Sábado, Dezembro 21, 2024

“Humani Generis” e Evolução

“Humani Generis” e Evolução

Por WILLIAM KELLER, A.B., S.T.L.

Em 12 de agosto de 1950, o Papa Pio XII emitiu a encíclica “Humani generis”, um documento que diz respeito a todo sacerdote, assim como a muitos leigos. Esta encíclica, que Francis J. Connell, C.SS.R., descreveu como “a mais significativa e a mais abrangente declaração doutrinal promulgada pelo Santo Padre durante os seus doze anos como Soberano Pontífice”,[1] está intimamente relacionada a duas instruções papais anteriores: a encíclica “Quanta cura”, emitida em 1864 pelo Papa Pio IX, e a encíclica “Pascendi dominici gregis”, emitida quarenta e três anos depois, em 1907, pelo Papa Pio X. Ambas essas encíclicas anteriores foram escritas com o propósito de chamar a atenção do mundo católico para certos graves erros que estavam se tornando cada vez mais comuns, tanto dentro quanto fora da Igreja. Esta encíclica atual, surgindo por uma coincidência estranha exatamente quarenta e três anos após “Pascendi”, tem um objetivo semelhante.

A primeira encíclica deste tipo, “Quanta cura”, tratava principalmente dos erros do Naturalismo, Socialismo e Comunismo. Em “Pascendi”, o Papa Pio X expôs e condenou a heresia incipiente do Modernismo. Ambas as cartas foram escritas com uma linguagem muito mais forte e severa do que o documento atual. Monsenhor Joseph C. Fenton destaca que o atual Santo Padre não ataca diretamente as intenções dos homens que estão espalhando a doutrina que ele reprova. Tais homens são descritos pelo Santo Padre como possuindo um certo zelo pelo apostolado que se tornou imoderado, homens que têm um amor excessivo pela novidade[2]. Embora firme, a encíclica mantém, como observa Robert Barrat, “um tom que é paternal e sereno”[3]. Erros são, de fato, reprovados, mas grande parte da encíclica é dedicada a conselhos salutares para a orientação de futuras pesquisas. A intenção do Santo Padre, claramente, não é desencorajar a erudição progressiva, mas sim direcioná-la para os canais corretos.

É na parte final da encíclica “Humani generis” que o Santo Padre aborda o tema da evolução. Este termo tem muitos significados e pode ser usado em diversos sentidos, mas aqui o Papa está falando especificamente sobre o ensinamento de que o corpo humano originalmente se originou de matéria pré-existente e viva, que passou por um processo de evolução de formas inferiores para superiores. Vale mencionar que, sempre que a evolução é referida de maneira favorável pelos católicos, não se entende isso em um sentido absoluto. Parte-se sempre do princípio de que Deus, Ele mesmo, iniciou o processo e, no caso do homem, que Ele interveio de uma maneira muito especial, elevando o corpo humano de alguma forma e infundindo-lhe uma alma espiritual.

PENSAMENTO CATÓLICO ANTERIOR SOBRE A EVOLUÇÃO

Antes de vermos qual julgamento o Santo Padre faz sobre essa proposição, é conveniente, antes de tudo, apresentar de forma condensada as tendências dos pensadores católicos reconhecidos ao longo dos últimos vinte anos, mais ou menos. Isso dará o estado da questão antes da emissão da encíclica e, consequentemente, tornará mais fácil entender a posição do Santo Padre.

Os pensadores católicos que escreveram sobre o tema da evolução do corpo humano observaram o assunto a partir de várias perspectivas: das ciências naturais, da filosofia e teologia, e da crítica bíblica. O propósito presente pode ser melhor atendido, portanto, ao se apresentar brevemente as opiniões de estudiosos que representam esses diferentes pontos de vista, lembrando sempre que a maioria dessas autoridades está muito familiarizada com os outros campos. O estudioso das escrituras, por exemplo, está bem ciente das dificuldades teológicas e filosóficas, e o cientista natural frequentemente conhece os problemas textuais enfrentados pelo estudioso das escrituras.

A VISÃO DO CIENTISTA CATÓLICO

J. Franklin Ewing, S.J., pode ser considerado um porta-voz de muitos cientistas católicos ao declarar que: “A evolução exige imediatamente a séria consideração dos estudiosos católicos; e mais: a evolução deve ser incorporada, e de forma dinâmica, em sua visão de mundo”[4].

