Segunda-feira, Dezembro 30, 2024

O Ecumenismo é uma Heresia?

O Decreto sobre o Ecumenismo Unitatis Redingration (UR) disputa com a Declaração sobre Liberdade Religiosa o lugar de honra (ou desgraça, dependendo da perspectiva teológica que se adote) de ser o documento mais doutrinariamente inovador do Concílio Vaticano II. Aqueles nos dois extremos do espectro católico, tradicionalistas e liberais, vêem esse decreto (com sentimentos de tristeza carrancuda e exultante alegria respectivamente) como representando um afastamento significativo da doutrina tradicional. Esta evidentemente enfatizou o Catolicismo como a única e verdadeira religião, para a qual os cristãos separados simplesmente terão de voltar caso se queira restaurar a unidade. Neste breve artigo irei me limitar a uma comparação entre a UR e o documento papal pré-conciliar, mais freqüentemente citado como sendo incompatível com a UR, a encíclica do Papa Pio XI de 1928 sobre a promoção da verdadeira unidade religiosa, Mortalium Animos (Sobre a Unidade Religiosa). Esta encíclica define a posição da Igreja Católica sobre o incipiente movimento de unidade religiosa que ganhava força nos círculos protestantes liberais desde o final do século 19 e início do século 20.

Para comparar esses dois documentos magisteriais, primeiro precisamos lembrar a distinção entre uma inversão da política, da disciplina ou da estratégia pastoral oficiais da Igreja e uma contradição de doutrina. O primeiro tipo de mudança tem ocorrido muitas vezes no curso da história da Igreja, em resposta à evolução das circunstâncias. E no tocante a esta prática disciplinar, uma comparação entre MA e UR revela uma inegável e muito acentuada mudança da direção – de fato, praticamente uma guinada de 180 graus. Pio XI terminantemente proibiu qualquer participação católica nas reuniões e atividades intereclesiais ou inter-religiosas motivadas pelo desejo de restaurar a unidade dos cristãos. O Vaticano II, por outro lado, autoriza e positivamente incentiva a participação católica em tais atividades (dentro de certos limites). Assim, a Igreja nos dias atuais fez pois um juízo prudente de que os riscos e perigos relativos à indiferença e à confusão sobre a fé ocasionados por tais atividades – perigos estes fortemente enfatizados por Pio XI – são mais que compensados pelo esperançoso grande bem resultante a longo prazo do ecumenismo: a gradual e melhor mútua compreensão, levando a que a unidade que Cristo desejou para todos os que professam ser seus discípulos.

No nível mais fundamental da doutrina, no entanto, a resposta breve à acusação de contradição entre MA e UR é que o que Pio XI condenou é, de forma alguma, a mesma coisa que o Concílio Vaticano II afirma. O que, exatamente, o Papa Pio condenou como falsa doutrina? Basicamente, a teologia protestante liberal que dominou as iniciativas ecumênicas no início do século 20. Mais especificamente, esta teologia encarnada -explicitamente ou, pelo menos implicitamente – várias teses específicas censurado por Papa Pio XI.

 

Quatro Erros Ecumênicos


 

(1) Os primeiros pan-religiosos normalmente partiam de uma abordagem do estilo “mínimo denominador comum”: Eles previam uma “unidade” religiosa em todo o mundo, em que todos concordariam em algumas crenças básicas, enquanto “discordariam” em outros pontos. O Papa observa que esses liberais religiosos parecem “ter a esperança de que, sem dificuldade, ocorrerá que os povos, embora cada um sustente sentença diferente sobre as coisas divinas, concordarão fraternalmente na profissão de algumas doutrinas como que em um fundamento comum da vida espiritual”. (MA 2) Esta hipotética “unidade” em uma única “religião mundial” incluiria, naturalmente, os não-cristãos de todos os tipos.

