Segunda-feira, Dezembro 30, 2024

O ISLAMISMO – Por Abdul Saleeb

INTRODUÇÃO


Eu iria postar esse texto seguido de alguns comentários meus sobre o assunto, principalmente sobre as incoerências do Islã e dos apologistas muçulmanos, porém percebi que iriam ser grandes demais. Por este motivo, resolvi elaborar melhor e fazer como postagem separada. Não sei quando estarão prontos.

Mas segue aí uma boa introdução ao assunto, escrita por Abdul Saleeb.


Caso alguém se interesse, nesse link há o testemunho de sua conversão: http://www.answering-islam.org/portugues/testemunhos/abdul.html


Após a leitura, qualquer um chegará a seguinte conclusão: as criticas islâmicas ao cristianismo na sua maioria são baseadas em um desconhecimento do ensino da Igreja. Ou seja, se critica um espantalho. A pergunta que fica é a seguinte: é possível dar credibilidade a criticas relacionadas a algo que não se conhece de fato? Isso é visto em praticamente todos textos apologéticos de muçulmanos que tentam mostrar a “incoerência” do ensino cristão, até mesmo por quem diz que já foi cristão uma vez.

Vivemos na realidade do mundo após 11 de Setembro e estamos todos familiarizados com o desafio do islamismo, especialmente em relação às ameaças sociopolíticas que enfrentamos de modo regular das mais radicais facções muçulmanas ao redor do mundo. Livros sobre o islmismo, em especial nos círculos evangélicos, inundam o mercado dos últimos anos. Muitos desses livros foram escritos com ênfase unilateral sobre os aspectos negativos do islamismo, mantendo um foco específico nos temas de violência na história e na escritura muçulmanas.

Muito embora as multifacetadas ameaças políticas, sociais, econômicas e até mesmo militares do islamismo sejam perigos reais e presentes (um fato, com freqüência, ignorado nos livros escritos por muçulmanos e autores não-cristãos), o mais significativo desafio islâmico com relação à fé cristã tem a ver muito mais com a teologia islâmica que com qualquer outra área no mundo muçulmano. É na teologia islâmica que encontramos a fonte da oposição muçulmana fundamentalista ao cristianismo. A não ser que entendamos em que os muçulmanos acreditam, como tais crenças se opõem às afirmações da fé cristã e como responder aos ataques contra o cristianismo não seremos bem-sucedidos em nossa tentativa de compreender o islamismo ou dar aos muçulmanos uma resposta cristã apropriada.

Neste capítulo, nosso propósito é focar as diferenças doutrinárias mais significativas entre o islamismo e o cristianismo. Após uma breve pesquisa na teologia islâmica demonstraremos como o islamismo desafia cada doutrina fundamental da fé cristã e como nós, cristãos, podemos responder seus ataques.

OS PRINCÍPIOS DA TEOLOGIA ISLÂMICA

A teologia islâmica é baseada em cinco artigos de fé. [1] A significância desses artigos reflete-se em passagens do Alcorão como a sura 2.177: “Piedoso é aquele que crê em Deus e no último dia e nos anjos e no Livro e nos Profetas”, ou a sura 4.136: “Quem renega Deus e Seus anjos e Seus Livros e Seus Mensageiros e o último dia vai muito longe no erro”.

A unicidade de Deus. A primeira, e de longe, a mais importante crença está na absoluta singularidade de Deus. “Não pode haver dúvidas”, escreveu Isma’il AL-Faruqui (1921-1986), um dos mais proeminentes pensadores muçulmanos do Ocidente, “que a essência do Islã é AL tawhid, o ato de afirmar Alá como o único, o Absoluto, transcendente Criador, o Senhor e Mestre de tudo o que há”. [2] Outro conhecido intelectual muçulmano dos Estados Unidos, Seyyed Hossein Nasr, também escreveu: “No coração do Islã, permanece a realidade de Deus, o único, o Absoluto e o Infinito, o Infinitamente Bom e Todo misericordioso”.[3] A unicidade absoluta e a soberania de Alá é o tema unificador do islamismo. De fato, ao longo de toda história islâmica, os muçulmanos têm visto sua confissão de fé “Não há Deus exceto Alá, e Maomé é o seu profeta” como um resumo adequado o islamismo e de seu significado. O Alcorão está repleto de passagens que instam os leitores a abandonar as crenças pagãs e politeístas e converterem-se com fé e submissão à soberania do único Deus verdadeiro.

Mensageiros de Deus. Embora os seres humanos não sejam decaídos ou pecaminosos por natureza, eles são dotados de uma predisposição de se desviarem do caminho da verdadeira adoração. Portanto, Deus, ao longo da história, tem enviado profetas e mensageiros a todos os grupos de pessoas a fim de ensinarem e guiarem a humanidade em direção ao caminho reto. O Alcorão menciona aproximadamente 25 nomes proféticos, porém, de acordo com a tradição islâmica, Deus enviou 124 mil mensageiros a todas as culturas e línguas da humanidade. Todos os profetas têm transmitido a mensagem essencial do islamismo ou de submissão a Deus e, portanto, são dignos de respeito. Como o Alcorão declara na sura 2.136, os muçulmanos devem reconhecer que “cremos em Deus e no que nos foi revelado, e no que foi revelado a Abraão e a Ismael e a Isaac e a Jacó e às tribos, e no que foi outorgado a Moisés e a Jesus e aos profetas pelo seu Senhor. Não fazemos distinção entre eles, e a Ele nos submetemos” (cf. sura 3.84; 4.163-165; 6.84-87). É claro que, apesar da alegada igualdade, a maioria dos muçulmanos acredita que Maomé foi o último e maior profeta de Deus, e sua mensagem em relação ao Islã é completa e incorrupta, sendo, portanto, a única mensagem válida universalmente para toda a humanidade.

Os livros de Deus. Não apenas Deus enviou mensageiros com o propósito de serem guias, como também deu escrituras a alguns desses mensageiros para que transmitissem a vontade de Deus ao povo de suas respectivas épocas. Nem todos esses mensageiros produziram um livro divino, mas alguns deles são mencionados no Alcorão, como Abraão, Moisés, Davi e Jesus. Contudo, como Hammadah Abdalatai expressou: “Muito tempo antes da revelação do Alcorão a Maomé, alguns desses livros e revelações foram perdidos ou corrompidos, enquanto outros esquecidos, negligenciados ou ocultados. O único livro de Deus autêntico e completo, existente nos dias de hoje, é o Alcorão”.[4] Os muçulmanos acreditam que o Alcorão, revelado em várias ocasiões durante um período de 23 anos ao profeta Maomé (610-632 d.C), compilado e editado alguns anos após sua morte, é a palavra literal de Deus, ditada a Maomé por intermédio do anjo Gabriel.

