mosteiro que dirigiu por quase 30 anos. Foi bispo de Salamina e metropolita do Chipre. Morreu no ano 367.
Respondendo a Aério, um sacerdote do Ponto, que viveu no terceiro quarto do século IV, e foi marcado como herege por negar a legitimidade e a eficácia das orações pelos mortos:
“E, quanto a nomear os mortos, o que poderia ser mais útil? O que poderia ser mais oportuno ou maravilhoso do que os vivos acreditarem que os falecidos ainda vivem, que não deixaram de existir, mas continuam a existir e a viver com o Senhor? E que a doutrina mais sagrada deva declarar que há esperança para aqueles que oram por seus irmãos, como se estes estivessem em viagem?” (Panarion 75,7,1)
E, mais adiante:
“E, embora a oração que oferecemos por eles não possa eliminar todas as suas faltas—[como poderia?], visto que frequentemente tropeçamos neste mundo, tanto de forma involuntária quanto deliberada—ela ainda é útil como indicação de algo mais perfeito. Pois nós recordamos tanto os justos quanto os pecadores. Embora oremos pelos pecadores, pela misericórdia de Deus […].”(Panarion 75,7,3)
Assim, no século IV, quem negava a oração pelos mortos já era considerado herege. O trecho “Embora oremos pelos pecadores, pela misericórdia de Deus” reforça o propósito expiatório da oração pelos mortos. Afinal, se a intercessão pelos falecidos não tivesse nenhum efeito sobre seu estado espiritual, por que Epifânio destacaria a necessidade de pedir misericórdia para os pecadores?
HILÁRIO DE POITIERS
Hilário de Poitiers foi um bispo na cidade romana de Pictávio, atual Poitiers, na Gália, e é um dos Doutores da Igreja. Muitas vezes chamado de “Martelo dos Arianos”. Em seu comentário sobre o Salmo 118, comentando as palavras: “Minha alma desejou e suspirou pelos juízos da tua justiça”, diz:
“Mas o Profeta recorda que é algo árduo e extremamente perigoso para a natureza humana desejar os juízos de Deus. Pois, se ninguém que vive é justo diante Dele, como pode o seu juízo ser desejável? Acaso, sendo nós obrigados a prestar contas de toda palavra ociosa, iremos ansiar pelo dia do juízo, no qual teremos de enfrentar aquele fogo incansável, no qual nos esperam os graves suplícios que purificam a alma dos pecados? .”
Este trecho reforça a ideia de um fogo purificador após a morte, claramente distinto da condenação eterna, pois seu objetivo é a purificação da alma, não a punição final. A metáfora do “fogo incansável” aponta para um processo intenso, mas temporário, o que está em plena consonância com a doutrina do purgatório, tal como foi formulada mais explicitamente na tradição católica posterior.
A associação entre juízo, desejo de justiça e purificação mostra uma espiritualidade profunda, onde a alma, mesmo após a morte, anseia por estar plenamente justa diante de Deus — mesmo que isso envolva dor purificadora.
GREGÓRIO DE NISSA
São Gregório de Nissa nasceu entre os anos 331 e 335. Era irmão de São Basílio Magno, que o consagrou bispo da cidade de Nissa em 371. Faleceu no ano 394.
A seguinte citação é uma referência tão clara à doutrina do Purgatório que quase dispensa comentários:
“Quando o homem se separa de seu corpo, e a distinção entre virtude e vício se torna manifesta, ele não pode se aproximar de Deus até que seja purificado pelo fogo, o qual remove as manchas com as quais sua alma está manchada. Esse mesmo fogo, em outros casos, anulará a corrupção da matéria e a inclinação ao mal.” (Sermão sobre a Morte, 2,58).
Em sua obra De Anima et Resurrectione (“Sobre a Alma e a Ressurreição”), São Gregório de Nissa desenvolve extensamente a ideia de um fogo purificador após a morte, descrevendo como esse fogo agiria na alma e serviria como meio de purificação para aqueles que ainda não estão plenamente preparados para a visão de Deus.
É verdade que São Gregório, influenciado pelo pensamento de Orígenes, aderiu em certo momento à doutrina da Apocatástase — a ideia de que, no fim dos tempos, todos os seres racionais seriam reconciliados com Deus, inclusive os demônios. Essa tese foi posteriormente condenada pelo II Concílio de Constantinopla (553). No entanto, esse erro específico, derivado das tentativas origenistas de explicar o fogo escatológico, não invalida o consenso patrístico sobre a realidade de um fogo purificador após a morte.
Apesar de haver divergências em aspectos secundários — como a natureza e a extensão desse fogo —, é inegável que a noção de purificação post mortem é uma constante na Tradição da Igreja e foi amplamente ensinada pelos Padres, como um elemento necessário à plena comunhão com Deus.
GREGÓRIO DE NAZIANZO
Gregório de Nazianzo (c. 329 – c. 390), também conhecido como Gregório, o Teólogo, foi um dos grandes Padres Capadócios, ao lado de Basílio Magno e Gregório de Nissa. É reconhecido como Doutor da Igreja e uma das figuras mais influentes da teologia cristã do século IV, especialmente na formulação da doutrina da Trindade.
“Quero dizer prazeres e sofrimentos, pois a razão reconhece que até mesmo estes frequentemente são instrumentos de salvação; encomendando a Ele as nossas próprias almas (cf. 1 Pedro 4,19) e as almas daqueles companheiros de jornada que, estando mais preparados, alcançaram o repouso antes de nós.” (Gregório de Nazianzo, Oração 7)
Nesta passagem, Gregório de Nazianzo expressa uma visão madura da vida cristã, na qual tanto os prazeres quanto os sofrimentos são aceitos como caminhos possíveis para a salvação, conforme a razão iluminada pela fé. Ao mencionar a entrega das próprias almas e das almas dos que já morreram, ele afirma a continuidade espiritual entre vivos e mortos e legitima a oração por aqueles que já partiram, indicando uma compreensão da comunhão dos santos e da esperança na salvação pós-morte. É um testemunho claro da confiança cristã na misericórdia divina para todos os que seguem o caminho de Deus, mesmo após a morte.
“Que esses homens, então, se quiserem, sigam o nosso caminho, que é o caminho de Cristo; mas, se não quiserem, sigam o seu próprio. Talvez nele sejam batizados com fogo, naquele último batismo que não é apenas mais doloroso, mas também mais longo, que devora madeira como capim e consome a palha de todo o mal.” (Teofania 39,19)
-
“Se quiserem, sigam o nosso caminho… se não, sigam o seu”
Gregório está fazendo um apelo à conversão, mas reconhece que nem todos seguem o caminho da santidade. -
“Serão batizados com fogo” — o último batismo
Aqui ele faz uma alusão direta a uma purificação pós-morte. Esse “batismo com fogo” é:-
Mais doloroso — implica sofrimento;
-
Mais longo — denota duração, embora temporária (diferente do inferno, que é eterno);
-
Purificador — pois “devora madeira como capim” e “consome a palha de todo o mal”, linguagem simbólica comum para as imperfeições humanas, pecados e apegos mundanos.
