Sábado, Setembro 28, 2024

O Novo Testamento nos mostra como o AT protestante é incompleto.

O cânon bíblico protestante, que compreende 66 livros, é frequentemente objeto de debate devido à ausência de textos que fazem parte do cânon das escrituras em outras tradições cristãs, como a católica e a ortodoxa. Essa exclusão resulta em uma incompletude perceptível, especialmente quando se considera que vários relatos e referências do Novo Testamento encontram suas raízes ou explicações em livros que não estão presentes no cânon protestante. Aqui estão alguns exemplos que ilustram essa questão:

A MORTE DE JUDAS


O Novo Testamento apresenta duas versões diferentes sobre a morte de Judas Iscariotes. Em Mateus 27:3-10, Judas se enforca após trair Jesus. No entanto, em Atos 1:18, é mencionado que ele caiu de cabeça para baixo e se arrebentou ao meio. Estaria a bíblia se contradizendo?

Alguns protestantes chegam a tentar explicar essa aparente discrepância dizendo que ele se enforcou num penhasco depois caiu e se partiu ao meio, ou mesmo que se partiu ao meio por seu corpo ter apodrecido após se enforcar, tais explicações carecem de base nos próprios textos que mencionam cenários totalmente diferentes. Então como solucionar estas diferenças?

Essas duas versões da morte de Judas são justamente as mortes que estão relatadas no Antigo Testamento: uma delas no livro da Sabedoria e outra no livro de II Samuel. O autor do primeiro Evangelho e o do livro de Atos os quais conhecemos pela Tradição como Mateus e Lucas, respectivamente, relendo à luz da sua Fé as Escrituras, procuraram, de algum modo, mostrar que a morte de Judas fora análoga a mortes do Antigo Testamento.

O Homem desesperado:

E Judas, atirando para o templo as moedas de prata, retirou-se e foi-se enforcar.” (Mateus 27, 5).

Esse foi o homem que morreu em II Samuel:

Vendo Aitofel que se não tinha seguido o seu conselho, albardou o jumento, e levantou-se, e foi para sua casa […], se enforcou e morreu” (II Samuel 17, 23).

O Homem ímpio:

Ora, este adquiriu um campo com o galardão da iniquidade; e, precipitando-se, rebentou pelo meio, e todas as suas entranhas se derramaram.” (Atos 1, 18).

Isso foi previsto no livro da Sabedoria:

Em breve os ímpios tornar-se-ão cadáver sem honra, objeto de opróbrio para sempre entre os mortos: o Senhor os precipitará de cabeça para baixo, sem que digam palavra, e os arrancará de seus fundamentos. Serão completamente destruídos, estarão na dor e sua memória perecerá.” (Sabedoria 4, 19).

Além dessa comparação clara, temos a prova linguística que Lucas estava usando o livro da Sabedoria, pois a palavra usada para mostrar a queda de Judas em Atos 1, 18 é πρηνὴς (pronés) que indica justamente uma pessoa que é jogada ou se joga de cabeça para baixo. Essa é a mesma palavra já usada no livro da Sabedoria na Septuaginta para designar o mesmo tipo de morte:

Οὗτος μὲν οὖν ἐκτήσατο χωρίον ἐκ μισθοῦ τῆς ἀδικίας, καὶ πρηνὴς γενόμενος ἐλάκησεν μέσος, καὶ ἐξεχύθη πάντα τὰ σπλάγχνα αὐτοῦ.” (Atos 1, 18).

καὶ ἔσονται μετὰ τοῦτο εἰς πτῶμα ἄτιμον καὶ εἰς ὕβριν ἐν νεκροῖς δι᾽ αἰῶνος ὅτι ῥήξει αὐτοὺς ἀφώνους πρηνεῖς καὶ σαλεύσει αὐτοὺς ἐκ θεμελίων καὶ ἕως ἐσχάτου χερσωθήσονται καὶ ἔσονται ἐν ὀδύνῃ καὶ ἡ μνήμη αὐτῶν ἀπολεῖται.” (Sabedoria 4, 19).

