Sexta-feira, Novembro 15, 2024

O PRIMADO DE PEDRO NOS EVANGELHOS

O PRIMADO DE PEDRO NOS EVANGELHOS[1]

 

REFOULÉ François, Primauté de Pierre dans les évangiles, in Revue des Sciences Religieuses, tome 38, fascicule 1, 1964. pp. 1-41.

Tradução: PZA

 

 

            A obra do professor O. Cullman, «Saint Pierre. Disciple – Apôtre – martyr»[2], impôs-se tanto à atenção dos exegetas e dos teólogos que é ainda hoje a única obra de valor, tendo em vista o conjunto dos problemas que dizem respeito à pessoa e ao papel de Pedro no Novo Testamento e na Igreja Primitiva. Não existe ainda, que nós conheçamos, outra obra católica que lhe seja comparável. Isto não significa, no entanto, que os exegetas, tanto protestantes como católicos subscrevam todas as interpretações propostas pelo autor. Muito longe disso, como o testemunha o número de estudos e de respostas que ele suscitou[3]. Parece-nos que chegou o momento de apresentar uma espécie de síntese dos resultados adquiridos depois do lançamento da obra de Cullmann há dez anos. É, portanto, em função do «São Pedro» do professor Cullmann e dos estudos que ele em parte provocou, que nós consideraremos aqui o lugar de São Pedro nos Evangelhos[4].

 

I. O lugar destacado de Pedro no grupo dos discípulos.

 

            Uma simples análise estatística atesta já, por si só, o lugar preponderante de Pedro nos Evangelhos. Pedro encontra-se aí mencionado 114 vezes (mais 57 vezes nos outros escritos do NT), ao passo que o nome de João é apenas nomeado 38 vezes (mais oito nos Actos dos Apóstolos). Pedro pertence ao círculo mais íntimo dos discípulos:

Mc. 5,37: E não deixou que ninguém o acompanhasse, a não ser Pedro, Tiago e João, irmão de Tiago;

9,2: Seis dias depois, Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João e levou-os, só a eles, a um monte elevado;

13,3: E, estando sentado no Monte das Oliveiras frente ao templo, Pedro, Tiago, João e André perguntaram-lhe em particular;

14,33: Tomando consigo Pedro, Tiago e João, começou a sentir pavor e a angustiar-se.

Ele é testemunha da transfiguração, bem como da agonia. Ele comporta-se como o representante do grupo dos Apóstolos e é o seu porta-voz:

Mc. 8,29: «E vós, quem dizeis que Eu sou?» – perguntou-lhes. Pedro tomou a palavra, e disse: «Tu és o Messias.»;

9,5: Tomando a palavra, Pedro disse a Jesus: «Mestre, bom é estarmos aqui…»;

Mt. 17,24-27: Entrando em Cafarnaum, aproximaram-se de Pedro os cobradores do imposto do templo e disseram-lhe: «O vosso Mestre não paga o imposto?» Ele respondeu: «Paga, sim». Quando chegou a casa, Jesus antecipou-se, dizendo: «Simão, que te parece? De quem recebem os reis da terra impostos e contribuições? Dos seus filhos, ou dos estranhos?» E como ele respondesse: «Dos estranhos», Jesus disse-lhe: «Então, os filhos estão isentos. No entanto, para não os escandalizarmos, vai ao mar, deita o anzol, apanha o primeiro peixe que nele cair, abre-lhe a boca e encontrarás lá um estáter. Toma-o e dá-lho por mim e por ti.»;

18,21: Então, Pedro aproximou-se e perguntou-lhe: «Senhor, se o meu irmão me ofender, quantas vezes lhe deverei perdoar? Até sete vezes?».

O próprio quarto Evangelho reconhece-lhe este papel:

Jo. 6,67-68: Então, Jesus disse aos Doze: «Também vós quereis ir embora?» Respondeu-lhe Simão Pedro: «A quem iremos nós, Senhor? Tu tens palavras de vida eterna!»;

21,3: Disse-lhes Simão Pedro: «Vou pescar.» Eles responderam-lhe: «Nós também vamos contigo.».

É portanto indubitável, como o assegura Cullmann, que «segundo o testemunho de toda a tradição evangélica, Pedro ocupa um lugar particularmente representativo entre os discípulos» (p. 25) e que ele deve ter desempenhado um papel preponderante na comunidade primitiva.

            Talvez se devesse atribuir importância sobretudo ao facto de os Evangelhos sinópticos apresentarem Pedro ao mesmo tempo como o primeiro chamado, o primeiro apóstolo e a primeira testemunha de Cristo ressuscitado.

            Os Evangelhos sinópticos concordam em apresentar Pedro como o primeiro chamado:

Mc. 1,16-17: Passando ao longo do mar da Galileia, viu Simão e André, seu irmão, que lançavam as redes ao mar, pois eram pescadores. E disse-lhes Jesus: «Vinde comigo e farei de vós pescadores de homens.»;

Mt. 4,18-19: Caminhando ao longo do mar da Galileia, Jesus viu dois irmãos: Simão, chamado Pedro, e seu irmão André, que lançavam as redes ao mar, pois eram pescadores. Disse-lhes: «Vinde comigo e Eu farei de vós pescadores de homens.»;

Lc. 5,1-11: Encontrando-se junto do lago de Genesaré, e comprimindo-se à volta dele a multidão para escutar a palavra de Deus, Jesus viu dois barcos que se encontravam junto do lago. Os pescadores tinham descido deles e lavavam as redes. Entrou num dos barcos, que era de Simão, pediu-lhe que se afastasse um pouco da terra e, sentando-se, dali se pôs a ensinar a multidão. Quando acabou de falar, disse a Simão: «Faz-te ao largo; e vós, lançai as redes para a pesca.» Simão respondeu: «Mestre, trabalhámos durante toda a noite e nada apanhámos; mas, porque Tu o dizes, lançarei as redes.»

Assim fizeram e apanharam uma grande quantidade de peixe. As redes estavam a romper-se, e eles fizeram sinal aos companheiros que estavam no outro barco, para que os viessem ajudar. Vieram e encheram os dois barcos, a ponto de se irem afundando. Ao ver isto, Simão caiu aos pés de Jesus, dizendo: «Afasta-te de mim, Senhor, porque sou um homem pecador.» Ele e todos os que com ele estavam encheram-se de espanto por causa da pesca que tinham feito; o mesmo acontecera a Tiago e a João, filhos de Zebedeu e companheiros de Simão. Jesus disse a Simão: «Não tenhas receio; de futuro, serás pescador de homens.» E, depois de terem reconduzido os barcos para terra, deixaram tudo e seguiram Jesus.

Só o Evangelho de Lucas dá relevo a esta prioridade de Pedro, num relato tanto mais significativo, quanto ele tem a sua contraparte no Evangelho de João (cap. 21). A comparação de Lc.5,1-11 com Mt.4,18-19 e Mc.1,16-17 prova que deve ser intencionalmente que Lucas quis meter em evidência o lugar de Pedro. Limitemo-nos por agora a revelar a estrutura deste relato, do qual a continuação deste artigo permitirá, cremos nós, indagar o seu significado: 1) Jesus manifesta o seu poder por meio de um milagre, 2) Pedro confessa Jesus como o Senhor. Sem dúvida, Lucas, contrariamente a Marcos, designa Jesus ao longo do seu Evangelho com este título. Mas este deve ter aqui um sentido de mais peso, em razão do seu lugar inabitual no fim do protesto de Pedro e do seu contraste com o termo empregado por Pedro no início da perícopa: «Mestre» (v. 5). O gesto de adoração de Pedro confirma além disso o sentido que ele dá a este nome. 3) Pedro reconhece-se «pecador», 4) Jesus investe-o de uma missão; ele será doravante pescador de homens, 5) Pedro segue Jesus. Neste relato, Pedro não está sozinho, Tiago e João são apresentados como seus companheiros. É, no entanto, só a Pedro que Cristo se dirige e só ele é que é investido de uma missão, contrariamente aos relatos paralelos de Mateus e Marcos. Revelemos, por fim, que no versículo 8 Simão é de repente, sem explicação, chamado Pedro, enquanto Jesus só lhe dará este nome no chamamento dos Apóstolos (6,14-16: Simão, a quem chamou Pedro, e André, seu irmão; Tiago, João, Filipe e Bartolomeu; Mateus e Tomé; Tiago, filho de Alfeu, e Simão, chamado o Zelote; Judas, filho de Tiago, e Judas Iscariotes, que veio a ser o traidor.»)!

            Pedro não é somente o primeiro a ser chamado, ele é igualmente o primeiro Apóstolo. Além do mais, Cullmann revelou que as listas dos Apóstolos nos Sinópticos, que neste ponto divergem, são unânimes em colocar Pedro no primeiro lugar e Judas no último. O mesmo se passa na lista dos Actos dos Apóstolos (Act. 1,13: Estavam lá: Pedro, João, Tiago, André, Filipe, Tomé, Bartolomeu, Mateus, Tiago, filho de Alfeu, Simão, o Zelota, e Judas, filho de Tiago.). Mateus sublinha mesmo a prioridade de Pedro «πρῶτος Σίμων» (Mt. 10,2: São estes os nomes dos doze Apóstolos: primeiro, Simão, chamado Pedro, e André, seu irmão; Tiago, filho de Zebedeu, e João, seu irmão…). «πρῶτος» tem aqui um sentido preponderante.

            Pedro é enfim a primeira testemunha de Cristo ressuscitado, como o assegura Paulo em 1Cor. 15,3-8: Transmiti-vos, em primeiro lugar, o que eu próprio recebi: Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras; foi sepultado e ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras; apareceu a Cefas e depois aos Doze. 6Em seguida, apareceu a mais de quinhentos irmãos, de uma só vez, a maior parte dos quais ainda vive, enquanto alguns já morreram. Depois apareceu a Tiago e, a seguir, a todos os Apóstolos. 8Em último lugar, apareceu-me também a mim, como a um aborto. Paulo refere-se a uma declaração tradicional anterior a ele e que ele se limita a transmitir: «Eu vos transmiti, antes de mais, o que eu próprio recebi…»[5]. Paulo, além disso, atribui uma indicação cronológica à cristofania de que ele foi pessoalmente agraciado e sublinha que Pedro foi o primeiro a ver Cristo ressuscitado. O testemunho de Lucas (24,33-34: Levantando-se, voltaram imediatamente para Jerusalém e encontraram reunidos os Onze e os seus companheiros, que lhes disseram: «Realmente o Senhor ressuscitou e apareceu a Simão!») corrobora o de Paulo e tem-se revelado muitas vezes o ar de parentesco entre as duas fórmulas. Ora, para Paulo (1Cor. 9,1: Não sou eu um homem livre? Não sou um Apóstolo? Não vi Jesus, nosso Senhor? Não sois vós a minha obra no Senhor?), como para o autor dos Actos dos Apóstolos

(1,22: a partir do baptismo de João até ao dia em que nos foi arrebatado para o Alto, é indispensável que um deles se torne, connosco, testemunha da sua ressurreição;

2,32: Foi este Jesus que Deus ressuscitou, e disto nós somos testemunhas;

3,15: Destes a morte ao Príncipe da Vida, mas Deus ressuscitou-o dos mortos, e disso nós somos testemunhas;

4,33: Com grande poder, os Apóstolos davam testemunho da ressurreição do Senhor Jesus, e uma grande graça operava em todos eles;

5,32: E nós somos testemunhas destas coisas, juntamente com o Espírito Santo, que Deus tem concedido àqueles que lhe obedecem;

13,31: e, durante muitos dias, apareceu aos que tinham subido com Ele da Galileia a Jerusalém, os quais são agora suas testemunhas diante do povo;

22,15: porque serás testemunha diante de todos os homens, acerca do que viste e ouviste),

o Apóstolo é essencialmente a testemunha da ressurreição. Não é de maneira nenhuma duvidoso que o próprio Paulo considera Pedro como a «testemunha por excelência do acontecimento pascal». Cullmann, de resto, reconheceu a importância deste facto: «Nunca é demais insistir nisso – escreve ele –. Porque Cristo ressuscitado colocou ainda assim o seu selo com a distinção que ele tinha conferido a Pedro ao nomeá-lo Cefas» (p. 51).

            É verdade que o Evangelho de Mateus não relata a visão de Cristo ressuscitado por Pedro sozinho. O Evangelho de Lucas também só faz alusão a isso. Como o mostrou H. Conselmann, parece que esta discrição deve explicar-se pela ideia mestra do seu Evangelho que visa apresentar Jerusalém como o centro da história da salvação, ou mais exactamente, como o ponto geográfico onde o tempo da salvação encontra o seu meio[6]. Ora, segundo a tradição, a aparição de Cristo a Pedro devia ter tido lugar na Galileia. Pode pensar-se que o final original do Evangelho de Marcos relatava esta aparição, porque as mulheres que se tinham dirigido ao túmulo tinham recebido do anjo a mensagem seguinte: «Ide dizer aos seus discípulos, e nomeadamente a Pedro, que ele vos precede na Galileia» (16,7). A discrição dos evangelhos sinópticos sobre esta aparição permanece em todo o caso um enigma. Sejam quais forem as explicações que lhe podem ser apresentadas, parece ser seguro que Pedro foi o primeiro a ver Cristo ressuscitado e que este facto deve ter contribuído para afirmar a sua autoridade.

            Enquanto primeiro chamado, primeiro Apóstolo e primeira testemunha da Ressurreição, Pedro ocupou, portanto, uma posição especial no grupo dos Apóstolos. Estas qualificações não provam de maneira nenhuma directamente que Cristo o tenha investido de uma real primazia sobre os outros Apóstolos. Elas são apenas indícios. Para fundar esta primazia, os teólogos católicos invocam três textos maiores:

Mt. 16,17-19: Jesus disse-lhe em resposta: «És feliz, Simão, filho de Jonas, porque não foi a carne nem o sangue que to revelou, mas o meu Pai que está no Céu. Também Eu te digo: Tu és Pedro, e sobre esta Pedra edificarei a minha Igreja, e as portas do Abismo nada poderão contra ela. Dar-te-ei as chaves do Reino do Céu; tudo o que ligares na terra ficará ligado no Céu e tudo o que desligares na terra será desligado no Céu.»;

Lc. 22,31-32: E o Senhor disse: «Simão, Simão, olha que Satanás pediu para vos joeirar como trigo. Mas Eu roguei por ti, para que a tua fé não desapareça. E tu, uma vez convertido, fortalece os teus irmãos.»;

Jo. 21,15-17: Depois de terem comido, Jesus perguntou a Simão Pedro: «Simão, filho de João, tu amas-me mais do que estes?» Pedro respondeu: «Sim, Senhor, Tu sabes que eu sou deveras teu amigo.» Jesus disse-lhe: «Apascenta os meus cordeiros.» Voltou a perguntar-lhe uma segunda vez: «Simão, filho de João, tu amas-me?» Ele respondeu: «Sim, Senhor, Tu sabes que eu sou deveras teu amigo.» Jesus disse-lhe: «Apascenta as minhas ovelhas.» E perguntou-lhe, pela terceira vez: «Simão, filho de João, tu és deveras meu amigo?» Pedro ficou triste por Jesus lhe ter perguntado, à terceira vez: ‘Tu és deveras meu amigo?’ Mas respondeu-lhe: «Senhor, Tu sabes tudo; Tu bem sabes que eu sou deveras teu amigo!» E Jesus disse-lhe: «Apascenta as minhas ovelhas.

Em que medida a exegese justifica a sua maneira de ver?

 

II. Mateus 16,13-24[7]

13Ao chegar à região de Cesareia de Filipe, Jesus fez a seguinte pergunta aos seus discípulos: «Quem dizem os homens que é o Filho do Homem?» 14Eles responderam: «Uns dizem que é João Baptista; outros, que é Elias; e outros, que é Jeremias ou algum dos profetas.» 15Perguntou-lhes de novo: «E vós, quem dizeis que Eu sou?» 16Tomando a palavra, Simão Pedro respondeu: «Tu és o Messias, o Filho de Deus vivo.» 17Jesus disse-lhe em resposta: «És feliz, Simão, filho de Jonas, porque não foi a carne nem o sangue que to revelou, mas o meu Pai que está no Céu. 18Também Eu te digo: Tu és Pedro, e sobre esta Pedra edificarei a minha Igreja, e as portas do Abismo nada poderão contra ela. 19Dar-te-ei as chaves do Reino do Céu; tudo o que ligares na terra ficará ligado no Céu e tudo o que desligares na terra será desligado no Céu.» 20Depois, ordenou aos discípulos que a ninguém dissessem que Ele era o Messias.21A partir desse momento, Jesus Cristo começou a fazer ver aos seus discípulos que tinha de ir a Jerusalém e sofrer muito, da parte dos anciãos, dos sumos sacerdotes e dos doutores da Lei, ser morto e, ao terceiro dia, ressuscitar. 22Tomando-o de parte, Pedro começou a repreendê-lo, dizendo: «Deus te livre, Senhor! Isso nunca te há-de acontecer!» 23Ele, porém, voltando-se, disse a Pedro: «Afasta-te, Satanás! Tu és para mim um estorvo, porque os teus pensamentos não são os de Deus, mas os dos homens!»24Jesus disse, então, aos discípulos: «Se alguém quiser vir comigo, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me.

            a) O quadro dos versículos 17-19: O. Cullmann procurou demonstrar que estes versículos não pertenciam primitivamente ao relato da confissão de Pedro em Cesareia e, por outro lado, demonstrou que eles deviam ter o seu lugar no relato da Paixão, depois da Ceia[8]. No relato do segundo Evangelho, o clímax da perícopa reside, com efeito, na acusação que Jesus é obrigado a dirigir a Pedro, por causa da falsa concepção (política) do Messias, e este sentido é completamente paralelo ao do relato da tentação de Jesus no deserto, que termina com as mesmas palavras severas de Jesus: «Afasta-te de mim, Satanás». Este sentido desaparece no relato de Mateus. Além disso, o título conferido por Pedro a Jesus não é o mesmo nos três relatos. Em Marcos, Pedro diz somente: «Tu és o Messias». Em Mateus, ele acrescenta: «Tu és o Filho de Deus». Mateus combina dois títulos cristológicos que originalmente pertenciam a contextos diferentes. Não é verdade que há muitos indícios de que Mateus combinou dois relatos primitivamente independentes? Estes argumentos não são destituídos de peso e uma minuciosa análise comparativa de Mateus e de Marcos levou Vogtle a conclusões análogas[9]. Resta que, no seu conteúdo actual, o relato de Mateus constitui uma unidade literária indivisível, composta com arte. Podemos encontrar aí um triplo paralelismo: 1) entre a profissão do Apóstolo: «Tu és o Messias, o Filho de Deus vivo» (v. 6) e a declaração de Jesus: «Tu és Pedro» (v. 18); 2) entre a confissão de Pedro (v. 16) e a sua contradição (v. 22); 3) entre as palavras laudativas de Jesus: «Feliz…» e a sua condenação: «Os teus pensamentos não são os de Deus, mas dos homens» (v. 23)[10]. Estes paralelismos testemunham a habilidade do redactor, mas não necessariamente a unidade primitiva do relato. De resto, podemos perguntar-nos se o Evangelho de João não se refere igualmente a um estado anterior ao logion onde Pedro confessava Jesus apenas como Messias. No relato joânico do chamamento de Simão, os dois nomes de Cristo e de Pedro são também aproximados de maneira intencional: foi quando André disse a Simão: «Encontramos o Messias», que Simão se dirigiu a Jesus que lhe dá o nome de Cefas, ou mais exactamente, prediz-lhe que ele receberá o nome de Cefas, se o futuro visa designar um acontecimento ou um papel posterior. O relato joânico parece, além disso, referir-se a um logion que conservou as expressões aramaicas, visto que ele transcreve-as antes de as traduzir, enquanto que Mateus dá imediatamente o equivalente grego. É verdade que Pedro, em João, não é o primeiro a confessar a messianidade de Jesus, mas nós veremos mais adiante que o quarto Evangelho retira muitas vezes a prioridade a Pedro para a atribuir a um outro discípulo, o que Kragerud (cf. nota 43) chama o «princípio de substituição». Seja como for, deve assinalar-se que o nome de Cefas é constantemente colocado em relação com o reconhecimento de Jesus como Senhor (Lc. 5,8), como Messias (Jo. 1,41-42) e como Filho de Deus (Mt. 16,16-17). Portanto, se o relato da confissão de Cesareia não reconstitui o quadro primitivo do logion, é provável que seja na sequência de uma confissão de Simão que Cristo lhe dá o nome de Pedro.