-
Esse texto é claramente compatível com a doutrina católica do purgatório:
-
-
O batismo com fogo mencionado não é o batismo sacramental, mas sim uma purificação dolorosa após a morte para os que não foram plenamente santificados em vida.
-
A imagem do fogo que consome madeira, capim e palha remete à passagem de 1 Coríntios 3:13-15, frequentemente citada nos textos patrísticos como base para a ideia do purgatório.
-
Essa passagem mostra que Gregório Nazianzeno reconhecia uma purificação pós-morte para os que não seguiram plenamente o caminho de Cristo, mas que ainda assim não estavam condenados eternamente. Seu “batismo de fogo” é interpretado como purgatório, ou seja, um estado intermediário de purificação antes da glória eterna.
ARNÓBIO DE SICA
Arnóbio foi um apologista cristão do final do século III e início do século IV, originário da África do Norte, provavelmente de Sica Venerea, na atual Tunísia. Antes de sua conversão, era um retórico pagão; seu principal escrito é Adversus Gentes (Contra os Pagãos), uma defesa do cristianismo frente às acusações dos romanos, especialmente de que os cristãos eram culpados por calamidades públicas por abandonarem os deuses antigos.
Falando sobre as diferenças entre os templos pagãos e cristãos ele diz:
“Pois, por que, afinal, nossos escritos mereceriam ser entregues às chamas? Nossas reuniões serem cruelmente dispersadas, nas quais se faz oração ao Deus Supremo, se pede paz e perdão por todos os que estão em autoridade, pelos soldados, reis, amigos, inimigos, pelos que ainda estão vivos e pelos que já foram libertos da escravidão da carne; nas quais tudo o que se diz serve para tornar os homens humanos, gentis, modestos, virtuosos, castos, generosos no uso de seus bens e inseparavelmente unidos a todos os que fazem parte de nossa fraternidade?” (Contra os Pagãos, Livro 4,36).
Arnóbio descreve as igrejas cristãs como lugares onde se intercede por todos os homens, vivos e mortos, revelando que já no final do século III havia a prática consolidada de orações pelos falecidos. Ele mostra que a comunidade cristã via a intercessão como parte essencial de sua liturgia e espiritualidade, incluindo não apenas os vivos, mas também os que já haviam “se libertado da escravidão da carne” — uma expressão que sugere uma visão positiva da morte como libertação. Isso confirma que a oração pelos mortos e o purgatório não era uma inovação tardia, mas uma prática tradicional na Igreja primitiva.
CONSTITUIÇÕES APOSTÓLICAS
As Constituições Apostólicas (c. 400 d.C.) são uma coleção cristã primitiva de instruções sobre liturgia, disciplina eclesiástica e vida moral, atribuída simbolicamente aos apóstolos, mas escrita por um autor anônimo na Síria. Elas refletem o desenvolvimento da organização da Igreja, da liturgia e de práticas como a oração pelos mortos. Esse documento é composto de vários livros, no seu livro 8, sessão 4, parágrafo 41 existe um trecho exclusivo para tratar sobre a oração aos falecidos chamado de “Oração pelos Fiéis Defuntos”. O trecho começa:
“Oremos por nossos irmãos que estão em repouso em Cristo, para que Deus, amante da humanidade, que recebeu sua alma, perdoe-lhe todos os pecados, voluntários e involuntários, e seja misericordioso e gracioso com ele, e lhe dê sua sorte na terra dos piedosos que são enviados ao seio de Abraão, Isaque e Jacó, com todos aqueles que O agradaram e fizeram Sua vontade desde o princípio do mundo, de onde toda tristeza, pesar e lamentação são banidos.” (Constituições Apostólicas, livro 8, seção 4, parágrafo 41 (400 d.C.))
Esse trecho das Constituições Apostólicas é uma importante evidência patrística do início do século V que mostra a prática da oração pelos mortos na Igreja primitiva. A passagem demonstra claramente a crença de que:
-
-
As almas dos fiéis falecidos estão em repouso em Cristo, mesmo ainda não tendo entrado no céu (seio de Abraão), o que já indica o estado intermediário;
-
É adequado e piedoso orar por eles, pedindo a Deus o perdão dos pecados, inclusive os voluntários e involuntários;
-
Existe uma esperança de que sejam acolhidos no “seio de Abraão, Isaque e Jacó”, expressão tradicional de bem-aventurança escatológica;
-
O local para onde essas almas vão é, após a purificação, é livre de tristeza, pesar e lamento, um indicativo de consolação e paz, semelhante à descrição do Paraíso.
-
E o documento continua:
“Deus de Abraão, Deus de Isaac e Deus de Jacó — que és Deus deles não como de mortos, mas como de vivos — pois as almas de todos os homens vivem Contigo, e os espíritos dos justos estão em Tuas mãos, às quais nenhum tormento pode tocar (Mt 22,32; Sb 3,1), pois todos são santificados sob Tua mão: olha agora também para este Teu servo, a quem escolheste e acolheste para outro estado, e perdoa-lhe, se por vontade ou ignorância pecou; concede-lhe anjos misericordiosos, e coloca-o no seio dos patriarcas, profetas e apóstolos, e de todos os que Te agradaram desde o princípio do mundo, onde não há tristeza, dor nem lamento, mas a região pacífica dos piedosos e a terra serena dos justos, onde contemplam a glória do Teu Cristo.”
Esse trecho, é profundamente revelador da fé da Igreja primitiva quanto ao estado das almas após a morte e sua relação com a misericórdia divina. Vamos analisá-lo em partes:
“Deus de Abraão, Deus de Isaac e Deus de Jacó — que és Deus deles não como de mortos, mas como de vivos…” (cf. Mt 22,32)
Essa frase, citada por Jesus no Evangelho, é central para a fé na sobrevivência da alma após a morte. Ao invocar Deus como Deus dos patriarcas vivos, a oração já pressupõe uma continuidade da existência consciente após a morte corporal — um ponto essencial para qualquer doutrina que envolva intercessão ou purificação pós-morte.
“Pois as almas de todos os homens vivem Contigo, e os espíritos dos justos estão em Tuas mãos, às quais nenhum tormento pode tocar (cf. Sb 3,1)”
Aqui se faz referência direta ao Livro da Sabedoria, texto aceito no cânon católico e ortodoxo, mas rejeitado por protestantes. A ideia de que os “espíritos dos justos estão nas mãos de Deus” e “nenhum tormento os tocará” reforça que os justos, apesar da morte, estão sob o cuidado divino.
