Segunda-feira, Dezembro 30, 2024

Igreja e Teologia no Concílio Vaticano II. Nota sobre um livro de Roberto de Mattei

* Publicado anteriormente na revista Lateranum 78 (2012) 139 – 151

1. Algumas observações introdutórias

A pesquisa histórica e teológica sobre o Vaticano II está vivendo uma nova fase mais  atenta à hermenêutica.  A abertura às questões que dizem respeito a interpretações encontrou um fator decisivo no Santo Padre Bento XVI. Ele, de fato, no seu discurso à Cúria Romana na eminência do natal de 2005, apresentava duas modalidades de leitura do Concílio:  a primeira baseada sobre a hermenêutica da “reforma na continuidade” e a outra, ao invés, sobre uma hermenêutica da “ruptura”, considerada, porém, pelo mesmo Pontífice enganadora e não de acordo com a verdade do evento.

Logo após aquele pronunciamento numerosos foram os livros e os artigos relativos a temática [1] [nota 1: entre outros queremos aqui indicar aqueles de Ch. Theobald, La réception du Concile Vatican II. I. Accéder à la source, Cerf, Paris 2009; B. Gherardini, Concilio Vaticano II. Um discorso da fare, Casa Mariana, Frigento (Av) 2009; Id., Concilio Vaticano II. Il discorso mancato, Lindau, Torino 2011; G. Alberigo, Transizione epocale. Studi sul Concilio Vaticano II, Il Mulino, Bologna 2009; A. Marchetto, Il Concilio Ecumenico Vaticano II: contrappunto per la sua storia, LEV, Città del Vaticano 2005; J. W. O’Malley (ed.), Vatican II. Did Anything happen?, Continuum, New York – London 2007; G. Routhier, Vatican II. Herméneutique et réception, Fides, Québec 2006 (tr. it. Il Concilio Vaticano II. Recezione ed ermeneutica, Vita e pensiero, Milano 2007); R. Pesch, Il Concilio Vaticano Secondo. Preistoria, svolgimento, risultati, storia post – conciliare, Queriniana, Brescia 2005; A. Melloni – G. Ruggieri (edd.), Chi ha paura del Vaticano II?, Carocci, Roma 2009; G. Richi Alberti, A propósito de la «hermenéutica de la continuidad». Nota sobre la propuesta de B. Gherardini, in Scripta Theologica 42 (2010) 59 – 77].

Entre estes, está o livro de Roberto de Mattei, docente universitário e histórico: O Concílio Vaticano II. Uma história nunca escrita, publicado ao final de 2010 [2]. [nota 2: R. de Mattei,  Concilio Vaticano II. Una storia mai scritta, Lindau, Torino 2010; de agora em diante “de Mattei”+.]

A obra de Mattei recebeu uma positiva acolhida e difusão em alguns círculos que não partilham a perspectiva da escola de inspiração Dossettiana com sede em Bolonha.  Não todos, porém, concordam com a sua impostação. As opiniões são muito discordantes e deram vida a uma acesa troca entre autores e revisores, vistos também em alguns jornais. Nos solicitaram nesta nota, de oferecer uma contribuição que possa ajudar a aprofundar algumas das razões de fundo de tal debate.

O livro em questão se apresenta como uma reconstrução que utiliza as mesmas fontes da escola bolonhesa, lidas, porém, pelo autor à luz que ele considera substancialmente diferente. O seu propósito é descrito na encorpada introdução: «O verdadeiro histórico não é nem o pesquisador que “localiza” novos documentos, nem o “cronista” que reúne aqueles já conhecidos, mas aquele que, baseando-se sobre a documentação publicada ou inédita à sua disposição, é capaz de ordená-la, de compreende-la, de narrá-la, enquadrando os eventos em uma filosofia da história, que para o histórico católico, é antes de mais nada uma teologia da história»(p.23).