            Poderia ser que João tivesse reduzido a confissão de André e de Pedro à da messianidade por razões literárias. O capítulo 16 de Mateus tem com efeito, como desde há muito se comprovou, a sua contraparte no capítulo 6 de João (6,67-69: Então, Jesus disse aos Doze: «Também vós quereis ir embora?» Respondeu-lhe Simão Pedro: «A quem iremos nós, Senhor? Tu tens palavras de vida eterna! Por isso nós cremos e sabemos que Tu é que és o Santo de Deus.»). À questão de Jesus, dirigida aos todos os discípulos: «Também vós vos quereis ir embora?», Simão Pedro responde em nome de todos: «Senhor, para quem iremos?… Nós acreditamos e sabemos que és o Santo de Deus». Esta passagem é mais digna de ser realçada, porquanto nós não encontramos nela o «princípio da substituição», revelado por Kragerud. Esta confissão de Pedro, é seguida por uma lembrança da eleição dos Apóstolos por Cristo, eleição acerca da qual se diz mais adiante que é inteiramente gratuita (15.16: Não fostes vós que me escolhestes; fui Eu que vos escolhi a vós e vos destinei a ir e a dar fruto, e fruto que permaneça; e assim, tudo o que pedirdes ao Pai em meu nome Ele vo-lo concederá.). Esta passagem não contém todavia nenhuma predição sobre o papel preponderante de Pedro na comunidade messiânica. Será que João tinha a intenção de vincular esta predição a uma visão de Cristo, tal como se encontra efectivamente no capítulo 21?

            Seja como for, uma conclusão parece impor-se: com base nos relatos de Lucas, Mateus e João, deve ter havido uma tradição mais antiga que reportasse uma confissão de Pedro e a que estivesse vinculado o seu nome Cefas. Mas parece que o momento e as circunstâncias desta confissão passaram ao esquecimento e os três evangelistas a situaram de maneira diferente. 

            b) O género literário do versículo 17 e o seu significado[11]: Como muitos exegetas o já assinalaram, duas outras passagens do NT apresentam uma estrutura em parte paralela aos versículos 16-18: Mt 11,25-27 e sobretudo Gal. 1,15-16. Estas três passagens pertencem ao género apocalíptico de que o livro de Daniel é, entre os escritos canónicos, o testemunho por excelência e que era, como os manuscritos do Mar Morto o revelaram frequentemente, adoptados pelos escritores essénios[12]. A simples aproximação dos três textos basta para manifestar o seu paralelismo:

                Mt. 11,25-27: «Eu te bendigo, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondeste isto aos sábios e inteligentes e o revelaste aos pequeninos. Sim, Pai, porque isso foi do teu agrado. Tudo me foi entregue por meu Pai, e ninguém conhece o Filho senão o Pai, tal como ninguém conhece o Pai senão o Filho e aquele a quem o Filho o quiser revelar».

                    Mt. 16,16-17: «És feliz, Simão, filho de Jonas, porque esta revelação te veio, não da carne, nem do sangue, mas do meu Pai que está nos céus. Também eu te digo…»

                    Gal. 1,15-16: «Mas quando Aquele que, desde o seio materno, me escolheu e me chamou pela sua graça, lhe aprouve revelar-me o seu Filho, para que eu o anuncie entre os pagãos, imediatamente, sem consultar a carne e o sangue…». 

            Estas três passagens têm em comum: 1) O Pai celeste, 2) em virtude de uma eleição puramente graciosa e não motivada, 3) revela, 4) o Filho, 5) a um ou muitos discípulos que são desprovidos de tal mérito.

            O primeiro ponto não oferece dificuldade. É evidente que Aquele que desde o seio materno escolheu Paulo não é outro senão o Pai. Conforme ao género apocalíptico, a pura gratuidade da escolha divina encontra-se fortemente posta em relevo. Mt.11 e Paulo sublinham-na pelo termo ἐυδοκία (respectivamente εὐδόκησεν), que implica um puro favor. Mt.16,17 sublinha-a pela expressão «nem a carne nem o sangue», que designa o homem considerado sob o seu aspecto puramente natural.

            O objecto da revelação em Mt.16 só pode ser a divindade do Filho, ainda que o verbo «revelar» não tenha complemento, facto que ainda não foi explicado. A expressão «Filho de Deus» acrescentada à de Messias contrasta aqui com a de «Filho de homem» empregada por Jesus (v. 13). Este contraste é certamente intencional, porque na passagem paralela de Marcos, Cristo diz somente «Quem dizem as pessoas que eu sou?» (8,27). De resto, Cullmann que, na sua obra sobre Pedro, tinha considerado que o título de Filho de Deus acrescentado ao de Messias era apenas uma paráfrase litúrgica pouco edificante, foi levado pelo seu estudo sobre a «Cristologia do Novo Testamento» a reconhecer-lhe um sentido importante. «É mesmo preciso dizer – escreve ele hoje – que entre esta confissão do Messias e a do Filho de Deus, não há somente diferença, mas oposição, porque o desempenho do papel de Filho de Deus, considerado como o segredo de Jesus, implica nos sinópticos por um lado a obediência, por outro a consciência da unidade completa da vontade entre Jesus e Deus»[13]. Na epístola aos Gálatas, está fora de dúvida que Paulo considera o Filho como Filho de Deus. De resto, nos Actos (9,20), é dito que Paulo imediatamente depois da sua conversão, em Damasco «anunciava Jesus, afirmando que ele é o Filho de Deus». Como o nota L. Cerfaux, isto deve ser um eco do que «nesta ocasião tinha impressionado os cristãos»[14].

            Em Mt.11, a relação entre a revelação e a ligação de Jesus com o Pai é menos evidente. O objecto da revelação não é, de resto, preciso. É verdade que esta passagem está deslocada do seu contexto original. Ela devia primitivamente estar a seguir a uma perícopa análoga à de Mt.13,10-14: Aproximando-se de Jesus, os discípulos disseram-lhe: «Porque lhes falas em parábolas?» Respondendo, disse-lhes: «A vós é dado conhecer os mistérios do Reino do Céu, mas a eles não lhes é dado. Pois, àquele que tem, ser-lhe-á dado e terá em abundância; mas àquele que não tem, mesmo o que tem lhe será tirado. É por isso que lhes falo em parábolas: pois vêem, sem ver, e ouvem, sem ouvir nem compreender. Cumpre-se neles a profecia de Isaías, que diz: Ouvindo, ouvireis, mas não compreendereis; e, vendo, vereis, mas não percebereis. Seja como for, é extremamente provável que este logion se inspire em Daniel 1-2[15]. Ora em Daniel 2,28 (Porém, nos céus há um Deus que desvenda os mistérios e Ele quis revelar ao rei Nabucodonosor o que vai acontecer na continuação dos tempos. Eis, pois, o teu sonho e as visões que se apresentaram ao teu espírito, no teu leito), o objecto da revelação consiste nos «mistérios» e mais precisamente os do reino dos céus (ou reinos). A mesma coisa em Mt.13,11, Cristo declara aos seus discípulos que a eles foi-lhes dado a conhecer os mistérios do reino dos céus. Convém portanto compreender «Eu te bendigo, ó Pai,… por teres escondido estes mistérios» (ταῦτα = ταῦτα μυστήρια). Estes são, portanto, os mistérios do reino que o Pai revela aos pequeninos, mas estes incluem o conhecimento da relação do Filho com o Pai. É isto que sugere o versículo seguinte: «Ninguém conhece o Filho senão o Pai». Pode mesmo pensar-se que o texto primitivo acrescentava: «e aquele a quem o Pai o quiser revelar», como a simetria com o versículo 27b parece exigir: «e aquele a quem o Filho o quiser revelar». Nenhum manuscrito apoia todavia esta conjectura.

            Os destinatários da revelação são em Mt.11 os «νήπιοι», os pequeninos. A expressão inspira-se talvez em Daniel 1,4 «νεανίσκοι»: crianças israelitas, de ascendên­cia real ou de família nobre, sem qualquer defeito, formosos, dotados de toda a espécie de qualidades, instruídos, inteligentes e fortes. O contexto é análogo, porque é a quatro crianças que Deus dá «ciência e inteligência». Seja como for, os pequeninos devem sem dúvida alguma ser comparados aos «anawim», aos pobres que no NT são objecto dos favores divinos (cf. Lc. 4,18-19: «O Espírito do Senhor está sobre mim, porque me ungiu para anunciar a Boa-Nova aos pobres; enviou-me a proclamar a libertação aos cativos e, aos cegos, a recuperação da vista; a mandar em liberdade os oprimidos, a proclamar um ano favorável da parte do Senhor.»). A oposição entre os poderosos e os pequenos, os sábios e os ignorantes é igualmente familiar a Paulo, que a coloca particularmente em relevo em 1Cor.1. Não se trata, aliás, aqui de mérito propriamente dito, nem de disposições espirituais que fazem do «simples» objecto dos favores divinos. Não podendo confiar em suas próprias forças e destituído do saber humano, o «pequenino» não oferece nenhum obstáculo à luz divina[16]. Pensamos que estes pequeninos devem aqui ser identificados com o grupo dos discípulos, que de facto parecem ter vindo do meio dos «anawin»[17]. Sugerida por Lucas (10,23: Voltando-se, depois, para os discípulos, disse-lhes em particular: «Felizes os olhos que vêem o que estais a ver), esta identificação encontra-se corroborada pela passagem de Mt.13,10-16.

            Em Mt.16 e Gal.1,15, nem Pedro nem Paulo são caracterizados como «pequeninos», mas sim que são pecadores. Paulo, nos versículos 13-14 (Ouvistes falar do meu procedimento outrora no judaísmo: com que excesso perseguia a Igreja de Deus e procurava devastá-la; e no judaísmo ultrapassava a muitos dos compatriotas da minha idade, tão zeloso eu era das tradições dos meus pais) lembra a sua conduta no judaísmo, como ele se tinha feito perseguidor dos cristãos para dar relevo, em contraste com a benevolência divina para com ele. A mesma coisa sucede com Pedro, em Mt.16, imediatamente depois desta revelação, merece ser repreendido por Jesus e ser chamado «Satanás!». O contraste deve ser intencional.

            Em Mt.13,16 (Quanto a vós, ditosos os vossos olhos, porque vêem, e os vossos ouvidos, porque ouvem), num contexto análogo (en Lc.10,23 imediatamente a seguir ao hino de júbilo), os discípulos são qualificados de «felizes porque vêem o que vêem». Da mesma maneira, Cristo declara Pedro «feliz» (μακάριος). Este macarismo (bem-aventurança) significa que a revelação do Pai os coloca acima do nível terrestre, da carne e do sangue[18]. É a revelação, e não a sua confissão, que torna Pedro feliz, dando-lhe lugar no acontecimento da salvação. Este macarismo não está presente em Gal.1,15: Mas, quando aprouve a Deus – que me escolheu desde o seio de minha mãe e me chamou pela sua graça. Paulo não podia de resto aplicá-lo a si mesmo.

            Em Gal.1,15 e Mt.16,18, Paulo e Pedro não são beneficiários desta revelação senão em vista de uma missão a cumprir. O Pai revelou o seu Filho a Paulo para que ele o anuncie aos gentios. De igual modo, o Pai revelou a pessoa do seu Filho a Pedro, para que o Filho construísse sobre ele a sua Igreja. O paralelismo é doutrinal. O apocalipse constitui o pressuposto da missão apostólica de Pedro e de Paulo.

            A comparação das três passagens atesta, portanto, que a vocação apostólica de Pedro resulta duma graça de Deus, absolutamente gratuita, indiferente às qualidades humanas dos escolhidos e comportando a revelação da relação pessoal de Jesus com o Pai. A missão apostólica é todavia distinta da revelação, porque se os discípulos em Mt.10 e 13 são os beneficiários de uma revelação, constituindo-os verdadeiramente discípulos, eles não recebem nenhuma missão particular. Todo o Apóstolo é discípulo, mas o inverso não parece ser verdade.

            O relato da vocação de Pedro em Lc.5,8-10 (Ao ver isto, Simão caiu aos pés de Jesus, dizendo: «Afasta-te de mim, Senhor, porque sou um homem pecador.» Ele e todos os que com ele estavam encheram-se de espanto por causa da pesca que tinham feito; o mesmo acontecera a Tiago e a João, filhos de Zebedeu e companheiros de Simão. Jesus disse a Simão: «Não tenhas receio; de futuro, serás pescador de homens.») corrobora esta conclusão: é com efeito a seguir à uma manifestação do poder divino que Pedro confessa Jesus como Senhor, que ele se reconhece como indigno e que o Senhor o chama a segui-lo. Vamos encontrar o mesmo esquema no capítulo 21 do Evangelho de João. 

            c) A base bíblica de Mt.16,18[19]: Uma passagem do NT não revela todo o seu sentido sem que se tenha encontrado o contexto vétero-testamentário no qual se inscreve. Ora da mesma forma que o versículo 17 se referia ao género apocalíptico do qual o livro de Daniel é o modelo no AT, assim também o versículo 18 se refere, como J.H. Klink e P. Dreyfus o assinalaram, ao capítulo 28,14-18 de Isaías. Este texto era de resto invocado pelos essénios[20]. A aproximação dos dois textos torna evidente a dependência de Mateus relativamente a Isaías:

                Mt. 16,18:

«Eu te digo: Tu és Pedro e sobre esta pedra, edificarei a minha Igreja e as portas do Inferno não levarão a melhor contra ela».

                    Is.28,14-19:

«Escutai, pois, a palavra de Yahvé, ó gente insolente,

vós que dominais o povo que está em Jerusalém.

Porque vós dizeis: “Fizemos um pacto com a Morte,

uma aliança com o scheol.

O flagelo passará sem nos atingir,

porque fizemos da mentira um abrigo e da fraude um refúgio”.

Por isso, assim fala o Senhor Yahvé:

Vou colocar em Sião uma pedra,

uma pedra que vos ponha à prova.

Uma pedra angular, de peso, de alicerce.

Aquele que se apoiar nela com fé não tropeçará.

Usarei o direito como cordel de medir e a justiça como fio-de-prumo.

Mas a saraiva arrasará o abrigo de mentira

e as águas torrenciais o levarão.

A vossa aliança com a Morte será quebrada,

o vosso pacto com o scheol não subsistirá.

Quando o dilúvio passar, sereis destruídos por ele». 

            Revelemos em primeiro lugar que este texto devia ser familiar a Jesus, porque parece que ele se inspirou nele na parábola da casa fundada sobre a rocha (Mt.7,24-27: «Todo aquele que escuta estas minhas palavras e as põe em prática é como o homem prudente que edificou a sua casa sobre a rocha. Caiu a chuva, engrossaram os rios, sopraram os ventos contra aquela casa; mas não caiu, porque estava fundada sobre a rocha. Porém, todo aquele que escuta estas minhas palavras e não as põe em prática poderá comparar-se ao insensato que edificou a sua casa sobre a areia. Caiu a chuva, engrossaram os rios, sopraram os ventos contra aquela casa; ela desmoronou-se, e grande foi a sua ruína.»). Mas a rocha é então identificada com o ensinamento de Jesus.

            Com o P. Dreyfus podemos realçar os seguintes pontos de contacto entre Isaías 28 e Mateus 16. Parece que estes são bastante numerosos, para que possa falar-se de citação implícita:

1) A pedra de alicerce do edifício

2) Ligação desta pedra com a fé: Is.28,16: «Vou colocar em Sião uma pedra que vos ponha à prova. Será uma pedra preciosa, angu­lar, bem firme. Aquele que confiar nela não tro­peçará»; Mt.16,16: Tomando a palavra, Simão Pedro respondeu: «Tu és o Messias, o Filho de Deus vivo.».

3) A menção do scheol. Nos LXX há o «Hades» como em Mt.16,18: e as portas do Abismo nada poderão contra ela. I QH 6,24 fala das «Portas da Morte».

4) Nos dois casos, o edifício construído sobre a pedra é o único abrigo contra a devastação da morte.

5) Em Isaías, oposição entre pontos de vista puramente humanos das «políticas» e atitude de fé. Em Mt.16: «Não foi a carne e o sangue…».

Em Isaías, esta passagem refere-se ao tema central da pregação do profeta: a salvação do resto de Israel, evocado explicitamente no versículo 5. A predição do profeta operará uma clivagem, uma separação no povo. A massa seguirá as «políticas» que contam com o Egipto e cegará. Ela será levada pela inundação das invasões, representada como um novo dilúvio. Ela se excluirá a si própria da salvação. Só um grupo à volta do Profeta (Is. 8,16-18: Guardo o testemunho, selo esta instrução, que só revelo aos meus discípulos. Terei confiança no Senhor, que esconde a sua face à casa de Jacob, mas eu ponho nele a minha esperança. Eis que eu e os filhos que o Senhor me deu somos em Israel sinal e presságio da parte do Senhor do universo, que habita no monte Sião) poderá ser o instrumento do desígnio de Deus e preparar o futuro messiânico pela fé na promessa de Deus. Na passagem que nos diz respeito, o profeta anuncia que Yahvé colocará uma pedra em Sião, sobre a qual ele edificará o seu reino representado como um novo templo. Como esta pedra não é nem Sião, onde ela será colocada, nem a fé, visto que é preciso apoiar-se sobre a pedra com fé, resta que ela deva ser o símbolo do Messias.

