Terça-feira, Novembro 12, 2024

O direito à liberdade religiosa e à liberdade de consciência

 

Introdução

Este estudo tem por objetivo mostrar que o direito à liberdade religiosa afirmada pelo Vaticano II na Declaração Dignitatis humanae[1](DH) não é idêntica à liberdade de consciência condenada pelos papas no século XIX. É, portanto, um ponto de vista parcial. Não consiste em tratar todas as questões espinhosas levantadas pela Dignitatis humanae, nem de justificar as considerações discutíveis que ela pode eventualmente conter. Não consiste muito menos ainda em observar as consequências nocivas que podem surgir dos seus silêncios e do seu modo de expressão. Outros estudos seriam necessários para examinar todos estes pontos.

Aqui está o plano que nós adotaremos:

I.                  Distinção preliminar: liberdade moral e liberdade civil

II.                Posição do problema

III.              Liberdade civil limitada ou ilimitada?

Dignitatis humanae afirma o direito a uma liberdade civil limitada, enquanto que a liberdade de consciência condenada no século XIX comportava o direito a uma liberdade civil ilimitada, incompatível com as exigências da ordem social.

IV.             Liberdade civil ou liberdade moral?

Dignitatis humanae exclui formalmente toda liberdade moral, com relação ao erro religioso, enquanto que a liberdade de consciência condenada no século XIX comportava igualmente uma liberdade moral (interna e externa) com relação ao erro religioso.

I. DISTINÇÃO PRELIMINAR: LIBERDADE MORAL E LIBERDADE CIVIL


O termo liberdade tem vários significados. Para evitar confusão, é necessário fazer as distinções que se impõem. Nós mantemos somente uma, indispensável para a compreensão do nosso assunto: esta que existe entre liberdade moral e liberdade civil.

A liberdade, no ponto de vista em que nos encontramos, pode ser definida como uma ausência de ligação. Encarada com relação à Deus (à verdade, ao bem), esta ausência de ligação constitui a liberdade moral. Encarada com relação ao poder civil, ela constitui a liberdade civil.

A.                A liberdade moral

A liberdade moral é a ausência de obrigação moral. Ela consiste no fato de não ser ligada por nenhuma obrigação legitimamente imposta: quer por Deus mesmo, quer por toda autoridade legitima esperando ligar em consciência (uma tal obrigação cria um dever moral, um dever com relação à Deus, o que é precisamente o contrário da liberdade moral). É moralmente livre para fazer um ato determinado aquele que não está submetido à nenhuma lei lhe proibindo de fazer este  ato.

A liberdade moral equivale ao direito de agir. Portanto, ela só pode se aplicar a um objeto moralmente bom.

A liberdade moral não se pode aplicar a um objeto moralmente mau, entendido que o direito ou a faculdade moral de fazer mal repugna nos termos. O mal, com efeito, é uma desordem, e ninguém pode ter o direito ou a faculdade moral para fazer um ato contrario à lei moral, reguladora da ordem[2].

 

B.                A liberdade civil

A liberdade civil é a ausência de ligação com relação ao poder civil, quer dizer, a imunidade de constrangimento ou de coerção na sociedade civil com relação ao poder, mas não com relação à Deus.

Ela consiste na faculdade de não ser forçado a agir, nem impedido de agir (quanto a certos atos determinados) pelo poder civil. Ela corresponde a um direito de exigir a imunidade de constrangimento. Mas ela não indica, por ela mesma, nenhum direito de agir ou de não agir. Com efeito, contrariamente à liberdade moral, que nunca se pode aplicar a um objeto moralmente mau, a liberdade civil pode ter por objeto atos moralmente maus.

Por exemplo, se a lei civil dum Estado permite o exercício de um culto não católico, toda pessoa tem a liberdade civil de praticar este culto. Mas ela não tem a liberdade moral, visto que este culto é objetivamente errôneo (ao menos sob alguns aspectos).

A liberdade civil pode, portanto ter por objeto, quer um ato moralmente bom, quer um ato moralmente mau.

Distingamos os dois casos.

1.                  A liberdade civil tem por objeto um ato moralmente bom.

Neste caso, há também a liberdade moral de fazer este ato. A liberdade civil só é então a proteção da liberdade moral na ordem jurídica da sociedade. Ela é, portanto, boa e devida em justiça. Neste caso, há, portanto, um direito natural à exigir a liberdade civil. Por exemplo: tenho a liberdade moral de praticar o culto católico, visto que este ato é moralmente bom. E tenho também o direito natural à liberdade civil de praticar este culto.

2.                  A liberdade civil tem por objeto um ato moralmente mau.

Então o poder civil nunca pode conceder nenhum mandato positivo, nenhuma autorização positiva de fazer um tal ato[3]. Com efeito, uma tal autorização voltaria a reconhecer uma liberdade moral, um direito de agir. Ora, a liberdade moral só se pode aplicar a um objeto moralmente bom.

No entanto, o poder civil pode e deve mesmo, em certos casos, conceder a liberdade civil com relação a certos atos maus, para evitar um maior mal ou para promover um maior bem.

A lei civil, sendo uma lei humana, portanto imperfeita, não pode proibir todos os atos maus que a lei moral ou a lei divina proscreve. E isto é justo e razoável[4].

Pio XII afirmou que, “em determinadas circunstâncias, [Deus] não dá aos homens […] nenhum direito de impedir e de reprimir o que é falso e errôneo”[5]. Por consequência, o poder civil tem, em certos casos, o dever de conceder uma liberdade civil com relação a atos maus.

a)                 Este dever do Estado tem por vezes um fundamento na natureza das pessoas que vão beneficiar-se da liberdade civil.

Por exemplo, o Estado deve reconhecer a liberdade civil aos pais de educar as crianças. E este dever está fundado na autoridade da família com relação ao Estado e sobre o direito dos pais para com os seus filhos. Os pais, mesmo não sendo católicos, têm um direito fundado na natureza a não serem impedidos pelo poder civil e pelos outros homens de educar os seus filhos segundo suas convicções; eles têm portanto, um direito fundado na natureza à liberdade civil nesta matéria.

Notemos, todavia, que o direito dos pais sobre os seus filhos não é absoluto. Ele é limitado pelas necessidades da ordem pública justa, que consiste nomeadamente os direitos fundamentais das crianças (direito à vida, etc.). Em caso de negligência grave ou de abusos sérios, os pais podem perder o seu direito.

Pode-se, portanto dizer que o dever do Estado de conceder a liberdade civil, quando há um fundamento na natureza das pessoas se beneficiam desta liberdade, corresponde a um direito, fundado na natureza, à liberdade civil. Um tal direito (fundado na natureza) de exigir a imunidade de constrangimento com relação ao poder civil não corresponde, com certeza, a um direito de agir, de fazer um ato mau.

Nós veremos que Dignitatis humanae afirmou um tal direito (fundado na natureza da pessoa) à liberdade civil em matéria religiosa, em justos limites.

b)                 Por vezes, ao contrário, o dever do poder civil de conceder a liberdade não corresponde a nenhuma exigência do lado das pessoas que serão beneficiadas. Este dever só está fundado nos bens das outras pessoas e da sociedade toda inteira (quer dizer, no bem comum).

É o caso das liberdades civis que sancionam legalmente a tolerância de certos males (por exemplo, a regulamentação da prostituição: são Luis decreta os regulamentos com o fim de reprimir este flagelo).

Neste caso, não existe direito fundado na natureza à liberdade civil, visto que não há fundamento justo e verdadeiro do lado da pessoa tolerada. A liberdade civil é então considerada como uma pura tolerância.

