Sábado, Dezembro 21, 2024

Nota doutrinária sobre a Missa Nova (aprovada pelo cardeal Ottaviani)

Nota doutrinária sobre o novo ordo

Cavaleiros de Nossa Senhora (Pe. Gerard Lafond),
17 de fevereiro de 1970.
Tradução: Caio Lopes.

 

Preâmbulo

A nota doutrinária que vamos ler foi publicada primeiramente em edição mimeografada, depois impressa pelos cuidados de “Defense du Foyer“. Este primeiro texto foi enviado aos três cardeais Ottaviani, Journet e Daniélou, a vários bispos e teólogos, bem como ao pastor Max Thurian.

Algumas alterações detalhadas foram feitas, algumas notas explicativas adicionadas, para levar em conta as observações que haviam sido feitas a nós. O todo não é um estudo exaustivo do Ordo Missae, nem uma refutação detalhada do “Breve Exame[1]” e dos escritos de protesto que o seguiram – seria muito fácil, muito tedioso e provavelmente desnecessário. No entanto, nosso estudo é suficiente, com as altas aprovações que recebeu, para fazer com que cada espírito de boa fé veja a ortodoxia do novo Ordo, seu caráter tradicional e a obrigação de cada católico obedecer ao Papa que legitimamente o promulgou.

 

NOTA DOUTRINÁRIA SOBRE O NOVO ORDO MISSAE

“A contra-disputa não é um desafio ao contrário, mas o oposto do desafio.” (Joseph de Maistre)

O novo Ordo Missae promulgado por Sua Santidade Paulo VI, e entrou em vigor a partir de 30 de novembro, levantou preocupações e provocou às vezes uma oposição categórica entre os fiéis mais ligados à tradição católica romana. A Ordem dos Cavaleiros de Nossa Senhora, que professa “amar e defender a Igreja,sua fé, suahierarquia, suas instituições” (Regra, 11, 12), deve tomar uma posição acentuada sobre um problema tão importante, excluindo qualquer consideração da prudência humana, e ter como única preocupação a verdade e o bem comum da Igreja e das almas.
 
PROFISSÃO DE FÉ E DECLARAÇÃO DE INTENÇÃO.

Para aqueles que leem esta nota doutrinária sem conhecer a Ordem, isto declaramos: os Cavaleiros de Nossa Senhora são católicos e romanos, e não aceitam qualquer adjetivo adicionado a esses dois nomes augustos e inseparáveis, que são absolutamente suficientes para si mesmos. Eles recebem a fé católica em toda a sua extensão e rigor, como sempre e em todos os lugares foi ensinada pelos Romanos Pontífices e bispos em comunhão com a Santa Sé Apostólica, quer estejam unidos ou não em concílio. Eles recebem todos os ensinamentos do Concílio Vaticano II como elementos autênticos da Tradição Católica, que não podem em qualquer caso ser interpretados fora dessa tradição, ou em contradição com ela.

No que diz respeito à natureza da Santa Missa, os Cavaleiros de Nossa Senhora, como todos os católicos, consideram definitivo e irreformável o ensino do Concílio de Trento acerca da Missa como verdadeiro Sacrifício, idêntico ao único Sacrifício de Cristo; sobre a natureza do sacerdócio e o papel único do padre; sobre a Presença Real de Cristo sob espécies sacramentais por transubstanciação.

Os cavaleiros de Nossa Senhora, como todos os católicos, professam que essas verdades fundamentais são absolutamente necessárias para a salvação, que devem ser claramente expressas e manifestadas na Liturgia Sagrada, e que nenhuma preocupação ecumênica deve levá-las a negá-las, escondê-las, ignorá-las ou expressá-las de forma ambígua.

Mas as verdades da fé são expressas de forma diferente nas Sagradas Escrituras, num tratado de teologia ou na Liturgia. Como as Escrituras s]ao objeto de uma ciência particular – a exegese – que tem suas próprias leis e métodos rigorosos, do mesmo modo a Liturgia é objeto duma ciência que se baseia na história dos ritos sagrados, estuda sua estrutura, depura seu significado, distingue o essencial do acidental e pode propor à Autoridade Suprema modificações, simplificações ou a retomada de elementos antigos, todos os quais são solidamente fundados. O teólogo, ao julgar o trabalho do exegeta ou o do liturgista, não deve ignorar essas ciências e seus dados históricos, mas sim fazê-los entrar em seu raciocínio como elementos essenciais: pois é acima de tudo o uso secular da Igreja infalível que é a regra principal.

É nesse espírito que estudamos o novo Ordo Missae e as objeções contrárias a ele, e que decidimos tornar nossas conclusões públicas.
 
REVISÃO DAS PRINCIPAIS QUESTÕES CRIADORAS DE DIFICULDADES.

A definição do Capítulo II do Institutio generalis. Aqui está o texto e tradução: “Coena dominica sive Missa est sacra synaxis seu congregatio populi Dei in unum convenientis, sacerdote praeside, ad memoriale Domini celebrandum.” “A Ceia do Senhor ou Missa é uma sagrada sinaxe ou encontro do Povo de Deus num único lugar, sob a presidência (e o termo latino tem sentido mais profundo, sem o sabor democrático que se apegou à palavra “presidente” em nossas línguas modernas) de um sacerdote, para celebrar o memorial do Senhor.”

Em primeiro lugar, a presença duma definição de Missa em um código que prescreve rubricas é algo incomum: o Missal de S. Pio V não continha nenhuma. As rubricas não são um tratado teológico. Tal definição não foi elaborada pela comissão encarregada da revisão do Ordo, mas inserida após sua elaboração – e, diz-se, com altas aprovações.

Seja o que for, esta definição ou descrição da Missa tem, à primeira vista, duas falhas graves:

Ela parece ignorar completamente a Missa privada, que, no entanto, é reconhecida como tal pelo Novus Ordo. A Missa privada, por definição, não é um encontro “físico” do Povo de Deus, e, portanto, o sacerdote não preside ninguém. Uma definição ou descrição correta da Missa deve ser aplicável a qualquer Missa, independentemente das condições externas de sua celebração.

Por outro lado, isolada de seu contexto, essa definição é equívoca. Era chamada de protestante, e em verdade, não fosse a palavra “sacerdos“, que deveria significar apenas algo como “representante do povo sacerdotal”, um calvinista poderia aceitá-la.

O que exatamente é isso? Que sentido realmente era desejado por seus autores? Católico? Protestante?