            Qual é agora o sentido desta referência em Mt.16? Cristo, segundo o NT cumpriu esta profecia. Em Mt.16, Cristo promete contudo que Simão será a pedra da comunidade messiânica. Além disso, da mesma forma que Isaías, o templo fundado sobre a pedra angular encontra-se em oposição às construções da sabedoria humana, assim também Mateus apresenta-nos a Igreja, a comunidade messiânica saída do resto e reunida por Jesus («a minha Igreja»), e fundada sobre Pedro, em oposição às realidades que não são humanas, e lutando vitoriosamente com as portas do Hades, isto é, como o mostra o texto similar de I QH 6,27, com os poderes das trevas e do caos, poderes maus, não no sentido ontológico, mas no sentido ético[21]. «Nesta perspectiva, conclui o P. Dreyfus, o anúncio dos sofrimentos de Cristo e a apóstrofe a Pedro que seguem imediatamente, adquirem todo o seu sentido. Trata-se sempre de insistir sobre o facto de que o edifício construído por Deus não se constrói com os conhecimentos da sabedoria humana, que é a do Príncipe deste mundo, mas na sabedoria da Cruz»[22]. 

            d) A mudança de nome: Simão-Cefas: Qual é neste contexto o sentido do novo nome dado a Simão por Jesus? O. Cullmann parece que minimiza o conteúdo desta mudança, reduzindo-o a um sobrenome ocasional, análogo ao de Boanerges (Marcos 3,17) que Jesus deu aos filhos de Zebedeu, sobrenome que não havia de lhes ficar. É esquecer a importância dada à significação dos nomes tanto no NT, como no AT. Para todos os semitas, longe de ser uma designação convencional, o nome exprime o papel de um ser no universo, a sua essência. Por isso a importância das etimologias[23]. O AT não contém menos de 66 casos de jogos de palavras com os nomes próprios[24]. Mudar o nome de alguém, é impor-lhe uma nova personalidade, significar por exemplo que se torna vassalo (2Re. 23,34: O faraó Necao colocou Eliaquim, filho de Josias, no trono, em lugar de seu pai Josias, e mudou-lhe o nome para Joaquim; 24,17: Em lugar de Joiaquin, o rei da Babilónia nomeou rei seu tio Matanias, cujo nome mudou para Sedecias). O Antigo e o Novo Testamento mostram-nos Deus intervindo activamente para dar um nome a diversas personagens. Compete, aliás, a Deus dar um nome, visto que isso é executar um acto de soberania. A Bíblia faz-nos conhecer três maneiras para Deus intervir em ordem a dar um nome:

            1) Ou Ele indica antecipadamente o nome, por meio de um anjo: assim aconteceu com Isaac (Gen.17,19), Ismael (Gen.1,11), João Baptista (Lc.1,13), Jesus (Lc.1,31).

            2) Ou Deus, por meio dos profetas, dá nomes simbólicos, proféticos, por exemplo: Is.1, 26: Restabelecerei os teus juízes como eram outrora, e os teus conselheiros como eram antigamente. Então serás chamada ‘Cidade justa’, ‘Cidade fiel; 7,14: Por isso, o Senhor, por sua conta e risco, vos dará um sinal. Olhai: a jovem está grávida e vai dar à luz um filho, e há-de pôr-lhe o nome de Emanuel; 8,3: Juntei-me à minha mu­lher, a profetisa, que ficou grávida e deu à luz um filho. E o Senhor disse-me: «Chama-lhe: Pronto-para-o-saque-veloz-para-a-presa; 62,12: Serão chamados ‘Povo Santo’, ‘Redimidos do Senhor’, e tu serás chamada ‘Desejada’, ‘Cidade não abandonada.’»; Os. 1,4: O Senhor disse a Oseias: «Põe-lhe o nome de Jezrael; 6: O Senhor disse a Oseias: «Põe-lhe o nome de Lô-Ruhamá, 9: O Senhor disse: «Põe-lhe o nome de Lô-Ami; Zacarias, etc.

            3) Ou Deus intervém directamente, para substituir um nome antigo por um novo. Antes do caso de Simão, a Bíblia relata três casos análogos. Deus muda o nome de Abrão para o de Abraão (Gen.17,5), o de Sarai, para o de Sara (Gen.17,15), enfim o de Jacob para o de Israel (Gen.32,29). Nestes três casos, estas mudanças dizem respeito aos «patriarcas do povo de Deus» e fazem-se acompanhar de uma promessa ou de uma bênção. Deus muda os seus nomes para assinalar que Ele toma posse da sua vida e significar a Aliança que Ele fez com a sua raça (Gen.17,4-8: «A aliança que faço contigo é esta: serás pai de inúmeros povos. Já não te chamarás Abrão, mas sim Abraão, porque Eu farei de ti o pai de inúmeros povos. Tornar-te-ei extremamente fecundo, farei que de ti nasçam povos e terás reis por descendentes. Estabeleço a minha aliança contigo e com a tua posteridade, de geração em geração; será uma aliança perpétua, em virtude da qual Eu serei o teu Deus e da tua descendência. Dar-te-ei, a ti e à tua descendência depois de ti, o país em que resides como estrangeiro, toda a terra de Canaã, em possessão perpétua, e serei Deus para eles.»). Em Mateus, igualmente, a mudança de nome é acompanhada de uma promessa em favor da Igreja, isto é, do Qahal, do povo messiânico, herdeiro das promessas feitas a Abrãao (cf. Gal.3,16-18: Ora, as promessas foram feitas a Abraão e à sua descendência. Não se diz: «e às descendências», como se de muitas se tratasse; trata-se, sim, de uma só: E à tua descendência, que é Cristo. Ora, é exactamente isto que quero dizer: um testamento que antes tinha sido posto em vigor por Deus, não é a Lei, aparecida quatrocentos e trinta anos depois, que o vai invalidar e assim anular a promessa. É que, se é da Lei que vem a herança, então não é da promessa. Mas foi pela promessa que Deus concedeu a sua graça a Abraão) e a Isaac (Gal.4,28: E vós, irmãos, à semelhança de Isaac, sois filhos da promessa). O contexto de Mt.16 leva-nos a ver na mudança do nome para Pedro o sinal da eleição de Pedro para ser o rochedo sobre a qual Deus edificará o seu novo povo. É caso para pensar que a imagem da rocha, por si só, evocava Abraão, porque a literatura rabínica nomeava Abraão a «rocha do mundo»[25]. Talvez ela se referisse a Isaías 51,1-2: «Considerai a rocha de que fostes talhados, a pedreira de onde fostes tirados. Olhai para Abraão, que vos gerou». Abraão seria portanto o «arquétipo» de Pedro. Mesmo que não se aceite esta conclusão, resta que Pedro é escolhido para ser o princípio do novo povo de Deus, daquele que os Padres chamaram «a terceira raça». 

            e) Eu te darei as chaves do reino dos céus (v.19): Esta imagem apela como por contraste para a das portas do Hades. Uma oposição similar entre as Portas da Morte e as Portas eternas encontra-se em I QH 6,31, que favorece a unidade original dos versículos 18-19. Sem se referir a este texto essénio, Cullmann mostra bem a ligação entre as duas imagens: «Depois de um desenvolvimento sobre as portas do Hades, eis um desenvolvimento sobre as portas do Reino dos céus. Tal como o Hades é o reino da morte, assim o reino dos céus é o da vida pela ressurreição. Esta imagem das chaves parece ter sido corrente. Ap.1,18 diz que o Filho do homem tem as chaves da morte e do Hades: Estive morto; mas, como vês, estou vivo pelos séculos dos séculos e tenho as chaves da Morte e do Abismo. É evidentemente que é para fazer sair os que aí estão encerrados. Ap.3,7 (Isto diz o Santo, o Verdadeiro, o que tem a chave de David, o que abre e ninguém fecha e fecha e ninguém abre) diz, inspirando-se em Isaías 22,22 (Porei sobre os seus ombros a chave do palácio de David: o que ele abrir ninguém fechará, o que ele fechar ninguém abrirá), que o Santo tem «as chaves de David», com as quais abre e fecha irrevogavelmente (cf. também Ap. 21,25: as suas portas não se fecharão de dia, pois nela não haverá noite). Mt.16,19 pressupõe que Cristo é o chefe de família que detém a chave da porta do Reino dos céus e serve-se dela para abrir aos que aí entram. Tal como em Isaías 22,22 o Senhor coloca as chaves sofre os ombros do seu servo Eliaquim, assim também Jesus remete para Pedro as chaves da sua casa, o Reino dos céus, e com isso estabelece-o como seu administrador» (p. 183). Estas comparações impõem-se e nenhum exegeta, cremos nós, as põe em questão. Mas Cullmann parece que em seguida minimiza o seu significado, quando ele compara as chaves de Pedro à dos Fariseus que correm o mundo para fazer prosélitos (Mt. 23,13.15: Ai de vós, doutores da Lei e fariseus hipócritas, porque fechais aos homens o Reino do Céu! Nem entrais vós nem deixais entrar os que o querem fazer. Ai de vós, doutores da Lei e fariseus hipócritas, que percorreis o mar e a terra para fazer um prosélito e, depois de o terdes seguro, fazeis dele um filho do inferno, duas vezes pior do que vós!) e conclui que as chaves invocam apenas a missão apostólica. Esta comparação parece-nos parcialmente artificial. O sentido óbvio da imagem das chaves conhecida na Bíblia e no antigo Oriente sugere bem mais, como o sublinha o P. Benoît[26], o cargo confiado a um personagem único para guardar e administrar a casa real. A tradução proposta para Isaías 22,22 arrisca-se igualmente a trair o seu significado, é preciso dizer administrador do palácio[27], e é aliás este cargo que desempenhava Eliaquim e que fazia dele um «vigário» do rei com plenos poderes durante as suas ausências (cf. Is. 22,15ss: Isto diz o Senhor Deus do uni­verso: «Vai ter com Chebna, esse tal admi­nistrador do palácio real… Vou depor-te do teu cargo, destituir-te do teu posto»; 36,3.22: Eliaquim, filho de Hilquias, chefe do palácio real, foi ter com ele, acompanhado do secretário Chebna e do chanceler Joá, filho de Asaf. Então Eliaquim, filho de Hilquias, prefeito do palácio, Chebna, o secretário, e o chanceler Joá, filho de Asaf, foram ter com Ezequias, com as vestes rasgadas, e referiram-lhe tudo o que o copeiro-mor lhes tinha dito; 37,2: E enviou Eliaquim, chefe do palácio real, Chebna, o secretário e os sacerdotes mais idosos, também vestidos de roupas grosseiras, para irem ter com o profeta Isaías, filho de Amós; 1Re.4,2-6: Eis os ministros que estavam ao seu serviço: o sacerdote Azarias, filho de Sadoc; os escribas Elioref e Aías, filhos de Chichá; o cronista Josafat, filho de Ailud; 4o chefe do exército, Benaías, filho de Joiadá; os sacerdotes Sadoc e Abiatar; o chefe dos intendentes, Azarias, filho de Natan; o conselheiro privado do rei, Zabud, filho de Natan, o prefeito do palácio, Aichar, e o dirigente dos trabalhos, Adoniram, filho de Abda; 18,3: Acab mandou chamar Abdias, intendente do seu palácio; Abdias era muito temente ao Senhor; 2Re.15,5: Jotam, filho do rei, administrava o palácio e governava o povo do país; 19,2: Mandou o prefeito do palácio, Eliaquim, o escriba Chebna e os anciãos dos sacerdotes, revestidos de sacos, ao profeta Isaías, filho de Amós; 2Cr.28,7: Zicri, um guerreiro de Efraim, matou Massaías, filho do rei, Azericam, chefe do palácio). É, por outro lado, a ideia de plenitude de poder e de poder absoluto que supõe Ap.3,7: Isto diz o Santo, o Verdadeiro, o que tem a chave de David, o que abre e ninguém fecha e fecha e ninguém abre (cf. Heb.3,6: Cristo, porém, o foi como Filho sobre a sua casa, que somos nós, se conservarmos a confiança e a esperança de que nos gloriamos). Parece portanto que, remetendo para Pedro as chaves do reino dos céus, Cristo faz dele seu «vigário». De resto, é possível que Lc.12,41-44 (Pedro disse-lhe: «Senhor, é para nós que dizes essa parábola, ou é para todos igualmente?» O Senhor respondeu: «Quem será, pois, o administrador fiel e prudente a quem o senhor pôs à frente do seu pessoal para lhe dar, a seu tempo, a ração de trigo? Feliz o servo a quem o senhor, quando vier, encontrar procedendo assim. Em verdade vos digo que o porá à frente de todos os seus bens) seja um eco de Mt.16,19. Seja como for, esta última perícopa atesta que os Apóstolos se consideravam como os «administradores» do reino e que a ideia de um administrador «posto à frente de todos os bens» era familiar a Jesus (cf. Mt.25,21: O senhor disse-lhe: ‘Muito bem, servo bom e fiel, foste fiel em coisas de pouca monta, muito te confiarei. Entra no gozo do teu senhor.’; 19,28: No dia da regeneração de todas as coisas, quando o Filho do Homem se sentar no seu trono de glória, vós, que me seguistes, haveis de sentar-vos em doze tronos para julgar as doze tribos de Israel). 

            f) A imagem das chaves é ainda especificada pela segunda parte do versículo: «O que ligares na terra, será ligado nos céus e o que desligares na terra, será desligado nos céus». Os dois termos «ligar» e «desligar» pertencem à linguagem rabínica e aplicam-se, como o nota acertadamente Cullmann, primeiro ao domínio disciplinar da excomunhão, com a qual se «condena» (ligar) ou absolve (desligar) alguém, e posteriormente às decisões doutrinais ou jurídicas com o sentido de «defender» ou «permitir». O paralelismo do v.19 com Mt.18,18 (Tudo o que ligardes na Terra será ligado no Céu, e tudo o que desligardes na Terra será desligado no Céu) deixa pensar que o primeiro sentido é o que Cristo tem em mente. Como o mostrou A.M. Dubarle, o versículo 18 do capítulo 18 faz parte dum conjunto onde Cristo estabelece um procedimento com níveis progressivos visando levar o pecador ao arrependimento. A citação de Deut.19,15 (Um testemunho isolado não será suficiente contra uma pessoa, seja qual for o seu crime, a sua culpa ou o pecado de que for acusado; só com o depoimento de duas ou três testemunhas é que o caso será tomado em conta) prova que Cristo inspira-se aqui na legislação do Deuteronómio, que em 17,8-13 (Quando aparecer um caso difícil de julgar, de assassinato, litígio, ferimento, processos de disputa na tua cidade, deves dirigir-te ao lugar que o Senhor, teu Deus, tiver escolhido para si. 9Irás ter com os sacerdotes levíticos e com o juiz em exercício nessa altura; consultá-los-ás e eles te esclarecerão sobre a sentença a dar. Agirás, então, de acordo com a decisão que eles te comunicarem, no lugar escolhido pelo Senhor, e terás o cuidado de te conformares com as suas instruções. Procederás segundo as instruções que te derem e segundo a sentença que te ditarem, sem te afastares do seu parecer nem para a direita nem para a esquerda. Aquele que agir com insolência, não escutando o sacerdote que ali estiver ao serviço do Senhor, teu Deus, ou o juiz, esse homem será punido de morte. Assim extirparás o mal do meio de Israel. Então, todo o povo o saberá e temerá, e não voltará a incorrer em tal insolência) também estabelece precisamente um procedimento com dois níveis. Em Mt.18 só a total resistência entranha uma sanção, a exclusão da comunidade, que equivale à pena de morte do Deuteronómio[28].

            O paralelismo entre Mt.16 e Mt.18 convida pois a pensar que Pedro recebeu de Cristo um verdadeiro poder judiciário[29], poder que comporta o uso previsto por Mt.18,17 (Se ele se recusar a ouvi-las, comunica-o à Igreja; e, se ele se recusar a atender à própria Igreja, seja para ti como um pagão ou um cobrador de impostos), a excomunhão, poder que se exerce normalmente como instância suprema, quando as instâncias precedentes não obtiveram o resultado esperado. Os escritos posteriores do NT mostram que este poder judiciário não deve exercer-se somente em caso de faltas morais, mas também em casos de profissão e doutrinas heterodoxas[30].

Em resumo, o sentido do logion 16,16-19 parece-nos ser o seguinte:

            1) O versículo 17, referindo-se ao género apocalíptico, dá essencialmente relevo à ideia de eleição. O Pai celeste, por pura graça, sem nenhum mérito da parte de Simão, revelou-lhe que Jesus é Filho de Deus.

            2) O versículo 18, que se refere ao livro de Isaías 28 e ao tema do ‘Resto’, visa mostrar que o Filho – a quem o Pai tudo entregou (Mt.11,27: Tudo me foi entregue por meu Pai; 28,18: Foi-me dado todo o poder no Céu e na Terra; Jo.3,35: O Pai ama o Filho e tudo põe na sua mão; 10,18: Tenho poder de a oferecer e poder de a retomar. Tal é o encargo que recebi de meu Pai) – estabelece Pedro como o fundamento do novo templo messiânico, dando-lhe no novo povo de Deus um papel comparável ao dos anciãos de Israel, em particular Abraão. Esta investidura é simbolizada pela mudança do nome de Simão para Pedro e pelo jogo de palavras sobre este nome. Cristo faz, por outro lado, a promessa de que esta comunidade messiânica fundada sobre Pedro será vitoriosa na luta contra os poderes da morte.

            3) Referindo-se a Isaías 22,22 (Porei sobre os seus ombros a chave do palácio de David: o que ele abrir ninguém fechará, o que ele fechar ninguém abrirá), Cristo entrega as chaves a Pedro, isto é, faz dele seu vigário, com plenos poderes.

            4) Esta função implica especialmente um verdadeiro poder judiciário, que se exerce normalmente como instância suprema e que detém o poder de excomunhão. 

            g) Ligação dos versículos 16-19 aos versículos 20-23: É verdade, já o dissemos, que este logion deve ter existido à parte no início, antes de ser inserido no relato da confissão de Pedro. Cullmann pensa que Mateus inseriu o logion neste relato, para remover antecipadamente o que a culpa de Pedro poderia ter de chocante. Esta solução parece-nos insuficiente. Lucas 22 e João 21 relacionam da mesma maneira a missão de Pedro com uma falta de Pedro, a sua negação. Todos os evangelhos e especialmente Marcos, põem igualmente em evidência a inconstância e a fraqueza de Pedro, que contrastam com o nome de Rocha que Cristo lhe dá. É intencionalmente, pensamos nós, que os evangelistas tenham sublinhado este contraste, para assinalar que é pela graça, em virtude de uma eleição divina e não pelas suas qualidades naturais, que ele é a Rocha sobre a qual Cristo funda a sua Igreja. Reduzido a si mesmo, à carne e ao sangue, Pedro é incapaz de reconhecer a verdadeira messianidade de Jesus. Esta oposição entre a ordem da natureza e a ordem da graça, posta em relevo no versículo 17, implícita no versículo 18 pela referência a Isaías 28, é a que visam ainda os versículos 22-23. Esta oposição constitui uma constante no NT (Lc. 5,22 (Mas Jesus, penetrando nos seus pensamentos, tomou a palavra e disse-lhes: «Que estais a pensar em vossos corações?); Jo. 21), Paulo evoca-a em Gal.1,12-15 (pois eu não o recebi nem aprendi de homem algum, mas por uma revelação de Jesus Cristo. Ouvistes falar do meu procedimento outrora no judaísmo: com que excesso perseguia a Igreja de Deus e procurava devastá-la; e no judaísmo ultrapassava a muitos dos compatriotas da minha idade, tão zeloso eu era das tradições dos meus pais. Mas, quando aprouve a Deus – que me escolheu desde o seio de minha mãe e me chamou pela sua graça) e desenvolve-a igualmente na segunda epístola aos Coríntios. Em 2Cor.11 e 12, depois de ter reivindicado a sua autoridade apostólica e as revelações com que ele foi agraciado, ele menciona o espinho na sua carne, por causa do qual ele suplica ao Senhor que o livre, e a resposta que recebe é esta: «Basta-te a minha graça, porque o meu poder manifesta-se na fraqueza» (12,9). De igual forma, a fraqueza natural que caracteriza Simão, faz apenas ressaltar o poder da graça de Deus que faz dele uma «Rocha»[31].