Ele próprio, ao se referir à evolução, sempre coloca a palavra “fato” entre parênteses, indicando, talvez, que não considera a teoria completamente provada, mas deixando pouca dúvida de que a considera extremamente provável. O biólogo, ele nos diz, “encontra inúmeros fatos sobre forma e função que só podem ser explicados postulando a evolução… E ele não encontra fatos que sejam ativamente antagonistas à sua teoria; nem os encontrará em nenhum de seus modos de investigação.” Do ponto de vista do paleontólogo, o Padre Ewing declara que, “A evolução é o único princípio que pode compreender essa cena em constante mudança, seguir as personagens do drama através de suas metamorfoses e dar sentido à peça.”

A conclusão deste cientista católico é digna de nota, pois ele afirma que “apenas uma Filosofia Cristã pode tornar uma filosofia evolucionista completamente razoável (algo que nenhum filósofo não católico jamais conseguiu fazer).”

V. Marcozzi, S.J., escrevendo no “Gregorianum,” a publicação oficial da Universidade Gregoriana, conclui um artigo sobre evolução, visto do ponto de vista científico, com a afirmação: “Não acreditamos ser um exagero afirmar que, atualmente, quase todos os paleontólogos e antropólogos são evolucionistas.”[5] A própria conclusão do Padre Marcozzi é: “A evolução, no que diz respeito ao corpo humano, no estado atual da pesquisa, apresenta um certo grau de probabilidade.”

O Cardeal Achille Liénart, Bispo de Lille, escreveu um artigo que apareceu originalmente na publicação francesa “Études” e, posteriormente, foi traduzido e publicado em duas partes no “Commonweal”, sob o título de “Ciência e a Bíblia”[6]. A análise do Cardeal sobre os escritos de cientistas, tanto católicos quanto não católicos, levou-o à mesma conclusão alcançada pelo Padre Marcozzi, a saber, que “Os paleontólogos agora consideram que a evolução, ou seja, a passagem da vida de uma espécie para outra, e, consequentemente, a origem animal do corpo humano, é um fato estabelecido.”

O próprio Cardeal Liénart, embora não vá tão longe a ponto de considerar a evolução um fato, parece, no entanto, considerar as evidências a seu favor extremamente convincentes. Ele se esforça para deixar claro a todos os cristãos que não há conflito entre a fé católica e a evolução. O Cardeal continua afirmando que “(Alguns cristãos) pensam que, em nome da fé, têm o direito de rejeitar as descobertas da ciência, negá-las e até mesmo pedir que a Igreja as condene. Mas, felizmente, não estamos reduzidos a esse dilema. Tanto os incrédulos precipitados quanto os cristãos tímidos cometem fundamentalmente o mesmo erro. Seu erro reside na ideia de que devem confrontar diretamente os dados da fé com os dados da ciência; eles não entendem que esses dados pertencem a dois níveis diferentes, a duas ordens diferentes… A ciência e a fé nos conduzem à verdade por dois caminhos diferentes; pois elas não têm o mesmo ponto de partida, nem a mesma área de investigação, nem os mesmos métodos.” Ele conclui aconselhando que “a única atitude que cabe a um cristão neste momento é esperar até que a ciência tenha decidido de forma autoritativa. Quanto a nós, podemos aguardar esse momento sem medo, preservando inquestionavelmente nossa crença na existência do pecado original em todos os homens e o fato da redenção universal. Pois essas verdades pertencem legitimamente à esfera que a fé sozinha governa, a esfera onde a ciência não tem poder para contradizer”.

Isso é o que dizem os cientistas.

PERSPECTIVAS DE ALGUNS TEÓLOGOS DOGMÁTICOS

Outros pensadores católicos são menos favoráveis à hipótese evolucionista, especialmente notável entre os teólogos dogmáticos. O Padre Franz Diekamp[7] afirma de forma bastante definitiva que “a evolução é inteiramente excluída”. A edição mais recente de Lercher menciona os vários tipos de evolução e depois os rejeita sumariamente. Em 1933, o Padre Boyer classificou qualquer crença na evolução como temerária, mas em 1940 ele preferiu abster-se de qualificar a teoria com qualquer nota.

O Cônego J. M. Hervé é típico de uma mudança de ênfase perceptível em vários autores. Em sua edição de 1934[8], ele lista tanto a evolução absoluta quanto a mitigada sob o título de “erros.” Ele divide a evolução mitigada em dois tipos, que não parecem ter muita variação: um tipo ele classifica como “temerário,” o outro, ele admite que pode ser teoricamente possível, mas considera, do ponto de vista prático, contraditório ao sentido óbvio das Escrituras e da tradição, e inteiramente sem fundamento. A edição mais recente de Hervé, de 1949, revela uma reescrita completa deste capítulo. Em vez de uma lista de erros, ele apresenta uma lista de opiniões. Inclui a evolução absoluta, condenada como antes, e dois tipos de evolução mitigada, que são apenas descritos, embora em mais detalhes do que anteriormente, e sem qualquer nota crítica. Ele menciona, em uma página posterior, que “alguns teólogos mais recentes” consideram uma evolução mais moderada “como uma hipótese mais ou menos provável.” A conclusão dele é que, “Uma evolução mais mitigada parece não ser contraditória às Escrituras, nem à doutrina da Igreja, nem à analogia da fé, nem à razão, desde que a ação peculiar de Deus, da qual as Escrituras falam, seja preservada…”.