Noutras palavras, a Missa é conduzida à “Ceia” protestante e o “Memorial do Senhor” é apenas um gesto de lembrança, um “símbolo” do Sacrifício da Cruz e da “presença espiritual” de Cristo entre os seus? Ou, pelo contrário, a “Coena dominica” deve ser entendida como idêntica à Missa católica no sentido tradicional?

Para responder com toda a certeza a esta pergunta essencial, basta referir-se a três textos que lançam luz sobre a definição controvertida:

No capítulo 1 do Institutio generalis, nº 2, apenas uma página antes da referida definição, lê-se isto: “É de extrema importância que a celebração da Missa ou Ceia do Senhor seja ordenada de tal forma que ministros e fiéis que dela participam de acordo com sua condição também dela recebam mais plenamente os frutos em vista dos quais Cristo Senhor instituiu o Sacrifício eucarístico de seu Corpo e Sangue, e confiou-O à Igreja, sua amada Noiva, como um memorial de sua Paixão e Ressurreição.” No número 48, a Missa é definida como a Última Ceia presente quando o Padre, representando Cristo Senhor, realiza o que o próprio Senhor fez. Passagem muito clara, em que, no entanto, falta uma referência ao Sacrifício da Cruz.

Tal referência, porém, pode ser encontrada no número 259, no qual se lê:

“O Altar, sobre o qual o Sacrifício da Cruz é feito presente sob os signos sacramentais, é também a Mesa do Senhor, a  cuja participação, na Missa, o Povo de Deus é convocado; é, ainda, o centro da ação de graças que é realizada pela Eucaristia.

No número 48 novamente, a Presença Real é claramente declarada: “Na ‘Oração Eucarística’… as Oblatas tornam-se o Corpo e o Sangue de Cristo.”

Essas passagens, perfeitamente católicas, por si só bastariam para remover qualquer ambiguidade e dar à definição do Capítulo II, referida supra, sua única interpretação possível, uma vez que o “Memorial” é definido como o Sacrifício eucarístico do Corpo e Sangue de Cristo, instituído por Cristo e confiado à Igreja. Não há nada de protestante nisso. É lamentável que os teólogos que criticaram a definição do Capítulo II tenham falhado em apontar essas importantes correções. Mas isso não é tudo:
 
A definição do Capítulo II contém duas referências aos ensinamentos do Concílio Vaticano II: O decreto “Presbyterorum Ordinis“, nº 5. Esta passagem é bastante explícita quanto ao significado do sacerdócio dos presbíteros católicos e de seu ofício próprio, que é “oferecer sacramentalmente o Sacrifício de Cristo, (…) pois a Santa Eucaristia contém todo o tesouro espiritual da Igreja, isto é, o próprio Cristo, cuja Carne, vivificada pelo Espírito Santo e vivificante, dá vida aos homens…”.

Assim, é a assembleia eucarística (sacra synaxis) que é o centro da comunidade dos fiéis, à qual o presbítero, o sacerdote preside” (praeest — praeesse: verbo latino que significa estar à frente, presidir, ter a direção[2]).

Portanto, é perfeitamente claro que por este Decreto do Conselho que somos explicitamente encaminhados a:
— o sacerdote oferece o sacrifício eucarístico;
— a Eucaristia contém o próprio Cristo;
— “Presidir” (praeesse) a Assembleia Eucarística (sacra synaxis) significa oferecer o sacrifício de Cristo verdadeiramente presente.

A segunda referência diz respeito à Constituição sobre Liturgia, nº 33, onde se diz que o Padre “preside” a Assembleia “in persona Christi”, ou seja, em seu lugar: no lugar de Cristo, o Sacerdote soberano e único (e não como delegado do povo de Deus).

Assim, por essas duas referências e pelos números 2, 48 e 259, temos o significado preciso dos termos que, fora de contexto, foram equívocos e abriram a porta para a interpretação protestante. Sabemos agora que as expressões Memoriais do Senhor, sagrada sinaxe, precedência ou presidência do padre, têm um significado católico.

Finalmente, como se o acima não fosse suficiente, o Papa quis esclarecer as coisas em seu discurso de 19 de novembro de 1969:

“A Missa é e permanece o Memorial da Última Ceia de Cristo, durante a qual o Senhor, mudando o pão e o vinho em Seu Corpo e em Seu Sangue, instituiu o sacrifício do Novo Testamento, e queria que, em virtude de Seu sacerdócio conferido aos Apóstolos, ele fosse renovado em sua identidade, mas oferecido de modo diferente, ou seja, duma forma incruenta e sacramental, em memória perpétua d’Ele até seu último advento”.

“As consequências pretendidas, ou melhor, queridas (desta inovação) são uma participação mais inteligente, mais ativa, mais afeiçoada e mais santificante dos fiéis no mistério litúrgico, pela escutada Palavra de Deus, que vive e ressoa nos séculos e na história de cada uma de nossas almas, e na realidade mística do Sacrifício sacramental e propiciatório de Cristo”.

O Padre Luc J. LEFEVRE, o eminente diretor de “La Pensée Catholique” (Ed. du Cèdre, 13, rue Mazarine), denunciou publicamente as mutilações que a imprensa francesa, seguindo a Agence France-Presse (ela própria enganada por quem?) infligiu às palavras do Santo Padre: a instituição do sacrifício da Nova Aliança, o sacerdócio de Cristo conferido aos Apóstolos, a representação do Sacrifício Propiciatório de Cristo, a renovação deste Sacrifício em sua identidade foram abolidos. Em suma, comenta o Padre Lefèvre, suprimiu-se neste discurso de Paulo VI tudo o que lembra a essência original e tradicional de nossa Missa. Por que razão se fez isso?

Mas, finalmente, estas palavras do Papa foram de fato ditas: elas podem ser encontradas no folheto do Padre Lefèvre (a partir do nº 123 de La Pensée Catholique), no La Croix e no Documentation Catholique. Elas estão totalmente em harmonia com a doutrina do Concílio de Trento, com a “Mysterium fidei” (1965) e a Profissão de Fé de 1968. Poderia ser de outra forma?

Aqui está nossa firme e certa conclusão desta primeira parte de nossa Nota: a definição do Capítulo II, da qual se tem dito que comanda toda a interpretação da Missa de acordo com o Novus Ordo, não é herética, mas católica. No entanto, uma vez que, fora de contexto, é equívoca e não considera a Missa privada, pediremos ao Santo Padre que a complete, e insira na Constituição Apostólica que precede a Instrução Geral uma rememoração da doutrina tradicional tão clara quanto a Profissão de Fé ou o referido discurso de 19 de novembro.
 
