Sexta-feira, Novembro 15, 2024

Estudioso adventista reconhece o primado da igreja de Roma no séc. II

O PRIMADO DA IGREJA DE ROMA

No curso de nossa investigação, várias indicações emergiram que apontam à igreja de Roma como a principal responsável pelas inovações litúrgicas, tais como o domingo de páscoa, o culto semanal do domingo e o jejum no sábado. Contudo, poder-se-ia levantar a questão: a igreja de Roma no segundo século já exercia suficiente autoridade por intermédio de seu bispo, para influenciar a maior parte da cristandade em aceitar novas festividades? Para responder a esta pergunta é necessário verificar o status que desfrutava, particularmente no segundo século.

O processo de afirmação da primazia do bispo e da igreja de Roma na igreja primitiva é difícil de se traçar, primeiramente porque as fontes disponíveis relatam fatos ou eventos mas não definem a autoridade jurisdicional exercida naquela época pela igreja de Roma. Contudo, a história ensina que autoridade das Sés Metropolitanas foi definida não antes, mas depois de seu real estabelecimento[1]. Para o propósito de nosso estudo, não faremos tentativa alguma de definir a natureza ou extensão da autoridade jurisdicional da igreja romana, simplesmente descreveremos o que parece ser o status quo da situação no segundo século.

Por volta do ano 95 A.D., Clemente, Bispo de Roma, escreveu uma carta à Igreja de Corinto para terminar com uma discórdia que havia irrompido dentro da Igreja e que havia resultado na deposição dos presbíteros (cap. 47). O prestígio da igreja romana nesse caso está implícito no tom resoluto e, em alguns casos, mesmo ameaçador da carta que espera obediência (conforme capítulos 47:1-2; 59:1-2)[2]. Como faz notar J. Lebreton: “Roma estava consciente de sua autoridade, e da responsabilidade que isto envolvia; Corinto também o reconheceu e curvou-se a ela. Batiffol descreveu esta intervenção como a ‘Epifania da Primazia romana’ e ele está certo”[3].

O fato de que a carta foi altamente respeitada e lida regularmente não somente em Corinto, mas em outras igrejas também, tanto assim que passou a ser considerada por alguns como inspirada, deixa implícita, como Karl Baus diz, “a existência na consciência de cristãos não romanos de uma estima da igreja romana como tal, o que está próximo de reconhecer-lhe uma superioridade de posição”[4].

Inácio, alguns anos depois (cerca de 110-117 A.D.) em sua Carta aos Romanos, de igual modo atribui epítetos respeitosos, honrosos e servis incomuns à igreja de Roma (conforme Prólogo). Enquanto em suas Epístolas às outras Igrejas Inácio admoesta e adverte os membros, em sua Carta dos Romanos ele expressa somente pedidos respeitosos. A veneração singular do bispo de Antioquia pela igreja romana é evidente quando diz: “A ninguém jamais invejaste; ensinastes a outros. O que desejo é que aquilo que aconselhas e ordenas possa sempre ser praticado” (Romanos 3:1). Em seu prólogo, Inácio descreve a igreja de Roma como sendo “digna de Deus, digna de honra, digna de felicitações, digna de louvor, digna de sucesso, dignamente pura e preeminente em amor”. Em sua recomendação final ele pede: “Lembrai-vos, em vossas orações, da igreja da Síria, a qual tem Deus como seu pastor em meu lugar. O próprio Jesus Cristo a administrará, juntamente com vosso amor” (Romanos 9:11). Embora estas declarações não definam o real poder jurisdicional exercido pela Igreja de Roma, eles indicam, todavia, que Inácio, no início do segundo século, atribuía a ela superioridade em prestígio e honra.

Irineu, bispo de Lyons (desde 178 A.D.), a quem já conhecemos como pacificador na controvérsia da Páscoa, em seu livro Contra Heresias (composto sob o pontificado do Papa Eleutero 175-189 A.D.), descreve a igreja de Roma como “a grandíssima, a antiqüíssima e universalmente conhecida igreja, fundada e organizada em Roma pelos dois apóstolos mais gloriosos: Pedro e Paulo”.[5] Então, declara categoricamente: “Pois que é uma necessidade que toda a Igreja concorde com esta igreja, em virtude de sua preeminente autoridade (potentior principalitas) isto é, os fiéis de toda parte”[6]. O alto respeito de Irineu pelo ofício e autoridade do bispo de Roma é melhor exemplificado na missiva ao Bispo Eleutero (175-189 A.D.) procurando solicitar sua intervenção na heresia Montanista, a qual estava perturbando a paz das igrejas de Gaul, bem como em sua carta ao Bispo Vitor (189-199 A.D.) a respeito do problema de a Páscoa ser comemorada no dia 14 de Nisã conforte a páscoa hebraica[7]. No último exemplo, é digno de nota que embora Irineu protestasse contra a excomunhão dos asiáticos feita por Victor, como P. Batiffol adequadamente observa, “ele não sonhou em questionar o poder de Vitor em pronunciar a excomunhão”[8].

O bispo de Roma demonstrou sua autoridade não sobrepujada ao impor a páscoa romana. Bispos asiáticos, tais como Policarpo e Polícrates, embora recusassem aceitar o costume romano, reconheceram, todavia, o pedido dos bispos romanos; o primeiro sentiu a obrigação de ir, em 154 A.D., pessoalmente a Aniceto de Roma para acertar a questão da Páscoa e outros assuntos; o segundo aquiesceu com a ordem de Vitor de convocar um concílio. “Poderia mencionar os bispos que estão presentes,” Polícrates escreveu-lhe por volta de 196 A.D. “aqueles a quem pediste-me que convocasse e eu o fiz[9].

