Alguns amigos pediram a minha opinião sobre um debate que houve há algum tempo, entre apologistas católicos, sobre este antigo evangelho apócrifo. O debate surgiu porque alguns defendiam, como doutrina católica, que São José, o pai de Jesus, permanecera virgem por toda sua vida, enquanto que outros defendiam que, conforme tradições procedentes de alguns evangelhos apócrifos, admitir-se-ia a possibilidade de que os chamados “irmãos de Jesus”, no Evangelho, fossem filhos de José, mas de um matrimônio anterior; e, nesta hipótese, São José seria viúvo ao casar-se com a Santíssima Virgem.
Foi então que uma das partes alegou que estes apócrifos foram condenados pelo Magistério, no Decreto Gelasiano, bem como por outros Padres, enquanto que outros debatedores alegavam que nem todos os apócrifos tinham sido condenados. Para acrescentar o meu grão de areia, quero compartilhar o que investiguei sobre o tema, nas fontes bibliográficas que tenho à mão.
O QUE É O PROTOEVANGELHO DE TIAGO?
Uma explicação breve, mas completa, pude tomar da obra de Aurelio de Santos Otero, "Os Evangelhos Apócrifos", publicado pela Biblioteca de Autores Cristãos [BAC]:
“Trata-se da narrativa apócrifa mais antiga em torno do nascimento de Jesus e de uma das que mais influência exerceu na posterioridade. O título de Protoevangelho não é original (data do século XVI), porém assim prossegue-se dizendo acerca deste apócrifo em quase todas as edições, para distingui-lo de outras composições de conteúdo parecido.
Escrito originariamente em grego, em uma época não anterior ao século II e não posterior ao IV, é conhecido por toda a tradição manuscrita como História ou Livro de Tiago. Em sua redação atual consta de 25 capítulos, em que se narram o nascimento e a vida de Maria até os dezesseis anos (capítulos 1 a 16), o nascimento de Jesus (capítulos 17 a 21) e a matança dos Inocentes com o martírio de Zacarias (capítulos 22 a 24). Encerra com um epílogo (capítulo 25) que apresenta São Tiago (sem dúvida o apóstolo São Tiago Menor) como presumido autor do livro.
O núcleo original do apócrifo dever ser datado pelo menos da segunda metade do século II, já que escritores como Orígenes e Clemente de Alexandria, que viveram entre finais do século II e princípios do III, atestaram sua existência. Os relatos do Protoevangelho pressupõem as narrativas dos Evangelhos canônicos em torno ao nascimento de Jesus, porém acrescentam uma longa série de detalhes novos, tão assimilados pela tradição, que em muitos casos resta difícil descobrir sua origem apócrifa. Assim, por exemplo, os nomes dos pais de Maria – Joaquim e Ana, a festa litúrgica da Apresentação, o nascimento de Jesus em uma gruta e sua colocação em uma manjedoura, José viúvo e idoso, etc.
Seria, no entanto, superficial deter-se nestes detalhes e não fixar-se no objetivo fundamental perseguido pelo autor e que dá sentido a todo o escrito: este não é outro senão a exaltação da figura de Maria, mãe virginal de Jesus…
Não se sabe com certeza se a pátria do Protoevangelho foi a Síria ou, melhor, o Egito. O que não admite dúvida nenhuma é a extraordinária aceitação de que gozou este escrito nas igrejas orientais, particularmente no âmbito greco-bizantino. Seu texto chegou a ser leitura obrigatória nas celebrações litúrgicas e daí o grande número de manuscritos gregos em que foi transmitido a partir do século X…
No Ocidente latino, não foi tão fácil a divulgação do Protoevangelho, devido sobretudo à condenação de que foi objeto — juntamente com uma longa lista de apócrifos — por parte do chamado 'Decretum Gelasianum', no século VI. Somente fragmentos dispersos de uma tradução antiga foram encontrados em época recente” (Aurelio de Santos Otero, "Os Evangelhos Apócrifos", BAC, Madri, 2005, pp.57-58).