Anjos de Deus. A crença em anjos, como agentes invisíveis de Deus, desempenha um papel importante na fé islâmica e nas práticas muçulmanas. Acredita-se que os anjos continuamente servem e cultuam a Deus e, com freqüência, interagem com os seres humanos, quer dando proteção contra o mal, quer registrando suas ações, quer recebendo suas almas no momento da morte. Gabriel, em particular, é dotado de alta honra por ser o agente da revelação a Maomé. É ele que traz a palavra de Deus aos profetas.

O julgamento de Deus. Em conjunto com a insistente crença na unicidade de Deus, o Alcorão continuamente adverte seus leitores de que haverá um dia de julgamento no qual as pessoas terão de prestar contas de sua vida. A vida possui um propósito moral, e aqueles que cumprem esse propósito com verdadeira adoração e obras justas ganham o paraíso eterno. Entretanto, os que rejeitam a mensagem de orientação de Deus e aqueles cujas obras más sobrepujam as boas sofrerão eternamente no inferno.

É nesse contexto que devemos compreender as práticas e rituais do islamismo. Em conjunto com esses artigos da fé, existem também os chamados cinco pilares do islamismo. Estes são as obras (além de muitos outros atos meritórios) que os muçulmanos são ordenados a realizar a fim de avançar no caminho da justiça. Tais pilares incluem a confissão de fé islâmica por meio da qual uma pessoa torna-se um muçulmano, a observância das cinco orações diárias, o pagamento da taxa religiosa ou de esmolas aos pobres, o jejum durante o mês do Ramadã, da alvorada ao anoitecer, de peregrinar à cidade sagrada de Meca pelo menos uma vez na vida se a pessoa for física e financeiramente capaz. Portanto, ganhar a salvação pelo acúmulo de méritos e boas obras é um aspecto essencial da vida de um muçulmano.

OS PRINCÍPIOS DO DESAFIO TEOLÓGICO ISLÂMICO

Para muitas pessoas hoje, especialmente à primeira vista, parece haver muitas similaridades entre o islamismo e o cristianismo. O comentário de Diana Eck reflete a atitude de muitas pessoas em nossa sociedade quando escreve: “O islamismo, como o judaísmo e o cristianismo, traça sua herança até o profeta Abraão […]. É fortemente monoteísta, olha para Moisés e Jesus como comunicadores d mensagem de Deus à humanidade e possui uma ética de igualdade e justiça para todos”. [5]

É verdade que o islamismo parece compartilhar muitas doutrinas com o cristianismo, tais como a crença em Deus, a criação, os profetas (a maioria dos profetas mencionados no Alcorão são personagens bíblicos), a revelação, o Antigo e o Novo Testamento como Escrituras divinas, os anjos, o dia do julgamento, o céu e o inferno e assim por diante. Comparado com muitas outras religiões e cosmovisões, o islamismo e o cristianismo parecem ser, de fato, muito mais próximos do que muitos poderiam imaginar a princípio. O próprio Alcorão parece dar suporte a tal posição quando menciona os judeus e os cristãos na sura 3.64:

Diz: “Ó adeptos do Livro, entremos em acordo sobre uma posição comum: que não adoremos senão a Deus, que não Lhe associemos ninguém, que não tomemos uns aos outros por Senhor em vez de Deus”. Se se afastarem, diz: “Sede testemunhas de que somos submissos”.

Na sura 24.46, os muçulmanos são advertidos a não disputar com os adeptos do Livro, mas dizer: “Cremos no que nos foi revelado e no que vos foi revelado. Nosso Deus e vosso Deus é o mesmo. A Ele nos submetemos”.

Entretanto, se gastarmos algum tempo e olharmos com mais profundidade abaixo da superfície, perceberemos que, apesar das muitas similaridades superficiais, um abismo descomunal separa os ensinamentos islâmicos da fé cristã. Apesar de toda a mútua aceitação politicamente correta, que muitos muçulmanos e outros defendem em prol da aproximação entre o islamismo e o cristianismo, o islamismo ortodoxo desafia e se opõe a todas as principais doutrinas da fé cristã.

O islamismo nega a doutrina cristã sobre Deus, especialmente a visão bíblica da paternidade de Deus e a doutrina da Trindade. O islamismo se opõe a visão cristã sobre os seres humanos, em particular as doutrinas do pecado e da salvação. O islamismo inequivocamente contesta a visão bíblica de Cristo em relação a Sua morte e divindade. E, finalmente, o islamismo rejeita a autenticidade e a autoridade das Escrituras cristãs.

O importante é perceber que os muçulmanos, especialmente em nossos dias, desfrutam de um grande sentimento de justificação intelectual para sua rejeição ao cristianismo ortodoxo. Eles apontam para o fato de que os desafios teológicos que eles têm lançado contra o cristianismo, durante quase toda a sua história, são repetidos pela tradição liberal do Ocidente em estudos bíblicos pelo menos nos últimos duzentos anos. Em adição ao Islã, e especialmente desde o Iluminismo, têm surgido inúmeros outros movimentos intelectuais dentro e fora da Igreja que rejeitam as doutrinas do cristianismo histórico. [6]

Um exemplo típico é o livro de Misha’al Abdullah’s, What Did Jesus Really Say? [O que Jesus realmente disse?]. Após mencionar um artigo britânico no qual estava escrito que “mais da metade dos bispos anglicanos da Inglaterra dizem que os cristãos não são obrigados a crer que Jesus Cristo era Deus” e que muitos dos bispos “pensam que os milagres de Jesus, o nascimento virginal e a ressurreição podem não ter ocorrido exatamente como descrito na Bíblia”, o autor confiantemente conclui:

Cada dia que passa, os mais instruídos dentre a comunidade cristã estão, pouco a pouco, reconhecendo a verdade e chegando mais perto do Islã. Os que fizeram essa declaração não são muçulmanos, tampouco, cristãos “liberais”. Esses são os mais instruídos e os mais estimados  homens da Igreja Anglicana. Esses homens têm dedicado sua vida ao estudo da religião de Jesus, e esse estudo os tem conduzido à verdade que Deus já lhes revelou por meio do Alcorão há 1.400 anos: Que Jesus não era Deus. Que Deus não é uma Trindade. E que as histórias bíblicas sobre o ministério de Jesus têm sido excessivamente adulteradas pelas mãos da humanidade. [7]

Voltaremos nossa atenção aos quatro desafios teológicos específicos do islamismo contra a fé cristã, investigando maneiras de “responder a razão da esperança” que há em nós (1Pe 3.15). [8]

A DOUTRINA DE DEUS

O âmago de todas as crenças teístas é a questão sobre Deus. A realidade e a natureza de Deus são de fundamental importância na estrutura de qualquer sistema religioso. Cada religião teísta encontra sua identidade mais básica em sua visão particular de Deus e Seu relacionamento com a humanidade. Como corretamente menciona A. Montes: “A controvérsia histórica entre as duas religiões [islamismo e cristianismo] está teologicamente centrada no conceito de Deus”.[9]