Contudo, o mesmo livro (Sabedoria 3) fala de provação e purificação das almas, usando imagens de fornalha e teste:
“Deus os provou e os achou dignos de si. Provou-os como ouro no cadinho.” (Sb 3,5-6)
Logo, a ausência de tormento eterno não exclui a possibilidade de uma purificação temporal, compatível com o purgatório.
“Perdoa-lhe, se por vontade ou ignorância pecou”
Essa súplica revela que mesmo o justo pode ainda precisar de perdão após a morte, especialmente por pecados cometidos involuntariamente ou por ignorância — ou seja, faltas que não o excluem da salvação, mas que necessitam de purificação.
Essa é uma formulação que casa diretamente com a ideia católica do purgatório, onde os fiéis que morreram na graça de Deus, mas ainda imperfeitamente purificados, passam por um processo de purificação antes de entrarem plenamente na visão beatífica.
“Concede-lhe anjos misericordiosos… onde não há tristeza, dor nem lamento”
A oração pede que a alma seja conduzida ao lugar dos santos — não assume que já esteja lá, mas ora por sua chegada a esse destino. Essa estrutura é perfeitamente compatível com a ideia de que há um percurso espiritual pós-morte, não necessariamente instantâneo, onde a alma é assistida pelos anjos e conduzida à glória.
Esse texto exprime claramente os elementos fundamentais da doutrina do purgatório:
-
A alma continua viva após a morte e pode receber intercessão.
-
Mesmo os justos ainda precisam de perdão e purificação.
-
Há uma distinção entre os condenados e os que, embora salvos, ainda não entraram plenamente no descanso eterno.
-
A oração da Igreja por essas almas é eficaz.
Assim, as constituições apostólicas confirmam a fé da Igreja primitiva em uma purificação pós-morte, o que mais tarde será formalizado com o nome de purgatório. Essa prática, portanto, não é uma invenção medieval, mas tem raízes litúrgicas e teológicas já nos primeiros séculos do cristianismo.
JOÃO CRISÓSTOMO
São João Crisóstomo é o representante mais importante da Escola de Antioquia e um dos quatro grandes Padres da Igreja no Oriente. Nascido por volta do ano 350, talvez antes, foi ordenado sacerdote no ano 386 e em 397 foi consagrado bispo de Constantinopla. Morreu em 407.
Atesta que foram os próprios Apóstolos que instituíram a celebração da eucaristia pelo descanso eterno dos falecidos e exorta a não cessarmos de ajudar os defuntos com nossas orações, já que, graças a elas, recebem consolo:
“Se a simples lembrança de um justo tem tanto poder quando se fazem obras por ele, quanto poder não terá então? Não foi em vão que os Apóstolos ordenaram que se fizesse memória dos mortos nos temíveis Mistérios. Eles sabiam que disso advém grande proveito, grande benefício; pois quando todo o povo está de pé com as mãos erguidas, uma assembleia sacerdotal, e o terrível Sacrifício está exposto, como não haveremos de obter o favor de Deus com nossas súplicas por eles? E isso fazemos por aqueles que partiram na fé, enquanto os catecúmenos não são considerados dignos sequer desse consolo, sendo privados de todo meio de auxílio, exceto um. E qual é este? Podemos dar esmolas em nome deles. Esse ato, de certo modo, os alivia. Pois Deus quer que nos ajudemos mutuamente; do contrário, por que nos teria mandado rezar pela paz e pelo bem-estar do mundo? Por que interceder por todos os homens? Entre esses estão ladrões, violadores de sepulturas, criminosos carregados de faltas imensas — e, no entanto, rezamos por todos; quem sabe se eles se converterão? Assim como rezamos pelos vivos, que não diferem dos mortos, também podemos rezar por estes.” (São João Crisóstomo, Homilia III sobre Filipenses 1,4; PG 62, 203)
Neste profundo e comovente trecho de uma de suas homilias sobre a Carta aos Filipenses, São João Crisóstomo testemunha não apenas a prática, mas a eficácia da oração pelos mortos no seio da Igreja antiga. Ele enfatiza que a memória litúrgica dos falecidos durante a celebração da Eucaristia — chamada por ele de “os temíveis Mistérios” — foi uma instituição apostólica, ordenada pelos próprios Apóstolos, não como gesto simbólico, mas como verdadeira intercessão diante de Deus.
A eficácia dessa oração, segundo Crisóstomo, é comparável à força de uma comunidade inteira, de pé com as mãos erguidas, unida a um “terrível Sacrifício” — clara alusão à Eucaristia. Ele insiste que tal súplica, feita por aqueles que morreram na fé, é benéfica e tem o poder de aliviar os sofrimentos das almas, especialmente quando unida a obras de caridade, como a esmola oferecida em nome dos falecidos.
A seguir, apresenta-se um testemunho inequívoco de São João Crisóstomo sobre a eficácia da oração dos vivos para a remissão das faltas dos falecidos, em sua Homilia 41,8 sobre 1 Corintios 15,46:
“Mas suponha-se que ele tenha partido com pecado sobre si; ainda assim, por esse motivo, deve-se alegrar-se, pois foi interrompido em seus pecados e não acrescentou mais à sua iniquidade; e deve-se ajudá-lo, tanto quanto possível, não com lágrimas, mas com orações, súplicas, esmolas e oferendas. Pois essas coisas não foram instituídas sem propósito, nem em vão fazemos menção dos falecidos durante os santos mistérios, nem nos aproximamos de Deus em favor deles, suplicando ao Cordeiro que está diante de nós, Aquele que tira o pecado do mundo — não em vão, mas para que algum alívio lhes advenha por isso.
Não em vão clama aquele que está junto ao altar, quando os tremendos mistérios são celebrados: “Por todos os que adormeceram em Cristo”, e por aqueles que fazem comemorações por eles. Pois, se não houvesse comemorações por eles, essas palavras não teriam sido ditas; já que o nosso culto não é uma mera encenação teatral — Deus nos livre! — mas é por ordenação do Espírito que essas coisas são feitas.
Prestemos, pois, ajuda a eles e façamos a comemoração por eles. Pois, se os filhos de Jó foram purificados pelo sacrifício do pai, por que duvidas de que, quando também oferecemos pelos falecidos, algum consolo lhes é concedido? Pois Deus costuma conceder as súplicas daqueles que intercedem pelos outros. E isto Paulo declarou, dizendo que, “pela intercessão de muitos, o dom concedido a nós seja reconhecido com ações de graças por muitos” (2 Coríntios 1:11).
