Segunda-feira, Dezembro 30, 2024

Lutero e o Termo «KECHARITOMENE» de Lucas 1, 28


Em 1530, Lutero publica a “Missiva sobre a tradução”, na qual ele toma a defesa da sua tradução da Bíblia contra os ataques católicos. Na “Missiva” ele explica os princípios da tradução tomando como exemplo a sua tradução da saudação do anjo, Lc. 1, 28. Desde a tradução do Novo Testamento, em Setembro de 1522, Lutero traduziu o «Ave gratia plena» da Vulgata por «Ave, afortunada», e manteve esta tradução em todas as versões ulteriores. Aqui, Lutero encontrava-se em contradição com as Bíblias alemãs católicas, tanto antigas como recentes, que todas traziam as palavras: «Ave cheia de graça». Vejamos as palavras de Lutero:

(Sigo a tradução espanhola da “Missiva” de Herón Pérez Martínez, editada na versión On-line ISSN 2448-7554versión impresa ISSN 0185-3929:

 http://www.scielo.org.mx/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0185-39292014000200006 que aqui verto em português)

 

«O anjo ao saudar Maria diz-lhe: Gegrüsset seist du, Maria voll Gnaden, der Herr sei mit dir! [“Eu te saúdo, Maria, cheia de graça, que o Senhor estja contigo!”]. Assim, com efeito, chegou até nós esta alemanização das letras latinas. Digam-me se isto é bom alemão. Onde é que se ouviu que um alemão diga Du bist voll Gnaden? [“tu estás cheia de graça”]. Com efeito, qual é o alemão que entende que se está dizendo com isto? Pensa-se em seguida num barril “cheio” de cerveja, ou numa bolsa “cheia” de dinheiro. Por este motivo, preferi traduzir Du holdselige [“afortunada tu”]; desta maneira pode um alemão entender muito melhor o que o anjo quis dizer com a sua saudação. Mas a isto se agarram os papistas para voltar-se contra mim, frenéticos, dizendo que corrompi a saudação do anjo. E eu até nem empreguei o melhor alemão, porque se o fizesse teria de traduzir Gott grüsse dich, du liebe Maria [“Deus te saúda, querida Maria”] — é isto, com efeito, o que o anjo quer dizer e o que teria de dizer, se quisesse saudá-la em alemão —. Mas então, eu creio que, num arranque de veneração para com a querida Maria, os papistas se enfureceram por eu ter reduzido a nada a saudação do anjo».

2. Na língua alemã da época, o «cheia de graça» era manifestamente usual, e o próprio Lutero o emprega várias vezes. Mas na Missiva ele argumenta em favor da tradução «afortunada», afirmando que não se pode dizer «cheia de graça» porque esta tradução é contrária ao uso, visto que as possibilidades de emprego da palavra «cheia» (“voll”) são limitadas em alemão ao domínio dos objectos concretos, por exemplo «um barril cheio de cerveja» ou «uma bolsa cheia de dinheiro», ao passo que a saudação do anjo se dirige a uma pessoa e designa uma qualidade própria dela. Portanto, Lutero quer fazer-nos convencer na “Missiva” de que a sua preocupação é com o «bom alemão» susceptível de ser compreendido por um falante da língua germânica.

«Posto isto, gostaria de perguntar-lhes se ainda se encrespam ou enraivecem. Tal como eu não quero impedir que eles traduzam como lhes apetecer, assim também não quero traduzir segundo a vontade deles, mas como a mim me parece. Quem não goste, que me deixe em paz e guarde a sua crítica escolar para si: nem me interessa vê-la, nem ouvi-la. Não devem sentir-se responsáveis pela minha tradução, nem têm de dar contas dela. Repara bem: eu quero dizer Du holdselige Maria [“afortunada tu, Maria”], du liebe María [“tu, querida Maria”]; deixa que eles continuem dizendo Du voll-Gnaden-Maria [“tu, a cheia de graça, Maria”]. Quem sabe alemão, sabe muito bem a esquisita cordialidade que encerram expressões como die liebe Maria [“a querida Maria”], der liebe Gott [“o querido Deus”], der liebe Kaiser [“o querido imperador”], der liebe Fürst [“o amado príncipe”], die liebe Mann [“o homem amado”], das liebe Kind [“o filho amado”]. Eu não sei se, como sucede em alemão, também em latim ou em outras línguas a palavra liebe é capaz de exprimir tanta cordialidade e perfeição que penetra e ressoa no coração por todos os sentidos».

