Sexta-feira, Maio 23, 2025

Inscrições monumentais e a oração pelos mortos nas catacumbas cristãs

As inscrições sepulcrais encontradas nas catacumbas romanas constituem um dos mais antigos testemunhos da fé cristã primitiva. Datam desde o século I — sendo a mais antiga registrada do ano 71 d.C. — até o início do século V. Embora a maioria dessas inscrições não contenha datas explícitas, arqueólogos conseguiram determinar sua cronologia aproximada por meio da comparação com exemplares datados. A maior parte dessas milhares de inscrições pertence ao período anterior ao Concílio de Niceia, abrangendo os três primeiros séculos e o início do quarto.

As inscrições cristãs em outras regiões do mundo antigo são numericamente inferiores às das catacumbas romanas. No entanto, seu conteúdo corrobora o mesmo padrão de fé, indicando uma uniformidade doutrinal quanto à esperança na vida eterna e à prática da oração pelos falecidos. Muitas dessas inscrições apresentam-se em forma extremamente simples, com expressões como “PAX”, “IN PACE”, entre outras. Embora possam parecer declarações genéricas, o contexto revela que essas fórmulas frequentemente se ampliam em verdadeiras orações intercessórias, como por exemplo: “PAX TIBI” (“paz a ti”).

Dentre essas orações, destacam-se as chamadas aclamações, consideradas as mais antigas. Elas exprimem desejos de bênçãos aos falecidos sem recorrer necessariamente a fórmulas formais dirigidas a Deus. Os benefícios mais frequentemente pedidos são: paz, salvação, luz, refrigério, vida, vida eterna e união com Deus, com Cristo, com os anjos e os santos. Algumas fórmulas comuns incluem:

  • PAX TIBI, PAX IN ÆTERNUM, CUM ANGELIS, CUM SANCTIS

  • SPIRITUS TUUS IN BONO, ÆTERNA LUX TIBI, IN REFREGERIO ESTO

  • DEUS TIBI REFRIGERET, VIVAS IN DEO, VIVATIS IN PACE, INTER SANCTOS

(Fontes: Kirsch, Die Acclamationen, pp. 9–29; Cabrol & Leclercq, Monumenta Liturgica, I, pp. ci–cvi, cxxxix)

Traduções:

  1. PAX TIBI – Paz a ti

  2. PAX IN ÆTERNUM – Paz eterna

  3. CUM ANGELIS – (Esteja) com os anjos

  4. CUM SANCTIS – (Esteja) com os santos

  5. SPIRITUS TUUS IN BONO – Que o teu espírito esteja no bem

  6. ÆTERNA LUX TIBI – Luz eterna a ti

  7. IN REFREGERIO ESTO – Que estejas no refrigério (descanso, alívio)

  8. DEUS TIBI REFRIGERET – Que Deus te conceda refrigério

  9. VIVAS IN DEO – Que vivas em Deus

  10. VIVATIS IN PACE – Que vivais em paz

  11. INTER SANCTOS – (Estejas) entre os santos

Além das aclamações, também se encontram inscrições com um caráter mais litúrgico e formal, nas quais os vivos dirigem súplicas diretamente a Deus Pai, a Cristo ou mesmo aos anjos e santos. Os pedidos continuam sendo por paz, refrigério, luz e vida eterna, mas por vezes incluem a libertação dos pecados. Algumas dessas fórmulas se aproximam da linguagem litúrgica posterior, como no seguinte exemplo:

SIT PATER OMNIPOTENS, ORO, MISERERE LABORUM TANTORUM, MISERERE ANIMAE NON DIGNA FERENTIS

(“Seja propício, ó Pai onipotente, rogo-te: tem misericórdia de tantos sofrimentos; tem misericórdia da alma que não carrega méritos dignos.”)
(De Rossi, Inscript. Christ., II a, p. ix)

Também são frequentes as inscrições que solicitam aos visitantes que orem pelo falecido:

QUI LEGIS, ORA PRO EO” (“Tu que lês, ora por ele”) (Corpus Inscript. Lat., X, n. 3312)

Há ainda epitáfios em que o próprio falecido pede orações, como no célebre Epitáfio de Abercius e em outros dois epitáfios romanos do século II (De Rossi, op. cit., II a, p. xxx; Kirsch, op. cit., p. 51). Registros também indicam que cristãos piedosos visitavam os túmulos para rezar pelos mortos, deixando orações escritas nesses locais (De Rossi, Roma Sotterranea, II, p. 15).