Não nos cansemos, portanto, de socorrer os falecidos, tanto oferecendo em seu favor como obtendo orações por eles; pois a expiação comum do mundo está diante de nós. Portanto, com ousadia intercedemos pelo mundo inteiro, e mencionamos seus nomes juntamente com os dos mártires, dos confessores, dos sacerdotes. Pois, na verdade, somos todos um só corpo, ainda que alguns membros sejam mais gloriosos do que outros; e é possível obter perdão para eles de todas as formas: das nossas orações, das nossas ofertas feitas por eles, e daqueles cujos nomes são lembrados junto com os deles.
Por que, então, te entristeces? Por que lamentas, se está em teu poder reunir tanto perdão para os que partiram?” (Homilia 41,8 sobre 1 Corintios 15,46)
Esse trecho da Homilia 41 de São João Crisóstomo sobre 1 Coríntios é um testemunho claro e contundente da fé antiga da Igreja na eficácia das orações, esmolas e oferendas eucarísticas em favor dos mortos. Crisóstomo afirma que essas práticas não foram instituídas em vão, mas fazem parte da ordenação do Espírito Santo, e que por elas as almas dos falecidos recebem alívio, consolo e perdão. Ele ainda reforça que, assim como os filhos de Jó foram purificados pelos sacrifícios do pai, também os fiéis podem interceder pelos seus mortos.
Ele repete o mesmo ensinamento em outras homilias: Homilia 32 sobre Mateus, Homilia 84 sobre João, e Homilia 21 sobre os Atos dos Apóstolos.
Também na Homilia 6 sobre as Estátuas, ao povo de Antioquia descreve como o próprio sofrimento da cristão na terra serve como pagamento pelos seus pecados após sua morte:
“Se, então, vês alguém nos mesmos pecados, e alguns deles lutando continuamente com a fome e mil aflições, enquanto outros se fartam, vivem luxuosamente e se entregam à gula, considera mais bem-aventurados aqueles que suportam os sofrimentos. Pois não apenas a chama da voluptuosidade é extinta por esses males, mas também eles partem para o Julgamento futuro — aquele terrível tribunal — tendo já pago aqui a maior parte da pena por seus pecados, pelos males que sofreram.“ (Homilia 6 sobre as estátuas)
Nesta passagem, São João Crisóstomo, ainda que escrevendo séculos antes da formulação explícita da doutrina do Purgatório pelo Magistério da Igreja, já expressa um pensamento que se harmoniza com essa crença. Ele afirma que aqueles que sofrem na vida — mesmo estando em pecado — estão, de certo modo, “pagando” por suas faltas através das tribulações, assim muitos já começam esse processo de purificação ainda nesta vida, ” tendo já pago aqui a maior parte da pena por seus pecados” por meio do sofrimento, da pobreza e das tribulações, a outra parte claramente será paga após a morte no Julgamento futuro.
J.N.D. Kelly (Protestante), reconhece que essa era uma crença comum nos primeiros séculos do Cristianismo e em São João Crissóstomos. Isso enfraquece a tese de que a oração pelos mortos e a crença no purgatório seriam “invenções medievais”. Pelo contrário, essas práticas estavam presentes já nos séculos IV e V e eram baseadas na fé apostólica:
“É também, como já havia indicado Cirilo de Jerusalém, um sacrifício propiciatório tanto pelos mortos quanto pelos vivos. ‘Não é em vão’, observa Crisóstomo, ‘que fazemos memória dos que partiram durante os divinos mistérios e intercedemos por eles, suplicando ao Cordeiro que está diante de nós e que tirou o pecado do mundo.‘” (JND Kelly, Early Christian Douctrines – pg 252)
Esse trecho é extremamente importante do ponto de vista teológico e histórico.
1 – O termo “sacrifício propiciatório” é fortíssimo e central aqui. Ele indica que a Missa (ou a Liturgia Eucarística) não é apenas um memorial simbólico, mas uma real atualização sacramental do sacrifício de Cristo, oferecida em favor de vivos e mortos. Esse é um ponto-chave da doutrina católica, especialmente no que diz respeito à comunhão dos santos e ao purgatório.
2 – A menção de que a memória dos falecidos é feita durante os mistérios divinos (isto é, na Eucaristia) mostra que essa prática está inserida no coração do culto cristão primitivo. Isso não era uma devoção isolada ou algo secundário, mas parte integral da celebração litúrgica. Isso confere peso doutrinal e pastoral ao costume de rezar pelos defuntos durante a Missa, como a Igreja ainda faz hoje.
3 – Ao mencionar que as intercessões são feitas “ao Cordeiro que está diante de nós” Crisóstomo reforça a real presença de Cristo na Eucaristia e a sua função expiatória. Essa referência a João 1,29 — “Eis o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo” — aponta para o caráter salvífico do sacrifício de Cristo que continua sendo eficaz na Missa.
SANTO AMBRÓSIO
Santo Ambrósio de Milão (c. 340–397) foi um dos mais importantes Padres da Igreja do Ocidente. Antes de ser bispo, era um governador romano. Foi aclamado bispo de Milão pelo povo em 374.
Destacou-se como grande pregador, teólogo e defensor da ortodoxia contra as heresias, especialmente o arianismo. Influenciou profundamente a espiritualidade e teologia da Igreja latina, inclusive com seus escritos litúrgicos e exegéticos. Foi mestre de Santo Agostinho e teve papel decisivo em sua conversão. É considerado Doutor da Igreja e um dos quatro grandes Padres latinos, ao lado de Jerônimo, Agostinho e Gregório Magno.
“Portanto, considero que a alma dela não deve ser tanto lamentada, mas sim acompanhada com orações; não chorada com lágrimas, mas antes recomendada a Deus com sacrifícios.” (Livro 2, Epístola 8 a Faustino)
Santo Ambrósio fala da alma da falecida, provavelmente sua própria irmã, e diz que:
-
-
Ela não deve ser chorada com tristeza humana, como se estivesse perdida.
-
Mas sim acompanhada com orações — ou seja, ele incentiva a oração pelos mortos.
-
E mais ainda, ela deve ser recomendada a Deus com sacrifícios — clara referência ao sacrifício eucarístico oferecido em favor da alma da falecida.
-
Esse trecho evidencia que os primeiros cristãos já ofereciam orações e a Missa pelas almas dos falecidos, numa atitude de esperança e intercessão. A ideia de que a alma poderia ser ajudada espiritualmente após a morte está em sintonia com a doutrina do purgatório, mesmo que o termo ainda não fosse formalizado.
Ele faz a mesma coisa nos discursos fúnebres por ocasião da morte de Teodósio, da morte de Valentiniano e da morte de Sátiro, nos quais ele reza a Deus pelas almas deles e promete que oferecerá sacrifícios por elas.