 

(2) Pio XI insistiu que o erro acima envolve um outro em um nível mais profundo: a negação do próprio princípio da verdade revelada, que exige concordância com a Palavra de Deus por sua própria autoridade. Esforços pan-religiosos contemporâneos que operam segundo o princípio (1), diz o Papa, se fundamentam na falsa opinião dos que julgam que quaisquer religiões são, mais ou menos, boas e louváveis, pois, embora não de uma única maneira, elas alargam e significam de modo igual aquele sentido ingênito e nativo em nós, pelo qual somos levados para Deus e reconhecemos obsequiosamente o seu império.

Erram e estão enganados, portanto, os que possuem esta opinião: pervertendo o conceito da verdadeira religião, eles repudiam-na e gradualmente inclinam-se para o chamado Naturalismo e para o Ateísmo. Daí segue-se claramente que quem concorda com os que pensam e empreendem tais coisas afasta-se inteiramente da religião divinamente revelada. (MA 3)

Essa idéia de que todas as religiões são apenas diferentes (e falíveis) expressões humanas de um impulso ou instinto religioso natural foi um dos erros fundamentais daquele modernismo, que tinha sido tão recentemente condenada pelo Papa São Pio X.

 

(3) Ao passar da natureza íntima da fé para as formas exteriores da organização visível, Pio XI encontrou outro erro relacionado. Naquelas iniciativas que limitam a busca da unidade para aqueles que já professavam a fé em Cristo – o que a Igreja hoje distingue entre “ecumenismo” e “diálogo inter-religioso” – o papa discerniu uma falsa eclesiologia (compreensão teológica da Igreja). Pois o que estes ecumenistas protestantes liberais julgam ser a “Igreja de Cristo” perceptível e visivelmente unida seria nada mais do que “uma Federação de várias comunidades cristãs, embora aderentes, cada uma delas, a doutrinas opostas entre si”.(MA 8)

 

(4) O papa ressaltou que tal eclesiologia por sua vez envolve a idéia relacionada de que a unidade pela qual Cristo rezou – ut unum sint – queria “significar um desejo e uma prece de Cristo ainda carente de seu efeito. Pois opinam: a unidade de fé e de regime, distintivo da verdadeira e única Igreja de Cristo, quase nunca existiu até hoje… mas que, entrementes, deve existir apenas uma fictícia unidade”. (MA 9)

 

Antes de analisar a UR à luz dessas idéias condenadas, podemos considerar uma outra queixa comum. Os críticos tradicionalistas alegam que muitas vezes UR deixa o conceito-chave do ecumenismo perigosamente indefinido. Eu suspeito que esta preocupação surge a partir de uma tradução defeituosa da edição vulgar de Flannery dos documentos, aqueles que o Concílio limitou-se apenas em “indicar” o que “envolve o movimento ecumênico”. Uma tradução mais fiel da abertura do segundo parágrafo da UR 4, trazendo o seu caráter como uma definição, seria esta: “Por «movimento ecuménico» entendem-se (Per ‘motum oecumenicum’ intelleguntur) as atividades e iniciativas, que são suscitadas e ordenadas, segundo as várias necessidades da Igreja e oportunidades dos tempos, no sentido de favorecer a unidade dos cristãos.” O Concílio a seguir faz esta definição mais precisa, definindo os tipos de “actividades e iniciativas” que tem em mente: (a) evitar todas as deturpações de crenças e práticas cristãos separados”; (b) o diálogo entre peritos de diferentes denominações com o objetivo de melhorar a compreensão mútua; (c) a mais ampla colaboração no desempenho de obrigações que “a consciência cristã” exige em vista do bem comum.; (d) o encontro para a oração em comum, onde isso é permitido; e (e) a renovação e reforma da própria Igreja na fidelidade à vontade de Cristo. Parece bastante claro que, enquanto (b), (c) e (d), de fato, relaxa as proibições disciplinares do MA, nenhum destes cinco pontos contradiz qualquer verdade doutrinária estabelecida por Pio XI em sua encíclica.