Nós cremos inclusivamente que o NT dá grande destaque a esta oposição entre «Simão» e «Pedro» apenas para sugerir o papel excepcional que Pedro foi chamado a desempenhar pela graça de Deus. Este é um tema constante no AT e que Paulo trouxe à luz em Rom.9,10-13 (Não foi só com ela que isso aconteceu, mas também com Rebeca. Concebeu de um só homem, o nosso pai Isaac; e ainda os filhos não tinham nascido, nem nada de bom ou de mau tinham feito – para que se mantenha claro que o desígnio de Deus é da sua livre escolha e está dependente, não das obras, mas de Deus que chama – e já lhe foi dito: O mais velho será servo do mais novo, de acordo com o que está escrito: Amei Jacob, mas não Esaú): Deus, para atestar que é Ele e só Ele que dá cumprimento aos seus desígnios, compraz-se em agir contrariamente à ordem natural das coisas. Isaac nasce de uma mulher estéril, o mesmo acontece com João baptista; Jesus nasce de uma virgem. Jacob é escolhido e não Esaú, o mais velho, etc. W. Vischer percebeu bem esta lei do comportamento divino e o seu significado: «Só uma decisão que repouse sobre uma eleição divina, na qual a decisão não pertence nem às disposições naturais, nem às obras, mas ao iniciador do apelo, tem um valor para distinguir o que pertence e o que não pertence ao povo da promessa»[32]. A escolha de Pedro por Jesus atesta que ele pertence ao povo da promessa e que será mesmo o seu fundamento. 

            h) Autenticidade de Mt.16,16-18[33]: Devemos perguntar-nos, todavia, se este logion relata as palavras autênticas de Cristo. Sabe-se que a sua autenticidade é colocada em questão, por vezes por razões confessionais, a maior parte das vezes por razões dogmáticas: recusa em atribuir a Jesus uma consciência messiânica ou a intenção de fundar uma igreja a partir de baixo. Não vamos discutir estes argumentos[34]. Nós, aliás, não vemos porque é que Jesus e dos seus discípulos não teriam podido, como os essénios, considerar-se como uma comunidade messiânica. Mas existem também razões estritamente exegéticas para colocar em dúvida a sua autenticidade. Dois argumentos são em geral invocados:

1) a omissão deste logion no relato paralelo do evangelho de Marcos,

2) a menção da Igreja no versículo 18.

Antes de examinar estas duas objecções maiores, sublinhemos, por um lado, que a tradição evangélica na sua totalidade remete para Cristo a atribuição do nome Cefas a Simão; por outro lado, que este nome encontra-se colocado por João, Mateus e talvez Lucas em relação com uma confissão de fé de Pedro. Além do mais Cullmann revelou uma relação «triangular» entre Mt.16, Lc.22 e Jo.6: Mt.16 e Lc.22 concordando no que diz respeito à predição do papel predominante de Pedro; Mt.16 e Jo.6 concordando no que diz respeito à confissão de Pedro; por fim, Jo.6 e Lc.22 concordando no que diz respeito à promessa de Pedro de seguir Jesus. Estas diversas concordâncias não parecem poder explicar-se senão supondo na base destes relatos uma tradição anterior comum[35]. Existem muitos indícios de autenticidade do logion de Mateus.

            Além disso, O. Cullmann, na sequência de outros, mostrou que o logion supõe um substracto aramaico, não sendo possível o jogo de palavras sobre Pedro, sem ser nesta língua[36]. O pararelismo entre Mt.16 e I QH 6,26ss pressupõe igualmente uma origem palestiniana. Este logion remonta, portanto, a uma data muito antiga.

            A omissão do logion em Marcos não deve ser única, se, como nós pensamos, na esteira de Cullmann e de Vögtle, o logion existiu à parte e foi inserido mais tarde pelo redactor do primeiro evangelho no relato da confissão de Cesareia. A menção da igreja no v.18 não constituiu nenhuma dificuldade insuperável, porque esta palavra não é senão a tradução do hebraico Qahal (aramaico: quehàlà) que designa a comunidade messiânica. Este termo é normalmente designado pela referência a Is.28 que, como nós já vimos, diz respeito ao «resto», isto é, à comunidade messiânica.

            A dificuldade parece que se encontra noutro lado, nos contactos literários de Mt.16,17 (És feliz, Simão, filho de Jonas, porque não foi a carne nem o sangue que to revelou, mas o meu Pai que está no Céu) com Gal.1,15-16 (Mas, quando aprouve a Deus – que me escolheu desde o seio de minha mãe e me chamou pela sua graça – revelar o seu Filho em mim, para que o anuncie como Evangelho entre os gentios, não fui logo consultar criatura humana alguma): apocalipse, carne e sangue, Filho. O versículo 18 não apresenta contactos directos com Gálatas, mas a palavra «igreja» é paulina. Ora, este vocabulário comum aparece em relatos perfeitamente paralelos, apresentando a investidura numa função a partir do apocalipse do Filho pelo Pai. Estas semelhanças tão numerosas e que se encontram condensadas num só versículo de ambos os lados só podem explicar-se por um contacto redaccional querido. Desde logo, uma questão se coloca: qual é dos dois textos aquele que influenciou o outro?[37]

            O estudo do vocabulário parece pender mais a favor de uma prioridade de Gál.1,15-16. O verbo «ἀποκαλύπτειν» é raro em Mateus e usual em Paulo. A expressão «carne e sangue» no sentido de homem não se encontra em Mateus a não ser neste logion. Ela é mais frequente em Paulo (1Cor.15,50: o homem terreno não pode herdar o reino de Deus, nem a corrupção herdará a incorruptibilidade; Ef.6,12: Porque não é contra os seres humanos que temos de lutar, mas contra os Principados, as Autoridades, os Dominadores deste mundo de trevas, e contra os espíritos do mal que estão nos céus, cf. ainda 1Cor.1,26: Considerai, pois, irmãos, a vossa vocação: humanamente falando, não há entre vós muitos sábios, nem muitos poderosos, nem muitos nobres). O termo «igreja» não se encontra em Mateus a não ser neste versículo (e num sentido diferente no capítulo 18,17: se ele se recusar a atender à própria Igreja). Estas razões não são absolutamente convincentes. Os capítulo 11 e 13 atestam que Mateus não ignorava o género apocalíptico e o versículo 17 guarda um sabor próprio em Mateus «bem-aventuado» e Pai «nos céus». A imagem da edificação encontra-se subjacente no texto de Isaías. A expressão «carne e sangue» é rabínica e Mateus devia conhecê-la. É verdade que a palavra «Igreja» não pertence ao vocabulário dos evangelhos sinópticos, mas ela traduz aqui «qahal» e o texto de Isaías nomeava-a.

            Resta que estes paulinismos tão numerosos num só versículo pendem sobretudo a favor da prioridade de Gálatas sobre Mt.16. Além do mais, não é seguro que o evangelho de Mateus tivesse sido já composto no tempo da epístola aos Gálatas, nem que Paulo tivesse conhecimento dele. Enfim, e sobretudo, se o v.18 supõe um substrato aramaico, a expressão «carne e sangue» do v.17 não parece ter tido o seu equivalente em aramaico[38]. Como se poderia explicar a influência da epístola aos Gálatas sobre o texto de Mateus? Parece-nos que não devemos descartar a priori a hipótese proposta por diversos exegetas, segundo a qual o versículo 17 nos aportaria o eco da polémica entre os juedeo-cristãos e os pagano-cristãos que deu origem à carta aos Gálatas. Se a epístola aos Gálatas nos apresenta o ponto de vista de Paulo, nós encontramos nas Homilias Clementinas como que a contrapartida desta epístola, fazendo-nos conhecer o ponto de vista dos judeo-cristãos, ou melhor, de alguns certamente. Em particular, uma passagem da Homilia XVII (13-19) visa expressamente os versículos 15-16 da epístola aos Gálatas. Nesta longa crítica às pretensões de Paulo, é possível identificar duas camadas literárias, distintas ao mesmo tempo pelo estilo e pela sequência das ideias. Uma, certamente mais antiga, que contrasta com a outra pela violência de tom, pelo seu estilo interrogativo e seus apelos que soam, nota A. Salle, como um desafio[39]. Ora, o autor deste panfleto refere-se a Mateus 1,18 para criticar Paulo:

            «… Como é que Ele te poderia aparecer a ti, quando os teus pensamentos contradiziam o seu ensinamento? Tu tornaste-te apóstolo? Crê, então, nas suas palavras, explica a sua doutrina, ama os seus apóstolos, deixa de me combater a mim que vivi com ele. Porque é contra mim, a rocha sólida e o fundamento da Igreja, que tu te tornaste um adversário (cf. Gal.2,11).

                Se tu não fosses um adversário, tu não me denegririas, tu não criticarias a minha pregação, para que os outros não me creiam, quando eu repito o que eu ouvi da própria boca do Senhor, e tu não dirias que eu sou «um homem condenável» (cf. Gal.2,11) e tu «um homem irrepreensível».

            Este panfleto nega todo o valor à aparição da qual Paulo se reclama. Ele opõe-lhe, ao contrário a palavra de Cristo, estabelecendo em vida Pedro como a rocha sólida e o fundamento da igreja. Pelo contrário, o autor da segunda camada literária, mais tardio, combina este argumento com um novo, tirado da revelação feita a Pedro, tal como Mt.16,17 a transmite, o que tem por efeito tornar a sua crítica mais coerente.

            18.1: «É assim que o Filho me foi revelado a mim pelo Pai. É por isso que eu conheço pela minha própria experiência o poder da revelação. No próprio momento em que o Senhor perguntava: “Quem dizem as pessoas eu que sou?”, e enquanto eu ouvia os outros dar respostas diversas, este poder entrou no meu coração e eu disse, nem sei como: “Tu és o Filho de Deus vivo…”».

             O autor deste segundo texto conhece Mateus 16,17, o do panfleto parece, pelo contrário, ignorá-lo. Ele refere-se somente ao versículo 18. Ora, este autor, certamente anterior ao do Kerygma Petri, poderia muito bem ser, pensa A. Salle, contemporâneo dos factos que nos transmitem ao mesmo tempo Paulo na epístola aos Gálatas e Lucas nos Actos (21,20ss). «O tom do panfleto – afirma A. Salle –, as apóstrofes directas ao adversário, as imputações feitas contra factos recentes postulam uma data de composição muito próxima dos acontecimentos… De todos os modos, a data do panfleto não pode distanciar-se muito das horas mais quentes da luta contra o paulinismo».

            Se nos ligamos a esta hipótese, torna-se evidente que o versículo 18 devia ser anterior à epístola aos Gálatas e exercia já autoridade, o que confirma a sua autenticidade. No máximo, poderíamos pensar que, sob a influência de Paulo, se substituíra o termo «Igreja» por um termo do mesmo sentido, como «Templo» ou «Casa». O versículo 17 seria, ao contrário, uma composição posterior aos acontecimentos destinados a restabelecer, para vantagem de Pedro, uma autoridade indivisa. O redactor do primeiro evangelho teria inserido este versículo, onde ele retomava parcialmente as expressões de Paulo, no logion que transmitia a investidura de Pedro como rocha da igreja.

            Em conclusão, se os contactos literários entre o versículo 17 e Gal.1,15 levam a reconhecer uma influência de Gal.1,15 sobre Mateus 16,17 e a perspectivar para este versículo a hipótese de uma composição ulterior atribuída ao redactor do primeiro evangelho, numerosos indícios convergentes (substrato aramaico, referência a Is.28, testemunho do panfletário) fazem presumir fortemente a autenticidade do versículo 18, mesmo que se admita uma influência da teologia paulina sobre o redactor que o teria levado a substituir a palavra «Igreja» por um termo equivalente.

III. Lucas XXII, 31-32.

            «Simão, Simão, olha que Satanás pediu para vos joeirar como trigo. Mas Eu roguei por ti, para que a tua fé não desapareça. E tu, uma vez convertido, fortalece os teus irmãos». – Ele respondeu: «Senhor, estou pronto a ir contigo até para a prisão e para a morte». – Jesus disse-lhe: «Eu te digo, Pedro: o galo não cantará hoje sem que, por três vezes, tenhas negado conhecer-me».  

            O quadro deste relato não é geralmente posto em causa, embora o discurso de Lucas depois da ceia seja manifestamente composto (Lc. 22,24-27 = Mc. 10,42-44; Lc. 22,28-30 = Mt. 19,28):

Lc.22,24-27

Mc.10,42-44

24Levantou-se entre eles uma discussão sobre qual deles devia ser considerado o maior.

25Jesus disse-lhes: «Os reis das nações imperam sobre elas e os que nelas exercem a autoridade são chamados benfeitores.

 

26Convosco, não deve ser assim; o que fôr maior entre vós seja como o menor, e aquele que mandar, como aquele que serve. 27Pois, quem é maior: o que está sentado à mesa, ou o que serve? Não é o que está sentado à mesa? Ora, Eu estou no meio de vós como aquele que serve.

 

 

42Jesus chamou-os e disse-lhes: «Sabeis como aqueles que são considerados governantes das nações fazem sentir a sua autoridade sobre elas, e como os grandes exercem o seu poder.

43Não deve ser assim entre vós. Quem quiser ser grande entre vós, faça-se vosso servo 44e quem quiser ser o primeiro entre vós, faça-se o servo de todos.

Lc.22,28-30

Mt.19,28

28Vós sois os que permaneceram sempre junto de mim nas minhas provações, 29e Eu disponho do Reino a vosso favor, como meu Pai dispõe dele a meu favor, 30a fim de que comais e bebais à minha mesa, no meu Reino. E haveis de sentar-vos, em tronos, para julgar as doze tribos de Israel.»

28Jesus respondeu-lhes: «Em verdade vos digo: No dia da regeneração de todas as coisas, quando o Filho do Homem se sentar no seu trono de glória, vós, que me seguistes, haveis de sentar-vos em doze tronos para julgar as doze tribos de Israel.

 

A sua autenticidade não levanta suspeitas, embora a palavra «irmão», que só se encontra neste sentido no capítulo 6,41 (Simão, a quem chamou Pedro, e André, seu irmão), seja usual nos Actos para designar os membros da primeira comunidade[40].

            Por outro lado, não há acordo entre os exegetas sobre o conteúdo desta passagem, alguns vêm aí apenas um episódio da Paixão sem significado eclesiológico. Isto parece-nos, no entanto, ser o resultado de todo um conjunto de indícios convergentes.

            1. Paralelo entre Mt.16 e Lc.22: Como Loisy o tinha já revelado, esta perícopa apresenta uma estrutura análoga à de Mt.16,16-18, como a tabela seguinte nos permitirá perceber.

Mt. 16

Lc. 22

1) Promessa de Jesus a Pedro

2) Simão torna-se Pedro

3) As portas do inferno…

4) Sobre esta pedra eu construirei

5) Afasta-te de mim, Satanás

Oração de Jesus por Pedro

Simão depois do seu pecado fortalecerá os seus irmãos = Pedra

Satanás é afastado graças à oração do Senhor

Confirma os teus irmãos

Tu me negarás três vezes

 

            O paralelismo é impressionante e, sem chegarmos a ver em Lc.22,32, como o pretendia Loisy, um duplicado de Mateus, podemos perguntar-nos se não se refere a ele implicitamente[41]. Com efeito, é de assinalar que Lucas nestes dois versículos parece fazer alusão à mudança do nome Simão em Pedro. No versículo 31, Cristo interpela solenemente Simão, repetindo duas vezes este nome, sem dúvida nenhuma para sublinhar a importância da sua predição, como em Mt.23,37. No versículo 34, ele chama-o «Pedro», precisamente depois de lhe ter dado o papel de confirmar os seus irmãos depois da Paixão. Ora, como o revelou J. Dupont, nas passagens com estilo directo em Lucas, como em João, Pedro só é designado pelo nome de Simão. O versículo 34 faz, pois, excepção e isto deve ser intencional. Além do mais, o verbo «στηρίζειν» evoca por si a imagem da rocha. É interessante notar que Pedro nas Homilias Clementinas é designado como a «rocha sólida» «τὴν στερεὰν πέτραν» (XVII, 19,4). Como mostraremos mais adiante, Jo.21 deve referir-se implicitamente a este episódio, o que confirma mais o seu significado eclesiológico.           

            2. A oração de Jesus: a menção da oração de Jesus, que corresponde à promessa de Jesus em Mt.16, parece-nos particularmente significativa. No evangelho de Lucas, com efeito, como no quarto evangelho, Cristo não disse que reza por outros para além dos seus apóstolos (todavia em Jo.17,20, Cristo acrescenta: «e por aqueles que, graças à tua palavra, hão-de acreditar em mim»), e é nestas circunstâncias particularmente importantes que ele reza por eles: em Lucas, antes de escolher (Lc.6,12: Naqueles dias, Jesus foi para o monte fazer oração e passou a noite a orar a Deus. Quando nasceu o dia, convocou os discípulos e escolheu doze dentre eles, aos quais deu o nome de Apóstolos), em João antes de os deixar (Jo.17). Cristo tem então sempre em vista o futuro da sua comunidade. João 17,15 é o mais paralelo de Lc.22,32:

Jo.17,15

Lc.22,32

Não te peço que os retires do mundo, mas que os livres do mal.

Mas Eu roguei por ti, para que a tua fé não desapareça.

 

A oração de Jesus no capítulo 22 deve, portanto, visar Pedro, na medida em que ele tem um papel particularmente importante a cumprir em favor dos destinados à comunidade messiânica.

            3. Os teus irmãos: Nós dissemos que o emprego deste termo sem outra precisão só se encontra no capítulo 6,41. Nos dois casos, este termo deve compreender-se em função da acepção da palavra nos Actos dos Apóstolos onde ela designa os membros da comunidade messiânica. A missão que Pedro recebe não se limita a confirmar a fé dos apóstolos, mas a de todos os discípulos, de todos os membros da comunidade cristã.