Comentando as palavras do Salmo 36, “Os pecadores desembainharam a espada”, diz:
“Ainda que o Senhor salve os seus servos, seremos salvos pela fé — mas salvos como que através do fogo. Mesmo que não sejamos consumidos, ainda assim somos queimados. E como alguns permanecem no fogo enquanto outros o atravessam, que outro trecho das Escrituras divinas nos ensine: com efeito, os egípcios foram submersos no Mar Vermelho, mas o povo hebreu passou; Moisés atravessou, mas o Faraó foi lançado abaixo, pois os pecados pesados o afundaram — do mesmo modo que os sacrílegos serão precipitados no lago de fogo ardente”
A mesma coisa repete no Sermão 20 sobre o Salmo 118.
Santo Ambrósio, como outros Padres da Igreja, não só crê na oração pelos mortos, mas vê nela um meio real e eficaz de intercessão e purificação. Seus textos dão base sólida à doutrina do purgatório, mostrando que esta não surgiu na Idade Média, mas está enraizada na fé cristã dos primeiros séculos.
SÃO JERÔNIMO
“Outros maridos espalham violetas, rosas, lírios e flores roxas sobre os túmulos de suas esposas; nosso Pamaquio rega suas santas cinzas e veneráveis ossos com o doce bálsamo da esmola. Com essas especiarias e perfumes, ele mantém suas cinzas em repouso, sabendo que está escrito: ‘Assim como a água apaga o fogo, assim também a esmola apaga o pecado.’” (Carta a Pamáquio)
Este trecho de São Jerônimo, referindo-se ao gesto piedoso de Pamáquio, um cristão devoto que oferecia esmolas (caridade) em honra à sua falecida esposa. Em vez de homenageá-la apenas com flores, como era o costume cultural, ele escolheu atos espirituais com valor redentor.
A frase bíblica “Assim como a água apaga o fogo, assim também a esmola apaga o pecado” (cf. Eclesiástico/Sirácida 3:30) é usada aqui para mostrar que as boas obras podem ajudar no perdão dos pecados, inclusive dos falecidos — uma clara expressão da crença na eficácia espiritual das obras feitas em favor dos mortos, um conceito ligado à doutrina do purgatório.
Esse texto é uma bela e discreta afirmação da fé patrística de que os vivos podem interceder e beneficiar os mortos espiritualmente, algo que está diretamente ligado à doutrina do purgatório e da comunhão dos santos.
“Assim como cremos nos tormentos eternos do diabo e de todos os incrédulos e ímpios que disseram em seu coração: ‘não há Deus’, assim também cremos que, para os cristãos pecadores e ímpios, cujas obras devem ser provadas no fogo e também purificadas, a sentença do Juiz será moderada e mesclada com clemência.” (Comentário ao Livro de Isaias)
São Jerônimo distingue entre os condenados eternamente e os que serão purificados:
-
-
Ele inicia dizendo que os incrédulos e ímpios (“os que dizem ‘não há Deus’”) sofrerão tormentos eternos.
-
Em seguida, ele fala de um outro grupo, também de cristãos pecadores e ímpios, mas cuja sentença será “moderada e mesclada com clemência”.
-
Ou seja: ele distingue claramente entre a condenação eterna e a purificação temporária.
-
A expressão “cristãos pecadores e ímpios” não implica automaticamente condenação eterna:
-
No contexto patrístico e bíblico, “ímpio” pode ser usado de forma relativa, referindo-se a cristãos que viveram em pecado grave, mas não irremediavelmente endurecidos. Há espaço para a purificação após a morte, se a alma morreu em estado de graça.
-
A própria menção ao “fogo que prova e purga as obras” ecoa 1 Coríntios 3:13-15, que fala de salvação “como que através do fogo”.
-
-
“Moderada e mesclada com clemência” = purgatório:
-
Essa frase indica claramente que não se trata de uma pena eterna, pois tal pena não admite moderação nem clemência.
-
A clemência divina se aplica àqueles que não são condenados eternamente, mas ainda necessitam purificação.
-
-
A expressão “obras que devem ser provadas no fogo e purgadas” é linguagem clássica da doutrina do purgatório.
Isso é, em essência, a doutrina do purgatório como sempre foi entendida pela Igreja: um estado de purificação para os que morrem na graça, mas ainda não totalmente purificados.
“Mas se Orígenes afirma que todas as criaturas racionais não serão destruídas, e atribui penitência ao diabo, o que dizer de nós, que afirmamos que o diabo e seus seguidores, e todos os ímpios e transgressores perecem perpetuamente, e que os cristãos, se forem surpreendidos pelo pecado, serão salvos após punições?”(Livro 1 contra os Pelagianos)
Aqui rejeita a ideia de Orígenes de que até o diabo pode se arrepender e ser salvo. Em contraste, ele afirma a doutrina tradicional: que o diabo e os ímpios são punidos eternamente, mas que cristãos pecadores podem ser salvos após passarem por punições. Essa ideia é o conceito de purgatório, onde almas de cristãos passam por um tempo de purificação antes de entrar no céu.
Alguns autores protestantes, na tentativa de dissociar São Jerônimo da doutrina do purgatório, afirmam que ele teria ensinado que até mesmo pecados mortais seriam purgados após a morte, o que ultrapassaria os limites estabelecidos pela doutrina católica. Ainda que, em certos trechos, Jerônimo pareça incluir cristãos culpados de faltas graves nesse processo de purificação, tal leitura não compromete o ponto central: ele claramente afirmava a existência de uma purificação post mortem dos pecados, o que corresponde, em substância, à doutrina do purgatório.
Como já foi observado anteriormente, é importante considerar que, na época dele, a igreja ainda não havia sistematizado e debatido, por meio de concílios, os termos precisos e os limites dessa purificação. Assim, eventuais variações ou aparentes imprecisões nas formulações dos Padres da Igreja — como a abrangência dos pecados ou a cronologia da purificação — são perfeitamente compreensíveis no contexto de um desenvolvimento doutrinal ainda em curso.
Além disso, os escritos de São Jerônimo não empregam uma terminologia técnica ou juridicamente estrita para distinguir formalmente entre pecados veniais e mortais. Sua abordagem é predominantemente pastoral, exortativa e reflexiva, voltada mais para a edificação espiritual do fiel do que para a definição dogmática. Por isso, mesmo que não haja uma delimitação precisa nesses termos, a essência de sua crença em uma purificação após a morte permanece plenamente compatível com a fé católica sobre o purgatório.
A expressões pode se referir a:
-
-
Cristãos que caíram gravemente, mas se arrependeram sinceramente antes da morte.
-
Ou ainda, à ambiguidade comum na patrística, onde o termo “ímpio” ou “pecador” nem sempre implica reprovação eterna, mas pode incluir os que foram negligentes, morrem com a fé, mas ainda têm penas temporais a expiar.