O Ofertório. Foi dito que o novo Ordo abolira o Ofertório, e que esta exclusão tornou a  Missa herética e mesmo inválida, amputando-lhe um elemento essencial.

Para responder a esta pergunta, basta comparar o novo rito com o antigo:
 
Ofertório de S. Pio V.
 
a) Oferta do pão com gesto de elevação e récita da oração “Suscipe, sancte Pater, hanc imaculatam hostiam… “
Ofertório do novo Ordo.
a) Oferta de pão com gesto de elevação e récita da oração “Benedictus es… Quia… accepimus panem quem tibi offerimus… ex quo nobis fiet panis vitae.”
 
b) Mistura de água e vinho com a oração “Deus que humanae substantiae… “
b) Mistura de água e vinho com fórmula curta da oração “Deus qui humanae…”
 
c) Oferta de vinho, com elevação do cálice e récita da oração “Offerimus tibi, Domine, calicem salutaris…”
c) Oferta de vinho, com a fórmula “Benedictus es…”, muito semelhante à do pão.
 
d) Oração “In spiritu humilitatis” e bênção “Veni, Sanctificator… e benedic hoc sacrificium tuo sancto Nomini praeparatum“.
d) Oração “In spiritu humilitatis“, totalmente preservada do Ordo de S. Pio V, com a menção do sacrifício. — “Veni, Sanctificator” é excluída.
 
e) Lavagem das mãos, com Salmo 25: “Lavabo inter innocentes manus meas…”
e) Lavagem das mãos, com récita de verso do Salmo 50.
 
f) Última oração de oferta (que forma dupla com as anteriores): “Suscipe, sancta Trinitas…”
f) A última oração de oferta é removida.
 
 
Comentário.

a) Um simples olhar mostra que o Ofertório é preservado em sua substância pelo novo Ordo, e que segue o mesmo padrão do antigo.

b) Não se trata de criticar o Ofertório do Ordo de S. Pio V, cujas orações são muito bonitas, mas vale a pena notar as dificuldades que ele suscita:

As fórmulas usadas se aplicam a um sacrifício: falam de Hóstia imaculada, cálice da Salvação, Sacrifício etc. Ora,a Hóstia imaculada é Jesus, não o pão que apresentamos no altar em vista do Sacrifício. Da mesma forma, o cálice da Salvação é aquele que contém o Sangue de Cristo, não é o vinho que trazemos. Finalmente, a oferta de pão e vinho não é um sacrifício, pois não há outro sacrifício que não seja o de Cristo, que é renovado, re-presentado no altar na Consagração, e que o sacerdote oferece ao Pai na anamnese, em nome de toda a Igreja. Estamos bem cientes de que o Ofertório de S. Pio V não ensinou nada diferente disso, e que suas fórmulas apenas se referiam antecipadamente ao que seria realizado no altar no momento da Consagração; no entanto, elas poderiam gerar confusão e, de fato, teses errôneas foram baseadas nelas. Poderiam promover um tipo de religião do homem que acredita ser capaz de oferecer algo a Deus. Lepin falou sobre a oferta do “sacrifício da Lei Natural” que precederia o Sacrifício de Cristo na Missa, mas isso é completamente inaceitável, pois todos os sacrifícios foram abolidos pelo único Sacrifício de Jesus.

c) Se uma parte da Missa, pois, poderia ser “reformada”, era justamente esta. Enfim, que é o Ofertório? É a preparação do material do Sacrifício, seu apartamento em relação às coisas profanas,sua apresentação a Deus em vista do sacrifício. É um esboço duma oferta inalcançável ao homem e que Cristo apenas poderá tomar para Si, para fazer Sua oferenda, a oferta sacrificial de Si mesmo, seu Corpo e seu Sangue. Portanto, o Ofertório não deve desviar a atenção dos fiéis da Consagração, onde está o sacrifício único e verdadeiro, mas sim direcioná-la para ela… Não é no Ofertório que devemos falar de Sacrifício e oblação (se não para anunciar um e o outro), mas nomeio da Anáfora ou do Cânon. Isto é o que as liturgias tradicionais sempre fizeram, começando pelo Cânon Romano. Isto é o que as novas Anáforas fazem, como veremos mais tarde.

d) Além disso, mais do que racionar em abstrato, o teólogo deve interrogar a Tradição. Pois ainda mais do que em outras disciplinas, o uso da Igreja é que é a regra absoluta de referência.

Entre os testemunhos da Tradição, os Ordines Romani certamente ocupam um lugar privilegiado. O Ordo Romanus Primus, do século VIII, dá-nos o exemplo duma liturgia viva, duma magnificência sem par, muito o oposto das “celebrações” que nossos pequenos vigários progressistas sonham. Esta é a Missa solene do Papa em Roma.
Vejamos o Ofertório: o povo dá suas oferendas aos diáconos que as carregam ao altar; o Papa toma suas próprias oferendas (pão e vinho) e coloca-as ele mesmo no altar. É o fim de tudo. Nenhum gesto de elevação. Sem oração especial. Dir-se-ia que o Ofertório não existe? Mas sim, ele existe! O gesto de colocar as oferendas sobre o altar é suficiente, com a oração sobre as Oblatas, antes chamada de “secreta“. Foi o suficiente para a Igreja Romana por oito séculos ou mais e o novo Ordo poderia muito bem ter voltado a este uso de simplicidade absoluta sem que ninguém tivesse o direito de chamá-lo de heresia; não o fez, porque queria levar em conta o desenvolvimento litúrgico subsequente. Nisto, mostrou-se tradicional, e está bem assim.

Será dito que o século VIII está longe, que a liturgia progrediu desde então e que não é permitido voltar atrás. Bem, vamos tomar o exemplo dos Cartuxos. Os Cartuxos têm sua própria liturgia que mantiveram desde São Bruno – coma aprovação plena da Igreja Romana, por óbvio. Eis o seu Ofertório:
“Enquanto mistura a água ao vinho, o sacerdote diz: “Do lado de N.S.J.C. saiu Sangue e água, para a remissão de pecados. Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém.” Ele lava as mãos recitando dois ou três versos do salmo Lavabo. Quando oferece o cálice, segurando-o um pouco elevado, diz: In spiritu humilitatis etc., então depõe cálice, fazendo o Sinal da Cruz: em Nome do Pai etc. É só isso. E é perfeitamente católico.
 
e) Aqui está a oferta do novo Ordo:
Benedictus es, Domine, Deus universi,
Quia de tua largitate accepimus panem
(ou: vinum)
Quem tibi offerimus
Terrae fructus
(ou: vitis) et operis manuum hominum
Ex quo nobis fiet panis vitae
(ou: potus spiritualis).
 