Diferencia-se somente a declinação da mesma palavra, por causa da posição e função dela na frase.

Evidentemente, a explicação da morte de Judas é um problema para os protestantes, mas para o católico que possui todos os livros inspirados e completos, essa morte, aparentemente contraditória, torna-se um belo exemplo de como Deus age para com os inimigos dos seus filhos.

PENTECOSTES

É constatada no Pentateuco a instituição da festa das semanas, que é a festa da colheita. Essa festa, muito importante para os judeus, foi criada para comemorar a boa colheita de Israel e foi instituída por Moisés. No Novo Testamento, o nome “festas das semanas” já não é mais utilizado para essa festa e encontramo-la como “pentecostes” em Atos 2, 1 e também em I Cor 16, 8). O nome “pentecostes” não é o nome próprio dessa segunda festa do antigo calendário bíblico do Antigo Testamento (Ex 23.14-17; 34.18-23). “Pentecostes” é um nome grego que significa 50 dias. Então, de onde veio esse nome? Foi um nome dado ao acaso? Não. Esse nome veio justamente dos livros de Tobias e II Macabeus, que seguem:

Tobias:

Durante o reinado de Assaradon, voltei para minha casa, e minha mulher Ana e meu filho Tobias me foram restituídos. Em Pentecostes, que é uma festa nossa, a santa festa das Semanas, foi-me preparado um bom almoço. Reclinei-me para comer” (Tobias 2, 1).

E em II Macabeus:

Passada a festa de Pentecostes, foram contra Górgias, chefe militar da Idumeia.” (II Macabeus 12, 33)

No livro de Atos é lido: “Chegando o dia de Pentecostes, estavam todos reunidos no mesmo lugar.” (Atos 2, 1). No grego, tanto em Tobias quanto em Atos, é utilizada a palavra Πεντηκοστῆς (pentecostes). Portanto, os apóstolos herdaram essa nominação da festa justamente do livro de Tobias e II Macabeus e não dos demais livros do Pentateuco, provando assim a utilização deste livro pelos apóstolos.

OS MÁRTIRES MACABEUS

No livro de Hebreus, especialmente no capitulo 11, o autor traz vários testemunhos de bravura e de amor a Deus que estão escritos no Antigo Testamento. Ele cita, ordenadamente, os seguintes personagens: Abel, que ofereceu a Deus maior sacrifício do que Caim (v.4); Enoque, que foi transladado porque agradou a Deus (v.5); Noé, que preparou a arca e foi feito herdeiro da justiça. (v.7); Sara, que recebeu a virtude de engravidar já velha (v. 11); Abraão, que ofereceu a Isaque, quando foi provado. (v. 17); Isaque, que abençoou Jacó e Esaú, em prol das coisas futuras. (v. 20); Jacó (v. 21); José (v. 22); Moisés, que guiou o povo de Deus no deserto (v. 23); Raabe, a meretriz, que acolheu os espias. (v. 31); Gideão, Baraque, Sansão, Jefté, Davi, Samuel e os profetas. (v. 32). Todos esses personagens retirados do Antigo Testamento deram testemunhos de fé. No versículo 35 há uma citação peculiar:

Algumas mulheres reencontraram os seus mortos pela ressurreição. Outros foram esquartejados, recusaram o resgate para chegar a uma ressurreição melhor”.

Temos aqui 2 relatos, primeiro de mulheres que encontraram seus mortos pela ressurreição, segundo pessoas que foram esquartejadas a espera da ressurreição.

Mas quem seriam as mulheres da primeira frase? A resposta é simples, as mulheres que receberam seus mortos pela ressurreição são: a viúva de Sarepta, cujo filho foi ressuscitado pela intercessão do profeta Elias (I Reis 17,17-23) e a sunanita, cujo filho foi ressuscitado pela intercessão de Eliseu (2 Reis 4,8-37). Trata-se, porém, de dois casos em que não houve tortura, no entanto, o resto do versículo menciona atos de violência contra algumas outras pessoas.