-
Fora isso, sua visão permanece em sintonia com a fé da Igreja. Ele reconhece que cristãos pecadores, contanto que estejam unidos a Cristo, podem ser submetidos a penas purificadoras antes de alcançarem a salvação definitiva. Sua posição, portanto, não contradiz a doutrina católica do purgatório nem a extrapola de modo indevido, mas a antecipa de forma coerente com a tradição em desenvolvimento.
SÃO PAULINO DE NOLA
Paulino de Nola (c. 353–431) foi um bispo e teólogo cristão, natural da Galáxia, conhecido principalmente por sua conversão radical do paganismo ao cristianismo, e por sua dedicação à vida monástica. Ele foi um grande defensor da vida ascética e um exemplo de transformação espiritual.
Em uma epístola ao mesmo Pammáquio, elogia-o porque ele havia satisfeito tanto pelo corpo quanto pela alma de sua esposa falecida — pelo corpo com lágrimas, pela alma com esmolas.
O mesmo santo, na epístola 5 ao bispo Delfino, ao recomendar a alma de seu irmão, escreve:
“Vela por ele com tuas orações, para que receba o perdão, e que das pontas dos dedos de tua santidade, as gotas escorridas do repouso eterno possam aspergir sua alma.”
E, na epístola 1 (epístola 1 a Amando), ele diz algo semelhante, recomendando a mesma alma ao bispo Amando:
“Por isso pedimos com fervor que, como irmão na oração, una teus esforços aos nossos, para que o Deus misericordioso conceda repouso à sua alma pelas gotas de Sua misericórdia através de tuas orações, etc.”
Esses trechos fornecem forte evidência patrística da fé antiga na eficácia das orações pelos mortos — uma prática profundamente enraizada na Tradição da Igreja desde seus primórdios.
São Paulino:
-
-
Mostra que o cuidado com os mortos envolvia tanto o luto humano (lágrimas) quanto a caridade espiritual (esmolas, orações, súplicas).
-
Ao recomendar a alma do irmão a outros bispos, ele reconhece que a oração dos santos pode alcançar misericórdia e descanso para as almas.
-
As imagens das “gotas da misericórdia” e do “repouso eterno” expressam poeticamente a esperança de alívio e purificação após a morte.
-
SANTO AGOSTINHO
Doutor da Igreja nascido em Tagaste (África) no ano 354, filho de Santa Mônica. Após uma vida ímpia, converteu-se no ano 387 e, posteriormente, foi eleito bispo de Hipona, ministério que exerceu durante 34 anos. É considerado um dos Padres mais influentes do Ocidente e seus escritos são de grande atualidade. Morreu no ano 430.
As descrições do Purgatório por parte de Santo Agostinho são tão claras que tampouco necessitam de explicações:
“Senhor, não me interpeles na tua indignação. Não me encontres entre aqueles a quem haverás de dizer: ‘ide para o fogo eterno que está preparado para o diabo e seus anjos’. Nem me corrijas em teu furor, mas purifica-me nesta vida e torna-me tal que já não necessite do fogo corretor, atendendo aos que hão de salvar-se, ainda que, não obstante, como que através do fogo. Por que acontece isto se não é porque edificam aqui sobre o cimento, lenha, palha e feno? Se tivesse edificado sobre o ouro, a prata e as pedras preciosas, estariam livres de ambas as classes de fogo, não apenas daquele eterno, que atormentará os ímpios para sempre, mas também daquele que corrigirá aos que hão de salvar-se através do fogo” (Comentário ao Salmo 37,3).
“Quando alguém padece algum mal, pela perversidade ou erro de um terceiro, peca, certamente, o homem que por ignorância ou injustiça causa um mal a alguém; porém não peca Deus, que por um justo mas oculto desígnio, permite que isto ocorra. Contudo, há penas temporais que alguns padecem apenas nesta vida, outros após a morte, e outros agora e depois. De toda forma, estas penas são sofridas antes daquele severíssimo e definitivo juízo. Mas nem todos os que hão de sofrer penas temporais através da morte cairão nas eternas, que terão lugar após o juízo. Haverá alguns, de fato, a quem se perdoarão no século futuro o que não se lhes foi perdoado no presente; ou seja, que não serão castigados com o suplício eterno do século futuro, como falamos mais acima” (A Cidade de Deus 21,13).
“A maior parte [das pessoas], uma vez conhecida a obrigação da lei, se veem vencidas primeiramente pelos vícios que chegam a dominá-las; tornam-se, assim, transgressoras da lei. Logo buscam refúgio e auxílio na graça, com a qual recuperarão a vitória, mediante uma amarga penitência e uma luta mais vigorosa, submetendo primeiro o espírito a Deus e obtendo depois o domínio sobre a carne. Quem quiser, pois, evitar as penas eternas não deve apenas se batizar; deve ainda se santificar seguindo a Cristo. Assim é como quem passa do diabo para Cristo. Quanto às penas expiatórias, não pense ninguém em sua existência se não será antes do último e terrível juízo” (A Cidade de Deus 21, 16)
“Não se pode negar que as almas dos falecidos são aliviadas pela piedade dos parentes vivos, quando oferecem por elas o sacrifício do Mediador ou quando praticam esmolas na Igreja. Porém, estas coisas aproveitam aquelas [almas] que, quando viviam, mereceram que se lhes pudessem aproveitar depois. Pois há um certo modo de viver, nem tão bom que aproveite destas coisas depois da morte, nem tão mal que não lhes aproveitem; há tal grau no bem que o que possui não aproveita de menos; ao contrário, há tal [grau] no mal que não pode ser ajudado por elas quando passar desta vida. Portanto, aqui o homem adquire todo o mérito com que pode ser aliviado ou oprimido após a morte. Ninguém espere merecer diante de Deus, quando tiver falecido, o que durante a vida desprezou” (Das Oito Questões de Dulcício 2, 4)
“Lemos nos livros dos Macabeus que foi oferecido um sacrifício pelos falecidos. E apesar de não podermos ler isto em nenhum outro lugar do Antigo Testamento, não é pequena a autoridade da Igreja universal que reflete este costume, quando nas orações que o sacerdote oferece ao Senhor, nosso Deus, sobre o altar encontra seu momento especial na comemoração dos falecidos” (Do Cuidado devido aos Mortos 1,3)
“Na pátria (=céu) não haverá lugar para a oração, mas apenas para o louvor. Por que não para a oração? Porque nada faltará. O que aqui é objeto de fé, ali será objeto de visão. O que aqui se espera, ali se possuirá. O que aqui se pede, ali se recebe. Contudo, nesta vida existe uma certa perfeição alcançada pelos santos mártires. A isto se deve o uso eclesiástico, conhecido pelos fiéis, de se mencionar os nomes dos mártires diante do altar de Deus; não para orar por eles, mas pelos demais falecidos de que se faz menção. Seria uma injúria rogar por um mártir, a cujas orações devemos nos encomendar. Ele lutou contra o pecado até derramar seu sangue. Aos outros, imperfeitos todavia, mas sem dúvida parcialmente justificados, diz o Apóstolo na Epístola aos Hebreus: ‘Todavia não resististes até tombar em vossa luta contra o pecado’” (Sermão 159,1)
Após uma leitura honesta e cuidadosa de textos como Comentário ao Gênesis contra os Maniqueus (Livro II, 30), Confissões (IX, XIII, 34-37), Comentário ao Salmo 37,3, Enchiridion (69-70 e 109-110), Do Cuidado devido aos Mortos (1,2; 1,3; 4,2; 4,4), Das Oito Questões de Dulcício (II, 1-4) e, sobretudo, A Cidade de Deus (21,13; 21,16; 21,24; 21,26), o que encontramos não é hesitação, mas convicção. Não há uma “sombra” de dúvida. Ao longo de quase quarenta anos — de 388 a 427 d.C., até os últimos anos de sua vida — Agostinho fala de forma coerente, constante e articulada sobre a realidade do purgatório.