              4. O substrato vetero-testamentário: referência a Zacarias 3,1-9[42]:           

«O Senhor mostrou-me depois Josué, o Sumo-Sacerdote, que estava de pé diante do anjo de Yahvé, enquanto Satanás estava à direita para o acusar. E o anjo de Yahvé disse a Satanás: «Que o Senhor te confunda, Satanás, que o Senhor te confunda, Ele que escolheu Jerusalém. Não é este, porventura, um tição tirado do fogo?». Ora Josué vestia roupa suja, quando estava de pé diante do anjo de Yahvé. Tomando a palavra, o anjo disse aos que estavam à volta dele: «Tirai-lhe as suas vestes sujas e vesti-lhe roupa sumptuosa; e colocai sobre a sua cabeça uma tiara limpa». Vestiram-no com roupa sumptuosa e puseram-lhe sobre a cabeça uma tiara limpa. O anjo de Yahvé estava de pé e disse-lhe: «Vê que Eu tirei de cima de ti a tua iniquidade». Depois o anjo de Yahvé disse a Josué: «Assim fala Yahvé Sabaot: Se seguires pelos meus caminhos e observares os meus preceitos, governarás a minha casa, guardarás os meus átrios e Eu te darei lugar entre os que se encontram aqui diante de mim. Porque eis a pedra que Eu coloco diante de Josué; … Eis que Eu vou suscitar o meu servo ‘Gérmen’ e afastarei a iniquidade deste país».           

            O relato de Lucas apresenta estreitas semelhanças com este capítulo que igualmente inspirará o autor do Apocalipse (12,30):

            a) As situações análogas nos dois casos: Satanás, o acusador (cf. Job 22,3: O Omnipotente tem algum interesse em que sejas justo, algum lucro em que o teu proceder seja íntegro?) reclama Pedro, como reclama Josué, como reclama de maneira geral os eleitos (Ap.12,30).

              b)  Josué está vestido de vestes sujas e é revestido de vestes limpas, o que explica o versículo 4b: «Vê que Eu tirei de cima de ti a tua iniquidade» (P. Dreyfus destaca por outro lado que este versículo constitui uma citação quase textual de Isaías 6,7: Tocou na minha boca e disse: «Repara bem, isto tocou os teus lábios; foi afastada a tua culpa e apagado o teu pecado!»). Da mesma forma «ἐπιστρέψας» é uma clara alusão tanto à negação de Pedro, como à sua conversão[43].

             c) Como o nota P. Dreyfus, Josué é ainda «causa exemplar». No versículo 8, Yahvé anuncia que tirará a iniquidade do país. Da mesma forma Pedro, uma vez convertido, deve compartilhar com os outros a solidez nova da fé.

            d) Referência a Amós 9,8-10: P. Dreyfus salienta o paralelismo da ideia impressionante de Lc.22,31-32 com Amós 9,8-10, a única passagem do AT hebreu onde é evocada a imagem do crivo (cf. Sir.27,4: Quando se abana o crivo, apenas ficam as alimpas; do mesmo modo, os defeitos do homem aparecem nas suas palavras):

«Eis que os olhos do Senhor Yahvé

estão abertos sobre o reino que peca;

hei-de exterminá-lo da face da terra.

Mas não destruirei completamente a casa de Jacob

– oráculo do Senhor,

porque vou dar ordem,

vou sacudir a casa de Israel entre todas as nações,

como se sacode o grão no crivo,

sem que o bom grão caia por terra».

            Embora a tradução do último versículo permaneça incerta, a ideia expressa por Amós é clara: a prova (= crivo) distinguirá o bom do mau grão. A crivação aparece como uma operação constitutiva do «resto». Lucas retoma esta imagem para significar que a paixão será a prova que distinguirá os verdadeiros dos falsos discípulos de Jesus. Pedro, apesar da sua negação e em virtude da oração de Jesus, ficará no crivo e será o primeiro a voltar para Jesus. Portanto, a predição de Jesus retoma, especificando-a, a predição do velho Simeão no capítulo 2,34-35, que agora vai encontrar o seu cumprimento: «Este menino está aqui para queda e ressurgimento de muitos em Israel e para ser sinal de contradição. … Assim hão-de revelar-se os pensamentos de muitos corações»[44]. É neste contexto que se inscreve, por conseguinte, a vocação de Pedro.

            Parece, pois, evidente que Lc.22,31-34 apresenta um conteúdo eclesiológico[45]. Como em Mt.16, o papel de Pedro é colocado em relação com o futuro da comunidade messiânica, do «Resto de Israel». Confrontado com Mt.16, Lucas esclarece talvez melhor o papel diferencial de Pedro relativo aos outros discípulos. Como em Mt.16, a missão de Pedro contrasta com a sua fraqueza. Ele não deve o seu papel predominante na comunidade messiânica senão à oração de Jesus. Pedro só será forte na fé porque ele será instrumento de Deus na realização do seu desígnio de salvação.

IV. Pedro no quarto evangelho.

            Sabemos quanto é difícil interpretar o quarto evangelho. Esta dificuldade prende-se em particular com o carácter simbólico deste evangelho. Como Dodd bem o demonstrou, os acontecimentos que aí são relatados têm em vista significar outras realidades; factos e acontecimentos são apenas imagens de realidades espirituais ou eternas[46]. Num certo número de casos, o evangelista explicita este sentido oculto, mas noutros casos tem de ser o leitor a descobri-lo com base em métodos que convenham ao evangelista e às suas concepções. É inevitável nestas condições que muitas interpretações propostas contenham um carácter aleatório e que a concordância entre os exegetas seja difícil de atingir. Esta dificuldade não deve, no entanto, impedir-nos de nos perguntarmos se também o quarto evangelho atribui a Pedro um lugar à parte entre os discípulos e se lhe reconhece igualmente uma certa primazia.

            Como O. Cullmann o assinalou rapidamente, no seu estudo sobre Pedro, a dificuldade prende-se aqui com o facto de este evangelho parecer opor a Pedro uma espécie de concorrente, na pessoa do «discípulo que Jesus amava (ou o outro discípulo)», cuja figura só é evocada em relação com Pedro:

1,35-42: No dia seguinte, João encontrava-se de novo ali com dois dos seus discípulos. Então, pondo o olhar em Jesus, que passava, disse: «Eis o Cordeiro de Deus!». Ouvindo-o falar desta maneira, os dois discípulos seguiram Jesus. Jesus voltou-se e, notando que eles o seguiam, perguntou-lhes: «Que pretendeis?» Eles disseram-lhe: «Rabi – que quer dizer Mestre – onde moras?». Ele respondeu-lhes: «Vinde e vereis.» Foram, pois, e viram onde morava e ficaram com Ele nesse dia. Eram as quatro da tarde. André, o irmão de Simão Pedro, era um dos dois que ouviram João e seguiram Jesus. Encontrou primeiro o seu irmão Simão, e disse-lhe: «Encontrámos o Messias!» – que quer dizer Cristo. E levou-o até Jesus. Fixando nele o olhar, Jesus disse-lhe: «Tu és Simão, o filho de João. Hás-de chamar-te Cefas» – que significa Pedra.

13,22-26: Os discípulos olhavam uns para os outros, sem saberem a quem se referia. Um dos discípulos, aquele que Jesus amava, estava à mesa reclinado no seu peito. Simão Pedro fez-lhe sinal para que lhe perguntasse a quem se referia. Então ele, apoiando-se naturalmente sobre o peito de Jesus, perguntou: «Senhor, quem é?». Jesus respondeu: «É aquele a quem Eu der o bocado de pão ensopado.»

18,15-16: Entretanto, Simão Pedro e outro discípulo foram seguindo Jesus. Esse outro discípulo era conhecido do Sumo-Sacerdote e pôde entrar no seu palácio ao mesmo tempo que Jesus. Mas Pedro ficou à porta, de fora. Saiu, então, o outro discípulo que era conhecido do Sumo-Sacerdote, falou com a porteira e levou Pedro para dentro.

20,2-10: Correndo, foi ter com Simão Pedro e com o outro discípulo, o que Jesus amava, e disse-lhes: «O Senhor foi levado do túmulo e não sabemos onde o puseram.». Pedro saiu com o outro discípulo e foram ao túmulo. Corriam os dois juntos, mas o outro discípulo correu mais do que Pedro e chegou primeiro ao túmulo. Inclinou-se para observar e reparou que os panos de linho estavam espalmados no chão, mas não entrou. Entretanto, chegou também Simão Pedro, que o seguira. Entrou no túmulo e ficou admirado ao ver os panos de linho espalmados no chão, ao passo que o lenço que tivera em volta da cabeça não estava espalmado no chão juntamente com os panos de linho, mas de outro modo, enrolado noutra posição. Então, entrou também o outro discípulo, o que tinha chegado primeiro ao túmulo. Viu e começou a crer, pois ainda não tinham entendido a Escritura, segundo a qual Jesus devia ressuscitar dos mortos. A seguir, os discípulos regressaram a casa.

21,1-14: Algum tempo depois, Jesus apareceu outra vez aos discípulos, junto ao lago de Tiberíades, e manifestou-se deste modo: estavam juntos Simão Pedro, Tomé, a quem chamavam o Gémeo, Natanael, de Caná da Galileia, os filhos de Zebedeu e outros dois discípulos. Disse-lhes Simão Pedro: «Vou pescar.» Eles responderam-lhe: «Nós também vamos contigo». Saíram e subiram para o barco, mas naquela noite não apanharam nada. Ao romper do dia, Jesus apresentou-se na margem, mas os discípulos não sabiam que era Ele. Jesus disse-lhes, então: «Rapazes, tendes alguma coisa para comer?» Eles responderam-lhe: «Não». Disse-lhes Ele: «Lançai a rede para o lado direito do barco e haveis de encontrar». Lançaram-na e, devido à grande quantidade de peixes, já não tinham forças para a arrastar. Então, o discípulo que Jesus amava disse a Pedro: «É o Senhor!» Simão Pedro, ao ouvir que era o Senhor, apertou a capa, porque estava sem mais roupa, e lançou-se à água. Os outros discípulos vieram no barco, puxando a rede com os peixes; com efeito, não estavam longe da terra, mas apenas a uns noventa metros. Ao saltarem para terra, viram umas brasas preparadas com peixe em cima e pão. Jesus disse-lhes: «Trazei dos peixes que apanhastes agora». Simão Pedro subiu à barca e puxou a rede para terra, cheia de peixes grandes: cento e cinquenta e três. E, apesar de serem tantos, a rede não se rompeu. Disse-lhes Jesus: «Vinde almoçar.» E nenhum dos discípulos se atrevia a perguntar-lhe: «Quem és Tu?», porque bem sabiam que era o Senhor. Jesus aproximou-se, tomou o pão e deu-lho, fazendo o mesmo com o peixe. Esta já foi a terceira vez que Jesus apareceu aos seus discípulos, depois de ter ressuscitado dos mortos.

Excepto no capítulo 19,25-27: Junto à cruz de Jesus estavam, de pé, sua mãe e a irmã da sua mãe, Maria, a mulher de Clopas, e Maria Madalena. Então, Jesus, ao ver ali ao pé a sua mãe e o discípulo que Ele amava, disse à mãe: «Mulher, eis o teu filho!». Depois, disse ao discípulo: «Eis a tua mãe!». E, desde aquela hora, o discípulo acolheu-a como sua (mas este logion, se dermos crédito ao P. Boismard, poderia muito bem ter pertencido ao evangelho primitivo e só ter sido inserido no capítulo pelo último redactor que poderia ser Lucas[47]. Esta oposição é inegável, mas o que significa ela? É a esta questão que Alv Kragerud quis responder numa tese cujas análises são preciosas, mas cujas conclusões são muitas vezes demasiado aventureiras[48]. É a ela que nós tentaremos igualmente dar uma resposta ao longo das páginas seguintes[49]. Analisemos em primeiro lugar rapidamente os textos onde se revela esta oposição entre Pedro e o outro discípulo.

            Em 1,35-42, o evangelho de João relata o primeiro chamamento dos discípulos. Ele segue uma tradição desconhecida dos sinópticos e o seu relato pretende mostrar que é pelo «testemunho de João» que todos vão crer em Jesus (v.7). Contrariamente aos sinópticos, Pedro não é o primeiro chamado, é André e um discípulo anónimo que seguem Jesus em primeiro lugar e o reconhecem como Messias. É por intermédio de André que Pedro chega até Jesus e é então que Jesus dá a Pedro o nome de Cefas, isto é, Pedra. Como já assinalamos, este versículo parece referir-se a uma tradição antiga que liga o nome de Pedro a um episódio onde este confessava a Messianidade de Jesus ou o reconhecia como Filho de Deus. A única coisa curiosa aqui é que ele retira a Pedro a prioridade do chamamento.

            No capítulo 13,22-26, relato paralelo ao dos sinópticos, João refere um detalhe desconhecido destes: é Pedro que se faz porta-voz do grupo dos discípulos (comparar Jo.13,24 e Lc.22,23) e pergunta a Jesus quem será o traidor. É todavia por intermédio do «discípulo que Jesus amava» que ele é obrigado a colocar esta questão. Pedro torna-se o representante e o porta-voz do grupo dos discípulos, mas ele tem necessidade da mediação do «discípulo que Jesus amava».

            No capítulo 18,15-16, Pedro só é introduzido na corte do Sumo-sacerdote por intermédio do «outro discípulo», enquanto que nos sinópticos ele é o único a seguir Jesus até ao pretório. Segundo A. Kragerud, ainda há mais. Segundo ele, esta perícopa referia-se ao capítulo 10,1-16, sobre o «bom pastor». As duas passagens contêm com efeito um grande número de palavras comuns: ἄγειν, ἀπολουθεῖν, αὐλή, γινώσκειν, εἰσελθεῖν, ἐξελθεῖν, θύρα, θυρωρός[50]. Estas coincidências são efectivamente surpreendentes. Kragerud pensa que o evangelho destaca implicitamente a parábola do bom pastor para mostrar que o outro discípulo segue tão perto a Jesus que entra com ele no pretório, por outras palavras, no redil. Por intermédio deste discípulo, a porteira introduz também Pedro, ora no capítulo 10,2-3 Jesus diz: «O que entre pela porta é o pastor das ovelhas. O porteiro abre-lhe a porta e as ovelhas escutam a sua voz». Pedro seria portanto apresentado como «pastor». Mas ele teria ainda necessidade da mediação do outro discípulo…

            Esta interpretação, por mais sedutora que possa parecer, choca, na nossa opinião, com uma dificuldade intransponível, que as explicações de Alv Kragerud não podem resolver. Ela suporia que o evangelho de João pudesse ver na corte do pretório o símbolo do reino do Deus e no sumo-sacerdote o símbolo do Pai. Nada no quarto evangelho autoriza uma transposição tão audaciosa. Também nós preferimos ver nesta passagem uma alusão ao Apocalipse 14,4-5: «(os virgens) seguem o Cordeiro para onde quer que ele vá… A sua boca jamais conheceu a mentira. Eles são imaculados». A passagem teria por objectivo, portanto, assinalar a superioridade espiritual do outro discípulo».

            No capítulo 20,2-10, Pedro e o «outro discípulo» vão juntos ao túmulo. Em Lucas 24,12, Pedro ia sozinho. O «outro discípulo» corre mais depressa e chega primeiro (πρῶτος). O versículo 8 refere mais uma vez que ele chegou primeiro, mas deixa passar Pedro à frente e não entra senão depois dele no sepulcro. Mas é ele que «vê e crê».

            No capítulo 21,1-14, relato da pesca milagrosa, paralelo ao de Lucas 5, é o «discípulo que Jesus amava» que diz a Pedro: «É o Senhor» (v.7), e é somente então que Pedro se deita à água para chegar a Jesus. Em Lucas 5, é Pedro o primeiro que confessa Jesus como Senhor. Aqui ainda, como nos capítulos 1, 13, 18 e 20, o autor do quarto evangelho introduz o «discípulo que Jesus amava» como intermediário. No entanto é só a Pedro que Jesus dá a missão de apascentar as ovelhas.

            Qual é então o sentido desta oposição, que de resto nem sequer é constante, visto que no capítulo 6 (pendente de Mt.16) é Pedro que sozinho confessa Jesus como o Santo de Deus?

            Em todas estas passagens, o quarto evangelho reconhece a Pedro uma certa primazia: ele é «Pedra» (1,42), ele é o porta-voz dos discípulos (13,24), ele entra primeiro no sepulcro e o outro discípulo espera por ele (20,4). No capítulo 21, é ele que recebe a missão de apascentar as ovelhas do Senhor. No capítulo 18,16, se adoptarmos a interpretação de Kragerud, ele é igualmente reconhecido implicitamente como «pastor».

            Qual é então a superioridade do outro discípulo? Devemos perguntar-nos, em primeiro lugar, se este discípulo e o que Jesus amava devem ser identificados. Tudo parece sugeri-lo e nenhum exegeta, de resto, hesitou em fazer a identificação. É possível que a diferença de terminologia seja devida à intervenção de dois redactores distintos. Este ponto ainda não está seguro, mas alguns indícios estilísticos deixam pensar isso[51]. Seja como for, a superioridade do «outro discípulo» e a do «discípulo que Jesus amava» são da mesma ordem. No capítulo 18, o outro discípulo segue Jesus e entre com Ele no pretório. Ele segue-o por todo o lado, pela razão – parece – de que não há mentira na boca deste discípulo, que ele é imaculado. No capítulo 20, ele corre mais depressa, chega em primeiro lugar (repetido duas vezes) e é dele que se disse que «viu e acreditou» (v.8). O evangelho sugere, portanto, que este discípulo é melhor discípulo que Pedro, mais forte na fé, mais espiritual. Nas outras passagens, este discípulo é apresentado como «o discípulo que Jesus amava». Ora, ser amado por Jesus é no quarto evangelho uma característica essencial do discípulo (15,9: Assim como o Pai me tem amor, assim Eu vos amo a vós. Permanecei no meu amor; 17,23: Eu neles e Tu em mim, para que eles cheguem à perfeição da unidade e assim o mundo reconheça que Tu me enviaste e que os amaste a eles como a mim), porque o discípulo é em relação a Jesus o que Jesus é em relação ao Pai. No capítulo 13,23, é dito ainda que ele repousa sobre o seio de Jesus (ἐν τῷ κόλπῳ), como o próprio Jesus «repousa no seio do Pai» (1,18): εἰς τόν κόλπον). Este discípulo está tão estreitamente unido a Jesus que, no capítulo 19,26, Jesus diz a sua mãe: «Eis o teu filho» e a este discípulo: «Eis a tua mãe». De qualquer maneira, portanto, ele toma o lugar de Jesus. Este discípulo aparece como uma «imagem» de Jesus. Todos estes traços pretendem apresentar este discípulo – parece – como o discípulo perfeito, o discípulo por excelência. Mas é significativo que o quarto evangelho não lhe atribui nenhum papel funcional na comunidade.