Levantamos três considerações sobre tal fórmula:
(1) O uso da mesma fórmula para pão e vinho atesta uma certa falta de imaginação.
(2) A fórmula é inspirada nas “bênçãos” judaicas (Berakôt), das quais a oração cristã eucarística saiu diretamente. Nosso Senhor na Última Ceia fez orações semelhantes para a “bênção” do Pão e do Cálice. Por si, seria preferível reservar a forma de oração eucarística para a Eucaristia propriamente dita, isto é, o Prefácio e o Anáfora.
(3) “Deus universi” não é bíblico[3] e, infelizmente, lembra a tradução francesa do Sanctus, na qual “Deus do Universo” afirma substituir Deus Sabbaoth. Convinha manter Sabbaoth ou traduzi-lo para “Deus exercituum” ou “Deus virtutum” (ver Os 23, 10; 45, 8… etc.), ou escolher uma fórmula bíblica como “Deus Rex omnis terrae“.
 
Em conclusão: a Oferta do novo Ordo é perfeitamente ortodoxa, mas a fórmula “Benedictus es” deveria ser corrigida ou substituída por outra mais inspirada, coisa que pediremos ao Santo Padre.
 
A noção de sacrifício desapareceu do novo Ordo? 

No Ofertório de S. Pio V, a palavra “sacrificium” é encontrada duas vezes; uma vez no novo Ordo. As palavras “hostia” e “oblatio” desapareceram da apresentação das oblatas, numa mudança para melhor, como dito acima. Em compensação, a ideia de sacrifício no sentido estrito, que se há de realizar na Consagração, é afirmada com força pelo “Orate, fratres, ut meum ac vestrum sacrificium acceptabile fiat apud Deum Patrem omnipotentem” e a resposta do povo: “Suscipiat Dominus sacrificium de manibus tuis…”
A fórmula tradicional é tão clara que não precisa de explicação;

Nenhum protestante que tenha permanecido nas negações da Reforma pode pronunciar estas palavras… Infelizmente, o texto francês atual lembra apenas muito de longe o original e faz com que a fórmula perca todo o seu sentido teológico.

A ideia de Sacrifício, porém, está onde deveria estar, ou seja, em cada uma das Anáforas e especialmente na Anamnese, a oração que segue o relato da Instituição da Eucaristia e as palavras de Consagração; uma oração pela qual “fazemos memória” da morte e ressurreição do Salvador e oferecemos ao Pai com Ele seu Corpo e Sangue realmente presentes sobre o altar:

— Na Oração Eucarística II (dita de Santo Hipólito): “Memores igitur mortis et resurrectionis eius, tibi, Domine, panem vitae e calicem salutis offerimus, agentes gratias...” (Lembrando, pois, Sua Morte e Ressurreição, nós Vos oferecemos, Senhor, o Pão da Vida e o Cálice da Salvação, e Vos damos graças…)
— Na Oração Eucarística III: “Memores (…) offerimus tibi, gratias referentes, hoc sacrificium vivum e sanctum. Respice, quaesumus, in oblationem Ecclesiae tuae, et agnoscens Hostiam cujus voluisti immolatione placari, concede, ut qui Corpore et Sanguine Filii tui reficimur (…) Haec Hostia nostrae reconciliationis proficiat (…)” (Lembrando-nos (…), nós Vos oferecemos, em ação de graças, este sacrifício vivo e santo. Olhai, nós Vos rogamos, para a oferta da Vossa Igreja e, nela reconhecendo a Vítima por cuja imolação quisestes Vos aplacar, concedei-nos a nós, que somos revigorados pelo Corpo e Sangue do Vosso Filho (…) Que esta Vítima da nossa reconciliação (…))
— Na Oração Eucarística IV: “Offerimus tibi eius Corpus e Sanguinem, sacrificium tibi acceptabile, e toti mundo salutare — Respice, Domine, in Hostiam…” (Nós vos oferecemos Seu Corpo e Sangue, o Sacrifício que Vos é aceite, e que traz a salvação ao mundo todo – Olhai, Senhor, para a Vítima…)
Além disso, sabemos duma fonte absolutamente segura e direta que as fórmulas em questionam foram escolhidas entre as mais explícitas nas antigas liturgias latinas não-romanas, notadamente a do Sacramentário de Toledo e do Missal Gótico.

Não se deve ter lido os textos, ou ser cego pela paixão do imobilismo a todo custo, para afirmar que o novo Ordo é herético, ambíguo ou que favorece a heresia; ou que a Missa de acordo com o novo Ordo é inválida, ou corre o risco de sê-lo porque poderia ser celebrada por sacerdotes modernistas que não têm fé ou a intenção de fazer o que a Igreja faz.

Este perigo não existe mais ou menos do que já existia para o Ordo de S. Pio V. Qualquer padre modernista pode celebrar o Ordo de S. Pio V invalidamente, e também será capaz de fazê-lo com novo Ordo, como também o poderia com qualquer outra liturgia oriental ou ocidental, lançando mão de restrição mental e hipocrisia. Isso não acontece todos os dias, graças a Deus.
 
Outro conjunto de objeções.Não está claro por que os Kyrie eleisons foram reduzidos de nove a seis, ou seja, são repetidos duas vezes em vez de três. O simbolismo trinitário não é mais respeitado[4]; além disso, muitas melodias gregorianas são compostas em vista das nova invocações, e a redução para seis destrói a harmonia destas composições.

Há quem lamente profundamente que o Embolismo (a oração que desenvolve o último pedido do Pater) tenha sido amputado, e nisso estão certos. Um belo pensamento de São Paulo (Tito 2,13) foi acrescentado: “Exspectantes beatam spem et adventum Salvatoris nostriIesu Christi“. “Aguardando a esperança bem-aventurada e a vinda do nosso Salvador Jesus Cristo” (o texto completo de São Paulo diz: “do nosso grande Deus e Salvador Jesus Cristo.”)
É por conta dessas duas linhas adicionadas que a “intercessão da bem-aventurada e gloriosa Virgem Maria, dos bem-aventurados Apóstolos Pedro e Paulo, e André, e todos os santos” foi removida? Suplicaremos ao Santo Padre que nos devolva a intercessão da Virgem Maria e das duas Colunas da Santa Igreja, que de outra forma são invocadas apenas no Cânon Romano. Seremos atendidos, pois a isto temos direito.
 