O islamismo vê a si mesmo como a suprema religião de Deus para a humanidade com a mensagem básica de que não há deuses, mas um único verdadeiro Deus (Alá). Um autor muçulmano escreveu: “A Unidade de Alá é a característica peculiar do Islã. Essa é a forma mais pura de monoteísmo, ou seja, a adoração de Alá, aquele que nunca gerou ou gera, nem está associado com nada mais em Sua Divindade. O Islã ensina tudo isso em termos mais que inequívocos”.[10]

Por causa dessa ênfase na unicidade absoluta, na transcendência e na soberania de Deus, é perfeitamente compreensível o porque o islamismo rejeita noções cristãs como a paternidade de Deus ou o entendimento cristão sobre a Trindade divina. Para um muçulmano, tais doutrinas trazem desonra à glória e à majestade divina ao trazer Deus ao nível humano e introduzir a contradição lógica ao monoteísmo puro. De fato, o Alcorão está repleto de advertências contra os cristãos e outros que abraçam tais doutrinas.[11]

Antes de fornecer certas linhas de respostas cristãs, é importante mencionar que, embora muitas das objeções islâmicas tenham origem em genuínas divergências entre o islamismo e o cristianismo, algumas das “objeções são fundamentadas na incompreensão fundamental do que a doutrina cristã realmente ensina. Em outras palavras, o muçulmano não rejeita a doutrina em si, mas uma caricatura dela”.[12]

Portanto, em nosso testemunho aos muçulmanos, nossa primeira tarefa é esclarecer algumas das incompreensões que criam obstáculos na comunicação do evangelho. Por exemplo, devemos enfatizar que nossa compreensão sobre a paternidade de Deus não diz respeito a um relacionamento físico, mas um relacionamento espiritual. Não há alusão ou sugestão na fé cristã de que Deus teve qualquer relacionamento sexual com Maria que resultou na concepção de Jesus.[13]

Da mesma forma, é de vital importância demonstrar ao muçulmano que não existe contradição na formulação ortodoxa da doutrina da Trindade. Em um comentário do Alcorão, escrito por dois estudiosos muçulmanos da Índia, lemos: “Assim, como pode Deus ser um e três ao mesmo tempo? Isso é absurdo, racionalmente impossível e matematicamente falso. Unidade e Diversidade não podem coexistir juntas”.[14] O que precisa ser esclarecido é que na doutrina da Trindade, os cristos não afirmam que Deus é um e três ao mesmo tempo e no mesmo sentido (o que seria uma contradição). O que os cristãos alegam é que em um sentido Deus é um (Ele é único em essência ou ser) e, em um sentido totalmente diferente, há uma pluralidade divina (três “pessoas” eternas ou distinções ou relacionamentos ou dimensões).[15] Portanto, tal doutrina não pode ser acusada de contradição.

A esta altura, os muçulmanos devem reclamar dos incompreensíveis mistérios do cristianismo. Enquanto o islamismo pareça ser tão racional, fácil de compreensão e explicação, o cristianismo é repleto de doutrinas confusas e complexas que até mesmo a maioria dos cristãos têm dificuldades de entender.[16] Precisamos lembrar aos muçulmanos que não é verdade que tudo a respeito de Deus seja totalmente claro e perfeitamente compreensível. Se os muçulmanos refletirem mais profundamente sobre suas afirmações de Allabu Akbar (Deus é o maior) e estudarem os acalorados debates na história do islamismo a respeito das passagens do Alcorão que falam sobre os olhos e as mãos de Deus e o trono, eles provavelmente concordarão com os cristãos que Deus como Deus (Trindade ou não) é um mistério insondável para a compreensão humana.

Após clarear a base dessas acusações, chegamos ao cerne da questão. No fim das contas, essa doutrina cristã peculiar não tem nada a ver com a lógica ou aritmética. A doutrina da Trindade é um resumo do encontro dos cristãos com o único Deus vivente.[17] Essa doutrina é a frágil tentativa dos cristãos em explicar como desde o princípio, desde os judeus monoteístas até hoje, eles têm encontrado o único e verdadeiro Deus como seu amoroso Criador e Pai, como seu redentor na pessoa de Jesus Cristo e como seu Santificador na presença do Espírito Santo. C. S. Lewis apresentou em sua linguagem simples:

Foi assim que a teologia começou. Já se tinha um vago conhecimento a respeito de Deus. Veio então um homem que afirmou ser Deus, e não era alguém que pudesse ser considerado um lunático. Ele fez que cressem nele. Encontraram-no de novo depois de o terem visto ser morto. E quando passaram a se reunir numa pequena sociedade ou comunidade, encontraram Deus também no interior deles, dirigindo-os e capacitando-os a fazer coisas que antes não podiam fazer. Ao analisarem tudo isso, eles chegam à definição cristã do Deus tripessoal. [18]

Seguindo uma veia similar, Alister McGrath explica:

Uma forma útil de se olhar para a doutrina da Trindade é dizer que três modelos essenciais são usados para expressar apropriadamente a plena profundidade da experiência e da compreensão cristãs. Nenhuma descrição, imagem ou modelo de Deus é suficiente o bastante – e que esses modelos são fundamentais para se preservar a descrição básica da compreensão cristã sobre Deus. O primeiro modelo é o do Deus transcendente que permanece além do mundo como sua Fonte e Criador; o segundo é a face humana de Deus revelada na pessoa de Jesus Cristo; o terceiro é o do Deus imanente que está presente e ativo por meio de Sua criação. A doutrina da Trindade afirma que esses três modelos unem-se para definir as visões cristãs essenciais sobre o Deus que levantou Jesus Cristo dentre os mortos. Nenhum deles, em separado, é adequado para captar a riqueza da experiência cristã de Deus.[19]

Essa discussão lança luz sobre uma questão crucial, porém frequentemente negligenciada, entre a fé islâmica e a cristã. Nossa discordância sobre a Trindade possui raízes em nosso desacordo sobre o próprio caráter de Deus. Por exemplo, muitas pessoas podem ter a impressão de que uma vez que tanto o islamismo quanto o cristianismo tenham classicamente definido Deus como o Onipotente, Onisciente e Onipresente Criador do mundo, cristãos e muçulmanos concordem em quase tudo, exceto com o conteúdo e os mistérios da doutrina da Trindade. Contudo, ao fazermos uma inspeção mais profunda percebemos que o islamismo e o cristianismo discordam fundamentalmente sobre o que Deus é, o que Ele tem feito e Seu propósito na história.