O Reverendíssimo Doutor Ernest C. Messenger, que em 1932 escreveu o que ainda é o tratamento católico mais completo sobre o tema da evolução, pelo menos em inglês, apesar de apresentar muitos argumentos a favor da evolução, conclui deixando a questão em aberto.

ERUDITOS BÍBLICOS DISCORDAM

Há também uma divisão de opiniões entre os eruditos bíblicos. Essas autoridades concentram suas pesquisas na interpretação de Gênesis 2, 7, a passagem que descreve a ação de Deus na criação do primeiro homem. A questão enfrentada por esses estudiosos é se este texto exclui a possibilidade da evolução ou se ele evita mencionar exatamente como o homem foi criado. Augustine Bea, S.J., reitor do Instituto Bíblico em Roma, se opõe a todas as formas de evolução no que diz respeito a Adão. Além disso, ele vai ainda mais longe ao afirmar que as ciências naturais não podem emitir qualquer julgamento sobre a origem do homem, pois esse julgamento pertence exclusivamente ao domínio dos estudiosos das Escrituras. Em 1932, F. Ceuppens, O.P., professor de Escritura no Angelicum, ensinou que “todos esses argumentos (a favor da evolução) não provam mais do que isso, que a evolução não é impossível. Eles não provam o fato.” Dois anos depois, em 1934, seu julgamento parece ter se tornado menos desfavorável, pois ele admite que “nem toda evolução deve ser rejeitada ou condenada.”

A opinião do jesuíta M. J. Gruenthaner era totalmente contrária, pois ele declarou que “(a hipótese evolucionista) é irreconciliável com o Gênesis e deve ser abolida.”

William H. McClellan, S.J., é mais moderado: “O assunto permanece como estava… A origem evolutiva do primeiro corpo humano é possível sem prejudicar a fé, mas não deve ser considerada como positivamente provável até que evidências sólidas estejam disponíveis.” A conclusão do Padre M. J. Lagrange é semelhante: “Não vemos que essa opinião seja contra o dogma ou a disciplina, desde que se insista em uma ação especial de Deus mesmo com relação ao corpo.” Paul Heinisch, em 1930, não achava que a questão pudesse ser resolvida a partir das Escrituras, mas também não defendia a evolução. Por volta de 1940, ele parecia tolerar uma forma mitigada de evolução. O Rev. C. Hauret, em um comentário recente em “Gênesis, I-III”, afirma que a Bíblia mantém sua neutralidade sobre o assunto[9]: ela não indica nem criação direta nem evolução. O Padre Paul Heinisch, em seu trabalho bíblico mais recente (1947)[10], segue o mesmo raciocínio de Hauret.

CERTA PROBABILIDADE CONCEDIDA

Uma das opiniões mais recentes é a de Padre M. Flick, S.J., escrevendo no “Gregorianum”[11]. Ele começa fazendo referência a um discurso proferido pelo Papa Pio XII em 1941 à Academia Pontifícia: “Agora, se o Papa declara, ou ao menos dá a entender, que o problema da origem do corpo do primeiro homem, dentro dos limites indicados, permanece ainda em aberto, parece-me difícil sustentar que as fontes da revelação excluem peremptoriamente a derivação do corpo de Adão a partir do corpo de um bruto por meio de uma transformação, embora se conceda que, para isso, uma intervenção especial de Deus tenha sido necessária…” Ele conclui: “Na verdade, não se pode negar que a evolução, mesmo que ainda não esteja demonstrada, possui pelo menos uma certa probabilidade a seu favor, de modo a tornar necessário considerá-la com uma possível concordância com a fé.”