Até aqui, todos os testemunhos vistos deste capítulo de Hebreus, são encontrados nas Escrituras. Até ai tudo bem, mas e as pessoas da segunda frase, onde se encontra no Antigo Testamento alguém morrendo torturado na esperança de uma ressurreição melhor? Se isso for perguntado para alguém que rejeite os livros deuterocanônicos, ele poderá revirar todo o seu Antigo Testamento que não encontrará nada. Por que? Porque este testemunho só se encontra no livro de II Macabeus onde Eleazar um idoso foi torturado até a morte por não negar a sua fé na esperança de uma ressurreição melhor, e também uma mãe com seus 7 filhos. Em II Macabeus está escrito:

Tendo morrido também este, começaram a torturar da mesma forma o quarto. Estando para morrer, ele falou: ‘É melhor para nós, entregues à morte pelos homens, esperar, da parte de Deus, que seremos ressuscitados por Ele. Para ti, porém, ó rei, não haverá ressurreição para a vida!” (II Macabeus 7, 13-14 ss).

Claramente está escrito no livro de II Macabeus o que é citado pelo autor de Hebreus. Depois dos inúmeros testemunhos citados e extraídos do Antigo Testamento, o autor de Hebreus iria citar uma obra “apócrifa”? Se o livro de II Macabeus fosse uma obra humana, o autor iria relatar algo dele em meio a todos os testemunhos de obras inspiradas? Ousaria ele fazer uma livre combinação entre os livros, caso não admitisse o caráter inspirado de qualquer um dos registros? E o pior, fazer a associação de trechos extraídos de livros canônicos com um trecho pertencente a uma obra de inspiração puramente humana?

A exclusão dos livros de Macabeus do cânon protestante deixa um vazio na compreensão da profundidade e do contexto histórico dessas referências no Novo Testamento.

FESTA DA DEDICAÇÃO


No evangelho de João lemos o seguinte relato:

Em Jerusalém celebrava-se a festa da Dedicação. Era inverno. Jesus andava pelo templo, no pórtico de Salomão.” (João 10, 22-23)

Se um protestante for desafiado a mostrar, em seu cânon do Antigo Testamento, onde está a instituição da festa mencionada por João, ele pode percorrer desde Gênesis até Apocalipse e não encontrará absolutamente nada a respeito. Então, onde está essa menção? Seria esta uma referência a uma festa sobre a qual o Antigo Testamento se mantém em silêncio?

Todas as festas comemoradas em Israel são instituídas em um livro do Antigo Testamento e por uma causa.

Purim (Sortes) – Ester 9, 22;

Páscoa – Ex 12, 6-7;

Hamut, Pães Asmos – Lv 23, 6-8;

Primícias – Lv 23, 9-14;

Festa das Semanas (Pentecostes) – Lv 23, 15 – 21;

Festa das Trombetas – Lv 23, 23-25;

Dia da Expiação, Dia do perdão – Lv 23, 26-32;

Festa de Tabernáculos, festa das cabanas – Lv 23, 33 – 44;

Festa da Dedicação -?

Essas são todas as festas de Israel. Então, onde é referenciada essa festa da dedicação?

A festa da Dedicação só é encontrada em I Macabeus:

Então, Judas e seus irmãos, e toda a assembleia de Israel, determinaram que os dias da dedicação do altar fossem anualmente celebrados, no seu devido tempo, pelo espaço de oito dias, a partir do dia vinte e cinco do mês de Casleu, com júbilo e alegria.” (I Macabeus 4, 59).

O mês Casleu é justamente no inverno do qual João fala. A festa da dedicação foi instituída por Judas Macabeus e seus irmãos para celebrar a recuperação de Jerusalém e do Templo. O Templo foi limpo, um novo altar foi construído no lugar daquele que havia sido profanado e novos objetos sagrados foram feitos. Quando o fogo foi devidamente renovado sobre o altar e as lâmpadas dos candelabros foram acesas, a dedicação do altar foi celebrada por oito dias entre sacrifícios e músicas (I Macabeus 4, 36).