Os blocos estruturais de doutrinas cristãs peculiares, como a Trindade, a encarnação e a expiação, são fundamentados no que Deus é. O Deus que encontramos nas páginas das narrativas bíblicas é um Deus que se revelou a nós, e, portanto, Seus atos na história nos contam coisas verdadeiras sobre quem Ele é. Essa concepção é contrária à ênfase islâmica de que Deus apenas revela Sua vontade. O Deus da Bíblia deseja ser conhecido por meio de um relacionamento pessoal e íntimo com Seu povo, ao contrário da ênfase islâmica no Deus transcendente e absoluto. Ele é um Deus que está engajado com o sofrimento dos seres humanos em razão da pecaminosidade da humanidade, em oposição ao relato islâmico de Deus apenas como um Juiz. É um Deus que nos ama de maneira incondicional, e não apenas um Deus amedrontador, como retratado no Alcorão. Ele é perfeito em santidade e, portanto, não pode simplesmente negligenciar a pecaminosidade dos seres humanos. Essas são as convicções bíblicas que amadurecem nas formulações teológicas da Trindade, da encarnação e da expiação.[20]

Essa abordagem nos ajuda a discernir que antes de se entrar em qualquer discussão sobre as ramificações lógicas e filosóficas da Trindade, devemos iniciar focando nossa discussão sobre quem é Deus, o que Ele tem feito por nós na história especialmente por intermédio de Jesus Cristo. A não ser que haja uma “estrutura de plausibilidade” enraizada no verdadeiro caráter de Deus que abra espaço para uma compreensão trinitária, os cristãos manterão o fracasso na transmissão aos muçulmanos do significado e do sentido dessa doutrina crucial.

SERES HUMANOS

O Alcorão vê os seres humanos como criaturas especiais de Deus, criadas para servir e adorar somente a Ele. No entanto, como os seres humanos são, de modo constante e fácil, desviados por Satanás e por seus próprios desejos carnais, Deus envia continuamente profetas e mensageiros para guiar o povo ao caminho justo da submissão e da redenção. Entretanto, apesar do fato de haver inúmeras passagens no Alcorão que recordam o relato de Gênesis sobre a criação e a queda dos seres humanos (sura 2.30-39; 7.19-25), a teologia islâmica discorda frontalmente da compreensão cristã sobre o pecado, em particular o pecado original, e, consequentemente, discorda da salvação redentora cristã. Como explica Isma’il AL-Farqui: “Na visão islâmica, os seres humanos não são mais ‘caídos’ do que são ‘salvos’. No entanto, pelo fato de também não estarem salvos, eles precisam fazer boas obras com ética, o que lhes dará a desejada ‘salvação’”. Ele também observa: “O Islã ensina que as pessoas nascem inocentes e assim permanecem até fazerem-se culpadas por meio de uma ação culposa”.[21]

Em que pese o fato de não haver segurança de salvação no islamismo, os muçulmanos esperam alcançar a salvação no porvir, por meio da realização de muitas boas obras e da confiança na compaixão e na misericórdia de Deus. Encontramos uma imagem popular do Alcorão a respeito do princípio do julgamento de Deus na sura 23.102,103. No dia do julgamento de Deus, “aqueles cujas ações pesarem mais na balança se salvarão. E aqueles cujos pratos forem leves, perder-se-ão a si mesmos na Geena para sempre”. Em tal sistema religioso, é evidente não haver espaço para qualquer conceito bíblico sobre expiação ou salvação com base somente na graça de Deus por meio da fé.

Embora seja óbvio que não podemos provar a particular compreensão cristã sobre a pecaminosidade humana e a graciosa salvação de Deus por meio de Jesus Cristo, há certas verdades importantes que precisamos enfatizar em nossas discussões com os muçulmanos.

Alguém sabiamente comentou que a doutrina do pecado original é a única doutrina cristã com a mais empírica verificação a seu favor. É um fato inquestionável e uma questão de simples observação que os seres humanos e as condições sociais que eles criaram têm sido e continuam a ser profundamente imperfeitos e corrompidos. Se as pessoas nascessem em total estado de inocência, como alegam os muçulmanos, então por que há um reconhecimento quase que universal de que ninguém é perfeito e de que todos nós pecamos? Ou por que não há, pelo menos, uma significativa porcentagem da população mundial que pudesse declarar-se sem pecado enquanto cresce, uma vez que todos nasceram sem pecado? Por causa da força dessas observações, Abdolkarim Soroush, hoje o mais proeminente intelectual muçulmano do Irã, sugere que “nossas definições sobre a humanidade precisam ser sobriamente examinadas à vista da abundância de ganância, crueldade, maldade e ingratidão expressa pelos seres humanos, de maneira voluntária e de acordo com sua natureza, não porque eles foram pervertidos ou forçados a assim agir”;[22]. Ele prossegue: “É verdade que não apreciamos ver os seres humanos como seres tiranos, desagradáveis, injustos e insensatos e que esperamos que não sejam assim. No entanto, devemos reconhecer esses defeitos como parte da natureza humana. A iniqüidade deve ser reconhecida como uma natural e permanente parte da natureza humana, e não como uma faceta exterminável ou acidental dela”.[23]

Além do mais, também deveria ser mencionado que o próprio Alcorão não é tão otimista a respeito da natureza humana como alguns teólogos muçulmanos gostariam que pensássemos. O Alcorão está repleto de passagens que descrevem os seres humanos como injustos, insensatos, ingratos, perversos, presunçosos e rebeldes.[24]

Igualmente devemos mencionar que com respeito à doutrina da expiação não foi o cristianismo que se desviou dos caminhos dos antigos profetas de Deus, mas o islamismo. Ao negar a necessidade de expiação e insistir na idéia de que boas obras é tudo o que se necessita para obter salvação, o islamismo tem desconsiderado integralmente todo o testemunho das Escrituras do Antigo Testamento e o consistente ensinamento da Torá (encontrado especialmente no sistema sacrificial de Levítico) de que o ser humano pecaminoso não pode se aproximar de Deus sem a providência de uma expiação sacrificial. A visão cristã da cruz é a razoável conclusão da revelação de Deus no Antigo Testamento, e não a negação islâmica dela.

Como mencionamos, nossa discordância fundamental encontra-se enraizada no caráter de Deus. Se Deus é tão santo para deixar minimizar a profundidade de nossa pecaminosidade e tão amoroso para nos deixar perecer, então, não é muito difícil entender as doutrinas cristãs do pecado e da salvação. Ao negar a extensão da santidade de Deus e a profundidade de Seu amor, torna-se impossível para o islamismo apreciar ou compreender essas doutrinas fundamentais da fé cristã.[25]

JESUS CRISTO

Em nenhum outro momento, a oposição entre islamismo e o cristianismo assume um caráter tão agudo como quando chegamos à pessoa de Jesus Cristo. Embora o Alcorão reconheça muitas verdades sobre Cristo, tais como o nascimento virginal e as habilidades de realizar milagres, honrando-O com muitos títulos como o “Messias”, a “palavra de Deus”, “o Espírito de Deus” e “sinal entre homens e uma misericórdia de Deus”, o Alcorão é inflexível em sua negativa sobre a divindade e a morte de Jesus Cristo.[26] O Alcorão estabelece:

São blasfemos aqueles que dizem que Deus é o Messias, o filho de Maria, ainda quando o próprio Messias declarou: “Ó filhos de Israel, adorai Deus, meu Senhor e vosso Senhor. Em verdade, quem atribuir associados a Deus, Deus lhe proibirá o Paraíso e lhe dará o Fogo por morada. Os iníquos não têm aliados” (sura 5.72)