INFLUÊNCIA NA TRADIÇÃO DA IGREJA
Como já foi dito na obra anteriormente citada, este antigo texto apócrifo exerceu grande influência em muitas tradições antigas. Os Papas, em suas diversas homilias, o mencionaram frequentemente. Por exemplo: João Paulo II o menciona como fonte de antigas tradições e, ademais, que sob sua influência se instituíram as festas da Natividade, da Concepção e da Apresentação:
“Hoje nos dirigimos em peregrinação espiritual a um santuário ligado à memória do nascimento da Virgem Santíssima. Uma antiga tradição, à qual faz referência um apócrifo do século II, o Protoevangelho de São Tiago, situa em Jerusalém, junto ao Templo, a casa onde nasceu a Virgem. Os cristãos, a partir do século V, têm celebrado a memória da Natividade de Maria na grande igreja construída em frente ao Templo, sobre a Piscina Probática, onde Jesus curou o paralítico (cf. João 5,1-9)” (João Paulo II, Angelus de 5 de Julho de 1987).
“Além disso, sob a influência do Protoevangelho de Tiago, se instituíram as festas da Natividade, da Concepção e da Apresentação, que contribuíram notavelmente para destacar alguns aspectos importantes do mistério de Maria” (João Paulo II, Audiência Geral de 15 de Outubro de 1997).
O propósito do livro, tal como explicou o Papa Bento XVI, era exaltar a santidade e virgindade da Virgem Maria:
“Em nome de São Tiago, além do apócrifo 'Protoevangelho de Tiago', que exalta a santidade e a virgindade de Maria, Mãe de Jesus, está particularmente ligada a 'Carta' que carrega seu nome” (Bento XVI, Audiência Geral de 28 de Junho do 2006).
A influência nas tradições católicas foi tão grande, que por ele sabemos os nomes dos pais da Virgem: Joaquim e Ana.
"Os principais escritos deste gênero (apócrifo) que se referem aos pais de Maria são: o Protoevangelho, que falsamente é atribuído a São Tiago (século II); o livro do nascimento da Virgem, que erroneamente é atribuído a São Tiago, irmão do Senhor, e do qual, segundo alguns, é autor São Cirilo de Alexandria; um outro livro do nascimento da Virgem, que Selêuco afirmou falsamente ser do evangelista São Mateus; o livro da Natividade de Santa Maria, resenhado entre as obras de São Jerônimo, etc., etc.” (Gregorio Alastruey, "Tratado da Santíssima Virgem", BAC, Madri, 1956, p.16).
Inclusive, atualmente as igrejas orientais católicas (não só as ortodoxas) admitem, com base neste Protoevangelho, a hipótese de que os irmãos de Jesus são filhos de um matrimônio anterior de José:
“Segundo um apócrifo — o Protoevangelho de Tiago — aqueles parentes de Jesus eram filhos de um matrimônio anterior de José, viúvo, que tornou a se casar já idoso: irmãos unilaterais, portanto, e assim os consideravam — e, pelo que sei, continuam considerando — as Igrejas orientais” (Vitorio Messori, "Hipóteses sobre Maria", Livros Libres, Espanha, 2007, p.400).
O PROTOEVANGELHO DE TIAGO É HERÉTICO OU TEM ORIGEM GNÓSTICA?
Não creio que seja possível colocar todos os apócrifos no mesmo saco. Se bem que haja uma grande quantidade de apócrifos, cuja origem encontra-se no Gnosticismo, até onde pude averiguar este antigo escrito apócrifo não está classificado entre os tais, mas entre aqueles que, ainda que contenham elementos lendários e pouco históricos, são ortodoxos e refletem as crenças populares dos católicos da Igreja primitiva.
Para isto, consultei vários manuais de Dogmática e Mariologia, todos com aprovação eclesiástica, que lançam um pouco de luz sobre esta questão:
“Há que se distinguir, na literatura apócrifa, entre um grupo que permanece dentro da doutrina da Igreja e um outro grupo, herético. O grupo eclesiástico propôs como tarefa defender as verdades da fé atacadas pelos hereges. Os autores utilizam, para isto, o método da perífrase e a beleza poética dos textos da Escritura. O limite entre os apócrifos heréticos e os ortodoxos nem sempre é fácil de se traçar; porém, enquanto os apócrifos heréticos nasceram do espírito gnóstico-maniqueísta e combatem, por isso, a verdadeira encarnação de Deus, os apócrifos ortodoxos servem à crença na realidade da natureza humana de Jesus Cristo. Os escritos apócrifos mariológicos se ocupam detalhadamente do nascimento e infância, assim como da morte e assunção de Maria.