 

O Decreto: Nenhum erro Aqui


 

Agora podemos continuar a refletir sobre a UR à luz dos quatro erros doutrinários acima mencionados reprovados pelo Papa Pio:

 

(1) O Vaticano II faz uso de uma abordagem ao estilo “mínimo denominador comum” para “equilibrar” unidade e verdade? De modo nenhum. A Unitatis redintegratio 3 afirma que, enquanto os irmãos separados têm muitos elementos de verdade, a vontade de Deus é que todos eles venham para que plenitude que só pode ser encontrada no catolicismo:

 

Pois é somente através da Igreja Católica de Cristo. . . que a plenitude dos meios de salvação pode ser obtida. Era só o Colégio Apostólico, do qual Pedro é o chefe. . . que nós acreditamos que o Senhor confiou todos os benefícios da nova aliança, a fim de estabelecer na terra o único Corpo de Cristo, no qual todos aqueles que de alguma forma já pertencem ao povo de Deus deve ser totalmente incorporada. (UR 3, grifos no original)

 

Porque só pela Igreja católica de Cristo, que é o meio geral de salvação, pode ser atingida toda a plenitude dos meios salutares. Cremos também que o Senhor confiou todos os bens da nova Aliança ao único colégio apostólico, a cuja testa está Pedro, com o fim de constituir na terra um só corpo de Cristo. É necessário que a ele se incorporem plenamente todos os que de alguma forma pertencem ao Povo de Deus.

 

O decreto também lembra que, embora exista uma “hierarquia” das verdades católicas, “já que o nexo delas com o fundamento da fé cristã é diferente”, isto não significa que as crenças menos “fundamentais” católicas – aquelas não compartilhadas por protestantes ou ortodoxos cristãos – sejam “negociáveis” ou possam ser varridas para debaixo do tapete. (As verdades reveladas sobre Nossa Senhora, por exemplo, derivam da Encarnação, e não vice-versa). Pelo contrário, “É absolutamente necessário que toda a doutrina seja exposta com clareza. Nada tão alheio ao ecumenismo como aquele falso irenismo pelo qual a pureza da doutrina católica sobre detrimento e é obscurecido o seu sentido genuíno e certo.” (UR 11).

 

(2) A UR implica em uma descida gradual para o naturalismo em detrimento da revelação divina, levando a um abandono de toda a verdade revelada? Não, porque ela nunca parte da premissa que Pio XI diz que leva ao “beco sem saída”, ou seja, a idéia modernista de que quaisquer religiões todas “embora não de uma única maneira, elas alargam e significam de modo igual aquele sentido ingênito e nativo em nós, pelo qual somos levados para Deus”. O ensinamento conciliar, em contraste com esta abordagem naturalista da religião, salienta as realidades sobrenaturais da revelação e da fé. A UR afirma que a Igreja Católica foi “enriquecida de toda a verdade revelada por Deus e de todos os instrumentos da graça ” (UR 4; cf. UR 3). Além disso, “Cristo outorgou ao colégio dos doze o ofício de ensinar, governar e santificar. … escolheu Pedro, sobre quem, após a profissão de fé, decidiu edificar a Sua Igreja. … [e] confiou-lhe a tarefa de confirmar todas as ovelhas na fé.” (UR 2). Os Padres que promulgaram a UR, eram obviamente aqueles mesmos que, apenas um ano depois, promulgou a Constituição Dogmática sobre a Revelação Divina, que serve como uma chave interpretativa para outros documentos conciliares que abrangem esse assunto.

