Sábado, Dezembro 21, 2024

Κεχαριτωμένη em Lc. 1, 28 Estudo filológico

Ignace de la Potterie,

Κεχαριτωμένη en Lc 1,28 Étude philologique, in Biblica 68, nº3 (1987) pp. 357-382.

 

            Será verdadeiramente necessário ou mesmo útil voltar ainda uma vez mais a este tema? Já se escreveu tanto sobre a palavra κεχαριτωμένη de Lc. 1, 28[1] que o leitor, aborrecido ou talvez cansado, pensará sem dúvida: aqui já tudo foi dito; que é que poderá dizer-se de novo? No entanto, isto não é verdade: não foi dito tudo, muito longe disso! Quando se estuda atentamente o dossier, fica-se com uma vaga sensação de mal-estar, como diante de um problema não resolvido, mal analisado e, para cuja solução intervêm, muitas vezes inconscientemente, razões pessoais e sobretudo confessionais. Fazendo um exame mais atento, constata-se com estupefacção que muitas vezes o estudo limita-se a passar imediatamente a questões propriamente teológicas (as «graças» diversas de Maria, a relação do texto com o dogma da Imaculada Conceição), ou, pelo contrário, limita-se a uma crítica desdenhosa, demasiado rápida (sem investigação filológica prévia), da tradução de κεχαριτωμένη por «gratia plena» na Vulgata, ou, pior ainda, recusa-se absolutamente (digamos quase por princípio) reconhecer que possa tratar-se verdadeiramente de uma «graça» já presente em Maria. Manifestamente, a questão não é neutra; hermeneuticamente falando, a questão não é inocente; o terreno é insidioso. Demasiadas questões teológicas estão em jogo, quer se saiba quer não. Ficamos especialmente espantados ao constatarmos que uma serena investigação filológica nem sempre foi feita: não se efectuou ainda um estudo semântico completo do verbo raro χαριτοῦν. Esse estudo, no entanto, é tanto mais necessário quanto Lucas é um dos primeiros a utilizá-lo na tradição grega. Sem dúvida, alguns críticos tocaram este problema do ponto de vista filológico, mas eles contentam-se em verificar as concordâncias e os dicionários bíblicos e em citar alguns textos, sempre os mesmos, e aliás bem pouco numerosos. Não se fez ainda uma vasta investigação sobre os empregos e as nuances de χαριτοῦν em grego, nos textos profanos e religiosos, cristãos e não cristãos. É o que nós queremos fazer aqui: não por uma vã preocupação de erudição, mas porque esta exploração sistemática do campo semântico de χαριτοῦν permite clarificar algumas nuances da expressão lucana e aprofundar também o seu sentido teológico. Para este fim, no nosso próximo artigo da Bíblica, daremos igualmente conta da história e exegese de Lucas 1, 28; também faltava fazer isto[2]. Mas antes de abordar este duplo estudo, filológico e teológico, e para melhor ver os problemas que a expressão coloca, será útil apresentar brevemente as posições que encontramos na exegese moderna.

 

I. O estado da questão

 

            Façamos de seguida uma constatação, mesmo que ela possa ter alguma coisa de desagradável. Mas é preciso ser realista e ver as coisas como elas são. Os dois principais tipos de exegese para a palavra κεχαριτωμένη aplicada a Maria fazem-se na realidade (isto não é de todo surpreendente) seguindo a linha de demarcação confessional entre protestantes e católicos (se bem que entre alguns destes últimos se constata agora uma tendência de aproximação à exegese protestante). É aliás um exegeta alemão de grande nível, H. Schurmann, que o assinala: a maior parte dos comentadores protestantes entendem κεχαριτωμένη no sentido duma simples eleição ou predestinação («Auserwahlung») de Maria por parte de Deus[3]. Citemos também uma nota esclarecedora feita de passagem por M. Cambe[4], que nos fará ver ainda melhor onde se situa a diferença entre as duas posições: a verdadeira questão, diz ele, é de saber se a Χάρις da Anunciação deve ser entendida mais do lado da sua fonte (em Deus) ou do seu efeito (a Virgem). A maior parte dos protestantes, claro, optam pela primeira solução; a exegese católica tradicional opta pela segunda. É o que convém analisar mais em detalhe.