O Messias, o filho de Maria, nada mais é do que um Mensageiro. Outros Mensageiros passaram antes dele. Sua mãe era uma justa. Ambos alimentavam-se como os demais humanos. Vê como expomos as provas aos cristãos. E vê como se desviam! (sura 5.75)


Os judeus dizem: “Ezra é o filho de Deus”. E os cristãos dizem: “O Messias é o filho de Deus”. Essas são suas asserções. Erram como erravam os descendentes deles. Que Deus os combata! (sura 9.30)


E por terem dito: “Matamos o Messias, Jesus, o filho de Maria, o Mensageiro de Deus”, quando, na realidade, não o mataram nem o crucificaram: imaginam apenas tê-lo feito. E aqueles que disputam sobre ele estão na dúvida acerca de sua morte, pois não possuem conhecimento certo, mas apenas conjeturas. Certamente, não o mataram” (sura 4.157)

Uma vez mais, antes de responder, temos de ter certeza de haver esclarecido todas as dúvidas e incompreensões que possam ainda pairar na mente de um muçulmano. Assim, por exemplo, devemos enfatizar que a teologia cristã não eleva um ser humano à categoria de Deus ou como parceiro de Deus, e que Jesus não é o Filho de Deus em nenhum sentido físico ou biológico. Shabir Akhtar repreende seus companheiros muçulmanos ao escrever:

A maioria dos muçulmanos, mesmo os instruídos, não conhecem quase nada sobre a cristologia. Poucos podem claramente distinguir entre a visão de um homem que alega ser divino – uma blasfêmia – e uma visão totalmente diferente segundo a qual Deus, de forma voluntária, torna-Se humano – a convicção cristã ortodoxa. E as duas visões são rotineiramente confundidas com a doutrina herética de que Deus “adotou” um filho. [27]

Como esse escritor muçulmano corretamente aponta, a convicção cristã ortodoxa é a de que Deus, na pessoa de Jesus Cristo, assumiu uma forma humana. Por que os cristãos, todos os quais originalmente devotados judeus monoteístas, vieram a abraçar essa peculiar convicção, vindo inclusive a morrer por ela? A resposta é que os mais próximos discípulos de Jesus chegaram a essa conclusão por causa do próprio Jesus que por meio de suas afirmações e suas obras reivindicou ser o Deus encarnado. Não se pode ler no Novo Testamento, sem preconceitos, e não ver as impressionantes afirmações divinas que Jesus, e mais tarde seus seguidores, fizeram em Seu nome.[28]

De inúmeras formas, Jesus põe-Se no lugar de Deus (o que, de fato, seria uma blasfêmia, fosse Jesus apenas um simples ser humano ou mesmo um grande profeta). Jesus afirmou que Ele e o Pai são um (Jo 10.30), de que aquele que O visse, veria o Pai (Jo 14.9). Igualmente afirmou que era o único que verdadeiramente conhecia o Pai, e que somente Ele poderia revelar o Pai (Mt 11.27). Jesus alega ser o Juiz no dia da ressurreição (Jo 5.22). Ele perdoa os pecados (Mc 2.10) e ensina com a autoridade do próprio Deus (Mc 13.31). Ele recebe culto (Mt 28.17) e descreve a Si mesmo com um conjunto de títulos e imagens utilizados apenas por Deus no Antigo Testamento.[29]

Portanto, naturalmente, Seus discípulos também refletiram a autocompreensão de Jesus ao longo de todo o Novo Testamento. Eles creram em Jesus e O adoraram como ninguém menos que Javé (o nome pessoal de Deus) em pessoa. Como menciona William L. Craig, com base em todas as evidências históricas disponíveis: “Vinte anos após a crucificação, havia uma cristologia totalmente madura e proclamando Jesus como Deus encarnado”. Ele prossegue:

“O grande historiador da Igreja, Jaroslav Pelikan, indica que todos os cristãos primitivos compartilhavam a convicção de que a salvação era uma obra para ninguém menos que o Senhor do céu e da terra e que o Redentor era o próprio Deus. Ele observou que o mais antigo sermão cristão, o mais antigo relato de um mártir cristão, o mais antigo relatório pagão da igreja e a oração litúrgica mais antiga (1Co 16.22), sem exceção, referem-se a Cristo como Senhor e Deus. Ele conclui: “Claramente, a mensagem na qual a Igreja acreditava e ensinava era a de que ‘Deus’ era um nome apropriado para Jesus Cristo”.[30]

Muitos muçulmanos, como o conhecido apologista Jamal Badawi, fazem o possível para explicar todas as evidências neotestamentárias sobre a divindade de Cristo e, depois, perguntam por que Jesus jamais afirmou claramente ser Deus e reclamou culto.[31] A verdade é que Jesus foi mais do que claro sobre Sua condição divina ao longo de todo Seu ministério e foi tão transparente quanto era possível ser em um contexto monoteísta judeu do século 1, em conformidade com Sua missão de humilhação e auto-sacrifício (veja Fp 2.6-11).[32] Ele foi claramente compreendido por Seus inimigos (Jo 5.18; 10.33)!

Concluímos nossa breve discussão sobre esse tema com um importante esclarecimento. Quando os cristãos afirmam que “Jesus é Deus”, eles precisam estar cientes que utilizam uma estenografia teológica. Os cristãos não afirmam que Jesus e Deus são numericamente idênticos e, portanto, em todo o lugar no Novo Testamento que vemos a palavra Jesus, nós podemos substituí-la pela palavra Deus. Jesus não é numericamente um com Deus (assim, Ele pode genuinamente orar ao Pai e afirmar ter vindo Dele), mas Ele é essencialmente um com Deus. Jesus é Deus em essência.

Usemos uma analogia útil reconhecendo que analogia humana alguma pode representar perfeitamente verdades espirituais. Imaginemos que Deus seja como um oceano. Ninguém pode experimentar o oceano já que está muito além de nosso horizonte humano. Agora, imagine que um copo de água vinda do oceano nos seja oferecido. A água no copo possui todas as características do oceano. Nada há na composição química do oceano que não esteja presente naquele copo de água. Aquele que bebe da água no copo pode verdadeiramente sentir o gosto do oceano. A água no copo é um em essência com o oceano, embora também seja distinta, pois está em um copo. Mas o oceano ainda está lá e não desapareceu. Essa analogia nos auxilia a compreender melhor a proclamação do Novo Testamento: “Pois em Cristo habita corporalmente toda a plenitude da divindade” (Cl 2.9)

Quando abordamos o tema da crucificação podemos ter confiança de que estamos nos fundamentos históricos mais sólidos da nossa fé, embora, exatamente nesse ponto, o Alcorão apresente sua alegação histórica mais frágil.[34] Se há uma coisa sobre a qual todos os estudiosos bíblicos, por todo o espectro teológico, concordam sobre o Jesus histórico, mesmo todos os estudiosos liberais que os muçulmanos adoram mencionar, é o fato de que Jesus de Nazaré morreu na cruz. A significância e as conseqüências da cruz são questões ardorosamente debatidas, mas o fato de Sua morte pela crucificação está acima da dúvida histórica.