3. Esta qualidade própria de Maria, que ele pensava ser mais justamente expressa por «afortunada», Lutero define-a, por outro lado, como a propriedade de agradar a Deus e aos homens. Se – diz Lutero na sua Missiva – o anjo se dirigisse em alemão a Maria, ele ter-lhe-ia dito muito simplesmente «Du liebe Maria» = «Querida Maria», porque é assim que se saúda em alemão uma pessoa que suscita o afecto e a quem se quer assegurar esse afecto. Ora é precisamente isto – acrescenta ele – que queria dizer Lucas, ao empregar o grego «Kecharitomene». Lutero esqueceu-se de verificar em todos os escritos lucanos, qual o significado que Lucas atribui, quer ao verbo «charitoo» (que em Lucas sempre significa «encher de graça), quer à palavra «charis» (que em Lucas sempre significa «graça» santificante).

«Pois eu penso que São Lucas — fazendo gala do domínio que tinha tanto da língua hebraica, como da grega — quis traduzir com precisão e claridade a palavra hebraica usada pelo anjo, mediante o vocábulo grego kecharitoméne. Penso também que o anjo Gabriel falou com Maria, usando os mesmos termos que usou com Daniel, quando o chamou jamudoth e ish jamudoth, vir desideriorum [segundo a Vulgata]; quer dizer: “querido Daniel” [Du lieber Daniel]. Essa é, com efeito, a maneira de falar de Gabriel que encontramos no Livro de Daniel. Se eu quisesse traduzir, cingindo-me à letra, tal como querem esses burros, haveria de ter dito: “Daniel, homem dos desejos” [Daniel, du Mann der Begehrungen]; ou então “Daniel, homem dos caprichos” [Daniel, du Mann der Lüste]. Bonito alemão seria esse! Um falante alemão perceberia, desde logo, que Mann, Lüste o Begehrungen são palavras alemãs (não se trata por certo de palavras traduzidas com muita propriedade para o alemão; ficariam muito melhor as palavras Lust y Begier); mas quando estão unidas entre si, em expressões como “homem dos desejos” [Du Mann der Begehrungen], então nenhum alemão entende o que com isso se quer dizer; pode pensar talvez que Daniel está atacado de maus desejos. Isso sim que se chama traduzir em puro alemão».

4. Segundo Lutero, Lucas emprega o grego «Kecharitomene», para transmitir a mesma ideia do hebreu «isch chamudoth», com que o anjo se dirigia ao Profeta Daniel no Antigo Testamento (Dan. 10, 11) e que em alemão corresponde ao «Du lieber Daniel» = «Caro Daniel». Ora o «isch chamudoth», na Septuaginta, equivale ao grego «antropos eleenos» = «homem de predilecção» e não a uma forma derivada do verbo «charitoo» que faz no particípio passado «kecharitomene», a fórmula usada pelo anjo para saudar Maria. Em bom português poder-se-ia dizer “uma coisa não tem nada a ver com a outra”. Portanto dizer que a saudação do anjo a Maria é igual à saudação do anjo a Daniel, é falsear a Escritura.

«Por esta razão há que deixar de lado as letras e investigar como diria o falante alemão aquilo que o falante hebreu quer dizer com o ish jamudoth. Acho, pois, que um falante alemão diria assim: “querido Daniel” [Du lieber Daniel], “querida Maria” [Du lieber María] ou então “moça bonita” [du holdselige Maid], “linda donzela” [du feineJungfrau], “doce mulher” [du zartes Weib], etc. Quem quer ser tradutor deve ter um grande acervo de palavras à sua disposição, para o caso de que alguma não encaixe em todas as passagens».

5. É desconcertante que Lutero, que para traduzir «gratia plena», invoque tão resolutamente o «bom alemão», tenha traduzido sem hesitação o «benedicta es» que vem a seguir por «du Gebenedeite» [tu és bendita], expressão que não sendo muito usual na língua de então, Lutero não se apercebe que é um termo proveniente de uma outra língua. Se acrescentarmos que na “Missiva”, imediatamente depois desta defesa da sua tradução da saudação do anjo, ele diz que é preciso traduzir literalmente, isto é, renunciando ao uso do «bom alemão», cada vez que o sentido teológico exacto do original o exige, percebemos que ele entra em contradição e que não são razões linguísticas ou estilísticas que o levaram a traduzir «gratia plena» por «afortunada».