Foi dito que a doxologia que se adicionou em conclusão ao Embolismo seria “protestante”: “Quia tuum est regnum e potestas et gloria in saecula” (Pois Vosso é o Reino, o poder e a glória pelos séculos). Na realidade, esta magnífica doxologia não aparece no Evangelho, mas pertence à mais antiga tradição litúrgica: é encontrada pela primeira vez na Didaqué, 8, 2 (séculos I e II) e depois nas Constituições Apostólicas (Livro III, Cap. 18, Nº 2 e Livro VII, Cap. 24, No. 1) e em muitos Padres Gregos e Orientais. A partir do uso litúrgico, passou para alguns manuscritos do Evangelho, e é por isso que os protestantes o adotaram (ver J. Carmignac, Research on the Our Father, Chap. XIV. Ed. Letouzey 1969)[5]. O novo Ordo apenas retoma uma tradição litúrgica católica. Devemos nos alegrar, pois é para se alegrar que os protestantes se alegrem.
 
Questionou-se a fórmula que precede a comunhão: “Corpus Christi custodiat me in vitam aeternam”; ele substitui: “Corpus D.N.J.C. custodiat animam meam in vitam aeternam”. O novo Ordo não professa mais a existência da alma! Façam-nos um favor! Leiam, por favor, uma linha acima no Missal: “…et sanabitur anima mea” (e minha alma será salva/curada). Além disso, não é só a alma que é objeto de salvação, mas todo o homem, alma e corpo, e não é ruim lembrar os cristãos da fé na Ressurreição.
 
O beijo de paz ou o sinal de amizade que os fiéis deveriam dar uns aos outros “de acordo com os costumes do lugar” foi ridicularizado. Aqui estamos de acordo. Fora de comunidades (mosteiros, ordens, fraternidades) o gesto será ridículo, e o ridículo vai matá-lo[6].
 
Argumentou-se que o novo Ordo deu muita importância à Liturgia da Palavra, porém não há nada de mais: três leituras no domingo e nas grandes festas, tiradas do Antigo Testamento, das Epístolas e do Evangelho, todas muito mais variadas do que antes, é algo excelente. Os católicos terminarão por conhecer um pouco mais as Escrituras Sagradas e isso é um benefício. Os protestantes estão felizes? Têm razão. Eis aí o bom ecumenismo.
 
Lamentou-se a remoção de várias genuflexões, da maioria dos beijos no altar e de alguns Dominus vobiscum. Mas ainda há o suficiente para exprimir adoração e saudar a assembleia nos momentos mais importantes. Notamos, no entanto, que os reformadores litúrgicos parecem não ter estima suficiente para os gestos corporais de adoração. Este é um erro grave, porque esses gestos condicionam, em parte, a atitude espiritual, ao mesmo tempo em que a expressam. Em geral, deve-se admitir que os liturgistas atuais – pelo menos alguns deles – dificilmente são arrebatados pelo sentido do sagrado. Muitos padres também não, infelizmente. Os fiéis devem arrastá-los para lá, empurrá-los para lá, obrigá-los e forçá-los a fazê-lo.
 
Houve quem se escandalizasse ao saber que a pedra d’ara não é mais obrigatória e que altares de madeira podem ser consagrados. Que um capelão do Exército esteja isento de usar a pedra d’ara é bastante compreensível. Mas a liberdade, em nossa opinião, vai longe demais. Isso leva ao altar-mesa, depois à mesa, depois às pequenas mesas. Isso já foi visto, e é provável que se multiplique. Responderemos vigorosamente a todos os abusos que testemunhamos. E pedimos ao Santo Padre que limite essa liberdade perigosa.
 
5) Duas objeções extrínsecas.

a) A aprovação do Ordo pelos protestantes

Irmão Max THURIAN, de Taizé, em artigo do La Croix (30 de maio de 1969), expressa sua satisfação com o novo Ordo e conclui, em seu entusiasmo: “Um fruto será, talvez, que comunidades não-católicas possam celebrar a Santa Ceia com as mesmas orações que a Igreja Católica. Teologicamente, é possível.” Esta declaração tem criado problemas em muitas consciências católicase isso certamente não é o que seu autor queria.

Antes de exaltar-se, contudo, o católico deve perguntar“quem é o irmão Thurian?”, “que tipo de protestante ele representa?”. À frente da comunidade Taizé, cujo ecumenismo é toda a esperança, ele representa o ponto extremo do protestantismo em relação ao catolicismo. Em muitos aspectos, está perto da nossa fé, especialmente na eucaristia. Ele permanece no protestantismo para tentar levar uma multidão de seus irmãos à unidade. Ele está certo? É uma questão diferente[7].

Quando se fala em ecumenismo, deve-se distinguir, dum lado, a doutrina e, de outro, a sensibilidade religiosa.
Em matéria de doutrina, a lacuna é profunda e não será preenchida senão quando Deus assim o fizer: senão quando conseguirmos apresentar, em nossas palavras e em nossas vidas, a poderosa harmonia e o esplendor do dogma católico; senão quando nossos irmãos separados tiverem compreendido que o cristianismo que eles procuravam é encontrado na Igreja da qual Pedro é o fundamento.

Em matéria de sensibilidade religiosa, muitos obstáculos podem ser resolvidos. Para a sensibilidade calvinista, o Ordo de S. Pio V representa algo contra o qual vêm desaguar séculos de preconceito e é compreensível que o aparecimento de um novo Ordo em que um lugar maior é dado para a proclamação da Palavra de Deus, para a oração dos fiéis e para a homilia; em que o Povo de Deus está mais visivelmente associado à liturgia por meio de respostas, cânticos e aclamações, é compreensível que um Ordo como o novo, que embora mantenha em sua totalidade a doutrina católica sobre a Eucaristia , seja mais acessível às sensibilidades protestantes. Por último, mas não menos importante, a remoção, no Ofertório, de qualquer fórmula que possa ser confusa sugerindo a ideia de sacrifício natural, quase autônomo em relação ao sacrifício da Cruz, não só satisfaz um protestante como também os católicos (vide supra).

Vou bradar que há escândalo porque meus irmãos estão começando a se sentir atraídos pela Casa do Pai?

Vou afastá-los porque lhes vem o desejo de orar com as mesmas palavras que eu? Vou tratá-los como inimigos porque eles nasceram da Igreja, sem qualquer culpa de sua parte? Se seus corações forem ganhos, a fé não seguirá?

Se eles gostam de nossas belas Anáforas – ou,ao menos, não as rejeitam – a fé no Sacrifício e na Presença Real não se há de, pouco a pouco, insinuar em seus corações e finalmente triunfará sobre os últimos erros, os últimos preconceitos? Quando Max Thurian fala sobre comunidades não-católicas que poderiam TALVEZ (ênfase do autor) usar o novo Ordo, ele pensa em Taizé. E ele é muito honesto e muito bom teólogo para ignorar que, no dia em que sua Comunidade estiver pronta para o novo Ordo, só teria de cantar sua profissão de fé católica e pedir o sacerdócio de Cristo das mãos de nossos bispos.