No Capítulo V do livro Epitáfios das Catacumbas: Ou Inscrições Cristãs em Roma Durante os Primeiros Quatro Séculos, o Rev. J. Spencer Northcote apresenta um importante resumo sob o título: “Os Ensinamentos do Epitáfio Cristão sobre a Morte e os Mortos”. Nele, destaca-se:

Contraste entre epitáfios pagãos e cristãos — Epigrafia cristã aperfeiçoada gradativamente, mas seu caráter geral se manifesta desde o início; simples, esperançosa e alegre; menos religiosa no século IV e posteriores — Características de vida e amor dos epitáfios mais antigos — Algumas exceções, principalmente de data posterior — Uma instrução episcopal sobre a morte no século III — A linguagem dos epitáfios denota a crença na ressurreição futura — Aclamações pelos mortos; de vida em Deus, paz, refrigério — Estas frases e algumas outras explicadas — As mesmas orações encontradas nas Liturgias, antigas e modernas — Orações dirigidas aos mortos por amigos e parentes sobreviventes — Caráter religioso dessas orações e sua ortodoxia.”

Na Catacumba de Priscila, encontramos um exemplo tocante:

vos, precor, o fratres, orare huc quando veni[tis],et precibus totis Patrem Natumque rogatis, sit vestrae mentis Agapes carae meminisse ut Deus omnipotens Agapen in saecula servet.

“Suplico-vos, ó irmãos, que, vindo aqui, oreis.E com orações completas supliqueis ao Pai e ao Filho. Que esteja em vossa mente lembrar da querida Agape, para que o Deus onipotente guarde Agape para sempre.”

Um segundo fragmento da inscrição recorda a sentença de morte pronunciada no Paraíso: “do pó foste formado e ao pó hás de voltar.”
Ágape viveu vinte e sete anos; assim foi determinado por Cristo. A mãe, Eucaris, e o pai, Pio, erigiram a lápide em sua homenagem. Esse pedido comovente demonstra a convicção de que a comunhão entre vivos e mortos permanece viva pela oração.

Catacumba de Calisto, século II (texto parcialmente restaurado):

PHRONTON epoiesen SEPTIMIOS PRAItextATOS kAIKilianos
O LOYLOS TOY theoY AXIOS BIOsas
OY METENOESA KAN ODE SOI YPERSTESA
KAI EYKArisTESO TO ONOMATI SOY PAredoke
TEN psYCHen TO THEO TRIANTA TRIOn eton
. . . . . EX MENON PETEILos . . . laMPRotatos
ETon . . . paredOKE ten psychen to theo
PRo . . . septEMBRION

Esta inscrição foi encontrada em estado fragmentário juntamente com outras inscrições da família Cecília, perto do túmulo de Santa Cecília. Phronton fez o túmulo. O epitáfio menciona dois falecidos, Septímio Pretextato Ceciliano e Petílio, sendo que este último possui a designação adicional Lamprotatos, clarissimus, indicando que era de classe senatorial. Septímio é chamado de “servo de Deus” e depois é representado como falando:

Se vivi virtuosamente, não me arrependi disso, e se te servi [ó Senhor], darei graças ao Teu Nome.”

Ele “entregou sua alma a Deus” aos trinta e três anos e seis meses de idade. A mesma expressão, “entregou sua alma a Deus”, é usada para Petílio, cuja data de morte é indicada como anterior a 1º de setembro.

Catacumba de Domitila, século II:

C. IVLIA. AGRIPPINA
SIMPLICI. DVLCIS IN ÆTERNUM

Doce Simplício, vive na eternidade” é o desejo que Caia Júlia Agripina, cujo nome aristocrático indica data imperial muito antiga, envia ao falecido.

Catacumba de Domitila, século III:

. . . . SPIRITVS TVVS IN REFRIGERIO

O início da inscrição, contendo o nome, desapareceu.

“Que teu espírito esteja em refrigério.”

A antiga oração do Cânon da Missa pede para os mortos: locum refrigerii, lucis et pacis (“um lugar de refrigério, luz e paz”).

Catacumba de Pontiano, início do século IV:

EVTYCHIANO FILIO DVLCISSIMO
EVTYCHIUS PATER [Símbolo de Cristo – Chi-Rho] V.A.I.M.
II.D IIII DEI SERVS ICHTHYS

Ou seja:

Eutíquio, o pai, [erigiu] a lápide para seu dulcíssimo filhinho, Eutichiano. A criança que viveu um ano, dois meses e quatro dias, servo de Deus.

O monograma grego do nome de Cristo (Chi-Rho) e o “ICHTHYS” gravado na lápide indicam que a criança, por meio do batismo, morreu cristã e foi recebida no céu por

Catacumba de Comodila, inscrição de 377 d.C.:

CINNAMIVS OPAS LECTOR TITVLI FASCIOLE AMICVS PAVPERVM
QVI VIXIT ANN. XLVI. MENS. VII. D. VIIII DEPOSIT
IN PACE KAL MART
GRATIANO IIII ET MEROBAVDE COSS

Ou seja:

Cinnamius Opas, leitor do título [igreja] de Fasciola, amigo dos pobres, que viveu 46 anos, 7 meses e 9 dias, foi sepultado em paz em 1º de março, quando Graciano era cônsul pela quarta vez e com ele Merobaudo.”