Nós podemos recapitular estas distinções no quadro que se segue:

Liberdade

Ausência de ligação

Natureza do objeto

Fundamento da natureza do sujeito do direito

Natureza do direito*

moral

Com relação à Deus

Objeto necessariamente bom

Fundamento na natureza: todo ato bom conduz ao fim

Direito de agir

civil

Com relação ao poder civil

Obejto bom

Mesmo fundamento que em cima

Direito de agir e direito, fundado na natureza, à liberdade civil**

Objeto mau

Fundamento na natureza: é bom que a pessoa não seja impedida de agir pelo poder civil neste dominio

Sem direito de agir. Direito, fundado na natureza, somente à liberdade civil**

Sem fundamento na natureza: não é bom qque a pessoa seja impedida. A liberdade civil é acordada somente em vista do bem comum

Sem direito de agir. Sem direito, fundado na natureza, à liberdae civil**. Liberdade civil concedida, como uma pura tolerância

*As informações mais técnicas que concernem o direito são dadas em anexo.

**Direito à liberdade civil = direito de exigir a imunidade de constrangimento.

 

II.                POSIÇÃO DO PROBLEMA


A Dignitatis humanae afirma: “A pessoa humana tem o direito à liberdade religiosa”. Ora, a encíclica Quanta cura[6] do papa Pio IX condena a proposta: “A liberdade de consciência e de cultos é um direito próprio a cada homem”[7] .

Estas duas proposições são equivalentes, de sorte que haja contradição entre Dignitatis humanae e Quanta cura, uma afirmando o que a outra condena? A resposta é afirmativa se (e somente se) o direito à liberdade religiosa de Dignitatis humanae é idêntico à liberdade de consciência e de cultos de Quantam cura.

Lendo Dignitatis humanae e as Acta do concilio (AS), nota-se com evidência que a expressão “direito à liberdade religiosa” designa um direito (fundado na natureza) a uma liberdade civil, e não uma liberdade moral[8].

Pelo contrario, lendo Quanta cura e os outros documentos pontificais que condenam o liberalismo no século XIX, é mais evidente que a liberdade de consciência e de cultos designa unicamente o direito à liberdade civil de consciência e de cultos. Nós mostraremos mais além que na realidade esta expressão tem também uma conotação moral. Mas suponhamos provisoriamente que a liberdade de consciência e de cultos significa somente o direito à liberdade civil em matéria religiosa.

 

III.             LIBERDADE CIVIL LIMITADA OU ILIMITADA?


Uma liberdade civil é uma faculdade de não ser impedido de realizar certos atos determinados. Ora, toda faculdade define-se pelo seu objeto. Portanto, é essencial precisar  quais atos (ou quais categorias de atos) são “autorizados” pela lei civil, e quais outros atos são proibidos. Por consequência, o limite entre os atos autorizados e os atos proibidos pertencem a essência da liberdade civil. Os limites de uma tal liberdade não são de maneira nenhuma acidentais, extrínsecos, mas ao contrario essenciais e intrínsecos.

Uma diferença essencial no critério de limitação da liberdade civil introduz, portanto, uma diferença essencial na liberdade civil dela mesma. Nós mostramos nessa parte que o critério de limitação da liberdade religiosa de Dignitatis humanae é bem essencialmente diferente do Lamennais e dos outros naturalistas condenados pela Quanta cura.

 

1.                  Os limites da liberdade religiosa de Dignitatis humanae

 

Dignitatis humanae afirma o direito à liberdade religiosa. Esta é uma liberdade civil intrinsecamente limitada pelas exigências da ordem pública justa.

Com efeito, a definição da liberdade religiosa (DH, 2) menciona explicitamente que esta liberdade existe “em justos limites”.

Uma descrição destes limites é dada mais além (DH, 7): a limitação do direito à liberdade religiosa pelo poder civil deve se fazer “segundo as regras jurídicas, conformes a ordem moral objetiva[9], que são requisitas:

– pela eficaz salvaguarda dos direitos de todos os cidadãos e a harmonização pacífica destes direitos,

– e por uma preocupação adequada desta autêntica paz pública que consiste numa vida vivida em comum baseada numa verdadeira justiça[10],

– assim que pela proteção devida à moralidade pública[11].

Tudo isto constitui uma parte fundamental do bem comum e entra na definição da ordem pública [12].

Este critério de limitação aplica-se a tudo que é dito da liberdade religiosa na Declaração, segundo a observação de Mons. De Smedt (AS, IV, VI, 724, M. 43), e especialmente a tudo que é dito em DH, 4 da “liberdade dos grupos religiosos” (AS, IV, VI, 744, M. 16).

Portanto, pode-se dizer que o direito à liberdade religiosa é intrinsecamente limitado pelas exigências da ordem pública justa que compreende o respeito dos direitos dos cidadãos, da paz publica e da moralidade publica. Esta última consiste na parte da ordem moral objetiva que é politicamente possível de impôr e de proteger por sanções. Isto é conforme o papel do poder civil. O Estado deve, com efeito, penalizar somente os crimes mais prejudiciais à sociedade.

2.                  A liberdade de consciência e de cultos de Quanta cura

 

a)                 Contrariamente à proposta de Dignitatis humanae afirmando o direito à liberdade religiosa, a “opinião errônea” condenada por Pio IX não indica, no elemento da frase concernente a liberdade de consciência e de cultos, nenhum limite permitindo moderar esta liberdade.

b)                 Muito mais, esta mesma “opinião errônea” afirma igualmente para todos os cidadãos o “direito à liberdade absoluta (omnimoda) de manifestar em voz alta e publicamente suas opiniões, sejam quais forem, por palavra, por impressão ou de outra maneira, sem que nenhuma autoridade eclesiástica ou civil possa o limitar”.

Portanto, Pio IX  condena aqui somente a liberdade de propaganda ilimitada.[13] Assim, uma liberdade de propaganda e de imprensa limitada pela moralidade pública e o respeito dos direitos dos outros não é condenada.

Por consequência, é ilógico afirmar que Pio IX, ao condenar a liberdade de consciência e de cultos, quis condenar todo direito à liberdade civil (em matéria religiosa), mesmo o direito a uma liberdade civil limitada; enquanto que, na mesma frase e só como uma “opinião errônea”, ele condena a liberdade de propaganda somente como ilimitada.[14] Ele seria muito mais severo para com a liberdade de cultos que para com a liberdade de propaganda, enquanto que esta última apresenta com toda evidência um perigo maior que a primeira. Com efeito, o exercício público de um culto pelos infiéis é um perigo menor para a salvação dos católicos que uma propaganda destinada a lhes arrancar a fé.

c)                  Uma objeção pode ser feita. Os que reivindicam a liberdade de consciência e de cultos e o direito à liberdade de propaganda ilimitada admitem, no entanto, que: “ o melhor governo é aquele em que não se reconhece o poder de reprimir, pela sanção das penas, os violadores da religião católica,[15] senão quando a paz publica (pax publica) o pede” [proposta (A)].

Portanto, a liberdade de consciência e de cultos parece poder ser limitada segundo o critério da “paz publica”. Mas nós veremos que este critério de limitação eventual é essencialmente diferente da ordem publica justa de Dignitatis humanae.

Notemos antes que Dignitatis humanae descreve cuidadosamente o conteúdo da ordem pública justa. Quanta cura, pelo contrário, não da nenhuma indicação direta sobre o que os naturalistas condenados entendem por “paz publica”.

Nós podemos, no entanto, saber qualquer coisa da concepção que os naturalistas tinham da “paz publica”.

Pio IX apresenta, com efeito, como uma consequência do sistema de governo naturalista descrito em (A) uma “opinião errônea” que compreende um duplo elemento:

1° a liberdade de consciência e de cultos, concebida como um direito próprio a todo homem, que deve ser garantido pela lei;

2° a liberdade ilimitada de propaganda.