«Por outro lado, tive muito cuidado em não me afastar arbitrariamente da letra do texto. Ao contrário, tanto os meus colaboradores, como eu, temos tido um grande cuidado com isso; de tal maneira me mantive apegado à letra — e talvez isso tenha sucedido nalguma passagem — que não pude apartar-me do texto com uma tradução suficientemente livre. Por exemplo em João 6,27, onde Cristo diz: “A ele Deus Pai o selou” [Diesen hat Gott der Vater versiegelt]; teria sido melhor dito em alemão desta maneira: Diesen hat Gott der Vater gezeignet [“a ele o assinalou Deus Pai”]; ou então: Diesen meint Got del Vater [“a ele se refere Deus Pai”]. Todavia, preferi transgredir o alemão em vez de me afastar do texto»

6. Incoerência de Lutero: no caso da palavra «kecharitomene» não tem problema nenhum em afastar-se da letra e consequentemente do texto. No caso da passagem de Jo. 6, 27, já não admite afastar-se da letra, para não se afastar do texto, mesmo que não seja «bom alemão». Realmente, o intuito de Lutero não é o «bom alemão», mas sim outro.

«Não, traduzir não é uma arte que qualquer possa praticar, como crêem esses benditos imbecis! Há que ter um coração recto, piedoso, fiel, diligente, temente a Deus, cristão, douto, experimentado e treinado. Por isso, creio que nenhum pseudo-cristão e nenhum sectário pode traduzir com fidelidade».

7. Lutero condena-se pelas suas próprias palavras, pois «nenhum sectário pode traduzir com fidelidade». É preciso dizer que o «afortunada» de Lutero não pode ser bem compreendido do ponto de vista filológico, sem que se saiba que na realidade ele não tem a sua origem na Vulgata, mas em Erasmo[1]. Com efeito, na sua edição do Novo Testamento de 1516, Erasmo tinha traduzido a palavra grega «kecharitomene» por «afortumnada», porque, como ele o afirma numa das Anotações, «Kechariotemene» és empregado em grego num sentido principalmente profano, isto é, para designar uma pessoa amada por um afecto particular. E, acrescenta ele, Maria se assustou com esta maneira de se dirigir a ela, porque ela via nesta fórmula da saudação a manifestação de um amor profano. Como o demonstram os discursos que ele fez sobre este assunto, Lutero fez expressamente sua esta concepção, chegando mesmo a falar de «saudação amorosa» do anjo, saudação que inspirava a Maria medo pela sua honra de virgem. A crítica de Emser[2], considerando que Lutero tinha traduzido a saudação do anjo «em boa linguagem amorosa», era portanto perfeitamente fundada e encontrava-se corroborada pelas próprias afirmações de Lutero.

8. Lutero chega mesmo a afirmar ao seu amigo Urbanus Rhegius, na sua defesa contra a crítica de Emser, que «não se trata aqui de uma relação sensual» e considera que não há nenhum cristão piedoso «que não creia de boa vontade que Maria não é cheia de graça»[3]. Vê-se, pois, claramente que os argumentos invocados por Lutero na Missiva, para recusar a tradução literal de «gratia plena», não eram senão pretextos e que na realidade o debate se situava sobre um outro plano que não o da reflexão linguística.