Os principais testemunhos deste gênero de literatura são o Protoevangelho de Tiago (originariamente chamava-se: História de São Tiago sobre o Nascimento de Maria), o Evangelho do Pseudo-Mateus, o Evangelho de Tomé, o Evangelho de Pedro, o Evangelho Árabe da Infância, a Ode Décima de Salomão, a Assunção de Isaías e o 'Transitus Mariae', divulgado em várias edições.
Particular influência exerceu sobre a piedade mariana e sobre a arte da Idade Média, o Protoevangelho de Tiago, narrativa do século II sobre a infância e o nascimento virginal de Cristo. Apareceu na forma latina em princípios do século IV no Ocidente e gozou de grande estima. A obra pertence à literatura eclesiástica e ortodoxa” (Michael Schmaus, "Teologia Dogmática", Tomo VIII: A Virgem Maria, Edições Rialp S.A., Madri, 1963, p.76).
“As primeiras alusões a este evangelho [=Protoevangelho de Tiago] encontram-se em Justino (†165), Clemente de Alexandria (†215), Orígenes (†253-254), Gregório de Nissa (†394) e Epifânio (†403). Quanto à sua antiguidade, parece que já existia no século II um livro de Tiago, que continha pelo menos duas partes do Protoevangelho. O objetivo deste livro era glorificar Maria. Teve uma enorme difusão. É uma obra anterior aos dogmas, à doutrina desenvolvida, aos Santos Padres. Reflete crenças populares anteriores à sua data de composição” (José C. R. García Paredes, "Mariologia", BAC, Madri, 1995, p.170).
“Além de trabalhos individuais, como a Ascensão de Isaías, as Odes de Salomão e outros semelhantes, existem duas fontes principais marianas nos apócrifos: no primeiro período, a partir do século II, temos o Protoevangelho de Tiago, em suas várias versões, com seus escritos afins; no segundo período, a partir do século V, temos o 'Transitus Mariae'. No Protoevangelho estuda-se mais o nascimento e a virgindade de Maria; no 'Transitus' visa-se glorificar Maria como Mãe de Deus e refere-se também à sua morte e assunção. Porém, não imaginemos que estas duas fontes marianas são paralelas, no sentido de que correm no tempo sem nunca se encontrarem.
Pelo contrário, as versões tardias do Protoevangelho e de outros escritos recolhem os ensinamentos correntes naquela época, aos quais se refere extensamente o 'Transitus Mariae'. Como exemplo, veremos que o relato latino do Pseudo-Mateus e do Evangelho Árabe da Infância relatam a realeza de Maria e sua intercessão, temas que normalmente se apresentam no 'Transitus'. Igualmente, alguns relatos do 'Transitus Mariae', como o Pseudo-Evódio, utilizam o tema do Protoevangelho. Citamos numerosos testemunhos nestas páginas para demonstrar que existe um corpo definido de mariologia nestes livros. Façamos agora quatro observações.
É de esperar que, considerando os temas mariológicos destes documentos, não tenhamos apresentado um aspecto demasiadamente unilateral dos apócrifos, dando-lhes a conhecer com uma luz demasiadamente favorável. Tenhamos em conta que sua mariologia é frequentemente misturada em um fundo bastante colorido e fantástico de lendas e falsos milagres. Tentamos apresentar juntos os ensinamentos sobre Maria. A palha, isto é, o fundo fantástico, o rejeitamos sempre que pudemos” (J. B. Carol [ofm], "Mariologia", BAC, Madri, 1964, pp.180-181).
SÃO JOSÉ: VIRGEM OU VIÚVO?
Nada dogmático foi definido a respeito disto, porém pelo que encontrei, há Padres que apoiam um ou outro ponto de vista.