Quando notificados da recusa dos bispos asiáticos em aceitar o Domingo de Páscoa, Vitor drasticamente “declarou completamente excomungados a todos os irmãos ali”[10]. Esta é talvez, a mais explícita evidência da autoridade do bispo romano de impor um novo costume, e até mesmo de cortar da comunhão da Igreja toda uma comunidade dissidente. P. Batiffol apropriadamente comenta quanto a esta questão que “É somente a Roma que Éfeso responde e resiste. Vemos a autoridade que Roma exerce nesse conflito. Renan apropriadamente disse, em referência a este caso: ‘O papado nasceu, e muito bem nascido’”[11].

A autoridade incontestada exercida pela igreja de Roma por intermédio de seu bispo, poderia ainda ser evidenciada por exemplos posteriores, tais como: a excomunhão pelo papa Vitor do monarca Teodoto; a declaração de Tertuliano de que da igreja de Roma “veio às nossas mãos a mesma autoridade dos próprios apóstolos”[12]; a excomunhão por Calisto (217-222 A.D.) do herege Sabélio; a reabilitação de Basilides de Emerita feita pelo Papa Estevão (245-247 A.D.), apesar de sua deposição por Cipriano; o pedido de Cipriano ao Papa Estevão para depor Marcion de Arles, um convicto seguidor de Novaciano. Outras indicações poderiam ser adicionadas, tais como a designação da igreja de Roma como a “Cadeira de Pedro-Cathedra Petri” pelo fragmento Muratoriano, por Cipriano e Firmiliano da Cesaréia; o papel desempenhado pelo papa na questão do batismo por erro, bem como de herético[13]; a introdução e imposição pela igreja de Roma da data 25 de dezembro para a celebração do Natal[14].

À luz destas indicações, a igreja de Roma parece ter emergido a uma posição de preeminência já no segundo século. O pontífice romano era, de fato, a única autoridade eclesiástica amplamente reconhecida e capaz de influenciar a maior parte da cristandade (muito embora algumas igrejas rejeitassem suas instruções) a aceitar novos costumes ou observâncias.


[1] Um exemplo adequado é fornecido pelo crescimento da autoridade patriarcal do bispo de Constantinopla. No Concílio ocorrido naquela cidade em 381 A.D., foi-lhe dada preeminência honorária depois do bispo de Roma, e em 451, apesar das objeções do papa, poderes patriarcais foram formalmente conferidos a ele (Canon 28). Conforme Dictionnaire de théologie catholique (1908), S.V. Constantinople por S. Vailhé.

[2] Clemente diz, por exemplo: “se alguém desobedecer o que foi dito por ele (isto é, Cristo) por intermédio de nós, que saibam que se envolverão com transgressão ou perigo em nada leves” (59: 1- 2, trad. por E. Goodspeed, The Apostolic Fathers, 1950, p. 78), Irineu reconhece a autoridade de Clemente quando escreve: “No tempo deste Clemente . . . a Igreja de Roma despachou uma poderosíssima carta aos Coríntios” (Adversus haereses 3, 3, 3, ANF I, p. 416).

[3] J. Lebreton e J. Zeiller (nota 10), p. 613.

[4] Karl Baus, From the Apostolic Community Constantine, 1965, p. 152.

[5] Irinaeus, Adversus Haereses 3, 3, 1, ANF I, p. 415.

[6] Loc. Cit.

[7] Sobre a missão de Irineu com respeito à heresia montanista, ver Eusebius, HE 5, 3, 4 e 5, 4, 1; sobre sua intervenção na controvérsia da Páscoa, ver Eusebius, HE 5, 24, 12-18.

[8] P. Batiffol (nota 6), p. 227, escreve concernente à excomunhão que o bispo Vitor pronunciou contra Polícrates: “O bispo de Roma condena sua observância da Páscoa como costume que é contra o Canon da fé Apostólica, e os corta, não da comunhão romana, mas da católica. Está ciente então, de que tal sentença de sua parte é legítima. Irineu protesta contra a excomunhão dos asiáticos, é verdade, mas não sonha em questionar o poder de Vitor para pronunciar esta excomunhão”

[9] Eusebius, HE 5, 24, 8 (grifo nosso).

[10] Eusebius, HE 5, 24, 9 NPNF 2ª I, p. 262. Alguns argumentam que Eusébio realmente não diz que Vitor excomungou as igrejas asiáticas. É difícil, contudo, entender as palavras de Eusébio significando outra coisa que não ter realmente rompido a comunhão com elas. Isto é também o que Socrates diz em sua Historia Ecclesiastica 5, 22.

[11] P. Batiffol (nota 6), p. 225.

[12] Para uma discussão concisa destes vários episódios históricos expressando o conhecimento de uma preeminente posição da igreja romana, ver Karl Baus (nota 119), pp. 355-360; conforme Giuseppe D’Ercole, Communio Collegialità-Primato e solicitudo omnium ecclesiarum dai Vangeli a Costantino, 1964, pp, 157-205, que fornece também uma extensa bibliografia; Jean Colson, L’Épiscopat catholique, 1963.

[13] O papel da igreja de roma na adoção do 25 de dezembro como a data para a celebração do Natal é discutida na nota da pg. 256-61.

[14] O. Cullmann, Early Christian Worship, 1666, p. 10.

FONTE
BACCHIOCCHI, Samuele. DO SÁBADO PARA O DOMINGO Uma Investigação do Surgimento da Observância do Domingo no Cristianismo Primitivo, 1997, pp. 113-114.

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