Catacumba de Comodila, ano 394 d.C.:

DEP III IDVS MAII OSIMVS QVI
VIXIT ANNVS XXVIII QVI FECIT
CVM CONPARE SVA ANNVS SEPTE
MENSIS VIII BENEMERENTI IN PACE. CON
SVLATV NICOMACI. FLABIANI. LOCV MAR
MARARI QVADRISOMVM

Ou seja:

“Sepultado em 13 de maio, Osimo que viveu 28 anos, que viveu com sua esposa por sete anos e oito meses. Ao bem-merecido, paz. Morreu durante o consulado de Nicômaco Flaviano. Túmulo do pedreiro para quatro corpos.”

Catacumba de Calisto, século III:

PETRONIÆ AVXENTIÆ. C.F. QUÆ VIXIT
ANN. XXX. LIBERTI. FECERUNT. BENEMERENTI IN. PACE

Os libertos de Petronia Auxêntia, dama de alta linhagem (clarissimae feminae), que morreu aos trinta anos, fizeram o túmulo onde ela repousa em paz. Parece não ter tido filhos, irmãos ou irmãs, nem pais vivos à época de sua morte.

Catacumba de Calisto, século IV:

DASVMIA QVIRIACE BONE FEMINE PALVMBRA SENe FELlE . . .
QVÆ VIXIT ANNOS LXVI DEPOSITA IIII KAL MARTIAS IN PACE

Ciriaca, membro da nobre família Dasúmia, que morreu aos 66 anos, é chamada de “pomba sem amargura”, um elogio que aparece em outros túmulos femininos.

Catacumba de Calisto, por volta de 300 d.C.:

Com a permissão de seu Papa Marcelino (296–304), o diácono Severo construiu no nível do cemitério de Calisto, diretamente sob o do papa, um túmulo familiar, consistindo em uma câmara dupla de sepultamento (cubiculum duplex) com túmulos arqueados (arcosolia) e um duto de ar e luz, como lugar de repouso tranquilo para si e sua família, onde seus ossos seriam preservados em longo sono para seu Criador e Juiz.

O primeiro corpo a ser ali sepultado foi sua doce filhinha Severa, amada por seus pais e servos. Ao nascer, Deus a dotou para esta vida com talentos maravilhosos. Seu corpo descansa aqui em paz até que se levante novamente em Deus, que tomou sua alma, casta, modesta e sempre pura em Seu Espírito Santo; Ele, o Senhor, a revestirá um dia de glória espiritual.

Ela viveu virgem por nove anos, onze meses e quinze dias. Assim foi tirada deste mundo.

Além do texto dos epitáfios, muitas lápides transmitem ideias também por meio de imagens; dessa forma, expressa-se sobretudo a esperança da vida eterna para os mortos.

Destes, observe o seguinte:

5. Matronata Matrona, que viveu um ano e 52 dias. Roga por teus pais.

6. Anatólio fez isto para seu merecedor filho, que viveu 7 anos, 7 meses e 20 dias. Que teu espírito descanse bem em Deus. Roga por tua irmã.

7. Regina, que vivas no Senhor Jesus.

9. Amerimnus, para sua queridíssima e merecedora esposa, Rufina. Que Deus revigore teu espírito.

10. Doce Faustina, que vivas em Deus.

11. Revigora, ó Deus, a alma de …

12. Bolosa, que Deus te revigore, que viveu 31 anos; faleceu em 19 de setembro. Em Cristo.

13. Paz à tua alma, Oxycholis.

16. Ao teu espírito, paz, Filumena.

Isso revela que os primeiros cristãos compreendiam os falecidos como ainda participantes da comunidade dos santos, o “corpo vivo de Cristo”, unido tanto na terra quanto no céu.

CONCLUSÃO


Conforme o J. Spencer Northcote resume no Capítulo V de Epitáfios das Catacumbas:

As inscrições cristãs… implicam, mesmo quando não expressam diretamente, uma firme crença na realidade da vida futura: oram pelos mortos como se ainda estivessem vivos, capazes de sentir alegria e tristeza; ou os invocam por auxílio como se ainda pudessem oferecê-lo.”

A prática da oração pelos mortos era tão comum, universal e ortodoxa na Igreja primitiva que hoje nenhum historiador sério a contesta. Longe de ser uma inovação posterior, trata-se de uma herança legítima da fé apostólica, em continuidade com o judaísmo e confirmada pelos testemunhos mais antigos do cristianismo.

3 COMENTÁRIOS

  1. Quando saí um artigo completo com respostas as objeções e argumentações sobre o purgatório na bíblia? Salve Maria.

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