Novamente mais um relato da história do povo judaico mencionado pelos autores do novo testamento que não podem ser compreendidos usando o cânon protestante.

JUDITE E O EXTERMINADOR DOS ISRAELITAS


Nem tentemos o Senhor, como alguns deles o tentaram, e pereceram mordidos pelas serpentes. Nem murmureis como murmuraram alguns deles, e foram mortos pelo exterminador. Todas estas desgraças lhes aconteceram para nosso exemplo; foram escritas para advertência nossa, para nós que tocamos o final dos tempos. Portanto, quem pensa estar de pé veja que não caia.” (I Cor 10, 10-12).

Aqui, Paulo está falando sobre os hebreus e Moisés na saída do Egito, quando foram mordidos pelas serpentes, o que é elucidado nos versículos anteriores a esses aqui citados. Deve-se notar que Paulo diz que eles murmuraram e “foram mortos pelo exterminador”. Ora, em nenhum lugar do Pentateuco é mencionado que eles “foram mortos pelo exterminador”. Então, de onde Paulo tirou isso? Qualquer protestante pode procurar em sua Bíblia de Gênesis ao profeta Malaquias que não irá encontrar nada a respeito da morte dos hebreus pelo tal “exterminador” quando murmuraram, pois isso só pode ser encontrado no livro de Judite. Vejamos:

Assim Isaac, assim Jacó, assim Moisés, e todos os que agradaram a Deus permaneceram fiéis apesar das muitas tribulações. Aqueles, porém, que não aceitaram essas provações no temor ao Senhor e se impacientaram, murmurando contra ele, foram feridos pelo Exterminador e pereceram pelas serpentes. Por isso não nos irritemos por causa do que sofremos.” (Judite 8, 23-26).

O exterminador era o anjo de Deus o qual era responsável por cumprir a ira de Deus sobre seu próprio povo ou sobre seus inimigos, vamos encontrar também ele com esse mesmo nome no livro da sabedoria:

Diante destas coisas cedeu o exterminador e foi diante destas coisas que retrocedeu: porque a simples demonstração de vossa ira era suficiente.” (Sabedoria 18,25)

Fica claro aqui que Paulo extraiu esse relato do livro de Judite. Ousaria Paulo acrescentar algo à história de Moisés, se isso não fosse inspirado? Paulo iria extrair relatos sobre a história dos hebreus de um livro que não fosse inspirado acrescentando ao relato bíblico um conto de uma obra puramente humana? Nota-se, portanto, que Paulo usava o livro de Judite e Sabedoria, livremente como qualquer outro livro do Antigo Testamento, extraindo dele discursos, provas históricas e recomendações.

CONCLUSÃO


Protestantes podem até tentar argumentar dizendo que a Epístola de Judas menciona uma profecia presente no livro de Enoque e que não consideramos este livro inspirado por esse motivo, o que é bem interessante especialmente vindo daqueles mesmos que diziam que os livros deuterocanônicos não eram usados pelos apóstolos nem por Jesus. Porém, diferentemente de uma citação isolada de um livro qualquer, que é um ponto fora da curva, contatamos dezenas de citações dos apóstolos aos livros deuterocanônicos, também paralelos sintáticos e semânticos, além da compreensão de pontos-chave da história dos judeus, como os que mostramos neste texto, sendo assim nem de longe pode se comparar ou querer refutar tais referencias e usos com uma simples menção de um texto isolado.

Outra coisa que podemos notar também é que o livro de Judas refuta a principal base do protestantismo a “Sola Scriptura”. Uma vez que Judas está usando um livro que não era inspirado, ou pelo menos citando uma profecia da tradição popular, vemos que o conceito de “somente as escrituras” era ignorado pelo apóstolo, pois fazia uso de profecias que sequer estavam nas escrituras.  

Assim, a ausência dos livros deuterocanônicos no cânon protestante resulta em uma percepção incompleta da totalidade das escrituras e das referências do Novo Testamento. Esses livros fornecem contexto histórico, teológico e cultural que enriquecem a compreensão das escrituras cristãs.

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