9. Com efeito, «bom alemão» ou não, o «voll Ganden», tradução literal de «gratia plena», implicava uma certa ideia de Maria que não corresponde de maneira nenhuma à contida da tradução de «afortunada» de Lutero. Por analogia com os exemplos citados por Lutero – «um barril cheio de cerveja» ou «uma bolsa cheia de dinheiro» – representava-se efectivamente Maria, no «cheia de graça», como um receptáculo no qual era deitada a graça divina e através do qual ela a comunica aos outros seres humanos. É que se deduz claramente da explicação que dá Emser, dizendo que Maria fez entrar no mundo a graça «despejada» por Eva. E Lutero também sabia que estava aí exactamente o sentido que desde sempre se tinha atribuído à «gratia plena». Num sermão de 1523, ele já reprovava os teólogos contrários, por considerarem a graça qualquer coisa de Deus, derramada num ser humano como num recipiente[4], ao passo que a posse da graça está reservada só a Deus. Além desta indicação já reveladora, Lutero, muitos anos depois da redacção da “Missiva sobre a tradução”, expressou-se abruptamente sobre as razões decisivas da tradução que tinha proposto. Num sermão de 1539, ele diz que, se ele descartou a expressão «cheia de graça», é porque os adeptos da Igreja de Roma «procuram a graça por meio dela e colocam assim a Mãe acima do Filho»[5]. De maneira análoga, mas mais vigorosamente ainda, ele fala em 1544 da «abominável idolatria» dos papistas que «fizeram da Virgem Maria um deus», ao passo que ela não era senão um ser humano como os outros, um ser humano que, por ter encontrado a graça, não está em condições de a distribuir aos outros.

10. As coisas são portanto claras, e confirmadas pelos propósitos de Lutero. O que lhe importava na escolha da tradução de «afortunada», não era saber se o alemão era bom ou mau, mas sim uma tradução que servisse os intuitos da teologia, mais precisamente de mariologia. O culto de Maria que ele via dentro da Igreja Católica, a participação que ele atribuía à Virgem na economia da salvação, a sua situação de medianeira e intercessora, era isto que ele recusava, quando se pronunciava contra uma tradução literal do «gratia plena». Ele diz na Missiva que um Alemão não compreende do que é que se trata, quando ouve a expressão «cheia de graça». Mas teria sido mais acertado dizer que um Alemão compreende-o da maneira que ele Lutero não quer.

11. E para atingir o seu objectivo, Lutero não tem pejo em falsear as Escrituras, para as adaptar à sua teologia nas passagens onde isso parecia necessário. Isto significa somente que eram considerações de ordem teológica que, neste caso, o determinavam a dar a preferência ao «bom alemão», em vez da expressão literal, que ele incoerentemente diz seguir, mas só quando lhe convém. É isto, pois, que o leva a seguir Erasmo na interpretação do grego «kechariotmene».

Enfim não se pode dizer que Lutero tenha sido um tradutor talentoso, como os seus partidários afirmam, mas que foi um tradutor astuto, como por aqui se prova.

Baseado no artº de Konneker Barbara, Weber Henri, Longeon Claude, Mont Claude. Réflexion linguistique et Théologie : sur les principes de la traduction chez Luther. In: Bulletin de l’Association d’étude sur l’humanisme, la réforme et la renaissance, n°15, 1982.

PZA, 2017


[1] Desiderii Erasmi Roterodami opera omnia, Leiden 1703-1706. Réimpression Hildesheim G. Olms, 1961/62, vol. VI, col. 224 et 223, note 35.- Cf. également la «Paraphrasis in Novum Testamentum», vol. VI) col. 289, BC.

[2] Hieronymus Emser : Aup was grund vnnd vrsach Luthers dolmatschung uber dos naïve testament dent gemeine mon billich vorbotten worden sey, Leipzig 1523.

[3] Citado a partir de uma edição de 1525, Exemplar da Biblioteca de Land de Hesse em Fulda, por K. Barbara et alii, in Actas do Colóquio de Sommières, 14 – 17 set 1981. Tomo II. pp. 95-102.

[4] Ego ‘holdselig’ reddidi, quo culpant nostri, ipsi putant gratiam tale quiddam esse, quod infundatur vasi, ego iam culpo. Hoc est ‘holdselig’ cui omnes favent qui inspiciunt. (WA. xiv, pp  400, lines 6. 10, 16-19.) = «Eu traduzi “afortunado”, e por causa disso os nossos teólogos me acusam; alguns pensam que a graça é uma coisa que se derrama num vaso. Eu acuso-os disto. “Afortunado” é aquilo que favorecem todos os que o vêm». Citado a partir do artigo de W. Schwarz, EXAMPLES OF LUTHER’S BIBLICAL TRANSLATION, in The Journal of Theological Studies New Series, Vol. 6, No. 2 (October 1955), pp. 199-209.

[5] «Tantum ideo hinweg gethan, quod voluerunt gratiam per ipsam quaerere et collocabant matrem super filium» (WA. 47, p. 703). 

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