É por isso que a declaração de Max Thurian, por mais desajeitada que possa ser em sua formulação, é motivo de alegria para os católicos — quero dizer, para os verdadeiros católicos, aqueles que nunca sacrificarão uma única verdade de fé a uma unidade artificial, mas que desejam com todas as suas almas compartilhar com todos os seus irmãos cristãos o tesouro católico do qual a Igreja Romana é a guardiã e dispensadora.

Outros pastores protestantes manifestaram interesse semelhante no novo Ordo. Recentemente, o Sr. Gérard SIEGWALT, professor de dogmática da faculdade protestante em Estrasburgo, enviou uma carta ao Bispo Elchinger pedindo permissão para comungar em nossas igrejas, declarando que nada o incomodava na Missa “renovada”. Claro, não pode ser uma questão de dar-lhe satisfação, porque todos sabem que a intercomunhão entre cristãos separados é um absurdo e um obstáculo ao verdadeiro ecumenismo (e agradaria uma resposta menos complicada da parte do bispo); mas de duas coisas uma: ou ele é luterano de estrita observância, e então ele não leu o Ordo, ou então ele está muito perto de nossa fé, e ele deseja chegar mais perto pelos meios (mal escolhidos) da comunhão.
 
De qualquer forma, nada se pode argumentara partir destas posições de alguns protestantes para declarar que o novo Ordo é protestante. O fato está lá, óbvio, claro como o dia: a Missa é um Sacrifício, o Sacrifício único de Cristo verdadeiramente presente, e isso é afirmado pelo novo Ordo tão claramente quanto pelo de S. Pio V. Se um protestante admite isso, ele está neste ponto essencial em acordo com a Igreja Católica. Se ele não admitir, então ele não pode aceitar o novo Ordo (nota 1).
 
Embora alguns protestantes próximos tenham saudado a publicação do novo Ordo, não podemos esquecer que todos os modernistas mal escondem sua decepção e não deixam em segredo seu desejo de “ir além”. Em 1970, não são os bisnetos dos huguenotes que são os inimigos da Igreja, mas os modernistas destruidores do cristianismo.
 
Carta do Cardeal Ottaviani. É conhecido o apelo endereçado ao Santo Padre da parte dos Cardeais Ottaviani e Bacci, solicitando que o Ordo de S. Pio V possa continuar a ser utilizado e afirmando, em referência a um “Breve exame crítico” que “o novo Ordo, se considerarmos os novos elementos, suscetíveis de apreciações muito diversas, que parecem implícitas ou neles implicadas, afasta-se de forma impressionante, tanto no geral como nos detalhes, da teologia católica da Santa Missa como foi formulado na XX sessão do Concílio de Trento”.

Pode-se, contudo, dizer que o Venerável Cardeal Ottaviani viu todos os textos e que os aprovou. Algumas fórmulas foram até mesmo adotadas muito precisamente a seu pedido, em especial as fórmulas escatológicas e aquelas relativas à liturgia dos defuntos (na Oração Eucarística III).

No entanto, o “Breve exame” ataca especificamente tais fórmulas usando de um raciocínio infantil: se o retorno de Cristo é esperado e desejado, é porque Cristo não está realmente presente sob a Espécie eucarística! Não há mais contradição entre a fé na Presença Real e o desejo de retorno escatológico do que entre a afirmação do Senhor: “Estou convosco até a consumação dos séculos” (São Mateus,28, 20) e a promessa de seu retorno (Atos 1, 11).

Agora, o Senhor está presente para nós como Criador (presença de imensidade) e como Redentor (presença espiritual pela Graça e presença sacramental na Eucaristia); no último dia, Ele estará presente como Rei em toda a suaglória, transformando e transfigurando o mundo inteiro à luz de sua divindade. Quando Lhe dizemos “Vinde, Senhor Jesus!” (Apoc. 22, 20), aspiramos ao Seu reinado sobre toda a Criação. As muitas alusões à Parusia na liturgia renovada estão certamente entre os elementos mais positivos do novo Ordo. Esta grande verdade, mais ou menos esquecida pelos fiéis (“as dez virgens adormecem e dormem”) soa, novamente como um grito no meio de nossa noite: Ecce Sponsus venit, aptate lampades vestras! A maioria das críticas do “Breve exame”não pode  ter recebido a aprovação do grande Cardeal, pois parecem desprovidas de valor e objetividade.
Ficamos, então, reduzidos a hipóteses. O Cardeal não pôde aprovar o Breve exame”; é provável que não lho tenham lido.

Ao concordar em colocar seu nome no final do pleito, o Cardeal Ottaviani pelo menos aprovou o pedido de manter o Ordo de S. Pio V e expressou solidariedade a todos aqueles que sofrem com as mudanças constantes da liturgia ou com as incríveis fantasias individuais ou coletivas que emergem em todos os lugares à margem de reformas oficiais. Seu gesto não foi em vão. Graças a ele, todos os padres que celebram o latim em poderão, até 30 de novembro de 1971, usar o um ou o outro Ordo. Graças a ele novamente, os padres idosos não serão forçados a reaprender a dizer Missa. Finalmente, com ele, a definição do Capítulo II poderá ser revista (nota 2).
 
A questão das traduções.Tudo o que dissemos até agora se aplica ao Ordo Missae publicado em latim em Roma. As traduções para línguas nacionais precisarão ser cuidadosamente consideradas. A tradução francesa é muitas vezes fraca e minimiza ou mesmo trai o latim original mais do que traduz, mas até agora não mina a integridade da Missa. O Ordinário da Missa latino-francesa será publicado na edição especial do “Discurso do Papa e Crônica Romana”. Tomaremos medidas para garantir que as traduções sejam mais precisas.
 