            Este discípulo será então apenas um personagem simbólico? Não pensamos que seja, contrariamente a Kragerud. No evangelho de João, há com efeito factos e acontecimentos históricos que são simbólicos, os personagens devem ser também eles reais. Além do mais, sendo Pedro um personagem da história, aquele que se lhe opõe deve ser um personagem histórico. Até aos tempos modernos, nunca se hesitou em ver o Apóstolo João neste discípulo que Jesus amava. Apesar das dificuldades reais que levanta esta identificação, não há razão suficiente para pôr isto em causa[52]. Mas, de acordo com o carácter simbólico do quarto evangelho, o apóstolo João deve ser também o tipo do «discípulo perfeito».

            Em suma, o quarto evangelho, como os sinópticos, reconhece a primazia de Pedro, mas ele pretende sublinhar que esta primazia é apenas funcional e sugere que existe uma outra primazia superior, a da fé e do amor, aquela que dá ao que repousa sobre o seio de Jesus, como João, a possibilidade receber Maria por Mãe.

            Os textos analisados reconhecem, portanto, a Pedro uma primazia, mas não especificam nem a sua natureza, nem a sua ordem. O capítulo 21 parece ensinar-nos mais sobre ela e, antes de tudo, a perícopa 15-17:

Depois de terem comido, Jesus perguntou a Simão Pedro: «Simão, filho de João, tu amas-me mais do que estes?» Pedro respondeu: «Sim, Senhor, Tu sabes que eu sou deveras teu amigo.» Jesus disse-lhe: «Apascenta os meus cordeiros». Voltou a perguntar-lhe uma segunda vez: «Simão, filho de João, tu amas-me?» Ele respondeu: «Sim, Senhor, Tu sabes que eu sou deveras teu amigo.» Jesus disse-lhe: «Apascenta as minhas ovelhas». E perguntou-lhe, pela terceira vez: «Simão, filho de João, tu és deveras meu amigo?» Pedro ficou triste por Jesus lhe ter perguntado, à terceira vez: ‘Tu és deveras meu amigo?’ Mas respondeu-lhe: «Senhor, Tu sabes tudo; Tu bem sabes que eu sou deveras teu amigo!» E Jesus disse-lhe: «Apascenta as minhas ovelhas.

Este capítulo constitui como um apêndice ao evangelho de João e difere, parcialmente, pelo seu vocabulário e o seu estilo, do resto deste evangelho. Com efeito, o estilo de João mistura-se aí com o de Lucas[53]. Esta mesma mistura tem de resto sido constatada em outras perícopas do mesmo evangelho[54]. Este capítulo foi, portanto, verdadeiramente redigido pelo redactor do terceiro evangelho, inspirando-se nos próprios relatos de João e do seu estilo. Esta constatação não autoriza, no entanto, a que se meta em dúvida a autenticidade substancial do relato.

            A perícopa 15-17 encontra-se inserida no relato da pesca milagrosa, que, como os Padres o tinham já assinalado, é um paralelo do relato de Lucas 5[55]. O esquema seguinte fará realçar este paralelismo:

Lucas 5,1-11

João 21,1-19

Lago de Genesaré (v.1)

Lago de Tiberíades (v.1)

Pesca infrutífera à noite

Pesca infrutífera à noite

Lançai as redes (v.4)

Lançai as redes (v.6)

Pesca milagrosa

Pesca milagrosa

Pedro confessa Jesus como Kurios

João diz: «É o Kurios»

Pedro reconhece-se pecador

Pedro é apresentado «nu»

Regresso a terra (v. 11)

Regresso a terra (v.8)

Jesus toma uma refeição (v.9-13)

Jesus confia a Pedro as suas ovelhas

Jesus prediz a Pedro o seu martírio

Eles o seguiram (v.11)

Jesus diz a Pedro: «Segue-me».

 

            A referência do relato de João ao de Lucas é muito estreita, para não dizer intencional, e deve, portanto, ter um significado. Além do mais, esta perícopa contém elementos simbólicos, tais como a menção dos 153 peixes e, na nossa opinião, a nudez de Pedro. Poucos exegetas o negam aliás, mas a sua concordância cessa quando se trata de identificar este sentido simbólico.

            Independentemente de certos detalhes, parece seguro que a pesca simboliza a missão dos Apóstolos, o que transparece em Lc.5,10, onde Jesus prediz a Simão que ele será doravante «pescador de homens» (cf. Mt.4,19: Disse-lhes: «Vinde comigo e Eu farei de vós pescadores de homens), e em Mt.13,47, onde Jesus compara o reino dos céus a uma rede que se deita ao mar: O Reino do Céu é ainda semelhante a uma rede que, lançada ao mar, apanha toda a espécie de peixes. À ordem de Jesus, os discípulos lançam a rede e Pedro puxa para terra a rede que contém 153 grandes peixes. Muitas interpretações deste número foram propostas. Na sequência de Agostinho, Hoskyns e Barrett, depois de terem destacado que 153 é um número triangular (= 1+2+3…+17) e que o próprio 17 é a soma dos dois número perfeitos 7 e 10, pensam que os 153 grandes peixes representam «the full total of the catholic and apostolic Church» [N.T.: o total da Igreja Católica e Apostólica][56]. O sentido é o mesmo se se preferir a hipótese de Jerónimo. Segundo ele, a cifra referia-se à opinião corrente na Antiguidade, segundo a qual, haveria no mar 153 espécies de peixes[57]. De todos os modos, é assinalável que nesta perícopa, como em Lc.5, seja Pedro a ser apresentado como tomando a direcção da pesca (v.3) e que seja ele que lança a rede borda-fora. Os outros discípulos permanecem em segundo plano. Parece-nos, portanto, que o relato de João pretende mostrar que a predição feita por Jesus em Lc.5 se encontrou confirmada e comprida por Cristo Ressuscitado.

            No versículo 7, o evangelista relata que Pedro «veste a sua roupa, porque estava nu, e depois deita-se à água», para chegar a Jesus, depois que o discípulo que Jesus amava lhe disse: «É o Senhor». Este versículo parece estranho. Como o notava o Padre Lagrange, é pouco lógico vestir-se, para se deitar à água. Loisy sublinhou igualmente uma certa incoerência nestes versículos. Estes detalhes compreendem-se, ao contrário, sem dificuldade, se eles apresentarem um sentido simbólico. No quarto evangelho, «γυμνός» só aparece aqui, mas nos quatro empregos desta palavra no Apocalipse (3,17-18: Porque dizes: ‘Sou rico, enriqueci e nada me falta’ – e não te dás conta de que és um infeliz, um miserável, um pobre, um cego, um nu; 16,15: Vêde bem! Virei como um ladrão: feliz daquele que estiver vigilante e vestido com as suas roupas; deste modo, não andará nu e ninguém verá a sua nudez; 17,16: Os dez chifres que estás a ver e a Besta odiarão a prostituta, vão deixá-la desolada e nua, vão devorar a sua carne e destruí-la pelo fogo) esta expressão visa sempre significar a nudez espiritual, ou como o dizia já Filão: «a perda da virtude» (Legum Allegoriae, II, 60). O paralelo com Apoc. 3,17-18, é particularmente esclarecedor, porque se a nudez é vergonhosa, sinal de pobreza espiritual, o facto de vestir roupa é aí apresentado como um símbolo da conversão. Ora, no versículo 7, Pedro que está nu veste a sua roupa. Parece, portanto, que o redactor da perícopa quer exprimir a ideia seguinte: Pedro, que depois da sua negação permanece na nudez espiritual e na sua vergonha, converte-se, quando o discípulo que Jesus amava reconhece o Senhor. Então ele deita-se à água, símbolo da purificação (9,7: Vai, lava-te na piscina de Siloé» – que quer dizer Enviado, e 13,5-10: Depois deitou água na bacia e começou a lavar os pés aos discípulos e a enxugá-los com a toalha que atara à cintura. Chegou, pois, a Simão Pedro. Este disse-lhe: «Senhor, Tu é que me lavas os pés?» Jesus respondeu-lhe: «O que Eu estou a fazer tu não o entendes por agora, mas hás-de compreendê-lo depois.» Disse-lhe Pedro: «Não! Tu nunca me hás-de lavar os pés!» Replicou-lhe Jesus: «Se Eu não te lavar, nada terás a haver comigo.» Disse-lhe, então, Simão Pedro: «Ó Senhor! Não só os pés, mas também as mãos e a cabeça!» 10Respondeu-lhe Jesus: «Quem tomou banho não precisa de lavar senão os pés, pois está todo limpo. E vós estais limpos, mas não todos.»), para chegar até Jesus. A perícopa parece, portanto, referir-se à predição de Jesus em Lc.22,32 «quando tu te converteres» para mostrar o seu cumprimento. É somente a seguir que Pedro recebe a missão de «apascentar» as ovelhas (cf. Confirma os teus irmãos).

            Os versículos que precedem a investidura de Pedro levam, portanto, já a pensar que na missão apostólica ele exerce a função de chefe. A perícopa seguinte vai mostrar que ele deve esta função à vontade expressa de Cristo Ressuscitado.

           a) A tripla declaração e amor: Ninguém põe em dúvida que a tripla interrogação de Jesus corresponde à tripla negação de Pedro. A menção de um braseiro no v.9, que lembra o de Jo.18,18 (Lá dentro estavam os servos e os guardas, de pé, aquecendo-se à volta de um braseiro que tinham acendido, porque fazia frio. Pedro ficou no meio deles, aquecendo-se também) pretende, sem dúvida, sugerir o paralelismo das duas cenas. Esta referência constitui uma característica constante da tradição evangélica, como já antes o demonstramos. Por outro lado, o quarto evangelho não coloca aqui o nome de Pedro em relação com a missão que ele recebe.

Jesus pergunta-lhe, portanto, três vezes: «Tu amas-me?». Mas à terceira vez, em lugar de usar o verbo «ἀγαπᾶν», ele emprega o verbo «φιλεῖν». Será esta mudança significativa? Orígenes pensava que a tristeza de Pedro, mencionada no versículo 17, era devida à mudança deste verbo[58]. Alguns exegetas modernos pensam igualmente que a tripla interrogação de Jesus é regressiva[59]. Depois de ter perguntado primeiro a Pedro: «Tu amas-me mais do que estes?», ele só lhe pergunta a segunda vês: «Tu amas-me?» e a terceira vez: «Tu és meu amigo?». Por outras palavras, Jesus sugeria que Pedro não o amava com o amor próprio do discípulo, mas somente com uma amizade humana e pessoal. O quarto evangelho pretenderia, portanto, ainda aqui, rebaixar Pedro, não somente em comparação com o discípulo que Jesus amava, mas também em comparação com os outros discípulos.

            Embora em algumas passagens do quarto evangelho «φιλεῖν» designe o mesmo amor de «ἀγαπᾶν» (5,20: De facto, o Pai ama o Filho e mostra-lhe tudo o que Ele mesmo faz; 16,27: é o próprio Pai que vos ama, porque vós já me tendes amor e já credes que Eu saí de Deus; 20,2: Correndo, foi ter com Simão Pedro e com o outro discípulo, o que Jesus amava) e embora o redactor, sem dúvida para evitar a monotonia, varie por vezes o vocabulário, usando termos praticamente sinónimos[60] (nos versículos 16-17, βόσκειν / ποιμαίνειν, ἀγνία / προζάτια são um exemplo deste procedimento estilístico), parece todavia provável que «φιλεῖν» se opõe aqui a «ἀγαπᾶν», como «a amizade humana se opõe à amizade religiosa, consagração a Deus que se traduz no plano moral num acto de total fidelidade e obediência, e finalmente em serviço exclusivo do Senhor»[61]. Esta conclusão resulta da comparação entre o versículo 16 e o 17. No versículo 16, o evangelista escreve: «τάλιν δεύτερον» (sem artigo). Nos versículos 17 e 18, ele escreve: «τὸ τρίτον» (com artigo). A menos que se pense que se trata de um puro pleonasmo, «δεύτερον» deve sublinhar o verbo que Jesus usa: «Ele lhe diz de novo uma segunda vez…». No versículo 18, «τὸ» guarda o seu valor demonstrativo: «Pedro entristeceu-se por ele lhe ter dito esta terceira vez…». O versículo 18 tem, portanto, a intenção de sublinhar a diferença de termo. Além do mais, esta mudança de terminologia contrasta com o único verbo que Pedro usa na sua resposta: «φιλεῖν».

O autor da perícopa tem, portanto, a intenção de rebaixar Pedro e de mostrar que ele é o «pior» discípulo. É, no entanto, a ele que o Senhor lhe vai dar a missão de apascentar as suas ovelhas. Encontramos uma vez mais o contraste entre as qualidades pessoais de Pedro e o cargo de que ele é revestido. O objectivo do quarto evangelho deve, sem dúvida nenhuma, ser o mesmo do de Mateus e de Lucas: pôr em evidência a liberdade da eleição divina. A sequência da perícopa mostra, todavia, que Pedro se tornará também um perfeito discípulo de Jesus (vv. 18-19).

            b) A missão de Pedro: À tríplice declaração de amor de Pedro o Senhor responde conferindo-lhe a missão de apascentar as suas ovelhas. A solenidade da investidura é sublinhada pela invocação do nome: «Simão, filho de João» e pela tríplice repetição que, segundo o Padre Gaechter, significa que se trata de um solene compromisso contratual[62]. Como nós já o sublinhamos mais acima, Jesus usa de dois termos diferentes: βόσκειν, ποιμαίνειν. As duas expressões são sinónimas. «ποιμαίνειν» é no entanto biblicamente mais rica de significado. ἀγνία e προζάτια são diminutivos e designam pequenas ovelhas. Προζάτια só se encontra aqui no NT e é um termo raro, pouco corrente. Este vocabulário sobrepõe-se do capítulo 10, onde só se trata de προζάτα, expressão que é a dos LXX nos textos citados pelo NT. «ἀγνίον» é o único termo de que se serve o Apocalipse para designar Cristo como Cordeiro, em função do capítulo 53 de Isaías, sobre o Servo de Javé (cf. 5,6: Depois olhei e vi no meio do trono e dos quatro seres viventes e no meio dos anciãos, um Cordeiro). No texto dos LXX, a palavra que designa o cordeiro levado à imolação é igualmente πρόζατον. É sem dúvida intencionalmente que o autor do Apocalipse substituiu aí o diminutivo ἀγνίον. Não seria para pôr em maior relevo o contraste entre a fraqueza do Servo na sua paixão e o poder que este lhe mereceu adquirir (Apoc.5,12: O Cordeiro que foi imolado é digno de receber o poder e a riqueza, a sabedoria e a força, a honra, a glória e o louvor)? Este diminutivo pretenderia, portanto, sublinhar a fraqueza daquele a quem é atribuído. É possível, igualmente, como Zahn já o pensava, que o capítulo 21 use diminutivos para pôr em evidência a fraqueza das ovelhas que Pedro tem o encargo de apascentar. Teria querido sugerir que os discípulos perfeitos não têm mais necessidade de Pedro e que a missão deste se limita a «confirmar» os irmãos cuja fé é fraca? Esta interpretação é possível, ela harmonizar-se-ia, em todo o caso muito facilmente, com a oposição que nós constatámos entre o discípulo que Jesus amava (o discípulo perfeito) e Pedro. Realcemos ainda que no versículo 5 Jesus interpela os seus discípulos da maneira seguinte: «Filhinhos», termo não habitual no evangelho. O seu uso na primeira epístola (1Jo.2,14 e 18: Eu vo-lo escrevo, filhinhos… Filhinhos, estamos na última hora; 3,7: Filhinhos meus, que ninguém vos engane) dá a impressão de que esta palavra designa aquele cuja fé tem ainda necessidade de ser fortalecida e posta ao abrigo das falsas doutrinas.

            Seja como for, resta que Pedro recebe o encargo de apascentar as pequeninas ovelhas, as de Jesus (Jesus diz as três vezes: «minhas» ovelhas, como em Mt.16,18 dizia: «minha» igreja). A escolha desta imagem é certamente dominada pelo emprego que Jesus faz dela no capítulo 10. Ao longo deste capítulo, esta passagem refere-se igualmente ao tema do Pastor no Antigo testamento. O capítulo 10 visa certamente comprovar que Jesus é aquele em quem se cumprem as promessas messiânicas que apresentavam o Messias como o Pastor do povo de Israel: Miq.2,12-13: Eu te reunirei, ó Jacob, todo inteiro; congregarei o resto de Israel. Porei tudo junto, como ovelhas no aprisco, como um rebanho no meio da pastagem, ruidosa multidão de homens. Aquele que lhes abre o caminho subiu diante deles; eles abriram uma saída, passaram uma porta e saíram por ela; o seu rei passou diante deles, o Senhor, à sua frente (reminiscência quase verbal em Jo.10,3b: A esse o porteiro abre-a e as ovelhas escutam a sua voz. E ele chama as suas ovelhas uma a uma pelos seus nomes e fá-las sair), Jer.23,1-6 (Ai dos pastores que dispersam e extraviam o rebanho das minhas pastagens! – Oráculo do Senhor. Pois assim fala o Senhor, Deus de Israel, aos pastores que apascentam o meu povo: «Dispersastes as minhas ovelhas, afugentaste-las e não vos ocupastes delas. Por isso, Eu vou ocupar-me de vós, pedir-vos contas do vosso mau procedimento – oráculo do Senhor. Reunirei o que restar das minhas ovelhas espalhadas pelas terras em que as exilei, e fá-las-ei voltar às suas pastagens, onde crescerão e se multiplicarão. Dar-lhes-ei pastores que as apascentarão, de modo que não terão medo nem sobressalto e nenhuma delas se perderá –oráculo do Senhor. Dias virão em que farei brotar de David um rebento justo que será rei, governará com sabedoria e exercerá no país o direito e a justiça – oráculo do Senhor. Nos seus dias, Judá será salvo e Israel viverá em segurança. Então será este o seu nome: ‘O Senhor-é-nossa-Justiça!’) e sobretudo Ezequiel 34 (estreitamente paralelo ao precedente). Podemos ainda acrescentar Miq.5,1-3 (Mas tu, Belém-Efrata, tão pequena entre as famílias de Judá, é de ti que me há-de sair aquele que governará em Israel. As suas origens remontam aos tempos antigos, aos dias de um passado longínquo. Por isso, Deus abandonará o seu povo até ao tempo em que der à luz aquela que há-de dar à luz, e em que o resto dos seus irmãos há-de voltar para junto dos filhos de Israel. Ele permanecerá firme e apascentará o seu rebanho com a força do Senhor e com a majestade do nome do Senhor, seu Deus. Estarão tranquilos, porque ele será grande até aos confins da terra), invocado por Mt.2,6 (E tu, Belém, terra de Judá, de modo nenhum és a menor entre as principais cidades da Judeia; porque de ti vai sair o Príncipe que há-de apascentar o meu povo de Israel). Em oposição aos maus pastores que têm guiado mal o povo e o têm dispersado, Yahvé assegura que vai suscitar um pastor que o apascentará e será para eles um pastor. «Eu, Yahvé, serei para eles um Deus e o meu servo David um príncipe no meio deles» (Ez.34,23-24, cf. 2Sam.5,2-3: Tempos atrás, quando Saul era nosso rei, eras tu quem dirigia as campanhas de Israel e o Senhor disse-te: ‘Tu apascentarás o meu povo de Israel e serás o seu chefe.’» Vieram, pois, todos os anciãos de Israel ter com o rei a Hebron. David fez com eles uma aliança diante do Senhor, e eles sagraram-no rei de Israel). Todos estes textos têm em comum o facto de eles se referirem ao futuro do povo de Deus. Miqueias e Jeremias referem-se, além disso, explicitamente, ao tema do «resto de Israel». Aplicando a Pedro estas promessas que, em primeiro lugar, lhe diziam respeito, Jesus pretende certamente conferir-lhe um poder real sobre as suas «ovelhas». O próprio Loisy não hesita em dizer que Jesus fez então de Pedro o seu vigário[63].