Depois desta afirmação o autor se reconhece devedor a filosofia e teologia da história de molde tradicionalista de Plínio Corrêa de Oliveira. A sua complexa figura, comparece, de fato, mais vezes em toda a obra [3] [nota 3: Plínio Corrêa de Oliveira foi um expoente da Ação Católica
Brasileira, leigo, com sensibilidade política e firmemente unido à Igreja. É um grande representante dos intelectuais católicos brasileiros da época de 1930-1960. Infelizmente, talvez, por uma não completa distinção entre o que é perene e o que é mutável na Igreja, não conseguiu colher a positividade e a importância da obra realizada no Concílio vaticano II]. É justamente à luz do pensamento deste católico brasileiro que de Mattei realiza a leitura das fontes históricas do Concílio Vaticano II.

Na introdução do livro, o autor exprime o desejo de construir o discurso em torno de duas grandes teses relacionadas entre elas. A primeira sustenta que a confusão posterior a Assembléia ecumênica foi causada pela não simples inteligibilidade dos  textos aprovados. A segunda, ampliando a precedente, imputa a ambiguidade presente no Concílio à vitória da chamada “maioria”, influenciada pela Nouvelle théologie, herdeira do modernismo. As duas teses de Mattei não parecem ter em devida consideração instâncias teológico-hermenêuticas, sempre necessárias para uma história da Igreja que não corra o risco de perder o seu objetivo.

A questão epistemológica é de fato, de primária importância para uma leitura respeitosa do objeto de estudo, sem cair em uma apologética da comunidade eclesial, priva de rigor histórico, nem se perder em uma visão historicista descuidada da dimensão sobrenatural da Igreja[4] [nota 4: Na história da Igreja existe uma diversidade de abordagens à questão epistemológica. Entre aqueles que se ocupam de história da Igreja hoje é comum assumir que ocorre ter em conta a instancia teológica, mas existem muita divergência entre os históricos, no que diz respeito ao exato lugar epistemológico de tal princípio. Por exemplo, segundo Jedin, noto histórico do Concílio, a história da Igreja é uma ciência que toma o seu objeto de estudo da teologia, mas usa uma metodologia histórica, cf. H. Jedin (ed.), Storia della Chiesa, 4ª rist., vol. 1, Jaca Book, Milano 1983, 3-15].

Em nossa opinião, de Mattei parece separar demais a história da teologia. E mesmo sustentando de manter-se sobre o plano dos fatos e da história, na realidade faz afirmações e assume posições que contém também caráter teológico. Em particular isto é detectado quando o autor pretende usar o modelo proposto pelo Papa Bento XVI, a distinção entre hermenêutica da reforma e da ruptura, porém, sem indicar os textos de referimento. Ele assume como válido uma abordagem centrada sobre o evento das discussões conciliares e de suas evoluções, mais que sobre os textos aprovados. A falta de uma leitura contextualizada dos documentos, em favor de uma concentração sobre as discussões, sobre as posições e sobre as atitudes dos Padres, dos peritos e de alguns outros autores, provoca uma leitura distorcida das posições sustentadas dos sujeitos acima mencionados no período sucessivo ao evento conciliar.

Estes, de fato, vêm entendidas à luz de uma continuidade com as respectivas intervenções no decorrer dos trabalhos conciliares, sem tomar conta da fundamental diferença que existe entre um concílio ecumênico, assim como o entende a eclesiologia católica, as discussões que caracterizam o processo de implementação, e as atitudes posteriores daqueles que dele tomaram parte. Na realidade, o leitor tem a impressão que, para de Mattei, os documentos conciliares não possuem nenhuma validade autônoma, que de alguma forma transcendem o evento; mas que dependam do próprio evento. Apresentar hoje uma história do Vaticano II pouco atenta aos documentos é indício de uma leitura da assembléia segundo o paradigma da oposição texto – evento e significa mover a pesquisa para horizontes «já ultrapassados da tendência atual», que se volta a um exame do texto contextualizado na sua história redacional (atenta também aos eventos).

2. Análise e avaliação dos temas histórico -teológicos e eclesiológicos

Depois de uma encorpada introdução, o livro dedica dois capítulos aos pontificados de Pio XII e de João XXIII, na fase precedente à abertura do próprio Concílio.