E mais: ele não apenas fala, ele define. Suas expressões são inequívocas:
Poenae purgatoriae – penas purgatórias (Cidade de Deus, XXI, 13 e 16)
Tormenta purgatoria – tormentos purgatórios (Cidade de Deus, XXI, 16)
Ignis purgatorius – fogo purgatório (Enchiridion, 69)
Poenae temporariae – penas temporárias, em contraste com as eternas (Cidade de Deus, XXI, 13)
Ignis purgationis – fogo da purgação (De Genesi contra Manichaeos, II, 30)
Ignis emendatorius – fogo corretivo (Enarrationes in Psalmos, 37,3)
E, como se não bastasse, na Cidade de Deus XXI, 13, em apenas doze linhas ele menciona poenae purgatoriae três vezes — e ainda usa como sinônimo poenae expiatoriae, penas expurgatórias. A insistência terminológica revela não especulação ocasional, mas uma doutrina amadurecida e reiterada.
SÃO JOÃO I (C. 470–526 D.C.)
Natural da Toscana e filho de Constâncio, foi o 52º sucessor de São Pedro. Como Papa, expressou de forma clara e profunda a doutrina da oração pelos mortos, traçando suas origens aos próprios Apóstolos — e mais ainda, à inspiração do Espírito Santo.
Ele afirma:
“Os Apóstolos sabiam muito bem o quanto isso beneficia os falecidos. Pois sempre que todo o povo está de pé com as mãos erguidas em oração, juntamente com toda a assembleia dos sacerdotes, e a Vítima tremenda repousa sobre o altar — não deveríamos, com nossas súplicas por eles, tocar o coração de Deus?”
E continua:
“Devemos apressar-nos a ajudá-los — não com lágrimas, mas com orações, esmolas e ofertas. Pois não foi sem razão que isso foi instituído; não em vão recordamos os mortos nos santos mistérios, aproximamo-nos do altar por eles, e suplicamos ao Cordeiro que ali está presente — Aquele que tira os pecados do mundo — para que os falecidos possam receber algum alívio…
Por isso, oramos com confiança por todo o mundo e fazemos memória dos mortos juntamente com os mártires, os confessores e os sacerdotes. Pois todos nós constituímos um só corpo, embora um membro seja superior ao outro, e assim é possível, por meio da oração e do sacrifício, obter plena remissão para aqueles cujos nomes mencionamos.”
As palavras de São João I são de valor incalculável para o entendimento da tradição litúrgica da Igreja primitiva. Ele deixa claro que a oração pelos mortos não é uma invenção tardia, mas algo instituído desde os tempos apostólicos, inspirado pelo próprio Espírito Santo.
Além disso, ele mostra como essa prática está profundamente enraizada na vida sacramental da Igreja, especialmente na Santa Missa, onde a intercessão pelo repouso das almas se une ao Sacrifício do Cordeiro — Cristo. A ideia de que as almas dos fiéis defuntos podem receber alívio e remissão plena dos pecados através da oração e do sacrifício reforça diretamente a doutrina do Purgatório, ainda que o termo técnico talvez não fosse usado com a mesma frequência à época.
Outro ponto belíssimo de sua teologia é a unidade mística da Igreja: a Igreja militante (viva), padecente (no purgatório) e triunfante (no Céu) formam um só Corpo, e os membros podem ajudar-se mutuamente pela caridade sobrenatural.
SÃO CESÁRIO DE ARLES (470–543 D.C.)
Arcebispo francês, teólogo e pregador popular, foi também autor de duas regras monásticas. Presidiu diversos concílios na Gália e testemunhou, no século VI, a mesma doutrina sobre o Purgatório que já havia sido professada por Paulino, Santo Agostinho e São Jerônimo nos séculos IV e V.
Sua visão sobre o Purgatório é especialmente clara e direta: ele não apenas afirma sua existência e natureza, mas também descreve o modo como funciona, inclusive a intensidade das penas. Segundo ele, os sofrimentos do fogo purgatorial serão mais severos do que qualquer tormento imaginável nesta vida — e o tempo de permanência ali é incerto, podendo durar dias, meses ou até mesmo anos.
Eis as palavras de São Cesário:
“Se não agradecermos a Deus nas tribulações, nem redimirmos nossos pecados com boas obras, permaneceremos no fogo purgatorial até que esses pecados menores — como madeira, feno e palha — sejam consumidos… Mas alguém poderia dizer: “Não me importo quanto tempo ficarei lá, desde que ao final eu alcance a vida eterna.’”
Que ninguém diga isso, caríssimos irmãos, pois o fogo do Purgatório será mais severo do que qualquer castigo que possa ser imaginado, visto ou sentido neste mundo. Quem poderá saber por quantos dias, meses ou talvez até anos terá de passar por esse fogo?”
As palavras de São Cesário de Arles deixam evidente que a doutrina do Purgatório já era plenamente estabelecida e conhecida no século VI, inclusive com o uso explícito do termo “Purgatório” e com reflexões pastorais voltadas a corrigir a indiferença espiritual diante da realidade da purificação após a morte.
A advertência contra a falsa segurança do “eventualmente serei salvo” também revela uma profunda consciência da gravidade do processo de purificação, reforçando a necessidade de conversão, penitência e boas obras ainda nesta vida.
GREGÓRIO MAGNO
Papa e doutor da Igreja, é o quarto e último dos originais Doutores da Igreja latina. Defendeu a supremacia do Papa e trabalhou pela reforma do clero e da vida monástica. Nasceu em Roma por volta do ano 540 e faleceu em 604.