            No capítulo 10, Jesus dá como prova do «Bom Pastor» o facto de dar a vida pelas suas ovelhas (vv.11 e 15). Ora no capítulo 21, ele prediz a Pedro «o género de morte pelo qual Pedro devia glorificar a Deus» (v.19). Esta última expressão é aquela mesma que o quarto evangelho emprega para designar a morte de Cristo (13,31: Agora é que se revela a glória do Filho do Homem e assim se revela nele a glória de Deus; 17,1: Pai, chegou a hora! Manifesta a glória do teu Filho, de modo que o Filho manifeste a tua glória). A morte de Pedro identificá-lo-á, portanto, com Cristo. Ela acabará por fazer dele um discípulo perfeito e atestará, ao mesmo tempo, que Pedro foi autenticamente um «bom pastor».

            O capítulo 21 mostra, portanto, claramente que Pedro foi instituído «Pastor das ovelhas do Senhor», isto é, dos membros da comunidade messiânica. É possível que os que são «discípulos perfeitos» sejam apresentados como relativamente independentes em relação a Pedro. Mas é assinalável que o discípulo que Jesus amava, mais perfeito na fé e no amor, o deixa entrar em primeiro lugar no sepulcro. O discípulo perfeito, mesmo que não tenha necessidade, em certo sentido, de Pedro, e mesmo que Pedro tenha necessidade, por outro lado, da mediação da sua fé e da sua oração, não lhe reivindica a sua primazia. A sua primazia é de outra ordem. De todas as maneiras, Pedro é chefe da comunidade e é ele também que tem a responsabilidade da missão apostólica.

Recapitulação

Todos os evangelhos concordam em reconhecer a Pedro um lugar à parte entre os discípulos. Mesmo o quarto evangelho não a contesta. Mt.16, Lc.22 e Jo.21 concordam, por outro lado, no facto de Cristo lhe confiar uma missão especial que faz de si o chefe da comunidade. Eles concordam ainda em relacionar esta missão com uma grave falta de Pedro, ou a sua negação, para sublinhar que esta missão não lhe advém em razão das suas qualidades humanas e religiosas, mas unicamente em virtude de uma livre decisão de Cristo, da sua promessa e da sua oração. É pela graça que ele é «pedra», que a sua fé não desfalece e que ele é «pastor». Os textos vetero-testamentários subjacentes a estes três relatos referem-se todos ao tema bíblico do «Resto de Israel» e aos destinados à comunidade messiânica. A missão que Pedro recebe é, portanto, inteiramente ordenada aos destinados a esta comunidade, da qual ele é o chefe.

            Os evangelhos atribuem, portanto, a Pedro o título de «Pedra», de Pastor e fazem com que as Chaves do reino lhe sejam entregues. Ora, como nós já há muito o demonstramos, estes são, no entanto, títulos e prerrogativas messiânicas que remetem propriamente para Jesus Cristo.

            Os dois textos essenciais do AT sobre a «pedra de fundação», Is.28,16 (Vou colocar em Sião uma pedra que vos ponha à prova. Será uma pedra preciosa, angular, bem firme. Aquele que confiar nela não tropeçará) e Sl.118,22 (A pedra que os construtores rejeitaram veio a tornar-se pedra angular), dizem respeito directamente a Moisés e o NT aplica-os a Jesus: Mt.21,42 (Jesus disse-lhes: «Nunca lestes nas Escrituras: A pedra que os construtores rejeitaram transformou-se em pedra angular? Isto é obra do Senhor e é admirável aos nossos olhos?); Act.4,11 (Ele é a pedra que vós, os construtores, desprezastes e que se transformou em pedra angular); 1Ped.2,7 (A honra é, então, para vós, os crentes; mas, para os incrédulos, a pedra que os construtores rejeitaram, esta mesma tornou-se a pedra angular) referindo-se ao Sl.118; 1Ped.2,4-6 (Aproximando-vos dele, pedra viva, rejeitada pelos homens, mas escolhida e preciosa aos olhos de Deus, também vós – como pedras vivas – entrais na construção de um edifício espiritual, em função de um sacerdócio santo, cujo fim é oferecer sacrifícios espirituais agradáveis a Deus, por Jesus Cristo. Por isso se diz na Escritura: Eis que ponho em Sião uma pedra angular, escolhida, preciosa; quem crer nela não será confundido); Ef.2,20 (edificados sobre o alicerce dos Apóstolos e dos Profetas, tendo por pedra angular o próprio Cristo Jesus), referindo-se a Is.28; 1Ped.2,8 (e também uma pedra que faz tropeçar, uma pedra de escândalo. Tropeçam nela porque não creram na palavra; para isso estavam destinados) e Rom.9,32 (Porque não foi pela fé, mas pelas obras, que a procuraram obter. Tropeçaram na pedra de tropeço) aplicam também a Jesus Is.8,14 (Ele será um santuário, mas também a pedra de tropeço, a rocha de precipício para as duas casas de Israel), cujo sentido messiânico é, no entanto, pouco aparente. 1Cor.10,4 (e todos beberam da mesma bebida espiritual; pois bebiam de um rochedo espiritual que os seguia, e esse rochedo era Cristo), retomando implicitamente uma lenda rabínica, segundo a qual a rocha donde Moisés fez sair água acompanhou os Israelitas na sua marcha através do deserto, identifica esta rocha com Cristo. 1Cor.3,11 (pois ninguém pode pôr um alicerce diferente do que já foi posto: Jesus Cristo) assegura ainda que «ninguém pode colocar outro fundamento para além daquele que se encontra aí, a saber: Jesus Cristo».

            Ao mesmo tempo, a posse das Chaves é uma prerrogativa de Cristo: Apoc.1,18 (Estive morto; mas, como vês, estou vivo pelos séculos dos séculos e tenho as chaves da Morte e do Abismo) e sobretudo 3,7: Isto diz o Santo, o Verdadeiro, o que tem a chave de David, o que abre e ninguém fecha e fecha e ninguém abre (cf. ainda 21,25: as suas portas não se fecharão de dia, pois nela não haverá noite). Enfim, já o sublinhamos, o título de Pastor é essencialmente messiânico e o NT aplica-o primeiro a Jesus: Jo.10; Mt.25,32 (Perante Ele, vão reunir-se todos os povos e Ele separará as pessoas umas das outras, como o pastor separa as ovelhas dos cabritos); Mt.26,31: Nesta mesma noite, todos ficareis perturbados por minha causa, porque está escrito: Ferirei o pastor e as ovelhas do rebanho serão dispersas (cf. Jo.16,32: Eis que vem a hora -e já chegou – em que sereis dispersos cada um por seu lado, e me deixareis só, se bem que Eu não esteja só, porque o Pai está comigo), Lc.12,32 (Não temais, pequenino rebanho, porque aprouve ao vosso Pai dar-vos o Reino); Heb.13,20 (O Deus da paz, que ressuscitou dos mortos o grande Pastor das ovelhas, Jesus, Senhor nosso, pelo sangue da Aliança eterna); 1Ped.2,4 (Aproximando-vos dele, pedra viva, rejeitada pelos homens, mas escolhida e preciosa aos olhos de Deus)[64].

            Por outro lado, constatámos que os títulos ou prerrogativas que Pedro recebe são também atribuídos a todos os apóstolos. Pedro é estabelecido «pedra» e fundamento da Igreja. Mas a Escritura diz também que os apóstolos são «fundamentos» da Igreja: Ef.2,20: edificados sobre o alicerce dos Apóstolos e dos Profetas, tendo por pedra angular o próprio Cristo Jesus (em referência a Isaías 28), Apoc.21,14: A muralha da cidade tinha doze alicerces, nos quais estavam gravados doze nomes, os nomes dos doze Apóstolos do Cordeiro. Pedro é o único a receber as Chaves do reino, mas os apóstolos recebem como ele o poder de ligar e desligar (Mt.18,18: Em verdade vos digo: Tudo o que ligardes na Terra será ligado no Céu, e tudo o que desligardes na Terra será desligado no Céu, cf. Jo.20,23: Àqueles a quem perdoardes os pecados, ficarão perdoados; àqueles a quem os retiverdes, ficarão retidos). Eles se sentarão em doze tronos para «julgar» as doze tribos de Israel (Lc.22,30: E haveis de sentar-vos, em tronos, para julgar as doze tribos de Israel). Pedro é pastor, mas outros que não são apóstolos também o são (Act.20,28: Tomai cuidado convosco e com todo o rebanho, de que o Espírito Santo vos constituiu administradores para apascentardes a Igreja de Deus, adquirida por Ele com o seu próprio sangue; 1Ped.5,2: Apascentai o rebanho de Deus que vos foi confiado, governando-o não à força, mas de boa vontade, tal como Deus quer). O sentido de 1Ped.2,25 (Na verdade, éreis como ovelhas desgarradas, mas agora voltastes ao Pastor e Guarda das vossas almas) é incerto. Os versículos que precedem tenderiam a ver aí o pastor, de que Cristo falou, mas como aquele que não recebe nunca o título de «episcope» no NT, é possível que o versículo se refira ao chefe da igreja local. Em Lc.5,10 (Jesus disse a Simão: «Não tenhas receio; de futuro, serás pescador de homens), Cristo prediz a Pedro que ele será «pescador de homens», mas em Mt.4,19 (Disse-lhes: «Vinde comigo e Eu farei de vós pescadores de homens) e Mc.1,17 (E disse-lhes Jesus: «Vinde comigo e farei de vós pescadores de homens) é a todos os companheiros de Pedro que estra predição se dirige.

            Estas constatações obrigam-nos a colocar duas novas questões:

1. Qual é a relação de Pedro e dos apóstolos com Cristo?

2. Qual é a relação os apóstolos com Pedro?

            1. Relação de Pedro e dos Apóstolos com Cristo: É certo que os autores do NT, atribuindo aos apóstolos prerrogativas messiânicas, não pensavam retirar o que quer que seja a Cristo. Paulo que em 1Cor.3,11 afirma que ninguém pode colocar outro fundamento que aquele que se encontra aí, a saber: Jesus Cristo, apresenta em Ef.2,20 os apóstolos como os fundamentos da construção (nos dois casos Paulo usa a palavra θεμέλιος). De modo semelhante 1Ped.5,1-4 (Aos presbíteros que há entre vós, eu – presbítero como eles e que fui testemunha dos padecimentos de Cristo e também participante da glória que se há-de manifestar – dirijo-vos esta exortação: Apascentai o rebanho de Deus que vos foi confiado, governando-o não à força, mas de boa vontade, tal como Deus quer; não por um mesquinho espírito de lucro, mas com zelo; não com um poder autoritário sobre a herança do Senhor, mas como modelos do rebanho. E, quando o supremo Pastor se manifestar, então recebereis a coroa imperecível da glória) apresenta os anciãos como pastores e Cristo como o chefe dos pastores. Estes dois textos parece que sugerem que o NT compreende a relação dos apóstolos com Cristo como uma relação de participação. Cristo permanece de maneira transcendente «pedra do edifício» (1Ped.2,4; Ef.2,20) e Pastor (1Ped.5,4), mas os apóstolos participam destas prerrogativas. É também este tipo de relação que sugere Isaías 28. Com efeito, a expressão «aquele que se apoia sobre ela» deixa entender, de acordo com os diferentes sentidos do verbo ʼaman, que aquele que se apoia nesta pedra recebe dela a solidez e torna-se também capaz de tornar-se por sua vez «pedra» (Cf. Is.7,9 e 2Cron.20,20)[65]. Tal era já a interpretação de Orígenes: «Simão é chamado Pedro, recebendo este nome desta Pedra que é Cristo, a fim de que, como o sábio vem da Sabedoria e o santo vem da Santidade, assim Pedro da Pedra por excelência»[66]. É igualmente a interpretação dos outros Padres da Igreja antiga. Na sequência de uma longa investigação nos Padres mais antigos e nos textos litúrgicos, O. Perler conclui: «O bispo, aos olhos da Igreja antiga, é o prolongamento de Cristo através dos séculos. Ele participa da realeza e do sacerdócio do Messias num título diferente do dos baptizados ou mesmo do dos simples presbíteros»[67]. Embora a formulação dos Padres esteja contaminada pela influência da filosofia helenística, as suas interpretações situam-se, parece-nos, no prolongamento da teologia bíblica[68]. Esta relação de participação implica necessariamente dependência e obediência. É o aspecto que põe em evidência 1Ped.5,4. O mesmo se passa no capítulo 21 do evangelho de São João, é à ordem de Cristo que os discípulos lançam as redes, e o contexto sugere que este relato tem um valor exemplar para todos os tempos até à vinda do Senhor.

            2. Relação dos apóstolos com Pedro: Serão as prerrogativas de Pedro idênticas às dos outros apóstolos ou distinguem-se delas? Sabe-se que Cipriano só quis ver em Pedro apenas o representante de todo o grupo dos apóstolos:

            «De toda a maneira, os outros apóstolos eram também o que foi Pedro, eles beneficiavam de uma participação igual em honra e em poder, mas o começo tem o seu ponto de partida na unidade. Assim é sublinhada a unidade da Igreja de Cristo» (De catholicae Ecclesiae unitate, 4).

            Esta interpretação é ainda retomada hoje por alguns exegetas protestantes[69]. Não é verdade que, nos Evangelhos, Pedro é constantemente o representante e o porta-voz dos outros apóstolos? Todavia, nem Lucas 22, nem João 21 autorizam uma tal interpretação. Lucas e João põem, com efeito, a missão de Pedro em relação com a sua negação e é mesmo possível que João 21 oponha Pedro aos outros apóstolos, como o discípulo menos perfeito em comparação com os discípulos mais perfeitos. É portanto a Pedro, enquanto distinto dos outros apóstolos, que Cristo confere uma missão especial. Mesmo Mateus 16 sugere a mesma conclusão. Como Johannes Ringger o demonstrou, a imagem evocada em aramaico pela palavra Cefas, e o simbolismo que ela parece implicar, obrigam a pensar que Pedro «nicht ein Stein unter anderen ist, sondern bleibend tragender Grund, den Bau der Kirche» [N.T.: não é uma pedra entre outras, mas um fundamento de base consistente, para construir a Igreja][70].

            Além do mais, o capítulo 21 refere-se ao mesmo tempo ao capítulo 10 do mesmo evangelho e, através deste capítulo, a Ezequiel 34, onde se encontra especificado que haverá um só rebanho e um só pastor. O capítulo 22 de Lucas refere-se a Zacarias 3,1-4 (O Senhor mostrou-me depois Josué, o Sumo Sacerdote, que estava de pé diante do anjo do Senhor, enquanto Satanás estava à direita para o acusar. E o anjo do Senhor disse a Satanás: «Que o Senhor te confunda, Satanás, que o Senhor te confunda, Ele que escolheu Jerusalém. Não é este, porventura, um tição tirado do fogo?» Ora Josué vestia roupa suja, quando estava de pé diante do anjo do Senhor. Tomando a palavra, o anjo disse aos que estavam à volta dele: «Tirai-lhe as suas vestes sujas e vesti-lhe roupa sumptuosa) e assemelha, portanto, Pedro a Josué, que certamente representa o resto de Israel, mas na qualidade de sumo-sacerdote e de chefe da comunidade. Ainda em Mateus 16, o versículo 19 refere-se a Isaías 22,22 (Porei sobre os seus ombros a cha­ve do palácio de David: o que ele abrir ninguém fechará, o que ele fechar ninguém abrirá), ora o «administrador do palácio» era o único a ter as chaves e era necessariamente o único na sua função. Se se diz que os apóstolos receberam, depois de Pedro, o poder de ligar e desligar, não se diz que receberam as Chaves. Esta diferença deve ser intencional. Há, no entanto, indícios de que a função de Pedro na comunidade messiânica é conhecida como distinta da dos outros apóstolos. Ele é manifestamente estabelecido como chefe da comunidade.

            Resta, no entanto, que os apóstolos receberam também o poder de ligar e desligar, são fundamentos e, embora nenhum texto o diga deles explicitamente, são pastores. Os evangelhos não especificam, por outro lado, o tipo de relação dos apóstolos com Pedro, mas é legítimo pensar que, embora possuam uma autoridade real e pessoal que lhes advém directamente de Cristo, eles tinham de a exercer sob a direcção de Pedro e com o seu consentimento.

            3. Transmissibilidades destas prerrogativas? Poderia Pedro transmitir a um sucessor as suas prerrogativas? Esta questão é para Cullmann, por exemplo, a questão crucial. Os textos evangélicos, tomados em si mesmos, não afirmam explicitamente a possibilidade de uma semelhante transmissão. Exegetas e teólogos negam-na de facto ou afirmam-na, em nome de uma certa concepção da Igreja e da graça da Nova Aliança, em comparação com a Antiga. Sínteses teológicas diferentes confrontam-se então e é a razão pela qual o debate permaneceu até aos nossos dias pouco frutuoso. Não poderia a Bíblia, no entanto, sugerir-nos uma resposta a esta questão? Por nossa parte, nós acreditamos que sim.

            Já as imagens subjacentes aos diferentes textos que se referem a Pedro, permitem pensar que a sua função era transmissível. Cristo assemelha Pedro ao «administrador do palácio» que, na ausência do rei, se tornava seu vigário, ora este cargo transmitia-se. Da mesma maneira, Pedro é comparado a Josué, não enquanto sumo-sacerdote, mas enquanto chefe da comunidade, ora este cargo era também ele transmissível.