O PODER SOBERANO DO PAPA SOBRE A LITURGIA.

a) São Pio V promulgou seu Ordo “ad perpetuam rei memoriam”. Isso não significa que ele teve a vontade de estabelecer o rito para que permanecesse inalterado até a consumação dos séculos. O que permanece e permanecerá inalterado é a substância do Mistério, a realidade do Sacrifício Eucarístico. O que um Papa fez, um outro Papa pode desfazê-lo, em questão de disciplina e ritos eclesiásticos (não em questão de dogma ou moralidade). Paulo VI pode, portanto, revogar o Ordo de Pio V, desde que ele seja substituído por um Ordo que respeita plenamente a essência da Missa. Vimos que é este o caso.

b) O poder do Papa sobre os sacramentos da Igreja não é ilimitado, mas é estendido. Pio XII, por exemplo, decretou que a matéria e a forma do sacramento da Ordem consistem exclusivamente na imposição de mãos e em uma frase específica de oração consagrada. Desde a Idade Média, muitos teólogos têm defendido que a forma consistiria na entrega dos instrumentos com as palavras que o acompanham, ou pelo menos sustentaram que este rito era parte da essência do sacramento. Pio XII não decidiu pelo passado, mas agora a porrecção dos instrumentos é excluída da matéria e forma.

c) O papa não tem o poder de perturbar a Missa e os sacramentos a ponto de não mais transparecer aquilo que é de instituição divina. Ele não tem o poder de suprimir a Missa ou um outro sacramento, nem de mudar o significado, nem de rejeitar todo o legado da Tradição que nos foi transmitido. Vimos que nada assim ocorre no novo Ordo, que é um elo autêntico da tradição católica.

d) Paulo VI promulgou seu Ordo de forma canônica por uma Constituição Apostólica que termina com estas palavras: “Queremos que o que governamos e prescrevemos seja agora e no futuro firme e eficaz.” Estamos diante duma vontade claramente sinalizada pelo Vigário de Cristo, que tem toda autoridade para fazê-lo. As argúcias e minúcias de alguns canonistas são impotentes diante disso.

e) Finalmente – e o mais importante: o Pontífice Romano, governando soberanamente numa questão de suprema importância, como de fato é o modo para se celebrar o Sacrifício da Nova Aliança, desfruta plenamente do carisma da infalibilidade. É impossível que ele se possa enganar, ou enganar os bispos e todos os sacerdotes e todos os fiéis da Igreja Latina, decretar uma Missa que fosse herética ou próxima de heresia, ou arriscar induzir a Igreja em erro sobre a natureza do Sacrifício Eucarístico (nota 3).

O novo Ordo é totalmente católico. Isso é evidente pelo exame cuidadoso que fizemos. Isso é baseado na infalibilidade papal, que é um dogma da fé católica.
 
CONCLUSÃO GERAL.

Durante este estudo, mostramos, com os textos das fontes em mãos, que o novo Ordo, embora faça mudanças significativas na forma de se celebrar a Missa, não constitui de forma alguma uma subversão da liturgia tradicional. Nossa Missa católica continua sendo o que sempre foi: a renovação do Sacrifício da Cruz. A propósito, fomos levados a refutar opiniões e julgamentos errôneos, inverdades que estão circulando atualmente entre nossos melhores amigos. Nós simplesmente queríamos restaurar a verdade, pois nada sólido é estabelecido fora da verdade, e as melhores causas são irreparavelmente comprometidas pela ignorância ou paixão.

Seremos acusados de seguir servilmente os “tiranos da reforma litúrgica” e de assolar o povo fiel cristão que está exasperado com as mudanças e abusos que se seguem, e que gostaria de poder orar pela paz nas igrejas, que mais uma vez se tornariam a Casa de Deus. Compartilhamos totalmente tal desgosto. Faremos de tudo para que a situação se estabilize, para que o vento de loucura que atravessa a Igreja diminua, como a tempestade do Evangelho. Tudo, exceto declarar preto o que é branco, herético o que é ortodoxo, modernista o que é tradicional em seu sentido mais profundo – e tradição não é a imobilismo, convém lembrar

Seremos tachados de ingênuos, ignorantes da conspiração modernista que, por pequenos ou grandes toques sucessivos, está trabalhando para arruinar a liturgia, dogma e moralidade da Igreja. Não ignoramos nada disso. Até acreditamos que o momento não é o melhor escolhido, no meio da crise que está sacudindo a Igreja e o mundo, para desenvolver uma reforma litúrgica dessa magnitude. Mas o Santo Padre escolheu realizar esta reforma, apesar da tempestade. Temos o direito de desafiar sua autoridade soberana? Se, por impossibilidade, o Papa impusesse uma Missa herética e cismática à Igreja, ela deveria ser recusada; a infalibilidade prometida ao sucessor de Pedro, contudo, precisamente exclui, de forma absoluta, talvez não uma heresia pessoal, mas que ele possa ensinar publicamente seus erros e impô-los por meio de autoridade. “Pelo menos o Papa não poderia, por fraqueza, deixar ir, deixar algumas coisas perigosas para a fé passarem?” Certamente. Isso é possível em casos particulares, não em uma promulgação universal. Ter-se-ia então de gritar com plenos pulmões, gritar até que ele o ouça. Mas, novamente, nada disso aconteceu com a publicação do novo Ordo (nota 4).
 
Fiquemos atentos! Por um apego incompreendido à tradição, estamos dando aos fiéis o hábito de desconfiança e protesto. Eles foram enganados tantas vezes que seu reflexo automaticamente se torna negativo. Alguns fiéis passam seu tempo “lutando” contra as menores mudanças, e enquanto isso, eles não rezam. Deus nisso sai ganhando? Ou não é, antes, Satanás?

A estes dizemos: Superem seu desgosto. Ofereçam-no ao Senhor e rezem mais. Não se apeguem aos seus pequenos hábitos, não os canonizem indevidamente. Não se tornem opositores conscientes. Não imitem Jonas sob sua mamoneira. Não cedam à tentação da Pequena Igreja, nem à das pequenas capelas. Uma vez que o Papa nos dá um novo Ordo, recebam-no com respeito e fervor e a alegria virá em seguida. E que a Paz esteja com todos vocês, a verdadeira, aquela que o mundo não pode dar, e que irradia de todos aqueles que estão unidos com Deus dentro da verdadeira Igreja.
 
Nota 1.
Em uma carta de 28 de janeiro de 1970, acompanhando o envio da nota doutrinária, pedimos ao irmão Thurian que nos escrevesse se, em sua opinião, algo mudara na substância do Sacrifício eucarístico. Sua resposta de 6 de fevereiro nos deu este testemunho: “Não tenho dificuldade em afirmar que, no novo Ordo Missae, nada mudou em relação à doutrina católica tradicional do Sacrifício Eucarístico”.
Para Guy Baret, que fez sua hipótese de que a reforma do ofertório seria a causa de sua aprovação, o pastor Thurian respondeu, também em 6 de fevereiro: “A hipótese que você levantou é bastante exata”.
Por outro lado, em “La Croix” de 21 de janeiro, o irmão Roger Schutz, prior de Taizé, expressa-se assim: “De minha parte, tenho certeza de que, no novo Ordo Missae, a substância da Missa é a mesma que sempre foi vivida e rezada antes”.
 