O primeiro (capítulo) é inteiramente finalizado a mostrar como o modernismo tenha continuado a existir e a influenciar diversos ambientes eclesiais e teológicos através os movimentos de renovação bíblica, litúrgica, filosófico, teológico e ecumênico, classificados pelo Autor como herdeiros do próprio modernismo. Segundo de Mattei, a herança modernista é lida como categoria negativa. Não se encontram em sua pesquisa indícios de uma consciência da complexidade de tal corrente; sem ter em conta os aspectos da existência cristã, seguramente presentes e dignos de atenção, recolhidos e desenvolvidos no seio da fidelidade à ortodoxia católica.

Não emerge um espaço para a atenção à vontade de reforma autenticamente inspirada presente na Igreja. Se há a impressão que o texto de Mattei não faça distinção entre “idéias modernistas”, movimento reformista, preocupação pelos desafios da evangelização no contexto liberal no qual a Igreja se encontrava, assunção de intuições válidas emersas no âmbito sócio – cultural daquela que se pode chamar a “época moderna”[5] . [nota 5: Como se sabe, o modernismo teológico não é um fenômeno, cujas fronteiras sejam todas definidas. Talvez se pode dizer que este começou como um movimento de renovação  que, por diversas razões, terminou em uma crise. Para ulteriores detalhes se pode consultar C. Izquierdo, Cómo se ha entendido el «Modernismo teológico»: discusión historiográfica, in S. Casas (ed.), El modernismo a la vuelta de un siglo, Eunsa, Pamplona 2008, 25 – 81.]

Mais adiante, ao interno da sessão dedicada as figuras que reagiram ao modernismo durante o pontificado pacelliano (Papa Pio XII tem o sobrenome Pacelli), o Autor destaca a origem da idéia “Igreja como Corpo Místico de Cristo” ao Concílio Vaticano I (p.88). Na realidade, tal noção, nasceu na Escola de Tubinga, e é portanto, quarenta anos anterior a primeira Assembléia Vaticana [6]. [nota 6: Cf. C. Pioppi, voz: Scuola di Tubinga, in G. Calabrese – Ph. Goyret – O. Piazza (edd.),Dizionario di Ecclesiologia, Città Nuova, Roma 2010, 1295 – 1298; C. Militello, voz: Corpo di Cristo, in ivi, 365s].

Durante todo o século XIX e os primos decênios do século XX, a imagem do Corpo Místico de Cristo se apresentava harmônica com aquela de sociedade perfeita. Somente depois de 1920, assumiu um sentido mais articulado, e, em alguns autores chegam a se opor.

Seguindo Gherardini, de Mattei confirma a existência, entre os teólogos que procuravam usar esta imagem, de uma grande confusão nos entre os anos 20 e 40. Por isso, a afirmação segundo qual, por meio desta eclesiologia se queria veicular uma imagem de Igreja mais carismática, deveria ser precisada, pelo menos explicitando que se faz referimento somente a alguns teólogos daquela época.

No tratamento de temas relativos ao Pontificado de Pio XII, falta um dado decisivo para o Concílio Vaticano II: o aparecimento nos anos 40 e 50 de um discurso eclesiológico centrado sobre a ideia bíblica de Povo de Deus. Não vem analisados autores importantes como M. Schmaus e J. Ratzinger, nem outros teólogos proeminentes que, embora, se dedicaram a este tema [7]. [nota 7: Concretamente, as discussões sobre Michael Schmaus é deficiente, seja do ponto de vista histórico, seja do ponto de vista toológico].

O referimento à Igreja como Povo de Deus, é colocado pelo Autor, somente onde se fala do movimento ecumênico (p.77), mas isto parece não refletir plenamente aquilo que na época era sustentado na teologia católica. É negligenciada a reflexão teológica em curso na Alemanha depois da guerra, e isto impede de colher os aspectos interessantes, depois presentes no Concílio. Em nossa opinião, tais escolhas comprometem a completude e a consistência das teses sustentadas.