Tal é o pensamento dos estudiosos católicos sobre o tema da evolução nos últimos vinte anos. Considerando-se o todo, pode-se dizer que os dogmatistas são os mais conservadores em suas opiniões, os cientistas naturais são os mais abertos a novas ideias, e os estudiosos das Escrituras são os mais dispostos a deixar a questão em aberto até que novas e mais conclusivas evidências sejam apresentadas. Há uma tendência muito notável de aceitar a evolução nas citações mais recentes, ou pelo menos uma diminuição na oposição ao ensino. Isso pode muito bem ser o resultado das observações feitas pelo Santo Padre à Academia Pontifícia em 30 de novembro de 1941, quando ele afirmou: “Os diversos pesquisadores de paleontologia, biologia e morfologia sobre outros problemas referentes à origem do homem não produziram, até o presente, nada positivamente claro e certo. Resta então deixar para o futuro a resposta à questão de saber se um dia a ciência, iluminada e guiada pela revelação, pode dar resultados certos e definitivos sobre um assunto tão importante.”[12]

ATITUDE ATUAL DO SANTO PADRE

Diante dessa massa de opiniões divergentes, o que se pode perguntar é qual é a atitude atual do Santo Padre sobre o assunto? Será que ele considera que a evolução deve ser totalmente reprovada, como alguns estudiosos sustentam, ou ele concorda com aqueles que parecem estar quase prontos para aceitar a evolução?

Na verdade, o Papa em sua encíclica Humani generis evita adotar qualquer extremo. Ele claramente não pensa da mesma forma que aqueles que repudiariam toda a hipótese evolucionista, nem considera que o assunto não se enquadra no âmbito das ciências naturais. Citando suas próprias palavras sobre o assunto, o Santo Padre afirma que “A autoridade de ensino da Igreja não proíbe que, em conformidade com o estado atual das ciências humanas e da teologia sagrada, haja pesquisa e discussão, por parte de homens experientes em ambos os campos, sobre a doutrina da evolução, na medida em que esta investiga a origem do corpo humano como proveniente de matéria pré-existente e viva — pois a fé católica nos obriga a sustentar que as almas são imediatamente criadas por Deus. No entanto, isso deve ser feito de maneira que as razões para ambas as opiniões, ou seja, as favoráveis e as contrárias à evolução, sejam pesadas e julgadas com a necessária seriedade, moderação e medida, e desde que todos estejam preparados para se submeter ao julgamento da Igreja, a quem Cristo deu a missão de interpretar autenticamente as Sagradas Escrituras e de defender os dogmas da fé.”[13]

Ele conclui acusando de imprudência aqueles que agem como se toda a questão já estivesse completamente resolvida e que consideram adequado ignorar as fontes da revelação divina e sua relação com o assunto.

Uma nota de cautela deve ser acrescentada aqui. O Papa condena expressamente na encíclica a teoria conhecida como poligenismo, que sustenta que todos os homens não descendem de um único par (monogenismo) ou que Adão é apenas um símbolo representando um grupo de pais primitivos. Esta teoria é claramente rejeitada e, consequentemente, não pode ser aceita por nenhum católico.

A conclusão geral do Santo Padre, então, com relação à hipótese evolucionista, seguindo sua declaração anterior em 1941, é proclamar uma política de “Festina lente” (“apressa-te devagar”). Ele deseja encorajar a pesquisa progressiva e voltada para o futuro em toda a Igreja, ao mesmo tempo em que aconselha prudência e cautela. Acima de tudo, ele lembra ao estudioso católico que tais questões estão sob a autoridade de ensino da Igreja, e que todos devem estar preparados para aceitar o eventual julgamento da Igreja como definitivo, um consolo na sincera busca pela verdade.

 

Notas:

[1] American Ecclesiastical Review, November, 1950, p. 321.

[2] American Ecclesiastical Review, December, 1950. p. 454 ss.

[3] Commonweal, Oct. 6, 1950, p. 628 ss.

[4] “Précis on Evolution,” Thought, March, 1950, p. 53 ss.

[5] “Poligenesi ed evoluzione nelle origini dell’ uomo,” Gregorianum, vol. XXIX, 3-4, 1948, p. 343 ss.

[6] Commonweal, June 17 and 24, 1949, pp. 241-243, 265-267.

[7] Theological Studies, June, 1944, loc. cit.

[8] Manuale Theologiae Dogmaticae, Westminster, Md., 1934, pp. 324-330; Paris, 1949. pp. 291-299.

[9] “Origines de l’univers et de l’homme d’aprés la bible” (Genese, I-III), Lucon, 1950.

[10] Probleme der biblischen Urgeschichte, Lucerne, 1947.

[11] Gregorianum, loc. cit., p. 392 ss.

[12] Acta Apostolice Sedis (1941), pp. 506—507.

[13] “Humani generis”, Washington, 1950, National Catholic Welfare Conference.

 

FONTE: The Homiletic and Pastoral Review, april, 1953, vol. LIII, n. 7, pp. 620-625.

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