Com o intuito de lançar mais luz sobre todo o contexto da rejeição islâmica sobre a cruz podemos mencionar a análise de Kenneth Cragg, de que para os muçulmanos “há a negação histórica de sua [a crucificação] realidade, a rejeição moral de sua possibilidade e a refutação doutrinária de sua necessidade”.[35] Parece que a rejeição do Alcorão quanto à historicidade da cruz está relacionada, principalmente, à crença de que Deus sempre protegeria seus honrados profetas e poderia resgatá-los de seus inimigos, e também à convicção de que os seres humanos apenas precisam de orientação e obediência a fim de ganhar a salvação. Contudo, os muçulmanos não podem desconsiderar os fatos históricos baseados em suposições teológicas duvidosas, que são completamente opostas à compreensão bíblica quanto à profecia e os meios de salvação.

A negação islâmica da cruz enfrenta três problemas principais, para os quais os muçulmanos têm falhado em apresentar qualquer resposta satisfatória. Primeiro, se Jesus não foi crucificado, como explicamos a convicção de cada discípulo e de cada escritor do Novo Testamento de que a crucificação é a pedra angular da fé cristã? A cruz não é apenas um detalhe na incomparável carreira de um grande mestre e profeta. Para os escritores do Novo Testamento, a cruz é o alicerce absoluto para a compreensão de quem Jesus é e o que Ele fez para a humanidade.

Segundo, obviamente, sem a cruz não há ressurreição. Se alguma outra pessoa tivesse morrido na cruz, em vez de Jesus (a popular sugestão islâmica com base na sura 4.157), então como os muçulmanos explicam todas as aparições pós-ressurreição descritas nos Evangelhos e a crença fundamental na ressurreição de todas as antigas comunidades cristãs? Para começar, sem a ressurreição, não haveria fé cristã (1Co 15.12-19). Os muçulmanos precisam compreender que o cristianismo, como movimento histórico, não começa com a pregação de Jesus convidando o povo a trilhar o “caminho reto”, mas com as mensagens de que “Deus ressuscitou este Jesus, e todos nós somos testemunhas desse fato” (At 2.32).[36]

Finalmente, os muçulmanos precisam refletir sobre a implicação da sua rejeição da cruz quanto ao caráter de Deus. Se Deus realmente resgatou Jesus livrando-O do sofrimento, apenas fazendo parecer ao povo que isso tenha acontecido (como os muçulmanos acreditam), isso não incluiria Deus nos grandes atos de engano na história humana? Os muçulmanos podem, assim, concluir que Deus não apenas enganou os discípulos de Jesus e todas as gerações subseqüentes de cristãos desde o princípio, mas que também permitiu que o engano permanecesse intocável por seiscentos anos até o advento do Alcorão. Essas são questões muito sérias que a maioria dos muçulmanos prefere ignorar em vez de enfrentar com honestidade e conhecimento histórico.

A BÍBLIA

A convicção subjacente a todas as acusações muçulmanas contra a teologia do cristianismo é a rejeição islâmica das Escrituras cristãs. Misha’il ibn Abdullah resume com precisão a atitude muçulmana a respeito da Bíblia quando escreve:

Os muçulmanos acreditam nos livros dos profetas anteriores, incluindo-se a ‘Torá’, que foi confiada a Moisés, ‘Zaboor’ (Salmos), dado a Davi, ‘Injeel’ (Evangelho), que foi concedido a Jesus, além do Alcorão, que foi dado a Maomé. Entretanto, os muçulmanos são instruídos que as escrituras anteriores ao Alcorão foram adulteradas pela humanidade, e a Bíblia deveria apenas ser aceita no que é confirmada pelo Alcorão. Deve ser tratada com respeito, mas qualquer afirmação claramente contrária ao Alcorão deve ser rejeitada como obra do homem. [37]

Em outras palavras, em razão de a Bíblia ter sido corrompida e, assim, não ser mais pura e original na forma em que foi revelada por Deus aos profetas, ela perdeu a autoridade que detinha. Hoje, a única revelação de Deus para a humanidade que permanece autêntica, absoluta e dotada de toda a autoridade é o Alcorão. Como mencionei, os muçulmanos sentem-se intelectualmente justificados porque encontram um grande apoio em críticos e liberais cristãos por sua rejeição quanto à autenticidade e à autoridade das Escrituras.

Uma vez que defender a integridade da revelação bíblica e responder aos desafios contra a Bíblia está além do escopo deste capítulo, nos limitaremos a duas linhas principais de resposta ao lidar com a acusação islâmica de corrupção de nossas Escrituras.

Primeiro, o dilema da posição islâmica torna-se óbvio quando olhamos para o próprio Alcorão e percebemos quão positivamente o livro sagrado dos muçulmanos fala dos judeus e das Escrituras cristãs. O Alcorão refere-se à Bíblia como “O Livro de Deus”, “A Palavra de Deus”, “a luz e a orientação ao homem”, “uma orientação e misericórdia”, e outras descrições que confirmam sua origem divina e sua autoridade. O Alcorão reiteradamente fala aos seus leitores que veio em confirmação às Escrituras anteriores )sura 2.41, 89, 101). Os muçulmanos são ordenados a crer nas Escrituras anteriores (sura 2.136). Maomé foi até mesmo encorajado por Deus a testar a genuinidade de sua própria mensagem com o conteúdo das Escrituras judaicas e cristãs (sura 10.94)! Aos cristãos e judeus também é ordenado a “em nada vos apoiais enquanto não observardes a Torá e o Evangelho e o que vos foi revelado por vosso Senhor”! (sura 5.68 e também 5.47).[38]

Como é possível que os judeus e cristãos tenham Escrituras totalmente corrompidas e, ainda assim, recebam tão elevada recomendação e confirmação pelo Alcorão? Se a Bíblia foi corrompida e adulterada antes do advento do Alcorão, então o Alcorão não apenas omite isso, como na realidade concede legitimidade a uma Escritura corrompida. No entanto, se os muçulmanos afirmarem que a corrupção da Bíblia aconteceu após o Alcorão, então obviamente podemos mencionar os muitos manuscritos do Antigo e do Novo Testamento que são anteriores ao Alcorão em muitos séculos e formam a base de todas as traduções modernas de nossos dias.[39]

Finalmente, devemos brevemente mencionar uma popular estratégia de ataque à Bíblia por apologistas muçulmanos. Com freqüência, os escritores muçulmanos selecionam algumas menções de intelectuais liberais do Ocidente que levantam dúvidas sobre a historicidade da Bíblia. Quase sempre, o que não se mostra nas menções desses estudiosos são as pressuposições filosóficas e os métodos altamente discutíveis empregados para chegar a tais conclusões.

