Sexta-feira, Novembro 15, 2024

Liturgia e Regra de Fé – Dom Prosper Guéranger

É verdade, Eminência, que, algumas linhas abaixo, consentes em reabilitar, por fim, o axioma de São Celestino; mas com uma condição. Para que elas se tornem a regra de fé, as fórmulas eclesiásticas devem ser de instituição apostólica, perpétuas e universais[1]. Tal princípio iria um tanto longe, pois dele seguiria que a Igreja não mais poderia responder pela ortodoxia das orações que ela compôs no decurso dos séculos. Tudo que não remontasse aos Apóstolos, tudo que não fosse perpétuo, tudo que não fosse universal não mais poderia ser oposto aos hereges, tornando-se para eles objeto de justa não-recepção. Em verdade, é sacrificar demais por conta desses breviários e missais modernos que – nisso concordo – não remontam aos Apóstolos e nem são perpétuos nem universais.

Entretanto, eis ainda Bossuet, que ousa citar, como vimos mais acima, sempre em virtude do axioma de São Celestino, uma oração do Pontifical Romano que remonta apenas ao ano de 1022. É evidente que ela não remonta aos Apóstolos; igualmente não tem em seu favor a perpetuidade, pois conta apenas com oito séculos de duração; ela sequer é universal, pois as Igrejas do Oriente, unidas e não unidas, não a recitam. Foi promulgada apenas pela Igreja Romana; as Igrejas latinas recitam-na por obediência a sua Mãe. Tens aqui, Eminência, nova ocasião para empreenderes converter Bossuet; eu, porém, apego-me, como ele, à regra inviolável de São Celestino. Tomou-nos tempo demais esta pequena digressão, mas era a matéria de importância alta demais para tratar-se ligeiramente. Percorramos ainda alguns dos monumentos do uso que a Igreja fez da liturgia para defender a fé.

Ninguém ignora que o Sétimo Concílio Ecumênico, encarregando-se de definir um ponto de fé católica – a legitimidade do culto das santas imagens – e condenando como hereges os iconoclastas, não podia extrair seus argumentos, e com efeito não os extraiu, a não ser da Tradição. A honra que a Igreja rende às imagens não parece remontar de forma imediata até os Apóstolos; e os hereges tinham prazer em afirmar que o Antigo Testamento proíbe as imagens e o Novo nem mesmo lhes faz alusão. Seria impossível provar, por monumentos positivos, que o culto delas remonta aos Apóstolos; a doutrina da Igreja a respeito deste ponto é puramente tradicional; há mesmo alguns dos antigos Padres que apresentam dificuldades a respeito do tema. Qual autoridade, portanto, tinha o Concílio a invocar para fundamentar sua decisão? Ele recolheu os testemunhos dalguns autores a partir do quarto século; ele se empenhou sobretudo a constatar qual a prática da Igreja, expressa em seus ritos, e supriu, pela autoridade da Liturgia, a falta de testemunhos da Escritura e o pequeno número de autoridades dentre os primeiros Padres. 

Quando começou a heresia dos sacramentários pelas blasfêmias de Berengário, os doutores católicos que se opuseram a esse heresiarca não se contentaram com apelar à Sagrada Escritura e ao testemunho dos Padres. Lanfranco e Guitmundo confundiram o inovador usando da Tradição da Igreja, expressa nas secretas e nas pós-comunhões do Missal Romano.

Mais tarde, a Sé Apostólica, com o propósito de novamente abrasar a fé do povo fiel quanto a este grande mistério, instituiu a festa do Santíssimo Sacramento. Ainda, a fim de que a regra inviolável de São Celestino fosse aplicada de modo mais solene e capaz de reduzir ao silêncio os blasfemos que se haviam de elevar em breve, recebeu o Doutor Angélico a ordem de redigir ele mesmo as fórmulas litúrgicas dessa grande festa. Sem dúvida, Eminência, a sequência Lauda Sion não remonta aos Apóstolos; ela não é nem perpétua, nem universal. Malgrado isso, tal sequência é a palavra da Igreja, é a Tradição em sua forma mais alta, bem como mais popular. O Doutor Angélico fala na Suma, mas é a Igreja mesma quem fala no Lauda Sion, pois o Lauda Sion é uma forma litúrgica aprovada. Se as Igrejas da França – que renunciaram à liturgia romana e, no entanto, consentiram em reter tal sequência – menos se tivessem abandonado ao amor das novidades, ainda a autoridade da Igreja e da Tradição garantiria suas fórmulas sagradas – e aprouve a Deus que aquilo por elas posto no lugar das orações antigas e autorizadas ao menos tivesse apoio na autoridade dos Padres e dos doutores!

O santo Concílio de Trento não se mostrou menos convencido da inviolabilidade da regra de São Celestino. Na VIª sessão, devendo estabelecer a necessidade da oração para se alcançar o progresso da justiça nas almas, citou como prova o testemunho dado pela Igreja mediante a liturgia. Eis suas palavras: “Este incremento da justiça, pede-o a Santa Igreja quando ora: ‘Dá-nos, ó Senhor, o aumento da fé, da esperança e da caridade’”[2] Essas palavras que se leem na coleta do XIIIº Domingo depois de Pentecostes, no Missal Romano, são, pois, a palavra da Igreja; elas têm, portanto, valor para estabelecer o dogma. Entretanto, Excelência, tal fórmula não remonta aos Apóstolos e nem é perpétua nem universal, num sentido absoluto. Os autores dos novos breviários e missais deles podaram um imenso número de fórmulas que se encontravam nas mesmas condições e que igualmente formavam a regra inviolável da fé; é fácil entender, após essa informação, a extensão do serviço que prestaram às nossas igrejas.