 

            1. Em primeiro lugar, uma palavra sobre a interpretação de Lutero[5]. É um facto largamente reconhecido que, no início, o Reformador era um defensor da Imaculada Conceição de Maria[6]; mas mais tarde, no fogo da polémica, ele chega a declarar, por vezes, que Maria era pecadora como todos os homens («magna peccatrix» [N.T.: grande pecadora]). A mesma evolução se constata na maneira de traduzir κεχαριτωμένη: em 1522 ainda, Lutero seguia a Vulgata («gratia plena») com a interpretação que ela implica, e traduzia «voll gnaden». Mas a seguir ele muda e opta por «liebe (Maria)» [N.T.: querida Maria] e por «holdselige» (= «cheia de graças ou de encantos»; esta tradução foi-lhe inspirada pela de Erasmo: «gratiosa»). Estas duas novas traduções, filologicamente exactas como veremos, suprimem por assim dizer o significado teológico do κεχαριτωμένη de Lucas e o conceito da Χάρις divina à qual o particípio se refere (cf. infra).

 

            Hoje os protestantes de língua alemã sentiram isso sem dúvida e preferem traduzir por «Begnadete» (N.T.: agraciada). A ideia de «graça» é portanto reintroduzida, mas ela é interpretada simplesmente no sentido da graça da eleição, referindo-se à próxima maternidade de Maria. W. Grundmann, por exemplo, escreve: «Die altkirchliche Exegese versteht diesen Gruss als wirksames, ihre Empfängnis bewirkendes Wort [não é bem verdade que era a exegese da Igreja antiga?]. Jedoch dürfte die Anrede an sie hier ihre Erwählung zum Ausdruck bringen: die Gnadenwahl Gottes ist auf sie gefallen; darum ist sie κεχαριτωμένη» [N.T.: A exegese da igreja primitiva entende esta saudação como uma forma eficaz de efectuar a concepção pela palavra. No entanto, a saudação contém aqui a expressão da sua eleição: a graça da eleição de Deus recaiu sobre ela, por conseguinte, é κεχαριτωμένη][7]. Vejamos a interpretação de E. Schweizer: «Das Wortspiel (deutsch etwa ‘Heil dir, der zum Heil Erwählten’) betont Gottes Gnadenwahl» [N.T.: O trocadilho (….) enfatiza a graça da escolha divina]; ele acrescenta que o anjo diz aqui «was mit ihr geschehen ist und geschieht, und das ist der Zuspruch der Gegenwart des Herrn»[8]. K.H.Rengstorf é ainda mais claro: «… einen Hinweis auf die Grösse dessen, was folgt» [N. T.: uma referência à grandeza daquilo que vai seguir-se][9]. Citemos por fim I.H.Marshall: «The participle indicates that Mary has been especially favoured by God in that he has already chosen her to be the mother of the Messiah (1:30)» [N.T.: O particípio indica que Maria foi especialmente favorecida por Deus, pelo facto de Ele a ter escolhido para ser a mãe do Messias][10]. A «graça» é portanto considerada do ponto de vista de Deus (a eleição, a predestinação); o que isto implica para Maria é simplesmente que ela foi escolhida para se tornar a mãe do Messias (nesse momento, ela ainda o não é!). A graça que ela vai receber é a sua próxima maternidade. Mas será que uma tal interpretação, que situa o ponto de aplicação de κεχαριτωμένη em Maria num futuro próximo é compatível com o tempo verbal que é um perfeito? E com que base documental se afirma que o verbo χαριτοῦν, tendo Deus como sujeito, significa «eleger, predestinar, escolher»? Não se cita nunca nenhum texto. Vemos já em que ponto a investigação filológica é aqui importante. Voltaremos a esta questão na segunda parte e num artigo ulterior.