Conforme esta consequência, a paz pública, único critério de repressão governamental, não permite de nenhuma maneira restringir a liberdade de propaganda. Com efeito, está bem claro “que nenhuma autoridade eclesiástica ou civil pode impôr um limite”. O governo não pode em particular impôr nenhum obstáculo à manifestação das idéias, quaisquer que sejam (conceptus quoscumque), no domínio moral e religioso. É-lhe proibido, portanto, de invocar a paz pública para proteger a moralidade pública (compreendida num sentido objetivo) contra as propagandas que a atacariam. Ele não pode, portanto, conceder à moralidade pública a “proteção devida”. Ora, um dos elementos constitutivos da ordem publica justa, segundo Vaticano II, é precisamente esta “proteção devida à moralidade pública” (DH, 7).

Está claro, portanto, que a paz pública dos naturalistas de Quanta cura é essencialmente diferente da ordem pública justa de Dignitatis humanae.

Esta concepção minimista da paz publica é aliás uma continuação concretamente inevitável dos princípios políticos dos naturalistas condenados pela Quanta cura. Com efeito, escreve Pio IX na mesma encíclica, “lá onde a religião foi separada da sociedade civil, a doutrina e a autoridade da divina revelação repudiadas, a noção autêntica da verdadeira justiça e do direito humano se obscurece e se perde, e a força bruta toma o lugar da verdadeira justiça e do direito legítimo”.

A paz pública dos naturalistas nem é mesmo, portanto, “a autêntica paz publica que consiste numa vida vivida em comum sobre a base duma verdadeira justiça”, que menciona Dignitatis humanae (DH, 7).

3.                  A liberdade de consciência segundo Lamennais

Esta interpretação está confirmada pelo seguinte fato: Pio IX afirma que a opinião reivindicando a liberdade de consciência e de cultos e a liberdade de propaganda ilimitada é precisamente a mesma já condenada por Gregório XVI na enciclica Mirari vos (15 de Agosto de 1832). Ora, esta encíclica visava principalmente Lamennais e o jornal católico liberal L’Avenir, fundado por ele em 1830.

Lamennais não afirmava a liberdade moral individual (“tolerância dogmática”). Mas ele reclamava “a liberdade inteira, absoluta, de opinião, de doutrina, de consciência e de culto” e todas as liberdades civis […] sem privilégio, sem restrição […] (“tolerância civil”)[16]. “ A liberdade deve ser para todos e inteira para cada um…”[17]. A tolerância civil absoluta é, portanto, apresentada como um ideal. Lamennais embora sabendo os perigos, queria que se tomasse à letra quando afirmava esta liberdade absoluta de propaganda, que os papas deveriam em breve condenar. L’Avenir  reconhecia ingenuamente que seu programa dava uma plena liberdade ao erro de se espalhar: “Deixa-se ao erro a faculdade ilimitada de se reproduzir”[18]. Era preciso abolir todas as concordatas entre as nações e a Santa Sé, segundo Lamennais, e a separação da Igreja e do Estado deveria ser absoluta: “Nós pedimos a liberdade de consciência ou liberdade de religião, plena, universal, sem restrições nem privilégio e, por consequência, no que nos toca, nós católicos, a separação total […]”[19].

L’Acte d’union, manifesto que apareceu no ultimo numero de L’Avenir, afirmava: “O poder constitucional tem somente o direito e o dever de reprimir os crimes e os delitos, que atentariam   materialmente  à essas liberdades ou à qualquer outro direito civil e político dos cidadãos”[20]. “Por isso, mesmo que a parte espiritual da sociedade deve ser liberada completamente, a ação do poder constitucional só pode exercer-se na ordem dos interesses materiais”[21].

O liberalismo de Lamennais era, portanto, radical. Os governantes deviam deixar uma liberdade civil total, não somente no domínio religioso, mas também no domínio espiritual e moral, e intervir somente em caso de atentado material ao direito de outrem. Os limites da liberdade de consciência reivindicada eram, portanto, extremamente fracos. Compreende-se por consequência as frases do cardeal Pacca indicando à Lamennais porquê a Santa Sé o condenava:

O Santo Padre desaprova também e reprova mesmo as doutrinas relativas à liberdade civil e politica, quais, contra vossa intenção sem dúvida, tendem por sua natureza à excitar e propagar em toda parte o espirito de rebelião […].

As doutrinas de L’Avenir sobre a  liberdade de cultos e a liberdade de imprensa,  que foram tratadas com tanta exageração e levadas bem longe pela MM. os redatores, são igualmente muito censuraveis e em oposição com o ensino, as máximas e a prática da Igreja […][22].

Na encíclica Singulari nos (24 de Junho de 1834), Gregório XVI declara que Lemannais “comprometeu-se  […] a enfraquecer e a destruir a doutrina católica que em virtude da autoridade confiada à Nossa fraqueza, Nós definimos na Nossa encíclica já citada [trata-se de Mirari vos]: quer sobre a submissão devida aos poderes; quer sobre a deplorável contaminação do indiferentismo do qual é preciso preservar os povos, e sobre a barreira a opôr à  licença desenfreada de opiniões e da palavra; quer enfim sobre  a condenação da liberdade de consciência, e sobre esta horrível conspiração de sociedades compostas, para a ruína da Igreja e do Estado, dos adeptos de todos os cultos falsos e de todas as seitas”.

Por consequência, as liberdades reivindicadas por Lamennais eram liberdades civis quase ilimitadas, não respeitando as exigências da ordem publica justa.

4.                  Comparação entre a liberdade religiosa e a liberdade de consciência

O texto da enciclica Mirari vos e Quanta cura manifestam que Gregório XVI e Pio IX condenaram o direito a uma liberdade civil ilimitada, não respeitando as exigências da ordem social.

Com efeito, esta liberdade civil comporta uma plena liberdade de propaganda “sem que nenhuma autoridade eclesiástica ou civil possa a limitar”[23]. O poder não tem direito de sancionar penalmente as propagandas de ideias que lesariam os direitos de outrem e a moralidade pública, compreendida no sentido da parte da ordem moral objetiva que é possível impôr. Ele é cego quanto às verdades morais e espirituais, mesmo naturais, e só pode intervir para garantir os direitos puramente materiais dos cidadãos. Além disso, segundo os naturalistas condenados pela Quanta cura, “a sociedade humana deve ser constituída e governada sem mais ter em conta da religião como se ela não existisse, ou ao menos sem fazer nenhuma distinção entre a verdadeira religião e as falsas” (QC).

Dignitatis humanae não ensina nenhum direito a uma tal liberdade civil ilimitada. O que é afirmado, é somente o direito a uma liberdade intrinsecamente limitada pelas justas exigências da ordem social. O poder, segundo Dignitatis humanae, pode e deve proteger e sancionar penalmente a moralidade pública, compreendida num sentido objetivo, os direitos dos cidadãos e das comunidades. Ele pode e deve proibir a propaganda desonesta e mentirosa, a pornografia, os livros e espetáculos licenciosos ou blasfematórios, as calúnias ou injúrias contra as pessoas ou as comunidades, etc. Dignitatis humanae reconhece, portanto, no Estado, o papel de mediador da lei eterna, em todo o campo da lei natural, indicada por São Paulo: “ministro de Deus para o bem” (Rm 13, 4).

Além disso, Dignitatis humanae, contrariamente ao principio dos naturalistas recordados mais acima, reconhece explicitamente “a doutrina católica tradicional sobre o dever moral dos homens e das sociedades (ac societatum) a respeito da verdadeira religião e da única Igreja de Cristo” (DH, 1)[24]. Ela admite que a Igreja católica possa gozar de um “reconhecimento civil especial na ordem jurídica da cidade” (DH, 6)[25]. Enfim, “na sociedade humana e diante de todo poder público (coram quamvis potestate publica), a Igreja reivindica a liberdade enquanto autoridade espiritual (utpote auctoritas spiritualis), instituída por Cristo Senhor e encarregada por mandato divino de ir  pelo mundo inteiro pregar o Evangelho a toda criatura” (DH, 13). Portanto, o poder público é capaz de reconhecer a Igreja como autoridade espiritual. Ele não é cego à verdade religiosa, como os naturalistas condenados por Pio IX o pretendiam.