O mesmo Concílio de Trento exprime o valor dogmático da liturgia duma maneira não menos certa na XXIIª sessão, a respeito do Cânon da Missa, dizendo: “Como convém administrar santamente as coisas santas e este Sacrifício é o que há de mais santo, a Igreja Católica, a fim de que ele fosse oferecido e recebido com dignidade e reverência, instituiu há muitos séculos o sagrado Cânon, de modo que ele é isento de todo erro e nada contém que não recenda em sumo grau a santidade e a piedade, que não eleve a Deus a alma dos que o oferecem; pois ele consta das próprias palavras do Senhor, bem como de tradições dos Apóstolos e de piedosas instituições dos santos Pontífices.”[3]

Na mesma sessão, no cânon VI, o concílio confirma solenemente seu juízo por uma definição formal ao dizer: “Se alguém ensinar que o Cânon da Missa contém erros e, por isso, deve ser ab-rogado, seja anátema.”[4]

Permite que pesemos juntos, Eminência, o efeito dessas palavras do Concílio. Sabes melhor que eu que o Cânon da Missa foi escrito nos primeiros séculos da Igreja, mas que é impossível demonstrar que o texto da oração sagrada remonta até os Apóstolos; sabes que se ele contém, excetuada a oração dominical, as próprias palavras de Jesus Cristo para a consagração de Seu Corpo e Sangue, tais palavras ali ocupam apenas umas poucas linhas; sabes igualmente que as tradições dos Apóstolos que ele reúne consistem de certos ritos comuns a todas as liturgias, mesmo as do Oriente, tais como o relato da Última Ceia para introduzir as palavras da consagração, a elevação simultânea da Hóstia e do Cálice, a fração misteriosa da Hóstia etc.; mas não de qualquer fórmula positiva; sabes enfim que as fórmulas positivas do Cânon, as doze orações que o compõem, foram redigidas pela autoridade dos antigos Papas, que nisso trabalharam até São Gregório Magno, este incluso.

Não bastava, então, para sustentar a autoridade do Cânon, que não remonta aos Apóstolos; que não é Escritura canônica; que não foi escrito em sua completude desde o início – e que, portanto, não é perpétuo –; cujo uso não é universal, pois as Anáforas das Igrejas orientais nada em comum tem com ele, excetuadas a oração dominical, as palavras de Jesus Cristo para a consagração e os ritos apostólicos de que acabamos de falar; não, ao Concílio de Trento não bastava, para estabelecer a autoridade do Cânon a ponto de fazer dela artigo de fé, reconhecer que ele contém as palavras de Jesus Cristo e os ritos apostólicos que acompanham as orações: era preciso, de modo especial, sustentar aquilo a que o Concílio chama “piedosas instituições dos Pontífices”, ou seja, as doze orações de que se compõe o Cânon e que contêm tão profundo e misterioso ensinamento. Ora: bem vês, Eminência, que o Concílio inclui a autoridade dos Papas, enquanto redatores do Cânon, entre os motivos que lhe dão seu valor dogmático; sustentou o Concílio que o conjunto todo dessa oração é isento de todo erro e digno de seu propósito, pois que se compõe não apenas da Palavra de Deus e dos ritos apostólicos, mas porque foi escrito pela autoridade daqueles a quem compete formular esta regra inviolável da fé que se encontra nas orações da liturgia.

Mas se a Igreja, Eminência, apelou tanto à liturgia como ao depósito da Tradição contra os erros que se elevam em seu grêmio, ela o fez unicamente porque de antemão confiara à Liturgia aquelas tradições encarregadas de sua inviolável e infalível fidelidade. Pesa-me, ainda mais uma vez, não poder fazer mais que um esboço a respeito desta importante e interessante matéria. Um tal assunto demandaria um volume; todavia quero tratar dele o bastante para salvaguardar a ortodoxia das Instituições litúrgicas, bem como para dar alguns pontos de partida aos que lerão estas linhas e que não estariam habituados o bastante à matéria dos Lieux théologiques. Continuarei, pois, a provar com fatos que, se a liturgia é o principal instrumento da Tradição pelo qual a Igreja conserva sua doutrina e com cujo auxílio ela confunde os inovadores, a liturgia é também o depósito oficial no qual a Igreja consigna seus juízos, inscreve suas vitórias, impõe de forma direta seu ensino.

 

 


[1] Examen, página 115

[2] Hoc iustitiae incrementum petit sancta Ecclesia, cum ora: “Da nobis, Domine, fidei, spei et charitatis augmentum…Concílio Tridentino, VIª sessão, capítulo X.

[3] “Cum sancta sancte administrari conveniar, sitque hoc omnium sanctissimum Sacrificium, Ecclesia catholica, ut digne reverenterque offerretur ac perciperetur, sacrum Canonem multis ante saeculis instituit, ita ab omni errore purum, ut nihil in eo contineatur, quod non máxime sanctitatem ac pietatem quandam redoleat, mentesque offerentium in Deum erigat: is enim consta cum ex ipsis Domini verbis, tum ex Apostolorum traditionibus, ac sanctorum quoque Pontificum piis institutionibus.” Concílio Tridentino, XXIIª sessão, capítulo IV.

[4] “Si quis dixerit Canonem missae errores continere, ideoque abrogandum esse, anathema sit.” Concílio Tridentino XXIIª sessão, capítulo VI.

FONTE: Institutions liturgiques (tome 4), Paris, 1885,  pp. 381-386. Tradução: Caio Lopes.

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