Enxergava em Mateus 12,32 uma referência implícita ao Purgatório:
“Tal como alguém sai deste mundo, assim se apresenta no Juízo. Porém, deve-se crer que exista um fogo purificador para expiar as culpas leves antes do Juízo. A razão para isso é que a Verdade afirma que se alguém disser uma blasfêmia contra o Espírito Santo, isto não lhe será perdoado nem neste século nem no vindouro. Com esta sentença se dá a entender que algumas culpas podem ser perdoadas neste mundo e algumas no outro, pois o que se nega em relação a alguns deve-se compreender que se afirma em relação a outros (…) No entanto, tal como já disse, deve-se crer que isto se refere a pecados leves e de menor importância.” (Diálogos 4,39)
PSEUDO-DIONÍSIO, O AREOPAGITA
Pseudo-Dionísio, o Areopagita, um autor cristão do final do século V ou início do século VI, que escreveu sob o nome de Dionísio, o Areopagita, um convertido de São Paulo mencionado nos Atos dos Apóstolos (Atos 17:34). O texto específico citado é da obra “Hierarquia Eclesiástica” (De Ecclesiastica Hierarchia), capítulo 7, parágrafo 3.
Nesta obra, Pseudo-Dionísio descreve a hierarquia eclesiástica e suas funções, bem como diversos rituais e práticas da Igreja. No capítulo 7, ele trata dos ritos funerários e das orações pelos mortos, sustentando a importância dessas orações para a purificação das almas e sua preparação para a união com Deus.
“Então o venerável Bispo que se aproxima realiza a sagrada oração pelos defuntos; essa oração pede a misericórdia divina para que ele possa perdoar todos os pecados cometidos pelo morto através da fragilidade humana, e colocá-lo na luz e na terra dos vivos”. (De Ecclesiastica Hierarchia Cap 7, 3)
Atanásio, ou quem quer que seja o autor de q. 34 ad Antiochum, pergunta se as almas percebem uma vantagem nas orações dos vivos? Ele responde que sim.
EUSÉBIO EMISENO
Eusébio de Emesa (c. 300–c. 359) foi um bispo e teólogo cristão do século IV, natural da região de Emesa, na Síria (atualmente Homs, na Síria). Ele é mais conhecido por seu envolvimento nas controvérsias teológicas da época, particularmente no que diz respeito à natureza de Cristo, que era uma questão central durante o período da teologia patrística.
Em sua Homilia 3 da Epifania, afirma:
“O castigo infernal permanecerá para aqueles que, tendo abandonado e não guardado a graça do Batismo, perecerão para sempre; mas aqueles que viveram de forma a merecer apenas penas temporais, passarão pelo rio de fogo — pela temível travessia de chamas ardentes.”
Essa passagem de Eusébio Emiseno traça uma clara distinção entre a pena eterna dos condenados e uma purificação temporária para os justos imperfeitos. O “rio de fogo” pelo qual os que merecem apenas penas temporais devem passar é uma imagem viva e teologicamente rica do fogo purificador, frequentemente identificado com o purgatório na tradição patrística.
Note-se que ele menciona especificamente aqueles que não perderam completamente a graça, mas que ainda necessitam de purificação. Isso está em perfeita consonância com o ensino posterior da Igreja sobre o purgatório: um estado intermediário no qual as almas passam por uma purificação antes de entrarem plenamente na presença de Deus.
O simbolismo do “rio de fogo” e do “vau temível com bolas de fogo” evoca a imagem de uma travessia dolorosa, porém temporária e purificadora, não de condenação eterna. Essa linguagem é consistente com a dos Padres Gregos, como Gregório de Nissa e Orígenes, que também usaram imagens semelhantes para descrever a ação purificadora do fogo divino.
TEODORETO DE CIRO
Teodoreto de Ciro (séc. V), um dos mais respeitados teólogos orientais, afirma expressamente a existência de um “fogo purgatorial” que age como uma fornalha espiritual, purificando as almas — analogia recorrente entre os Padres da Igreja.
Comentando o texto grego de 1 Coríntios 3:15, afirma:
“Cremos nesse mesmo fogo purgatorial, no qual as almas dos mortos são provadas e purificadas, assim como o ouro é purificado na fornalha.”
SÃO ISIDORO DE SEVILHA
São Isidoro de Sevilha (séc. VII), doutor da Igreja e referência na tradição latina, interpreta a afirmação de Cristo sobre o “pecado contra o Espírito Santo” como evidência indireta de que existem pecados que podem ser perdoados na outra vida, o que pressupõe um processo como o do purgatório — mediado, segundo ele, por um “fogo purgatorial”.
“Pois quando o Senhor diz: ‘Aquele que pecar contra o Espírito Santo não será perdoado nem nesta vida nem na futura’, Ele mostra que há certos pecados que serão perdoados — e que serão purificados por um certo fogo purgatorial.” (Livro 1 Sobre os Ofícios Divinos, capítulo 18)
O VENERÁVEL BEDA
O Venerável Beda (c. 673–735) foi um monge, teólogo, historiador e erudito cristão anglo-saxão, amplamente reconhecido como um dos mais importantes estudiosos da Idade Média. Ele nasceu na região de Northumbria, na Inglaterra, e passou a maior parte de sua vida no mosteiro de Jarrow, onde se dedicou ao estudo e à escrita.
São Beda, ao comentar o Salmo 37, afirma:
“Alguns homens cometem certos pecados veniais, tanto mais graves quanto mais leves; por isso, é necessário que tais pessoas sejam repreendidas com ira — isto é, colocadas no fogo do purgatório enquanto aguardam o dia do juízo. Assim, aquilo que neles ainda é impuro possa ser consumido por esse fogo, tornando-os, por fim, dignos de estar entre os que serão coroados à direita de Deus.”
No mesmo comentário, ele acrescenta que esse fogo purificador é mais severo do que os castigos impostos aos ladrões, aos mártires e outros sofredores.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste texto, apresentamos 29 fontes primitivas, provenientes de diversos territórios onde a Igreja estava presente, que testemunham a crença no fogo purgatorial e na oração pelos mortos — evidenciando, assim, a universalidade dessa verdade de fé na Igreja primitiva.
O amadurecimento da doutrina do purgatório mostra como a Igreja refinou seu entendimento teológico ao longo dos séculos. A falta de uma formulação completa e detalhada em períodos anteriores não invalida a presença de uma crença subjacente na purificação pós-morte. A doutrina, tal como definida mais tarde pela Igreja, pode ser vista como uma formalização e clarificação de crenças que já estavam presentes de forma embrionária nos escritos dos Padres da Igreja.
Em conclusão, enquanto as nuances e os entendimentos específicos podem variar, a crença na purificação após a morte e oração pelos mortos tem um fundamento unânime nos ensinamentos dos Padres da Igreja.
Alguma previsão sobre um artigo sobre o Purgatório na Biblia, Respondendo objeções sobre versiculos que a igreja usa como base para o Purgatório?
Olá, provavelmente no mês de Junho.