Portanto, é impossível de identificar o direito a uma liberdade civil moderada, intrinsecamente limitada pelas justas exigências da ordem social, e do direito  absoluto a uma liberdade civil ilimitada, que nega o papel da autoridade encarregada de promover e de garantir a ordem publica justa.

A liberdade de consciência condenada por Gregório XVI e Pio IX não é o direito à liberdade religiosa de Dignitatis humanae.

5.                  Confirmação: o ensino de Leão XIII

Se ficava alguma dúvida sobre o caráter ilimitado da liberdade de consciência condenada pelos papas no século XIX, está tirada pela interpretação autêntica dada por Leão XIII. Na encíclica Immortale Dei (1 de Novembro de 1885), o papa passa em revista “estes princípios modernos de liberdade desenfreada […] do qual o primeiro é o principio de igualdade absoluta entre os homens! “Cada um realça embora sozinho que não é de maneira nenhuma submisso à autoridade de outrem: ele pode com toda liberdade pensar sobre toda coisa que ele quiser, fazer o que lhe agrada; ninguém tem o direito de condenar aos outros”[26].

“Por consequência, cada um será livre de abraçar a religião que preferir ou de não seguir nenhuma se nenhuma lhe agrada. Daqui provem necessariamente a liberdade sem freio de toda consciência, a liberdade absoluta de adorar ou de não adorar Deus, a licença sem limites  e de pensar e de publicar seus pensamentos”[27]. “A liberdade de pensar qualquer coisa e de publicar tudo que se quer, desviar à toda regra não é por si um bem que a sociedade tenha a se felicitar […]”[28].

Leão XIII afirma que estas doutrinas já foram condenadas pelos seus predecessores:

É assim que, na sua carta encíclica Mirari vos, do dia 15 de Agosto de 1832, Gregório XVI censurou fortemente estas propostas que já circulavam: em termo de religião, nenhuma escolha se impõe ao homem; inteira liberdade para cada um julgar segundo seus gostos, cada um realça somente sua consciência e pode, além disso, publicar o que pensa e urdir revoluções no Estado […][29].

Em seguida, depois de ter mencionado a condenações trazidas por Pio IX, especialmente no Syllabus, Leão XIII acrescenta:

Destas decisões dos Soberanos Pontífices, é preciso absolutamente admitir que a origem do poder público deve atribuir-se a Deus, e não à multidão; que o direito ao motim repugna à razão; que não ter em conta nenhum dos deveres da religião ou considerar da mesma maneira as diferentes religiões não é permitido nem aos indivíduos, nem às sociedades; que a liberdade ilimitada de pensar e de admitir em público suas opiniões nunca deve ser classificada entre os direitos dos cidadãos, nem entre as coisas dignas de favor e de proteção”[30].

Esta interpretação autêntica dada por Leão XIII acaba com o debate. Aliás, toda vez que os papas falam da liberdade de consciência, eles empregam as expressões: “liberdade absoluta”, “liberdade ilimitada”, “liberdade sem limites”, “licença desenfreada”, etc. Teriam eles assim falado, se quisessem condenar todo o direito à liberdade civil, mesmo limitada? Evidentemente não.

IV.             LIBERDADE CIVIL OU LIBERDADE MORAL?


Até aqui, nós supomos que as expressões “liberdade de consciência e de cultos” ou “liberdade de consciência” significariam o direito à liberdade civil em matéria religiosa, e unicamente isto. Ora, lendo os documentos pontifícios e os estudos teológicos sobre o liberalismo do século XIX, percebe-se que a liberdade de consciência designa também uma liberdade moral.

 

1.                  A maioria dos comentadores de Quanta cura sublinham, à proposito da liberdade de consciência, que trata-se, não somente da liberdade civil ilimitada, mas também da liberdade moral, interna e externa. Citemos por exemplo:

a)                 O cônego A.-C. Peltier transpõe assim, de maneira positiva, a condenação da posição de Quanta cura quanto à liberdade de consciência e de cultos e a liberdade de propaganda:

LXXXIII. O direito de acreditar o que se quer em matéria de religião, e de agir ou de falar em conformidade aos princípios de crença ou, melhor dizendo, de incredulidade que se formaram a si mesmo, não é um direito natural; mas este direito pretendido é ao contrário incompreensível, e com o dever de obedecer à Deus, que desde o princípio, intimando ao homem diversos preceitos, impôs-lhe a obrigação, quer dizer a necessidade moral de os observar; e com aquele de obedecer à Igreja, à qual seu divino Fundador confiou o direito de ensinar com autoridade todo o gênero humano; e com o dever não menos estrito para as crianças de receber o ensino de seus pais, que para estes consiste a ensinar às suas crianças a verdadeira religião. Portanto, o governo que adotaria o princípio contrário da liberdade ilimitada de todos os cultos não serviria a causa nem de Deus, nem da Igreja, nem da sociedade doméstica.

LXXXIV. Os cidadãos não têm o direito a uma liberdade ilimitada de manifestar alta e publicamente seus pensamentos, sejam quais forem, por palavra, pela via de imprensa, ou toda outra maneira: e a autoridade, tanto civil que eclesiástica, tem por missão, cada uma na sua esfera, de ordenar e velar nisso[31].

b)                 O Pe. Liberatore, s. J., sobre o mesmo assunto diz: “O espírito moderno toma aqui a palavra liberdade […] no sentido de isenção de toda lei, de toda regra dos atos”[32].

c)                  Dom Paul Benoît escreve:

A liberdade de consciência é o pretendido direito de todo homem à professar a religião que prefere. A  liberdade de cultos é o pretendido direito de todos os cultos à igual publicidade de suas manifestações. Em virtude da liberdade de consciência, todo homem pode admitir interiormente e manifestar exteriormente a fé em Jesus Cristo ou em Maomé, fazer-se católico, protestante ou budista, segundo o que preferir. “cada um é livre de abraçar e de professar a religião que terá achado boa segundo as luzes de sua razão”[33]. A partir do momento em que minha opinião é que Jesus Cristo não é Deus, em seguida apostatar; os príncipes e os padres não têm nada a me dizer, Deus mesmo , se quiser que eu creia, deve trazer as provas que tornam impossíveis as minhas duvidas[34].

Trata-se portanto, da liberdade moderna interna e extrema, e não somente do direito à liberdade civil.

 

2.                  Os papas também tomaram a liberdade de consciência num sentido moral. Citemos somente:

a)                 Leão XII em Libertas (20 de Junho de 1888): “Que se o compreendermos por ela que cada um pode indiferentemente, à seu degrau,  prestar ou não prestar um culto à Deus”[35].

b)                 Pio XI, na encíclica Non abbiamo (29 de Junho de 1931): “Nós somos orgulhosos e felizes de combater para a liberdade das consciências (la libertà delle coscienza), e não, como nos fizeram dizer por inadvertência, para a liberdade de consciência (libertà di coscienza), expressão equivalente e normalmente empregada abusivamente no sentido de uma independência de consciência, coisa absurda para uma alma criada e resgatada por Deus”.

 

3.                  Para compreender bem as condenações do liberalismo do século XIX, é preciso lembrar-se do sistema de idéias que os papas reprimiram sob nome de “novo direito” ou de “princípios modernos”[36]. Este conjunto de teorias indiferentistas, racionalistas ou naturalistas, era oriundo da “Filosofia das Luzes” do século XVIII (especialmente as teorias de J.-J. Rousseau que influenciou muito Lamennais). Consistia essencialmente a negar a autoridade de Deus ou da Revelação, quer sobre os indivíduos, quer na sociedade, e a proclamar em consequência a liberdade moral do homem e das sociedades com relação ao erro religioso.