O que precisa ser mencionado é que os mesmos preconceitos filosóficos e metodológicos também levam a conclusões que contradizem o Alcorão. Por exemplo, se eventos genuinamente miraculosos não acontecem por uma questão de princípio, uma crença defendida pela maioria dos críticos, então isso leva à conclusão de que os relatos sobre o nascimento virginal de Jesus, Seu ministério miraculoso e Sua ressurreição, além de quaisquer profecias bíblicas, são criações legendárias posteriores. Contudo, tais conclusões igualmente contradizem o que o Alcorão afirma sobre Jesus e, portanto, podem ser utilizadas contra o Alcorão da mesma forma que são utilizadas contra a Bíblia.[40]

CONCLUSÃO

Embora este capítulo seja principalmente uma pesquisa resumida sobre as principais doutrinas islâmicas e as maiores discordâncias entre o islamismo e o cristianismo, nossa esperança é que ele possa ser utilizado como um bom começo no aprendizado para defender a fé contra os desafios teológicos perpetrados pelo Islã. À luz da realidade das guerras e do terrorismo de nossos dias, não devemos esquecer que nossa batalha primária é sobre mentes e idéias. Uma vez mais, devemos ser exortados pelas palavras do apóstolo Paulo: “Pois, embora vivamos como homens, não lutamos segundo os padrões humanos. As armas com as quais lutamos não são humanas; ao contrário, são poderosas em Deus para destruir fortalezas. Destruímos argumentos e toda pretensão que se levanta contra o conhecimento de Deus, e levamos cativo todo o pensamento, para torná-lo obediente a Cristo” (2Co 10.3-5)