O segundo capítulo do livro abraça aspectos muito interessantes e de diversos tipos, da teologia até a política. Existe uma especifica atenção as relações entre os bispos do centro – europeu: se afirma que no decênio 1948 – 1958, tomou forma uma nova “teologia do episcopado” (p.190s), mas imediatamente depois se lê que «esta tendência “episcopalista”, foi aprovada na Bélgica pelo cardeal Van Roey». Deste modo parece que se equiparem a nova teologia do episcopado e a tendência episcopalista, sem que de uma tal equivalência venham fornecidas provas históricas. O episcopalismo, como doutrina teológica, mais que prática de governo, foi censurado pelo Concílio Vaticano I, enquanto a nova teologia sobre o episcopado tinha  características diferentes. O Autor não revela as suas fontes e não parece ter em mente a teologia do episcopado contemporânea ao Vaticano I, pelo qual, em nossa opinião, está usando um conceito de “episcopalismo” demasiadamente amplo, inútil e confuso [8]. [nota 8: De Mattei não considera os estudos de J. Hamer, Le corps épiscopal uni au pape, son autorité dans l’Église, d’après les documents du premier concile du Vatican, in Révue des Sciences Philosophiques et Théologiques 45 (1961) 21- 31; G. Dejaifve, Pape et évêques au premier Concile du Vatican, Desclée de Brouwer, Bruges – Paris 1961; J.P. Torrell, La théologie de l’épiscopat au premier Concile du Vatican, Cerf, Paris 1961].

Depois destes dois capítulos dedicados ao período anterior ao Concílio, existem quatro capítulos, cada um relativo a uma sessão do Vaticano II. O trabalho de pesquisa e leitura das fontes é muito amplo, com dados interessantes sobre diversos temas que a Assembléia quis afrontar e sobre circunstâncias, nas quais se desenvolveram alguns debates em Aula. As vezes, o texto recorre a instrumentos de tipo jornalístico, que segundo nossa opinião, aliviam a leitura mas diminuem o rigor científico, pois é mais consoante com uma obra de divulgação.

Nestes capítulos, de Mattei se concentra sobre eventos pessoais dos Padres Conciliares, procurando colocá-los ao interno de duas correntes diferentes, o “partido romano” e o “partido progressista”. São escassas as ocasiões, nas quais o Autor, oferece ao leitor um texto sobre o qual era em andamento a discussão, e isto não ajuda a colher bem o sentido das intervenções.

Quem lê, não tem nem mesmo acesso ao texto final que é alcançado. Isto acontece com a Sacrossanctum Concilium 9p. 238 – 254), com o texto sobre a Revelação (PP 254 – 265), com o esquema De Ecclesia preparado pela Comissão (PP. 265 ss), com a discussão do esquema De Ecclesia preparado por monsenhor G. Philips (PP 310 – 314 e 335 -346) e outros ainda. A pesquisa  aparece organizada em função das duas teses principais sustentadas, mas fazendo
assim se perde a centralização sobre as idéias fundamentais do Concílio.

Em alguns momentos, a metodologia utilizada é tal, de modo a suscitar algumas perplexidades sobre o rigor histórico e teológico do trabalho. Por exemplo, nas páginas 254 – 265, antes de falar do esquema sobre a Revelação, é apresentada a doutrina da Igreja sobre as fontes da Revelação. Segundo o Autor, o depósito da fé é proposto como todo o conteúdo da tradição e não na Sagrada Escritura (p.255).

Esta afirmação, ainda que muito comum durante os anos quarenta do século XX (e antes), não pode mais ser apresentada hoje, e assim também na época, como “doutrina da Igreja” sobre tal argumento [9]. [9: De Mattei parece não ter me mente, por exemplo, o debate dos anos 50 entre Lennerz, Geiselmann e Beumer]. Falta ao Autor uma história sintética do de fontibus. E isto se torna mais evidente também no sexto capítulo, dedicado a última sessão conciliar, no qual o Autor não parece ter apanhado o nódulo da discussão sobre a dupla fonte da Revelação (Sagrada Escritura e Tradição)[10]. [nota 10: O tema da dupla fonte da Revelação é muito mais complexo e delicado do quanto pareça à primeira vista. Existem textos de Santo Tomás que os tratam a partir de vários pontos de vista (favorecendo a plenitude da Revelação na Tradição ou na Escritura e em ambas  e também dos Padres da Igreja (Santo Agostinho). O famoso et do Concílio Tridentino, isto é, a Revelação está toda contida na Tradição e na Sagrada Escritura, manifesta o estado das questões quinhentos anos atrás (Decr. Sacrosanta), mas a teologia posterior a Trento leu esta frase como indicativa da existência de duas fontes diversas e paralelas (a questão da não suficiência formal da Sagrada Escritura, misturada ao ponto de vista pelo qual a Sagrada Escritura e a Tradição eram vistas como “entidades” completas em si mesmas].