Esquematicamente, pode-se distinguir neste sistema de ideias três liberdades estreitamente ligadas e todas as três condenadas:

a)                 a liberdade moral interna[37] de pensar o que se quer e de escolher interiormente a religião que se prefere. É a autonomia da consciência com ralação à Deus, ao verdadeiro e ao  bem, é a ausência de toda regra, de toda obrigação ligando a consciência. Esta liberdade, designa-se normalmente pelas expressões “liberdade de consciência”, “liberdade de pensamento”…

b)                 a liberdade moral externa de publicar tudo o que se pensa (designada também por liberdade de consciência, liberdade de opinião, liberdade de palavra, de imprensa, de propaganda, de ensino…) e de praticar o culto que se quer (liberdade de cultos). Trata-se de um direito positivo ou direito de agir. O Estado reconhece este direito de agir e dá um mandato positivo de agir como se quer[38].

c)                  O direito à liberdade civil ilimitada ou direito de não ser impedido de publicar tudo o que se quer e de fazer o que nos agrada. Este direito negativo deriva logicamente do direito positivo supra-citado (liberdade moral externa), e é designado pelas mesmas expressões.

Estas três liberdades (liberdades morais interna e externa, liberdade civil ilimitada) derivam umas das outras. Mais ou menos estreitamente ligadas, elas não são sempre distinguidas explicitamente, nem nos documentos pontifícios, nem nos autores que os papas tinham em vista.

Notemos que a liberdade de consciência (sem dúvida por causa da palavra consciência que designa qualquer coisa de interno) aplica-se primeiro à liberdade moral interna, e não em consequência à liberdade moral externa. Ela designa enfim, pela derivação, a liberdade civil.

A liberdade de cultos, ao contrário (a palavra “culto” antes de tudo faz referência às manifestações externas), significa principalmente a liberdade civil de praticar qualquer culto. Entretanto, Leão XIII a liga estreitamente à liberdade moral: esta liberdade de cultos, de fato, “repousa sobre este principio que é permitido a cada um de professar tal religião que lhe agrada, ou mesmo não professar nenhuma”. E trata-se realmente da liberdade moral externa (ou direito positivo, direito de agir), visto que o papa acrescenta desde logo: “Mas, tudo ao contrário, está bem lá, sem nenhuma dúvida, entre todos os deveres do homem, o maior e mais santo, é aquele que ordena ao homem de prestar à Deus um culto de piedade e de religião […]”[39].

A “liberdade de cultos”, segundo esta explicação de Leão XIII, é portanto uma liberdade que repousa essencialmente sobre a liberdade moral externa e sobre o naturalismo absoluto ou moderado (indiferentismo).

Ao final da encíclica Libertas, uma passagem mostra bem os dois sentidos dos quais as “liberdades modernas” são condenadas:

Destas considerações, resulta portanto que não há nenhuma permissão de mandar, de proibir ou de conceder sem discernimento a liberdade do pensamento, da imprensa, do ensino, de religiões como sendo de direitos que a natureza conferiu ao homem. Se verdadeiramente a natureza as tivesse conferido, teríamos o direito de livrar-se da soberania de Deus (liberdade moral), e nenhuma lei poderá moderar a liberdade humana (liberdade civil)[40].

Ora, o direito à liberdade religiosa afirmada pela Dignitatis humanae não implica em nada que se tenha “direito de se excluir da soberania de Deus” (liberdade moral, direito positivo, direito de agir), nem que “nenhuma lei possa moderar a liberdade moral” (direito a uma liberdade civil ilimitada)[41].

CONCLUSÃO


Sob as expressões de “liberdade de consciência”, “liberdade de cultos”, etc., os papas condenaram ao mesmo tempo:

1°) a liberdade moral (interna e externa) de pensar e de fazer o que se quer, quer dizer uma autonomia da consciência e do agir com relação à Deus, ao verdadeiro e ao bem;

2°) o direito à liberdade civil ilimitada, ou ao menos excessivo, não respeitando as justas exigências da ordem social.

O Vaticano II afirmou, ao contrário, o direito a uma liberdade civil (em matéria religiosa) intrinsecamente limitada pelas exigências da ordem social.

O “direito à liberdade religiosa” é, portanto, essencialmente diferente da liberdade de consciência condenada no século XIX. Desde já não há contradição entre Dignitatis humanae e Quanta cura sobre este ponto.

 

                                                                                         Fr. Dominique-Marie de Saint Laumer

                                                                                                  e Fr. Louis-Marie de Blignières

Anexo

Precisões sobre a noção de direito

Introdução

O direito, como a liberdade, é um termo análogo, que tem muitos significados, mais ou menos vizinhos e conexos uns aos outros. A dificuldade de bem distinguir todos estes diversos sentidos e de os ordenar entre eles cria muitas confusões. Nisto acrescenta-se a diferença de terminologias e de concepções filosóficas entre os autores. Portanto, não é fácil de ver claramente isso. Nós daremos aqui somente as precisões e as distinções geralmente mais admitidas.

Notemos que nós falamos do direito numa perspectiva tomista e não positivista.

Direito objetivo e direito subjetivo

 

O direito, no sentido objetivo, designa o que é justo, o justo (jus), quer dizer, entre duas pessoas, “um certo devido objetivo que é o direito de uma e portanto para a outra uma dívida”[42].

No sentido subjetivo, geralmente utilizado, o direito designa a faculdade moral que uma pessoa tem de reivindicar como seu o direito objetivo, quer dizer a coisa justa. É este sentido que é utilizado quando se diz: tenho direito a isto ou tenho direito de fazer aquilo, etc.

O direito objetivo é, portanto, o objeto do direito subjetivo.

 

Fundamento do direito

O fundamento do direito é o fato que toda pessoa humana é, por natureza, ordenada a um fim, da qual ela aspira. A pessoa tem portanto o dever, e por consequência o direito de aspirar sua finalidade. E ela tem também o direito dos meios indispensáveis para a obtenção de seu fim.

 

Direito de agir e direito omitir

 

Entre estes meios, existe antes de tudo os próprios atos da pessoa mesma. O homem tem direito de pôr livremente todos os atos que o conduzem à sua finalidade, quer dizer, os que são conformes à lei moral. Ele pode conhecer esta pela sua razão e, se Deus revela, pela fé. Este direito de fazer um ato moralmente bom pode chamar-se direito de agir (jus agendi).

A pessoa tem também o direito de não fazer um ato que não o conduz a sua finalidade: direito de omitir (jus omittendi).

Direito de exigir a um outro

 

Mas o homem não vive isolado. Ele é um animal social, que é sem interrupção em relação com os outros homens. Portanto, para atingir a sua finalidade, ele tem também necessidade que os outros homens lhe forneçam certos objetos, que ajam para com ele de uma tal maneira, conforme à ordem e a razão. As ações (ou as omissões) das pessoas, mas à respeito das outras, são mais ou menos exigíveis, quer dizer, conformes ao bem das pessoas. Enquanto que estas ações são devidas, são justas, elas constituem o objeto de um direito: o direito de exigir ao outro que faça ou não faça alguma coisa (jus exigendi ab alio).

Por exemplo, tenho o “direito à vida”, quer dizer: tenho a faculdade moral de exigir que nenhuma pessoa atente contra a minha existência se eu sou inocente de um crime capital (direito de exigir uma omissão por parte de toda pessoa). Tenho além disso, se a minha vida está ameaçada, o direito de exigir que aquele que pode me ajudar o faça (direito de exigir uma ação positiva por parte daquele que o pode: este direito corresponde ao dever de assistência à pessoa em perigo).

Hierarquia dos direitos

 

Os direitos não são todos de igual importância, pois, também nem todos os meios são necessários para a pessoa em busca de sua finalidade.

Por exemplo, o direito à vida é mais importante que o direito de ser tratado com consideração e respeito pelas outras pessoas, que o direito de não ser injuriado ou caluniado, etc.

O direito está fundado na lei moral que determina os direitos e os deveres de cada um diante de Deus, e na sociedade, à respeito das outras pessoas. A lei moral deriva da lei eterna, quer dizer de Deus. Por consequência, pode-se dizer em toda verdade com Pio XII que “todo o direito tem sua raiz em Deus” (15 de Julho de 1950).