 

(3) A UR concebe uma “Igreja” do futuro unida como uma “federação” de diferentes denominações cristãs aderentes, cada uma delas, a pelo menos algumas doutrinas opostas entre si? Não há em qualquer lugar essa sugestão. O Vaticano II apresenta a unidade querida por Deus como aquela em que todos são – surpresa das surpresas! -católicos. Tendo eles deixado claro que por “Igreja” entendem o corpo liderado pelos “seus sucessores os Bispos, com a sua cabeça, o sucessor de Pedro” – ie, a Igreja Católica Romana, os pais continuam:

 

Assim a Igreja, a única grei de Deus, como um sinal levantado entre as nações, oferecendo o Evangelho da paz a todo o género humano, peregrina em esperança, rumo à meta da pátria celeste. Este é o sagrado mistério da unidade da Igreja, em Cristo e por Cristo, realizando o Espírito Santo a variedade dos ministérios. (UR 2, grifos no original do autor)

 

(4) A partir do que já foi dito, deve ficar claro que o decreto sobre o ecumenismo não ensina a quarta heresia condenada pelo Papa Pio XI na Mortalium Animos, ou seja, a idéia de que a unidade da Igreja é meramente um ideal futuro que os cristãos separados devem se esforçar para construir, na medida em que ela ainda não existe. Claro, é preciso distinguir cuidadosamente aqui entre a unidade da Igreja como tal e unidade entre os cristãos. Obviamente, se nós entendermos a palavra “cristão” para cobrir todos os que professam a fé em Cristo, a última unidade ainda não existe e nunca existiu desde os primeiros cismas surgiram na época do Novo Testamento! Mas essas divisões não implicam que a própria Igreja seja, ou possa ser, desunida, no sentido de estar dividida em diferentes denominações com diferentes doutrinas. Nossa fé, expressa no Credo, explicita isto em ao se recitar “una, santa, católica, apostólica”. E o mesmo acontece com a UR quando exprime a esperança de que, como resultado do ecumenismo,

Assim, palmilhando este caminho, superando pouco a pouco os obstáculos que impedem a perfeita comunhão eclesiástica, todos os cristãos se congreguem numa única celebração da Eucaristia e na unidade de uma única Igreja. Esta unidade, desde o início Cristo a concedeu à Sua Igreja. Nós cremos que esta unidade subsiste (Lat., subsistit) indefectivelmente na Igreja católica e esperamos que cresça de dia para dia. até à consumação dos séculos. (UR 4, grifos do autor)

Se nas décadas subsequentes ao Vaticano II, o ecumenismo, como UR, expõe sempre foi fielmente implementado – até mesmo pela própria liderança da Igreja – é, naturalmente, uma questão distinta. Uma outra é se os resultados alcançados após cerca de meio século justificam ou não, sabendo-se o que se sabe hoje, a prudência das mudanças disciplinares do “abrir a porta” da UR. Creio que os católicos podem agora legitimamente debater estas duas perguntas. Em qualquer caso, se esta breve comparação ajudou a mostrar que o Concílio não caiu nas aberrações doutrinárias reprovadas por Pio XI em 1928, ele terá servido a um bom propósito.

 

[Este artigo apareceu pela primeira vez na edição de julho-setembro de 2008 da revista trimestral autraliana Oriens. Reproduzido com permissão.]


Pe Brian Harrison, OS, é professor emérito de teologia da Pontifícia Universidade Católica de Porto Rico, atualmente baseado no Centro de Estudos dos Oblatos da Sabedoria – Oblates of Wisdom Study Center – em St. Louis, Missouri (EUA).

 

FONTE


HARRISON, Rev. Brian. Marcel Lefebvre: Is Ecumenism a Heresy? – Disponível em: http://www.catholic.com/magazine/articles/is-ecumenism-a-heresy

 

PARA CITAR


HARRISON, Pe. Brian. O Ecumenismo é uma Heresia? – Disponível em: <http://www.apologistascatolicos.com.br/index.php/concilio-vaticano-ii/ecumenismo/719-o-ecumenismo-e-uma-heresia>. Desde: 24/08/2014. Tradução: JBF.

 

 

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