            O NT sugere a mesma interpretação. Nós apresentamos mais acima a interpretação da pesca milagrosa em Jo.21 por Barrett, exegese que reuniu o consenso de quase todos os exegetas. Seja qual for o sentido exacto dos 153 peixes, a pesca deve significar «the full total of the catholic and apostolic Church». Ela abraça portanto a totalidade da missão apostólica, desde a Ressurreição até à vinda do Senhor. Esta pesca apresenta, pois, um valor exemplar. Neste contexto, Pedro que toma o comando da pesca e lança a rede, não é apenas o personagem histórico conhecido com este nome, mas é o tipo daquele que através de todos os tempos tem o comando da missão apostólica. De resto, é difícil uma recusa de ver em Pedro também um «símbolo», quando se reconhece no discípulo que Jesus amava, que lhe é contraposto, o tipo do discípulo perfeito[71]. Todavia, no capítulo 21, certos traços (alusões à negação, ao martírio) só podem aplicar-se a Pedro. O discernimento entre o que tem valor exemplar e o que tem valor individual é delicado. Mas, embora a exegese deste capítulo não permita chegar a uma conclusão absolutamente certa, ela dá-nos um indício que, juntamente com outros, pode levar à convicção.

            Além do mais, os chefes das comunidades locais, desde o tempo dos apóstolos, são chamados «pastores», em termos idênticos aos do AT e aos dos empregados por Jesus ao falar de Pedro (cf. 1Ped.5,2: Apascentai o rebanho de Deus que vos foi confiado, governando-o não à força, mas de boa vontade, tal como Deus quer, fórmula idêntica a Jo.21,16: Jesus disse-lhe: «Apascenta as minhas ovelhas.», e a 2Sam.5,2: Tempos atrás, quando Saul era nosso rei, eras tu quem dirigia as cam­panhas de Israel e o Senhor disse-te: ‘Tu apascentarás o meu povo de Israel e serás o seu chefe.’». Cf. ainda Actos 20,28: Tomai cuidado convosco e com todo o rebanho, de que o Espírito Santo vos constituiu administradores para apascentardes a Igreja de Deus, adquirida por Ele com o seu próprio sangue). Como o assinala justamente o P. Dreyfus, esta identidade de vocabulário sugere que não há no desenrolar do propósito de Deus nenhuma descontinuidade depois da geração dos apóstolos e que houve efectivamente delegação e transmissão de algumas prerrogativas messiânicas[72]. O mesmo se passa com o poder de ligar e desligar que, segundo Mt.18, referindo-se a Deut.17-19, implica principalmente o poder de excluir da comunidade e que é transmitido a outros que não são apóstolos (1Cor.5,12-13: Porventura, compete-me, a mim, julgar os de fora? Não são os de dentro que tendes de julgar? Os de fora, Deus os julgará. Afastai o mau do meio de vós; Tito 3,10: Depois de uma ou duas advertências, afasta-te do sectário; 2Tess.3,14: Se alguém não obedecer à nossa palavra comunicada nesta Carta, a esse assinalai-o, não tenhais contacto com ele para que se envergonhe; Rom.16,17(?): Entretanto, irmãos, exorto-vos a que tenhais cautela com os que provocam divisões e escândalos contra a doutrina que aprendestes; desviai-vos deles; Apoc.2,14-16: Mas tenho algumas coisas contra ti: tens aí alguns que seguem a doutrina daquele Balaão que ensinou Balac a tentar os israelitas, de modo a comerem as carnes imoladas aos ídolos e a praticarem a imoralidade. Mais ainda, também tens alguns que seguem igualmente a doutrina dos nicolaítas. Converte-te, pois; se não, virei ter contigo brevemente e combaterei contra eles com a espada da minha boca). O NT testemunha portanto a transmissão de certas prerrogativas messiânicas e de uma delegação do poder de ligar e desligar. Do ponto de vista do NT, nada impede, portanto, que Pedro tenha podido também ele transmitir algumas das suas prerrogativas. A convergência destes diversos indícios é em todo o caso assinalável.

            Segundo os evangelhos, Pedro recebeu, pois, em virtude de uma livre decisão do Senhor, independentemente das suas qualidades pessoais, uma missão especial em favor da comunidade messiânica, colocando-o em destaque em relação aos outros apóstolos e fazendo-o participar de maneira mais estreita que eles em algumas prerrogativas do Messias. Elas permitiram-lhe ser estabelecido chefe da comunidade e vigário de Cristo. Será este privilégio transmissível? Os evangelhos não respondem directamente e explicitamente a esta questão, mas a convergência de um certo número de indícios sugere uma resposta nitidamente afirmativa.

           

[1] Este artigo reproduz, com alguns desenvolvimentos, o texto de uma conferência havida diante de um grupo de estudantes de teologia da Universidade de Lund.

[2] OSCAR CULLMANN, Saint Pierre. Disciple – Apôtre – Martyr, Paris 1952.

[3] Cf. R. BEAUPÈRE, Dialogue oecuménique autour du «Saint Pierre» de M.O. Cullmann, in Istina 2 (1955), pp. 347-372.

[4] Limitámo-nos a escolher entre as interpretações propostas as que nos pareceram mais válidas. O artigo mais sugestivo lançado depois do São Pedro de Cullmann parece-nos ser o de P. DREYFUS, La primauté de Pierre à la lumière de la théologie biblique du reste d’Israel, in Istina 2 (1955), p. 338-346, que, segundo a nossa impressão, não obteve ainda toda a audiência que merece. Nós o citaremos abundantemente.

[5] Cf. F. GILS, Pierre et la foi au Christ ressuscité, in Ephemerides Theologicae Lovanienses, 38 (1962), pp. 5-43.

[6] H. CONZELMANN, Die Mitte der Zeit, Tubingen 1955, pp. 89-122. Cf. R. SCHNACKENBURG, Die Kiche im Newen Testament, Freiburg (I Brisg.), 1961, pp. 59-60.

[7] Ver o excelente estado da questão estabelecido por Franz OBRIST, Echtheitsfragen und Deutung der Primatsstelle Mt. 16,18 f. in der deutschen protestantischen Theologie der letzten dreissig Jahre, Munster 1961 (com uma bibliografia muito completa).

[8] O. Cullmann tomou e desenvolveu a argumentação que tinha apresentado no seu livro sobre São Pedro no artigo seguinte: «L’apôtre Pierre, instrument du diable e instrument de Dieu; la place de Matt. 16,16-19 dans la tradicion primitive», editado em «New Testaments Essays, Studies in Memory of T.W. Mansos», Manchester 1959, pp. 94-105.

[9] A. VOGTLÉ, Messiasbekenntnis und Petrusverheissung, in Biblische Zeitschrift, 1 (1957), 252-272, 2 (1958), 85-103.

[10] Cf. F.-M. BRAUN, L’apôtre Pierre devant l’exégèse et l’histoire, in Revue Thomiste 53 (1955), pp. 395-397; A. OEPKE, Der Herrnspruch uber die Kirche Mt. 16,17-19 in der neuesten Forschung, in Studia Theologica 2 (1948), pp. 150-155; F. OBRIST, op. cit., pp. 62-63.

[11] Cf. A.-M. Denis, L’investiture de la fonction apostolique par «apocalypse». Etude thématique de Gal. 1,16, in Revue Biblique 64 (1957), pp. 492-515; BIRGER GERHARDSSON, Memory and Manuscript, Uppsala 1961, pp. 265-273.

[12] Cf. Comparação do tópico do «mistério revelado» nos escritos essénios e cristãos, por P. BENOÎT, Qumran et le Nouveau Testament, in New Testament Studies 7 (1960-1961), pp. 290-292.

[13] O. CULLMANN, art. cit., p. 99.

[14] L. CERFAUX, Le Christ dans la théologie de saint Paul, Paris, 1951, pp. 11-12, 59, 330.

[15] Cf. L. CERFAUX, Les sources scripturaires de Mt.11,25-30, in Ephemerides Theologicae Lovanienses 30 (1954), pp. 740-746. Ver também as notas de A. FEUILLET, Thèmes bilbiques dans le chapitre VI de Saint Jean, in Nouvelle Revue Théologique 82 (1960, pp. 936-939.

[16] Cf. S. LÉGASSE, La Révelation aux ΝΗΠΙΟΙ, in Revue Biblique 67 (1960), pp. 321-348.

[17] Cf. ainda A. GELIN, Les pauvres de Yahvé, Paris, 1954, passim.

[18] Cf. HAUCK, art. Makarios, in TWNT, IV, p. 370.

[19] Este parágrafo é inteiramente tributário do artigo de P. Dreyfus, citado na nota 4. A relação entre Mt.16 e Isaías 28 já foi feita por: J.L. KLINK, Het Petrustype in het Nieuwe Testament en de Oudchristelijke Letterkund, Leide, 1947 (cf. F. OBRIST, op. cit, p. 55) e P. BATIFFOL, L’Eglise naissante et le catholicism, Paris, 1927, p. 103.

[20] Cf. O. BETZ, Felsenmann und Felsengeneinde, in Zeitschr. f. Neut Wiss. 88 (1957), pp. 49-77, artigo extremamente sugestivo.

[21] O. BETZ, art. cit., pp. 70-72.

[22] P. DREYFUS, art. cit., p. 341.

[23] Cf. R. LAURENTIN, Traces d’allusions étymologiques em Lc. 1-2, in Biblica 37 (1956), pp. 435-456, 38 (1957), pp. 1-23.

[24] Cf. J.-M. CASANOVICZ, Paronomaria in the O.T., in Journ. Of the Bibl. Lit. 12 (1897), pp. 105-165.

[25] «Quando Deus olhou Abraão, que devia ressuscitar», Ele diz: «Eis que eu encontreu uma rocha sobre a qual eu poderei construir e fundar o mundo. É por isso que Ele nomeou Abraão Rocha» (STRACK-BILLERBECK, t. I, p. 733).

[26] P. BENOÎT, Saint Pierre d’après O. Cullmann, in Exégèse et Théologie, t. II, Paris, 1961, p. 302.

[27] Cf. R. de VAUX, Les Institutions de l’Ancien testatment, t. I, Paris, 1958, pp. 199-200.

[28] A.-M. DUBARLE, La primauté de Pierre dans Mattieu 16,17-19. Quelques références à lAncien Testament, in Istina 2 (1954), pp. 335-338.

[29] Ver ainda as notas interessantes de Rudolf BULTMANN, Die Geschichte der synoptischen Tradition, (3ª éd), Gottingen (1957), p. 147, nota 1.

[30] H. von CAMPENHAUSEN, Kirchliches Amt und Geistliche Vollmacht in den ersten drei Jahrhunderten, Tubinga, 1953, p. 138.

[31] Cf. J. van Camp, La primauté de saint Pierre dans le context évangelique, in Nouvelle Revue Théologique, 73 (1951), pp. 405-408.

[32] Wihelm Vischer, La Loi ou les cinq livres de Moise, Paris, 1949, p. 201.

[33] Estado da questão em: F. OBRIST, op. cit., pp. 24-77. Ver ainda A. OEPKE, art. cit., p. 111-133. Rápida apresentação do problema crítico por A. FEUILLET, em: Introduction à la Bible, t. II, Nouveau testament, Paris, 1959, pp. 807-809.

[34] Ver crítica das objecções em : OEPKE, art. cit., pp. 134-148 e J. BETZ, Die Grundung der Kirche durch den historischen Jesus, in Theologische Quartalschrift, 138 (1958), pp. 152-183.

[35] O. CULMANN, art. cit., p. 101.

[36] Henri CLAVIER, πέτρος καὶ πέτρα, in Neutestamenttliche Studien fur Rudolf Bultmann, 1954, pp. 101-103, e sobretudo J. RINGGER, Das Felsenwort, Zur Sinndeutung von Mat.16,18, vor allem im Lichte der Symbolgeschichte, in ROESLE-CULLMANN, Begegnung der Christen, Frankfurt am Main, 1960, pp. 273-279 (e as notas anexas).

[37] Birger GERHARDSSON, Memory and Manuscript, Uppsala, 1961, pp. 266-270 relaciona os dois textos e concluiu pela prioridade do texto de Mateus: «The decisive argument for this view is that Paul expresses himself in this way when he wishes to show his apostolate to be a parallel to Peter’s accepted apostolate» [N.T.: O argumento decisivo para essa visão é que Paulo se expressa desse jeito quando deseja mostrar o seu apostolado como um paralelo ao apostolado aceito por Pedro](p. 270).

[38] Cf. J. RINGGER, art. cit., p. 321, nota 86. A formula «carne e sangue» é frequente nos textos rabínicos. Em aramaico só a encontramos num sentido análogo num Targum tradio sobre Ester 2,24; B. GERHARDSSON, op. cit., p. 208, nota 1.

[39] Cf. A. SALLE, La diatribe anti-paulinienne dans le «Roman pseudo-clémentin» et l’origine des Kérygmes de Pierre, in Revie Biblique, 64 (1957), pp. 516-551. G. STECKER, Das Judenchristentum in den Pseudo-klementien, Berlim, 1958, pp. 191-194, revelou que a homilia XVII visa Paulo e especialmente Gal. 1-2 mas não discerniu a dualidade das fontes.

[40] W. FOERSTER, Lukas 22,31 f., in Zeitschrift f. die Neut. Wiss., 46 (1955), pp. 129-133 conclui pela autenticidade do logion, todavia por razões que nós não pertilhamos.

[41] De salientar em particular a fórmula «ἐγὼ δέ», em Mt.16.16 e Lc.22,32, que atesta que Jesus tem consciência de agir em virtude do seu poder messiânico, cf. W. MANSON, The ΕΓΩ ΕΙΜΙ of the Messianic Presance in the NT, in Journ. of Theol. Studies, 48 (1947), pp. 137 ss.

[42] Para este parágrafo, como para o seguinte, cf. P. DREYFUS, art. cit., pp. 342-344.

[43] W. GRUNDMANN, Das Evangelium nach Lukas, Berlin 1961, pp. 405-408. Ver aqui uma referência a 2Sam.15,20; esta ligação não nos parece evidente.

[44] Cf. A. FEUILLET, L’épreuve prédite à Marie par Siméon, in A la reencontre de Dieu, Mémorial Albert Gelin, Le Puy, 1961, pp. 252-254.

[45] Segundo diversos exegetas (Cassien, Foerster, etc.), a função dada por Cristo a Pedro não devia prolongar-se no tempo e estava limitada ao dia seguinte à paixão, tendo Cristo usado o imperativo aoristo «στήρισον» e não o imperativo presente. Tal é efectivamente a nuance habitual do aoristo. Parece-nos todavia, em virtude do contexto que o aoristo aqui, como em Lc.13,27 (cf. Mt.7,23), tem em vista sublinhar, o resultado da acção, cf. G. CUENDET, L’imperatif dans le texte grec… des Evangiles, Paris, 1924, p. 53.

[46] C.-H. Dono, The interpretation of the Fourth Gospel, Cambridge 1960, pp. 133-143.

[47] M.-E. BOISMARD, Saint Luc et la redaction du quatrième évangile, in Revue Biblique 69 (1962), p. 202, nota.

[48] Alv KRAGERUD, Der Lieblingsjünger im Johannesevangelium, Oslo, 1959.

[49] Seguimos igualmente em parte M.-E. BOISMARD, Recensão de Kragerud, in Revue Biblique 67 (1960), pp. 405-410.

[50] A. KRAGERUD, op.cit., p. 75.

[51] Cf. M.-E. BOISMARD, art. cit., nota 45, p. 202.

[52] F.-M. BRAUN, Jean le théologien et son évangile dans l’église ancienne, Paris, 1959, pp. 301-330.

[53] M.-E. BOISMARD, Le chapitre XXI de Saint Jean. Essai de critique littéraire, in Révue Biblique 54 (1947), pp. 473-501. Ver ainda J. RINGGER, art. cit. nota 342, pp. 339-344.

[54] Ver artigo citado, nota 46, pp. 185-211.

[55] Ver Julius SCHNIEWIND, Die Paralellperikopen bei Lukas und Johannes, Darmstadt, 1958, pp. 11-16.

[56] C.-K. BARRET, The Gospel according to St John, Londres 1958, p. 484. Cf. E.-C. HOSKYNS, The Fourth Gospel, Londres 1947, pp. 553-556.

[57] HOSKYNS, op. cit., 554 realciona esta opinião com Mt.13,47: «(a rede) que apanha toda espécie sde coisas» (Bíblia de Jerusalém), (ou talvez: peixes de todas as espécies, cf. v.48).

[58] ORÍGENES, Comentário dos Provérbios, VIII, 17 (PG 17, 184 CD)

[59] CASSIEN, Saint Pierre et l’Eglise dans le Nouveau Testament, in Istina 2 (1955) pp. 328-329. Cf. L. BOYER, Le quatrième Evangile, Paris, 1955, p. 234, nota 2.

[60] Cf. P. GAECHTER, Petrus und seine Zeit, Innsbruck, 1958, pp. 12-14; E. RUCKSTUHL, Die literarische Einheit des Johannesevangeliums, Freiburg, (Schweiz), 1951, pp. 146 ss.

[61] C. SPICQ, Agapé, dans le Nouveau Testament. Analyses des textes, III, Paris, 1959, p. 233. C. Spicq é categórico: «Os que lhe dão sinónimos ignoram a semântica do ágape ou minimizam a importância desta cena».

[62] P. GAECHTER, op. cit. pp. 22-30.

[63] A. LOISY, Le quatrième évangile, Paris, 1921, p. 523.

[64] Cf. PER BESKOW, Rex Gloria, Uppsala, 1962, pp. 87-89.

                Bertil GAERTNER mostrou, de acordo com o Targum sobre Isaías 28,16 que a identificação Messias – Pedro era já conhecida do judaísmo (Talia als Messiasbezeichnung, in Svenk Exegetisk Arsbok, 1953-1954, pp. 98-108.

[65] Cf. P. DREYFUS, art. cit., p. 341, M.-E. BOISMARD, Du baptême à Cana, Paris, 1956, p. 87.

[66] ORÍGENES, Comentário sobre São João, citado por BOISMARD, op. cit. p. 86.

[67] O. Perler, L´evêque représentant du Christ selon les documents des premiers siècles, in L´Episcopat  et l’Eglise Universelle, (coll. Unam Sanctam, 39), Paris, 1962, pp. 31-66.

[68] A. FRIDRICHSEN prefere falar de «representação» (Messias och Kyrkan: En bok om Kyrkan, Lund, 1945, p. 30) e de facto esta noção parece tornar adequadamente a realidade do cargo de Pedro. O mestre do palácio  era vigário do rei  e seu representante. O mesmo se passa no capítulo 21 de São João, Pedro parece ser instituído «vigário» de Jesus, como o notava Loisy.

[69] Cf. F. OBRIST, op. cit., p. 151-153.

[70] J. RINGGER, art. cit., p. 309 (ver também pp. 273-285).  – O P. BENOIT escreve a mesma coisa: «A Rocha única (no singular) não é idêntica ao fundamento (Ef.2,20) ou aos fundamentos (Apoc.21,14) que são os apóstolos: se é permitido contrair a imagem, devemos sonhar com um solo rochoso sobre o qual os fundamentos são colocados e que assegura a sua estabilidade» (Exégèse et Théologie, t. II, Paris, 1961, pp. 301-302).

[71] Foi o que viu acertadamente Alv Kragerud (pp. 58-59), que no entanto recusa tirar daí consequências.

[72] P. DREYFUS, art. cit., p. 345.

 

 

 

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