Direito natural, direito fundado na natureza e direito positivo

 

Os direitos derivam mais ou menos diretamente das exigências da natureza humana.

a)                 Certas exigências são absolutamente essenciais à natureza humana e encontram-se em toda parte. Elas constituem princípios primários, evidentes: por exemplo, é preciso fazer o bem e evitar o mal, quer dizer que tem-se o direito de fazer o bem e não se tem o direito de fazer o mal; ou ainda, toda pessoa humana inocente tem o direito à vida (este direito corresponde ao preceito: “ Não matarás”, etc. Elas constituem também princípios secundários, mais afastados, ou das consequências necessárias dos princípios: por exemplo, a monogamia deriva das exigências da natureza.

Tudo isto, enquanto exigido essencialmente pela natureza humana, constitui o que se chama o “direito natural” (no sentido estrito).

b)                 Outras exigências, todas derivadas da natureza humana, supõem no entanto um certo fato, ou um certo estado da sociedade. Por exemplo, a apropriação pessoal dos bens. Santo Tomás diz que ela realça do “jus gentum” e não do “jus naturale”: “ Se de fato considera-se absolutamente este terreno, não há razão que ele pertença antes a um que ao outro; mas, se o consideramos com relação  à oportunidade de cultivar e ao uso pacífico deste terreno, sob esta relação há uma certa comparação ao que ele pertença a um, e não ao outro […][43].

Estas exigências da natureza que realçam de uma certa utilidade consequente  o que se pode chamar o direito fundado na natureza ou o “jus gentium”.

c)                  Finalmente, certos direitos resultam de determinações positivas fixadas pelo legislador. Falar-se-a então de direito “positivo”, pois, ele é “posto” pelo legislador. Este último pode ser Deus mesmo: tem-se o direito positivo divino; ou seja, a Igreja: é entao o direito “positivo” eclesiástico (editado, por exemplo, pelo Código de direito canônico); enfim, o poder civil, que edita o “direito civil” (por exemplo, o Código civil).

Resumo: divisão do direito

a)                 Com relação ao objeto

    

   – Direito objetivo: a coisa justa, o devido objetivo (é o objeto do direito subjetivo)

   – Direito subjetivo: a faculdade moral:

          – de fazer um ato: direito de agir (jus agendi)

          – de não fazer um ato: direito de omitir (jus omittendi)

          – de exigir a qualquer um (jus exigendi ab alio) uma coisa devida, quer dizer:

                    – quer que ele faça alguma coisa (direito de exigir uma ação)

                    – quer que ele não faça alguma coisa (direito de exigir uma omissão)

                                  

b)                 Com relação ao fundamento

 

              – Direito fundado na natureza:

                        – Direito natural (no sentido estrito)

                        – “jus gentium

               – Direito “positivo” (divino, ecclesiástico ou civil)

Direito positivo e direito negativo

Pode-se chamar:

1°) direito positivo[44]: o direito de agir (jus agendi);

2°) direito negativo: o direito de não ser impedido de agir pelo poder civil, quer dizer, o direito de exigir (jus exigendi) a imunidade de coerção.

Todo direito deve ter um objeto bom. O objeto do direito negativo é a imunidade de coerção com relação ao poder civil. Este objeto pode ser bom e exigido pela natureza da pessoa por causa de dois fundamentos diferentes:

            1°) seja porque o ato que a pessoa quer fazer é moralmente bom. A pessoa tem, portanto, o direito de agir (direito positivo);

            2°) seja por causa de um fundamento mais genérico: a natureza da pessoa humana, responsável de seus atos, e sua anterioridade com relação ao Estado exigem que ela seja deixada livre pelo Estado de agir em certos domínios e em certos limites (por exemplo no domínio privado).

Conclusão

 

Dignitatis humanae afirmou um direito negativo fundado na natureza da pessoa humana, mas excluiu todo direito positivo com relação ao erro.

Estudar os fundamentos que o Vaticano II dá ao direito negativo em matéria religiosa sai do quadro deste estudo. Digamos somente que Dignitatis humanae menciona a dignidade da pessoa humana, quer dizer sua natureza de ser racional e livre (DH, 2), assim como a transcendência da relação da pessoas com Deus com relação à ordem temporal, fim próprio e próximo do poder civil (DH, 3).

As finalidades do Estado, como o disse Pio XI, “não são somente corporais e materiais, mas são em si necessariamente contidas nas fronteiras do natural, do terrestre, do temporal” (Non abbiamo, 29 de Junho de 1931).

 


[1] Dignitatis humanae [DH], Declaração sobre a liberdade religiosa, concilio Vaticano II, 7 de Dezembro de 1965.

[2] Dictionnaire de Théologie Catholique [mais adiante : DTC], Letouzey et Ané, 1903-1967, IX, col. 684.

[3] Pie XII, Discurso aos juristas catolicos italianos, 6 de Dezmbro de 1953 : “Antes é necessário afirmar claramente que nenhuma autoridade humana, nenhum Estado, nenhuma comunidade dos Estados, qual seja seu caracter religioso, não podem dar um mandato positivo ou uma autorisação positiva de ensinar ou de fazer o que seria contrario à verdade religiosa e ao bem moral” (esta autorisação positiva dada pelo Estado é excluida pelo Vaticano II: cf. Acta Synodalia Sacrosancti Concilii Õecumenici Vaticani II [mais adiante: AS], Typis polyglotta Vaticanis, 1970-1978, III, VIII, 462; (Os dois algarismos romanos indicam: o primeiro, o volume [volumen]: o segundo, a parte [pars]).

[4] Cf. Santo Tomas, Summe  de théologie [mais adiante : ST] , I-II, 96, a. 2, Sed contra : “É à justo titulo que a lei humana tolera (permittit) alguns vicios sem as reprimir”.

Ibid., corpus: “As leis […] devem ser impostas aos homens seguindo a condição destes. Santo Isidoro o declara: “A lei deve ser possível, e segundo a natureza, e segundo o costume do pais”. […] Ora a lei humana está ao alcanse da multidao dos homens, e a maior parte deles não é perfeita em virtude. Por isso a lei humana não proibe todos os vicios dos quais os homens virtuosos se abstenhem, mas somente  os mais graves, que é possível na maior parte, que as pessoas se abstenham.; e sobretudo os que prejudicam ao outro. Sem a proibição destes vicios, com efeito, a sociedade humana não poderia durar; também a lei humana proibe os assassinatos, os roubos  e outras coisas de género.

Ibid., ad 3m: “A lei natural é uma sorte de participação da lei eterna em nós; mas a lei humana é imperfeita com relação à lei eterna. Santo Agustinho o exprime claramente: “Esta lei que tem a capacidade de gerir as cidades tolera (concedit) muitas coisas e as deixa impunes, enquanto que a providência divina as pune. Mas, o fato de ela não realisar tudo, não se pode dizer por essa razao que,  o que ela realisa seja a reprovar”. Por isso a lei humana não pode defender tudo que a lei natural proibe”.

O comentario da Somme de théologie (éd. Du Cerf, 1984) faz aqui uma obsevação interessante (t. 2, p. 604, note 2): “Todo este artigo é uma ilustração remarcavel da função pedagogica da lei, que deve ser adaptada às forças humanas, tendo em conta as condições concretas de sua aplicação; nesta apreciação, é o nível moral da maioria que deve ser considerado. Pode-se dizer portanto, que a evolução da moralidade geral de uma sociedade levarà o legislador a proibir o que antes era toleravel, ou o inverso”. Vê-se aqui de que maneira a moralidade publica, ou parte da lei natural que a maioria pode suportar, varia numa certa medida seguindo o estado da sociedade.