Portanto, quando se afirma, na p.492, que o texto final da Dei Verbum é «quanto menos nebuloso» (sic), o leitor há a impressão de encontrar-se diante de uma conclusão arriscada e carente de fundamento. De Mattei opera um exame atento do debate em torno do esquema De Ecclesia (PP.265 ss), que não teve como êxito a supressão do próprio esquema, como talvez  previsto pelo Cardeal Ottaviani no discurso de apresentação (cf. p.268). Na realidade, uma comparação entre o esquema elaborado pela comissão presidida pelo mesmo cardeal e aquele escolhido como base da discussão sucessiva, elaborado pelo monsenhor Gerard Philips, revela a presença de numerosas coincidências. Se poderia afirmar que as reações de diversos bispos “progressistas”, relatadas pelo Autor (PP.268 ss), não foram acolhidas. Pelo menos é isto que se evidencia de uma leitura de uma sinopse da Lumen Gentiun preparada por Alberigo (editada em 1975) ou aquela de Gil – Hellín (editada em 1995)[11]. [nota 11: é realmente notável os trabalhos de análise das Acta Synodalia, realizado por de Mattei. Ele conhece também a Synopsis, curada por Alberigo (Bolonha 1975), todavia, não parece estar ciente da Synopsis curada por Gil – Hellín (Roma 1995); cf. R. de Mattei, 310. A única Sinopse curada por este último, ao qual de Mattei faz referência é aquela da Gaudium et Spes, editada em 1985].

Infelizmente o texto sobre o qual se desenvolvia o debate não veio relatado por de Mattei, pelo qual, ao leitor é dada e a ideia de uma vitória absoluta dos assim chamados “progressistas”. Talvez o autor, quisesse refletir o ponto de vista do suposto “partido romano”. No mês de outubro de 1963, a Assembléia se ocupou quase exclusivamente do debate sobre o De Ecclesia. Por isto, não surpreende que o Autor, dedique uma parte importante do capítulo aos eventos relacionados com a elaboração da Lumen Gentium (cf. PP 310 – 314 e PP 335 – 346).

De Mattei quis apresentar tais discussões como um confronto entre a “Igreja militante” e a “Igreja peregrinante”,  como se evidencia no título escolhido para a sessão. A primeira vez que aparece esta oposição, o Autor atribui a Congar. Concretamente, afirma que «de uma parte estava a concepção da Nouvélle Théologie, em particular de Congar, que contrapunha a “Igreja do direito” aquela pneumática “do amor”, da outra parte a visão tradicional, alinhada com a doutrina de São Roberto Belarmino, lida à luz da Mystici corporis» (p.311). As fontes do autor são o reconhecido livro de Antonio Acerbi sobre a Lumen gentium, no que diz respeito Congar, e uma citação de monsenhor Fenton, por quanto aquilo que diz respeito a visão “tradicional”.

Encontramos dificuldade em acompanhar de Mattei nesta leitura dos fatos e somos levados a pensar que nem mesmo Congar, se sentiria refletido na classificação do Autor. Os estudos sobre ele, de fato, mesmo reconhecendo no percurso do dominicano francês um interesse crescente pela Terceira Pessoa da Trindade, revelam um desenvolvimento da eclesiologia mais atento ao Espírito Santo somente em época sucessiva ao Concilio [12]. [nota 12: Cf. J. Famerée, L’ecclésiologie d’Yves Congar avant Vatican II, Leuven University Press, Leuven 1992; P. G. Gianazza, Lo Spirito Santo: summa pneumatologica di Yves Congar, LAS, Roma 1998; E. T. Groppe, Yves Congar’s Theology of the Holy Spirit, Oxford University Press, Oxford 2004].