Nota 2.
É supérfluo ressaltar a importância da resposta do Cardeal Ottaviani, que por si só deve pôr fim à contestação.
1) É um endosso total da Nota Doutrinária: “Parabenizo-o pelo seu trabalho, que é notável por sua objetividade e pela dignidade de sua expressão (…) Desejo à sua nota doutrinária e à atividade da Milícia S. Mariae uma ampla distribuição e sucesso”.
2) Ela nos conta que a controvérsia contra o novo Ordo foi desencadeada e alimentada por provocadores: “aqueles que usam a desordem das almas para aumentar a confusão dos espíritos”. Outra carta romana no-lo confirma, se tal afirmação fosse necessária.
3) O apelo ao Santo Padre pedindo a revogação do novo Ordo e a manutenção do Ordo de São Pio V (3 de setembro) foi de fato assinado pelo Cardeal Ottaviani, bem como pelo Cardeal Bacci. Mas foi tornado público em 15 de outubro contra a vontade de seu principal signatário. Esta manobra inqualificável permitiu que os provocadores abusassem do nome do Cardeal num sentido em que ele mesmo não queria: fazê-lo, o que é o cúmulo, o líder do protesto antipapal!
4) O Cardeal considera que os discursos do Santo Padre, especialmente os de 19 e 26 de Novembro, constituem um ponto doutrinário suficiente para remover quaisquer dúvidas que possam ter surgido quanto à intenção do Legislador ou à ortodoxia do novo Ordo.
5) Após tais discursos, aqueles que se “escandalizam” com o novo Ordo (no sentido evangélico de “tropeçar”) não seriam pessoas sinceras, mas “fariseus”, como outros prelados romanos escrevem para nós.
6) O Cardeal reconhece que o texto ainda pode despertar algumas perplexidades legítimas: um catecismo prudente e inteligente será suficiente para dissipá-los.
O Cardeal não fala mais da revogação do novo Ordo, nem da manutenção do Ordo de São Pio V.
Após tal desenvolvimento, não é mais permitido usar o pleito de 3 de Setembro como desafio ao novo Ordo; ou, ou deve ser atribuído apenas ao Cardeal Bacci, assumindo que este último não revisou suaposição como resultado dos discursos papais.
 
Nota 3.
A Liturgia Sagrada, em efeito, como outros decretos disciplinares de caráter universal, e como a aprovação de ordens religiosas, é o objeto indireto do magistério infalível: “Ecclesia est infallibilis in decretis disciplinaribus et inapprobatione Ordinum religiosorum”: tese certa. Isso não quer dizer que liturgias, decretos ou constituições de ordens aprovadas sejam as melhores possíveis, ou que sejam irreformáveis, mas simplesmente que eles nunca estarão em oposição à fé e aos bons costumes . Veja-se D.T.C. art. Igreja, col. 2185-2186 ; art. Infalibilidade, col. 1706.
Veja também o ditado de Celestino I “Legem credendi lex statuat supplicandi” (Dentz. 139 — E. 2200).
 
Nota 4.
O apelo que encaminhamos ao Santo Padre lista um número considerável de pontos que, especialmente na Instituição Geral, merecem, em nossa opinião, ser elaborados com maior preocupação com a precisão doutrinária. Numa era “normal”, de fato, certas interpretações em sentido liberal ou modernista não viriam à mente de ninguém. Mas não estamos num momento normal…
Além disso, a Declaração da Congregação do Culto Divino em data de 18 de novembro (ver Doc. Cath. a partir de 1º de março de 1970) deixa claro que mudanças podem ser sugeridas em vista da edição padrão… se forem encontradas expressões mais claras que permitam uma melhor compreensão pastoral e catequética, bem como maior perfeição das rubricas, a Sé Apostólica garantirá que seja assim.
http://www.leforumcatholique.org/message.php?num=798201

[1] NT: Referência ao texto Breve Exame Crítico do Novus Ordo Missae, publicado pelos Cardeais Ottaviani e Bacci
[2] NT: o verbo latino praesum, infinitivo praeesse, é efetivamente utilizado sem qualquer conotação “democrática” na liturgia da Igreja. A oração pelo Romano Pontífice o utiliza em sua coleta: Deus, omnium fidelium pastor et rector, famulum tuum N., quem pastorem Ecclesiae tuae praeesse voluisti, propitius respice…
[3] NT: A expressão Deus Sabbaoth é geralmente traduzida como Deus dos exércitos (Deus exercituum nas edições latinas da Bíblia), mas não se pode negar a possibilidade de sabbaoth significar também conjunto de coisas e, neste sentido, Deus do Universo seria uma tradução possível, pois se entenderia sabbaoth como todo o conjunto das coisas criadas. O excelente artigo da Catholic Encyclopedia, de 1917, trata destas possibilidades, ao qual remetemos o leitor.
[4] NT: o simbolismo trinitário referido pelo autor é uma interpretação a posteriori, criada após o estabelecimento das nove repetições da ladainha, e não é a única possível. A liturgia romana ao tempo de São Gregório Magno, por exemplo, deixava livre o número de Kyries, ao gosto do celebrante. No século VIII ou IX, no norte da Europa, se estabelece a repetição de nove Kyries tal como se vê no Missal tridentino.
[5] NT:  Textus Receptus (TR) grego estabelecido por Erasmo de Roterdão, que serviu de base para inúmeras traduções protestantes do Novo Testamento, inclusive a King James Bible, bebeu de fontes bizantinas, as quais, por sua vez, incluem a referida doxologia, que nunca caiu em desuso em tantas liturgias orientais.
[6] NT: os autores escrevem a partir do contexto cultural francês, em que o contato físico interpessoal é muito mais restrito. Nos países mais calorosos, o ósculo da paz permanece vigoroso. Era uma característica dos judeus, própria de povos mediterrâneos, ser muito próximos fisicamente uns dos outros, como a despedida de São Paulo para o cárcere romano, em que seus discípulos o abraçam e beijam calorosamente, o demonstra.
[7] Max Thurian decepcionou-se com a proibição da intercomunhão entre católicos e protestantes por São Paulo VI, o que fez esvaírem-se muitas de suas esperanças ecumênicas. Em 1973, fez-se católico e, na década seguinte, foi ordenado sacerdote.

Fonte: https://www.leforumcatholique.org/message.php?num=798201. Traduzido por Caio Lopes para o Site Apologistas Católicos.

 

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