ST, I-II, q. 93, a. 3, ad 3 : “Quando se diz que a lei humana permite certas coisas, nem sempre é porque ela as aprova, mas antes porque ela é impotente à restabelecé-las. A               lei divina, impõe sua direção à muitos fatos que escapam ao poder da lei humana. Existe com efeito, mais coisas submissas à causa superior que às causas subalternas. Também o fato de que a lei humana não se mistura com as  coisas das quais ela é imcapaz de gerir com muita autoridade, isto provém da lei eterna. Seria de outra maneira se ela aprovasse o que a lei eterna proibe. Não ocorre portanto, que a lei humana não resulta  da lei eterna, mas somente que ela não pode coinscidir com ela”.

ST, I-II, q. 98, a. 1: “ […] sabe-se que o fin da lei humana e da lei divina não se confondem. Para a lei humana, é a tranquilidade da cidade no tempo presente; a lei chega a reprimir  os atos exteriores, na medida onde sua malicia pode perturbar a paz da cidade. Mas o fim da lei divina, é de conduzir o homem ao seu fim, a felicidade eterna. Ora, todo pecado é obstaculo para este fim […]”.

ST, II-II, q. 77, a. 1, ad 1: “A lei humana não poderia proibir tudo o que é contrario à virtude; mas é sufiente para ela, proibir o que destroi a convivência (convictum) dos homens; pelo contrario , as outras coisas, ela as tem como se fossem licitas (habeat quasi licita), não que ela as aprova, mas porque ela não as pune”.

[5] Pio XII ensina que, “em determinadas circunstâncias, [Deus] não dà aos homens nenhum mandamento, não impõe nenhum dever, não dà mesmo nenhum direito de impedir e de reprimir o que é falso e erroneo” (6 de Dezembro de 1953). Portanto, em certas circunstâncias, o Estado tem o direito de não impedir o que é falso e erroneo, e isto justifica-se “promover um bem maior”. Existe, em certos casos, correlativamente a este dever do Estado, um direito da pessoa a não ser impedido de agir? É o que afirma Vaticano II (no que concerne o dominio religioso, em continuidade com Pio XII. 

[6] Enciclica Quanta cura [QC], promulgada por Pio IX na mesma época, que o Sylabus (8 de Dezembro de 1864).

[7] Convém notar que a proposta extraida de Quanta cura é o primeiro membro de uma so frase qui compreende três membros:

  1. “A liberdade de consciência e de cultos é um direito proprio a cada homem,
  2. que deve ser proclamado e assegurado em todo Estado bem constituido,
  3. e os cidadaos têm o direito à liberdade absoluta (omnimodam) de manifestar em voz alta e publicamente as suas opiniões, sejam quais forem, por palavra, por impressão ou de outro modo, sem que nenhuma autoridade ecclesiàstica ou civil possa o limitar”.

É esta frase inteira que Pio IX declara ser a “opinião erronea […] qualificada de delirio por Gregorio XVI”, na Mirari vos (15 de Agosto de 1832), a saber: “ é preciso afirmar e reivindicar por qualquer liberdade de consciência (asserendam esse ac vindicandam cuilibet libertatem conscientiae)” (tradução Dudon).

[8] O concilio fala em toda a parte de um « direito a não ser impedido », e nunca de um direito de fazer. As explicações dadas pelo secretàrio vao todas neste sentido.

AS, IV, I, 190: “O esquema da Declaração não afirma que existe um direito de retomar os erros religiosos na sociedade […]. A questao posta é a seguitne: sera que, e de qual direito , o poder publico pode impedir forçosamente o homem de manifestar publicamente as suas posições religiosas?”

AS, IV, V, 150: “A liberdade  que se trata  nesta Declaração não concerne a relação do homem com a verdade ou com Deu; mas concerne as relações entre pessoas na sociedade humana e civil, e é por isso que esta liberdade é chamada social e civil”.

AS, IV, VI, 725: “ O texto aprovado afirma um direito cujo conteudo é a imunidade de coação [direito negativo] e não o conteudo de qualquer religião [direito positivo] […] Em nenhuma parte é afirmada, nem é licito afirmar (o que é evidente) que ha um direito a difundir o erro. Se no entanto as pessoas difundem o erro, não é mais o exercicio de um direito, mas um abuso.

AS, IV, VI, 744, M. 16: “ O texto do esquema não reconhece o direito de ensinar publicamente coisas falsas, mas afirma um direito à imunidade de constrangimento”

Cf. também AS III, VIII, 46-462; IV, VI, 731, M. 23.

[9] Estas regras constituem portanto uma ordem juridica fundada em leis morais conformes à natureza objetiva das coisas. Isto supõe a uma ordem juridica de tipo positivista, fundada no estado de fato ou na unica vontade do legislador ou do povo.

A referência à “ordem moral objetiva” é qualificada por  Msr De Smedt “de adição de grande importância. Ela foi introduzida conformente o desejo dos Padres que pedem que, na estimação da ordem publica, tenha-se em conta (ratio habeatur), não somente das situações historicas, mas também e em primeiro lugar do que é exigido pela ordem moral objetiva” (AS, IV, V, 154).

[10] O concilio excluiu deliberadamente uma concepção positivista e minimalista da paz publica. Por isso foram acrescentados o qualificativo “honesta (honesta, autêntica)” e a explicação “que consiste numa convivência ordenada na base de uma verdadeira justiça”.

“Aqui estao também palavras importantes introduzidas segundo o desejo de muitos Padres, pelas mesmas razões. Na limitação da liberdade religiosa, é preciso observar atentamente as obrigações da paz publica: não no entanto de uma paz publica de qualquer género, que existe de fato ou pode existir; mas antes de tudo, desta honesta paz que é uma convivência ordenada na base de uma verdadeira justiça” (AS, IV, V, 154).

[11] «  Entende-se por moralidade publica este conjunto de atitudes que em tal época e em tal região, a opinião publica e os que são vistos como sabios consideram como respondendo aos bons costumes tais como as prescrevem a lei moral inscrita no coração do homem”, Msr De Smedt, em “La liberté religieuse” (collectif), Unam Sanctam, 60, Cerf, Paris, 1967, p. 233.

Sublinhemos  que as normas juridicas exigidas para a salvaguarda destes três elementos (direitos dos outros, paz publica, moralidade publica) são de se entender como “uma sanção segundo a norma do direito natural” (AS, IV, VI, 732, M. 35) da “ordenação juridica da sociedade”, lembrada em DH, 1. Msr De Smedt declara que “ o sentido mesmo do texto” é que a ordem publica é “fundada no direito de natureza” (AS, IV, VI, 745, M. 17).

[12] O termo « ordem publica » foi emprestado do vocabulario juridico moderno. No entanto, a descrição dos limites da liberdade religiosa mete deliberadamente em primeiro o conteudo objetivo e menciona somente no final a ordem publica, afim de afastar a acepção puramente positivista (AS, IV, VI, 722 e 756).

A ordem publica assim descrita “constitui” uma parte fundamental do bem comum” (DH, 7). “Por toda parte  onde aparece a expressãobem comum, é preciso compreender no sentido empregado por Joao XXIII” (AS, IV, VI, 756).

Este sentido é lembrado pela mesma Dignitatis humanae n°6: “conjunto destas condições da vida social pelas quais os homens podem alcançar mais plenamente e mais facilmente à sua propria perfeição”.

Por toda parte alias na Declaração, toda vez que se menciona a ordem publica, é preciso toma-la no sentido objetivo determinado no n° 7: é o que indica a palavra “justa” que lhe é sempre acompanhada como qualificação (cf. DH, 2b, 3d e 4b).

Esta ordem publica justa permite a intervenção do Estado além do que permite “o conceito do Estado  dito liberal (Estado-policia, en françês no texto)” (AS, IV, I, 195).