O livro de Arcebi foi publicado em 1975, as pesquisas sobre Congar, ao invés, são todas muito posteriores. Teria sido preferível fazer a uma documentação mais atualizada. De fato, as intervenções, os Padres, os teólogos, já classificados segundo as categorias de Arcebi e, talvez, de Plínio Corrêa de Oliveira, vêem apresentados sob as definições de Igreja Militante, partido conservador, tradicionalistas, de uma parte, e de Igreja peregrinante, partido progressista, inovadores da outra. O conjunto de intervenções propostos na página 311 é muito heterogênea nos argumentos: oposição Igreja do amor e Igreja do direito, a Igreja vista como communio ecclesiarum, a crítica a ideia sacramental de Igreja, as intervenções sobre a colegialidade episcopal… Todos são relatados no mesmo parágrafo, e todos são lidos segundo a “tese” do Autor, inspirada em Acerbi, de duas eclesiologias em confronto; pode parecer, em alguns momentos, metodologicamente forçado.

Mais adiante, o Autor dedica uma atenção a doutrina católica do Primado de Pedro afirmando que «o Romano Pontífice pode tudo na Igreja, e pode sobre todos, e pode sem ser limitado por ninguém» (p.336). Na realidade, o Sumo Pontífice é limitado pela finalidade própria da missão que Cristo confiou a Pedro e aos seus sucessores, isto é, da unidade do episcopado e, portanto, da Igreja, assim como indicado do proêmio da Constituição Pastor Aeternus do Concilio Vaticano I [13]. [nota 13: O prólogo da Pastor Aeternus considerou que o primado serve antes de tudo a unidade do episcopado e somente mediadamente  – realizando a sua função de princípio de comunhão do episcopado  – à comunhão de todos os fiéis. Rodríguez colocou em evidência a importância de ler teologicamente a natureza do primado papal e sugeriu de fazê-lo partindo do proêmio da Pastor Aeternus, o que parece abrir uma via ao diálogo ecumênico que atualmente intercorre entre Igreja Católica e as Igrejas Ortodoxas, cf. P. Rodríguez, Natura e fini del primato del Papa: il Vaticano I alla luce del Vaticano II, in Congregazione per la Dottrina della Fede, Il Primato del Successore di Pietro nel mistero della Chiesa. Testo e commenti, LEV, Città del Vaticano 2002, 95 – 104].

A frase citada mostra que não se pode entender o colégio dos bispos como dotado de uma autoridade independente do Sucessor de Pedro. Ajuda também a entender que a autoridade do Romano Pontífice não tem necessidade de nenhuma ratificação por parte dos governos civis (todos os tipos de poder régio), dos concílios (conciliarismo) ou de outras figuras intermédias (episcopalismo…etc) para poder exercitar a sua função pastoral universal. Foi para contrastar tais erros que o Concílio Vaticano I exprimiu a doutrina do Primado do Romano Pontífice sobre toda a Igreja, mas a frase acima relatada, prout iacet, parece colocar o Papa, acima da Igreja, na forma de um imperador bizantino que comanda a inteira oikuméne, exprimindo assim o modo de recepção da doutrina do Vaticano I da parte de certos autores, especialmente da primeira metade do século XX.

A afirmação segundo a qual «a plenitude do poder de jurisdição reside, todavia somente no Papa sobre o qual é fundado todo o edifício eclesiástico» (p.336) dá voz à uma compreensão da plenitudo potestatis sempre mais frequente, mas, com certeza não a única (voz). Como se sabe, na Lumen Gentium 22 o mesmo poder universal sobre a Igreja vem reconhecido a dois sujeitos inadequadamente diferentes: o Papa e o Colégio Episcopal com a sua cabeça, o Papa.

Segundo o Autor, «a palavra de ordem dos “inovadores” foi aquela de “re-equilibrar” o dogma do Vaticano I, adicionando a este o princípio da “colegialidade” de governo» (p.336). O autor parece não tomar em consideração o projeto de discussão na primeira Assembléia Vaticana na qual era previsto o tema do episcopado. Não parece ter presente nem mesmo que o Beato Pio IX aprovou a carta coletiva do episcopado alemão (contra Bismarck), no qual se dizia que o papel do episcopado não foi diminuído pela doutrina do Vaticano I, declarando-a de acordo com uma verdadeira interpretação do mesmo Concílio [14]. [14: Cf. Beato Pio IX, Mirabilis illa constantia (4 – III – 1875), in DS 3117].