Por exemplo, quanto aos irmãos de Jesus, um manual de Dogmática, que admite sem qualquer dúvida o parto virginal de Maria, acrescenta que houve Padres que admitiram que São José pode ter sido viúvo, tal como o Protoevangelho de Tiago:
“Em suma: pode-se considerar como irmãos do Senhor os filhos de São José tidos de um matrimônio anterior, como o entenderam os apócrifos 'Protoevangelho de Tiago' e 'Evangelho de Pedro', e depois, vários Padres: Clemente Alexandrino, Orígenes, Santo Hilário, Santo Epifânio, São Cirilo de Alexandria e Santo Ambrósio” (Benito Henrique Merkelback [op], "Mariologia", Desclée de Brower e Cia, Bilbao, 1954, p.350).
Outro tratado de Dogmática admite o mesmo, porém coloca ênfase nos Padres que rejeitaram esta hipótese:
“Alguns Padres antigos, principalmente no Oriente, prestando demasiada fé aos apócrifos Protoevangelho de Tiago e Evangelho de Pedro, pensaram que os irmãos e irmãs do Senhor eram filhos de São José, tidos de outra mulher anterior à Santíssima Virgem. Opinião esta totalmente diversa daquela de São Jerônimo: 'Alguns, seguindo os delírios dos apócrifos, suspeitam que os irmãos do Senhor eram filhos de uma outra mulher de José' (Adv. Helvid. de Perpetua Virginit. Mariae); e ainda mais: o mesmo doutor afirma que São José não só não tinha se casado antes de tomar Maria por esposa, como também era virgem: 'Tu dizes que Maria não permaneceu virgem; eu digo mais: que também José foi virgem por Maria'. Com isto concorda São Tomás, que diz: 'Isto é falso, porque se o Senhor não quis encomendar a guarda de sua Mãe virgem senão a um virgem, como teria consentido que o esposo desta não fosse virgem?' (Comm. in Galat. 1,19)” (Gregorio Alastruey, "Tratado da Santíssima Virgem", BAC, Madri, 1956, p.470).
A MINHA OPINIÃO (OU: CONCLUSÕES)
Com base em tudo que pude investigar, poderia resumir a minha opinião assim:
– É certo que o Protoevangelho de Tiago pode ter sido rejeitado em bloco, juntamente com os demais apócrifos, pelo "Decretum Gelasianum"; no entanto, na minha opinião, isto deveria se entender, hoje em dia, como uma advertência para não se ver nesses evangelhos apócrifos uma fonte de doutrina ou para não serem colocados no mesmo nível da Sagrada Escritura. Isso não exclui, no entanto, reconhecê-los como objeto de interesse histórico, por serem um reflexo das mais antigas tradições cristãs, sendo possível tomar deles os elementos positivos de cada um. Como vimos, assim o fizeram frequentemente os Papas, sem que por isso aprovassem tudo o que ali se afirma ou se supõe. Poder-se-ia concluir que não devem ser colocados no mesmo saco que agrupa os apócrifos de ordem gnóstica e que realmente a obra [Protoevangelho de Tiago] pertence à literatura eclesiástica e ortodoxa.
– Se São José sempre foi virgem ou, pelo contrário, viúvo no momento de se casar com a Virgem, penso que não seja algo que deva causar divisão. Ambas as posições são tradições com apoio patrístico e histórico, e não creio que possam ser descartadas com certeza absoluta. Particularmente, inclino-me pela tese de São Jerônimo, eis que me parece mais defensável biblicamente.
– Por último, aconselharia, sobretudo aos irmãos católicos, a não ficarem se insultando e se acusando mutuamente de hereges em razão deste assunto. Pelo menos, até onde vi, todos estão de acordo que no tocante à virgindade de São José não há nada de dogmático, de modo que quem quiser pensar – como São Jerônimo, São Tomás e outros Padres – que São José permaneceu virgem, muito bem; mas quem quiser crer – como Santo Hilário, Santo Epifânio, São Cirilo de Alexandria ou Santo Ambrósio – que ele era viúvo, muito bem também!
PARA CITAR
José Miguel Arráiz. O Protoevangelho de Tiago é herético? São José permaneceu virgem ou foi viúvo? Disponível em: <http://apologistascatolicos.com/index.php/patristica/estudos-patristicos/908-o-protoevangelho-de-tiago-e-heretico-sao-jose-permaneceu-virgem-ou-foi-viuvo> Tradutor: Carlos Martins Nabeto. Do Original em Espanhol Disponível em: <: http://infocatolica.com/blog/apologeticamundo.php. >