[13] Uma tal liberdade ilimitada permite publicar tudo: a pornografia, os livros, filmes ou espetaculos escandalosos ou blasfematorios, as calunias e injurias contra os padres, os religiosos ou contra a religião, não são reprimidos, como se vê infelizmente em muitas sociedades ocidentais. Dignitatis humanae afirma pelo contrario que o poder civil deve proibir todos estes excessos contrarios à moralidade publica e aos direitos dos cidadaos (e portanto, os atentados à honra dos catolicos e da Igreja). Esta simples observação é suficiente para mostrar que o direito à liberdade religiosa é bem diferente do direito condenado pela Quanta cura.

[14] A liberdade de propaganda dà o direito de publicar qualquer ideia, portando em particular ideias religiosas. Ela tem portanto uma parte comum com a liberdade de consciência e de cultos que compreende também o direito de publicar ideias religiosas.

[15] A expressão « violadores da religião catolica” parece designar bem os que violam os direitos (provenientes da lei de Deus e das disposições canonicas) da Igreja como instituição e dos cidadaos catolicos enquanto tais. É o que ressai do comentario do Pe. Bilio, um dos teologos que prepararam Quanta cura, sobre esta posição (cf. G. Martine, s. J., Pio IX, t. 2, (1851-1866), Editrisse Pontificia Università Gregoriana, 1986, p. 337), como da terminologia empregada nas concordatas assinadas por Pio IX com diversos Estados (cf. R. Minnerath, L’Église et les États concodataires (1846-1981), Cerf, 1983, pp. 45-46).

Não se pode afirmar que estes direitos da Igreja e dos catolicos são sempre violados pelo unico fato que os não batizados exercem publicamente seu culto.

[16] DTC, IX, c. 527.

[17] Ibid.

[18] DTC, IX, c. 536.

[19] Ibid., c. 539.

[20] Ibid., c. 550.

[21] Ibid.,

[22] Paul Dudon, Lamennais et le Saint-Siège, Paris, Perrin, 1911, pp. 194-195.

[23] Dignitatis humanae  pelo contrario reserva expressamente os direitos da autoridade ecclesiastica. Cf. DH, 1 e AS, IV, I, 185; IV, IV, 150; IV, VI, 754, M. 5; 763; 770.

[24] AS, IV, V, 99 : “A liberdade religiosa não isenta os homens e as sociedades dos deveres morais pelos quais eles são obrigados diante da religião catolica”. Um Estado que cumpre estes deveres conforma-se ao ensino da Igreja sobre a lei natural e sanciona legalmente esta ultima na medida politicamente realizavel. A ordem publica assim realizada é essencialmente diferente da “paz publica” das sociedades naturalistas, que, do fato do estado decaido da humanidade, não conhecem a lei natural na sua integridade ou não a querem sancionar.

[25] Por si, “a doutrina da liberdade religiosa não contradiz o conceito historico do Estado dito confessional […]. Ela não impede que a religião catolica seja reconhecida pelo direito humano publico como a religião comum dos cidadaos de uma região determinada, ou (seu) que a religião catolica seja estabelecida pelo direito publico como religião do Estado” (AS, III, VIII, 463).

“O esquema mesmo declara que a noção de liberdade religiosa não se opõe ao que se chama confessionalismo do Estado” (AS, IV, I, 194).

É preciso reonhecer no entanto que a pratica de concordatas desde Vaticano II é disfavoravel ao confessionalismo formal do Estado. Um exemplo é portanto a observar. A concordata passada entre a Colombia e o Vaticano em 1973 reconhece oficialmente a catolicidade da nação colombiana. O artigo 1° declara: “ O Estado, tendo em consideração ao sentimento catolico tradicional da nação colombiana, considera a Religião Catolica, Apostolica e Romana como elemento fondamental do bem comum e do desenvolvimento integral da comunidade nacional. […] O Estado garante à Igreja catolica e aos que nela pertencem o pleno gozo de seus direitos religiosos, sem prejuizo da justa liberdade religiosa das outras confessões e de seus membros, como alias de todo cidadao” (Colombia 1973, art. 1; citado in R. Minnerath, La doctrine de Vatican II sur la liberté religieuse et son application dans les Concordats post-conciliaires, Rome 1980, pp. 45-46, n. 40).

[26] Acta Sanctae Sedis [mais adiante ASS], t. XVIII, p. 170.

[27] Ibid.

[28] Ibid., p. 172.

[29] Ibid., p. 173.

[30] Ibid., p. 174.

[31] A.-C. Peltier, La doctrine de l’Encyclique du 8 décembre 1864, Paris-Remis, 1866, avec l’approbation de l’Archevêque de Reims, pp. 295-296.

[32] Pe. Liberatore, s. j., L’Église et l’État dans leurs rapports mutuels, Paris, 1877, p. 58.

[33] Syllabus, prop. 15.

[34] Dom Paul Benoît, La Cité antichrétienne au XIXesiècle, 1ère partie, Les erreurs modernes, Tome 1er, 4e édition, 1894, p. 524.

[35] ASS, t. XX, p. 608. Ver também o texto citado em cima em III, 5.

[36] Cf. Leão XIII, Immortale Dei.

[37] Esta liberdade moral interna pode derivar:

– quer do indiferantismo (naturalismo moderado) que afirma: “pode-se, por uma qualquer professãode fé, obter a salvação eterna da alma, desde que se tenha costumes  conformes à retidao e à honestidade (cf. Gregorio XVI, Mirari vos; cf. Também Syllabus, prop. 15 e 16).

– quer do racionalismo ou naturalismo absoluto que ensina: “A razao humana considerada sem nenhuma relação com Deus é o unico àrbitro do verdadeiro e do falso, do bem e do mal; ela é para si mesma sua lei, ela é sufiente pelas suas forças naturais para procurar o bem dos homens e dos povos” (Syllabus, prop. 3).

Gregorio XVI indica que a liberdade de consciência que ele condena “deriva da fonte envenenada do indiferantismo” (ibid.).

Pio IX diz que a liberdade de consciência e de cultos é uma consequência da “aplicação à sociedade civil do impio e absurdo principio do naturalismo” (QC).

[38] A liberdade moral externa é necessariamente arguente do cidadao adepto do naturalismo politico do Estado. Este governo “sem mais tem em conta da religião como se ela não existisse, ou ao menos sem fazer nenhuma distinção entre a verdadeira religião e as falsas” (QC). Isto realça, de acordo com os naturalistas, de sua perfeição e não de uma consideração acidental. O Estado tem portanto o dever de ser ateu ou ao menos indiferente à toda religião. Ele deve reconhecer à todos os cultos o mesmo valor, posiciona-los exactamente sobre o mesmo pé de igualdade e dar um mandato positivo a cada um de fazer o que quer.

[39] Libertas, ASS, t. XX, p. 603.

[40] Ass, t. XX, p. 612.

[41] O concilio reconhece claramente :

1°) que não se tem “o direito de se excluir da soberania de Deus”: “Na ordem moral, todos os homens, todas as sociedades, todos os que estao revestidos de autoridade civil devem objetivamente e subjetivamente (quer dizer, são moralmente obrigados de) procurar a verdade, e não lhes é permitido moralmente de apoiar o que é falso […]. Nenhuma instância humana, objetivamente, é moralmente livre na aceitaçao ou negaçao do Evangelho e da verdadeira Igreja. E esta obrigaçao é também subjetiva na medida em que ela é percebida” (AS, IV, I, 433).

Esta obrigaçao està inscrita em DH, 1, ja citada.

2°) a competência do poder publico para limitar a liberdade religiosa nos casos indicados pela DH, 7. “Nestes casos, reconhece-se o direito do poder publico de limitar (cohibendi) o uso da liberdade para conservar a ordem publica, e entao cessa a imunidade da pessoa que neste caso, não age mais conformemente à sua dignidade” (AS, IV, I, 189).

[42] P. Labourdette, o. p., Cours de Morale, La justice, p. 12.

[43] Somme de théologie, II-II, q. 57, a. 3.

[44] Não confundir com o direito « positivo” distinguido do “direito fundado na natureza”; aqui o direito positivo se opõe ao direito negativo.

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