Esta ausência de referimentos as fontes, se torna mais evidente lá onde se considera que a reivindicação da existência do Colégio Episcopal se fundamentasse primariamente sobre razões de ordem ecumênica, desenvolvidas em Chevetogne em torno a Dom Lambert Beauduin, que teria descoberto o papel do episcopado como ao lado e implicitamente contraposto aquele do Papa (p.337).

A exposição do Autor segue com o estudo da discussão em Aula, a descrição dos diversos debates e as famosas perguntas dos moderadores ao final de outubro de 1963 (PP.342 – 350). As negociações, não nos parece consentir, de entender se o objeto em discussão fosse a summa potestas na Igreja, a saber o titulo em base ao qual o Papa possui a summa potestas na Igreja, ou a questão da fundação das conferências episcopais sobre o direito divino (através da Colegialidade Episcopal). A redação do texto é pouco clara. Se trata de um dos temas nos quais a teologia e a história não podem proceder uma sem a outra, sem cair em uma diatribe sobre os poderes, porém, porque conduzido segundo uma ótica pré – determinada, se revela, infelizmente, estéril. Em conclusão o material recolhido pelo Autor pareceria dar razão a tese, segundo o qual alguns protagonistas, não conseguindo obter a aprovação da própria linha de pensamento no decorrer dos trabalhos conciliares, tentaram, no entanto, em um segundo tempo, continuar a sustentá-la e a propagá-la, cada um de acordo com o seu papel e com os meios a disposição.

Neste sentido, vem lida em uma espécie de continuidade de atitudes entre o momento conciliar e o tempo sucessivo, mas não entre o Concílio o período posterior. É talvez aqui que se mostra um dos maiores limites da abordagem que dá prioridade ao “evento” em detrimento dos “textos”.

3. Conclusão

De modo geral, o livro de Mattei utiliza numerosas fontes e uma boa documentação, naquilo que diz respeito aos principais protagonistas do chamado “partido romano”. A contribuição dada pelo autor para o conhecimentos dos personagens individuados em tal âmbito, é, de modo geral, válido e louvável. Nutrimos, porém, fortes dúvidas se seria adequado dar o nome de “partido romano” para um conjunto, tão “des-homogêneo” (heterogêneo) de Padres Conciliares que o Autor, mesmo reconhecendo a diversidade, ainda quer incluir ao interno desta categoria (Ottaviani, Proença Sigaud, Ruffini, Siri, para dar alguns nomes). No entanto, para o que diz respeito ao chamado “partido progressista” a posição de Mattei se mostra superficial, carente e conjuntamente, inexata e ambígua.

As duas principais teses do livro se revelam INFUNDADAS. Em parte, por causa daquilo que é detectável em dois elementos que oferecem uma ampla margem à crítica: a clara separação entre teologia e história, de uma parte, e, da outra, a falta de percepção da importância do texto aprovado pela Assembléia Conciliar (e da historia de sua interpretação do magistério posterior),privilegiando, ao contrário, a categoria de “evento”. E finalmente, o texto mostra carências no âmbito da historia da teologia e de eclesiologia, tão grandes ao ponto de comprometer a dimensão científica da pesquisa: Se perdeu de vista os aspectos principais de um Concílio que quer ser, antes de tudo, um Concílio da Igreja e sobre a Igreja [14]. [ nota 14: O texto desta nota foi publicada na Revista Lateranum 78 (2012) 139 – 151. Agradeço ao diretor da revista, prof. Lubomir Žak, pela permissão concedida para a sua publicação no sito www.collationes.org]

Miguel de Salis* (Pontifícia Universidade de Santa Cruz – Roma) O autor é professor associado de eclesiologia e ecumenismo na faculdade de Teologia, da Pontifícia Universidade de Santa Cruz (Roma)

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