Notas

[1] – Para obter um tratamento extensivo da teologia islâmica e seus princípios históricos veja GEISLER, Norman e SALEEB, Abdul. Answering Islam: The Crescent in the Light of the Cross. Ed. Rev. Grand Rapids, Mich. Baker, 2002, caps. 1-6.
[2] – AL-FARUQUI, Isma’il Raji. Al Tawhid: Its Implications for Thought and Life. Verdon: International Institute of Islamic Thought, 1995, p. 17.
[3] – NASR, Seyyed Hossein. The Heart of Islam: Enduring Values for Humanity. San Francisco: HarperSanFrancisco, 2002, p. 3.
[4] – ABDALATAI, Hammadah. Islam in Focus. Indianapolis: American Trust Publications, 1975, p. 12.
[5] – ECK, Diana. A New Religious America. San Francisco: Harper SanFrancisco, 2001, p. 232.
[6] – Para obter exemplos específicos da convergência entre o islamismo e a tradição liberal do Ocidente contra o cristianismo ortodoxo veja a introdução a SPROUL R. C. e SALEEB, Abdul. The Dark Side of Islam. Wheaton, Ill.: Crossway, 2003.
[7] – ABDULLAH, Misha’al ibn. What Did Jesus Really Say? Ann Arbor, Mich.: Islamic Assembly of North America, 1996, p. 66-7.
[8] – Em razão de limitações de espaço neste capítulo, não podemos fazer mais do que sugerir um amplo resumo das possíveis respostas cristãs. Igualmente, nossa preocupação aqui não é apenas teológica e apologética, mas prática e evangelística.
[9] – MONTES, A. Gonzáles. “The Challenge of Islamic Monotheism: A Christian View”, em: Islam: A Challenge for Christianity. London: SCM Press, 1994, p. 68.
[10] – AJIJOLA, Alhaj. The Essence of Faith in Islam. Lahore: Islamic Publications, 1978, p. 55.
[11] – Em relação às advertências presentes no Alcorão contra a Trindade veja as suras 4.171; 5.76. A rejeição do Alcorão quanto À paternidade de Deus pode ser vista em muitas passagens, mesmo nas suras; 19.35 e 5.101.
[12] – TENNENT, Timothy. Christianity at the Religious Roundtable. Grand Rapids, Mich.: Baker, 2002, p. 153-4. Tennent nos apresenta um excelente modelo de diálogo evangelístico com um muçulmano.
[13] – Em um comentário de rodapé na sura 2.116, Yusuf Ali, o mais famoso tradutor do Alcorão para a língua inglesa, escreve: “É uma derrogação da glória de Deus – de fato, constitui blasfêmia – dizer que Ele gera filhos como um homem ou um animal. A doutrina cristã é aqui enfaticamente repudiada. Se as palavras têm algum significado, seria a atribuição a Deus de uma natureza material e de funções dos ínfimos animais”. Nossa incompreensão mútua é, em geral, mais profunda do que imaginamos!
[14] – USMANI, Shabir Ahmad. The Noble Qur’na: Tafseer-e-Usmani. Nova Delhi: Idara Isha’at-e-diniyat, 1990, I:ii. Outra declaração falsa sobre a Trindade proferida por um muçulmano é o comentário de Misha’al ibn Abdullah. Ao resumir a compreensão cristã sobre a Trindade, ele escreveu: “Deus é três deuses fundidos em um só. Esse Deus é chamado de Trindade. Entretanto, dizer que Deus é três é blasfêmia da mais alta ordem. Todas as três partes da Trindade são ‘co-iguais, co-eternas e a mesma subst}ancia’. Por essa razão, essa doutrina é descrita como um ‘mistério’” (What Did Jesus Really Say?, p. xiii);
[15] –  A literatura nesse campo é imensa e cresce a cada ano. Para uma obra recente sobre a Trindade, que apresenta uma bibliografia notável, veja OLSON, Roger e HALL, Christopher. The Trinity. Grand Rapids, Mich.: Eerdmans, 2002. Dois livros evangélicos recentes sobre a doutrina de Deus, muito úteis, são: FRAME, John. The Doctrine of God. Philipsburg, N.J.: P&R, 2002; FEINBERG, John. No Ono Like Him. Wheaton, Ill.: Crpssway, 2001.
[16] –  Essa questão é eloquentemente exposta pelo escritor islâmico Shabbir Akhtar. A Faith for All Season. Chicago: Ivan R. Dee Publisher, 1990, p. 179.
[17] –  Em razão da repetida acusação de que a doutrina da Trindade é resultado da influência pagã que se impôs ao cristianismo por meio das ações dos concílios da Igreja no século 4 é importante que nosso testemunho aos muçulmanos enfatize a raiz bíblica e experimental dessa doutrina.
[18] – LEWIS, C. S. A Essência do Cristianismo Autêntico. São Paulo: ABU Editora, 1979, p. 93.
[19] –  McGRATH, Alister. Understanding the Trinity. Grand Rapids, Mich. Zondervan, 1988, p. 136-7. Essa é uma excelente abordagem da Trindade: McGrath escreve: “A doutrina da Trindade pode ser considerada como o resultado de um processo de reflexão crítica e sustentada sobre o padrão da atividade divina revelada nas Escrituras e mantida na experiência cristã […]. As Escrituras nos fornecem o testemunho sobre um Deus que requer ser compreendido de modo trinitário”. Lemos também: “Longe de ser apenas uma questão sem sentido, fruto da especulação teológica, a doutrina da Trindade é fundamentada diretamente na complexa experiência humana da redenção em Cristo e está comprometida com a explicação dessa experiência”. McGRATH, Alister. Christian Theology: Na Introduction. Oxford: Blackwell, 1994, p. 294, 296, 297.
[20] –  Veja: “The Character of God in the Bible and the Qur’an”, http://answering-islam.org/God;character.html (27de julho de 2003). Veja também GEORGE, Timothy. Is the Father of Jesus the God of Muhammad: Grand Rapids, Mich.: Zondervan, 2002; e GEISLER e SALEEB. Answering Islam, cap. 7.
[21]– al-FARUQUI, Isma’il. Islam. Nils: Argus Communication, 1984, p. 9.
[22]– SADRI, Mahmoud e SADRI, Ahmad, eds. Reason, Freedom, and Democracy in Islam: Essential Writings of Abdolkarim Soroush. Oxford University Press, 200, p. 191.
[23] – Idem, p. 191-2.
[24]– Para uma excelente discussão desse ponto veja WOODBERRY, J. Dudley. “Different Diagnosis of the Human Condition”, em: WOODBERRY, J. Dudley, Ed. Muslims and Christians on the Emmaus Road. Monrovia, Calif.: MARC, 1989, p. 149, 160.
[25]–  Isso pode explicar por que para muitos muçulmanos que aceitam a Cristo dois dos aspectos mais importantes do Novo Testamento são o Sermão do Monte, que lança nova luz sobre a pecaminosidade do coração humano, e a ênfase do Novo Testamento no amor incondicional de Deus, que é radicalmente oposta ao retrato divino encontrado no Alcorão.
[26]– Muitos muçulmanos sentem-se genuinamente surpresos com a falta de entusiasmo expressa pelos cristãos com respeito ao lugar de destaque que o Alcorão e as tradições islâmicas dão ao profeta Jesus. A fim de auxiliar os muçulmanos a compreenderem a posição cristã, seria de grande utilidade perguntar como eles sentir-se-iam se os cristãos afirmassem que Maomé foi um grande político e líder militar; um homem inspirador e corajoso, mas não foi um profeta de Deus. Igualmente, os cristãos não crêem que pela negação dos dois mais importantes aspectos da pessoa e da obra de Cristo (e.e, Sua divindade e morte) os muçulmanos estão, de fato, honrando a Cristo pelo que Ele verdadeiramente é.
[27]– AKHTAR, Faith, p. 182.
[28]–  Uma vez que o Alcorão reconhece a legitimidade dos discípulos de Jesus e, de fato, põe a benção de Deus sobre eles e sobre sua mensagem (veja sura 61.14), o testemunho deles sobre a identidade de Jesus assume também grande significado.
[29]– Um excelente tratamento, embora um tanto técnico, da evidência do Novo Testamento para a divindade de Cristo é a obra de HARRIS, Murray. Jesus as God: The New Testament Use of Theos in Reference to Jesus. Grand Rapids, Mich.: Baker, 1992. Em especial, veja o apêndice, “An Outline of the New Testament Testimony to the Deity of Christ”, p. 315-7. Em um nível popular, outro livro muito útil é McDOWELL, Josh e LARSON, Bart. Jesus: A Biblical Defense of His Deity. San Bernardino, Calif. Here’s Life Publishers, 1983.
[30] – CRAIG, William L. A Reasonable Faith. Ed. Rev. Wheaton, Ill: Crossway, 1994, p. 243.
[31] – Como exemplo, veja www.geocities.com/Athens/Acropolis/6808/Jesus.html (27 de julho de 2003)
[32]– Alguns anos atrás, emu ma palestra na Emory University, em Atlanta, o dr. Seyyed Hossein Nars comentou como Jesus afirmou ser a verdade, enquanto Maomé poderia apenas afirmar ser verdadeiro, uma vez que, de acordo com o islamismo, apenas Deus pode dizer ser a verdade! Os Evangelhos estão repletos desse tipo de referência autodesignativa de Jesus. Quando Jesus afirma ser o Senhor do sábado ou o verdadeiro templo, Ele está fazendo não menos que uma reivindicação radical de divindade. O que aconteceria com um líder religioso muçulmano se ele afirmasse ser o Senhor da Caaba (a “casa de Deus” em Meca, na Arábia Saudita, ou o mestre do dia do julgamento?
[33]– Está além dos limites deste capítulo lidar com questões de coerência filosófica da encarnação. Para uma discussão útil veja COPAN, Paul. That’s Just Your Interpretation. Grand Rapds, Mich.: Baker, 2001, p. 127-37 e a bibliografia relacionada. Veja igualmente MORRIS, Thomas V. The Logic of God Incarnat. Thaca, N.Y.: Cornell University Press, 1986. Também devemos prestart atenção à importante lembrança de N. T. Wright: “Quando as pessoas fazem a pergunta ‘Jesus é Deus?’, elas tendem a assumir que nós sabemos quem Deus é; a pergunta quer dizer: ‘Você pode encaixar Jesus em seu retrato de Deus?’. Bem, a melhor resposta cristã tem sido sempre esta: ‘Nós não sabemos, com nosso intelecto, exatamente quem Deus é; mas nós podemos descobri-Lo olhando para Jesus’. Você pode dizer que no coração da fé cristã está a visão não que Jesus é mais ou menos como Deus, ou parte de Deus, mas que o ser a quem nos referimos como ‘Deus’ estava e está plenamente presente e totalmente reconhecível na pessoa de Jesus de Nazaré”. The Original Jesus. Oxford: Lion Publishing, 1996, p. 78-9.
[34]– A tentative de alguns cristãos de reinterpretar a negação do Alcorão quanto à crucificação a fim de encontrar ali suporte para a cruz não é convincente.
[35]– KRAGG, Kenneth. “Islamic Theology: Limits and Bridges”, em McCURRY, Don, ed. The Gospel and Islam. Monrovia, Calif.: MARC, 1979, p. 202.
[36] – Para o mais recente tratamento sôbre esse tópico veja N. T. Wright, The Ressurrection of the Sono f God. London: SPCK, 2003.
[37] – ABDULLAH, What Did Jesus Really Say?, pg xiv-xv.
[38] – Podemos dizer aos nossos amigos muçulmanos que o próprio Alcorão nos comunica que devemos voltar ao Evangelho e permanecermos firmes. Quando lemos o Evangelho, vemos que em suas páginas não há espaço para o aparecimento de qualquer outra revelação após Jesus Cristo (Hb 1.1-3)
[39]– Historicamente, os muçulmanos chegaram à crença na corrupção das antigas Escrituras alguns séculos após Maomé, quando eles perceberam que, ao contrário das asserções do Alcorão, a mensagem dos profetas anteriores, encontrada na Bíblia, não era exatamente a mesma mensagem do Alcorão.
[40] – De fato, em certos círculos acadêmicos do Ocidente, especialmente nos trabalhos de John Wansbrough, Patrícia Crone e Michael Cook, as mesmas metodologias críticas estão sendo utilizadas com respeito ao Alcorão e a história antiga islâmica. Os resultados têm sido devastadores para as crenças tradicionais islâmicas em relação à autoria e à compilação do Alcorão.

Fonte: Ensaios Apologéticos, Editora Hagnos.

 

 

 

 

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