 

            2. Entre os exegetas e os teólogos católicos reinava até muito recentemente uma grande unanimidade. Para caracterizar bem esta maneira tradicional de compreender Lc. 1, 28, citemos três autores representativos do último século. Há uma centena de anos, o conhecido exegeta L. Cl. Fillion escrevia: «Gratia plena: é a graça considerada em relação à própria Maria (…) Desde há muito que aprouve a Deus enriquecer das graças mais singulares aquela que ele tinha destinado para ser a Mãe de seu Filho»[11]. Meio século mais tarde, L. Soubigou exprimia-se assim: «Maria é cumulada dos favores divinos (…); trata-se de uma plenitude de dons sobrenaturais dados por Deus a Maria, em ordem ao seu papel de mãe de Deus, ao qual ela estava destinada»[12]. Mais recentemente, S. Zedda interpretava a expressão no mesmo sentido fundamental, mas com a preocupação mais marcada de não fazer intervir termos da tradução latina («gratia» e «plena») ou da linguagem teológica posterior («graça santificante», «dons sobrenaturais»): «Deus a cumulou do seu favor ou dos seus dons e a tornou agradável aos seus olhos»[13]. Esta exegese distingue-se da dos autores protestantes de que falamos em três pontos: a) a «graça» é considerada não na sua fonte (em Deus), mas do ponto de vista do seu efeito (em Maria); b) esta graça que ela recebeu não é a da maternidade, mas é anterior a esta; c) ela é no entanto dada em função desta maternidade divina de Maria.

            Apesar desta forte tradição, alguns exegetas católicos orientam-se hoje no sentido da interpretação protestante de κεχαριτωμένη[14]. Na sua grande obra sobre o nascimento do Messias, R. Brown afirma (sem provas): a Χάρις que torna Maria κεχαριτωμένη é a graça que ela vai receber ao conceber o Filho do Altíssimo; este significado teológico de κεχαριτωμένη é diferente daquele que sugere a tradução latina gratia plena; Lucas conhecia no entanto esta expressão (Act. 6, 8), mas ele não a utilizou: ela teria feito crer que Maria estava já na posse da graça, ao passo que Lucas queria dizer que o favor divino dado a Maria seria o de conceber Jesus. Por consequência, o que se deduz em seguida de gratia plena (a plenitude da graça em Maria) vai para além do que Lucas queria afirmar[15]. Mas duas questões continuam abertas e elas não são nada discutidas pelo autor: tratar-se-á aqui da acção de Deus ou do estado actual de Maria? Tratar-se-á de uma graça próxima (cf. os futuros acumulados por Brown) ou de uma graça já presente (cf. o particípio perfeito)? Uma posição completamente semelhante à de Brown encontra-se no comentário recente de J. Fitzmyer: ele traduz κεχαριτωμένη «favored woman» [N.T.: mulher favorecida]; e explica: «She is favored by God to be the mother of the descendant of David and the Son of the Most High» [N.T.: Ela foi favorecida por Deus para ser a mãe do descendente de David e do Filho do Altíssimo]; apesar do (?) emprego do perfeito, diz ele, o texto deve compreender-se a partir «of the unique role that she is to perform in conceiving God’s Messiah» [N.T.: do único papel que ela devia desempenhar na concepção do Messias de Deus]; em termos escolásticos: a graça de Maria, acrescenta Fitzmyer, foi uma gratia gratis data [N.T.: graça dada de graça] e não uma gratia gratum faciens [N.T.: graça que torna agradável] como o sugere a tradução latina[16]. Para a Itália, constatemos um facto significativo. O exegeta bem conhecido Hortênsio da Spinetoli, nos seus dois livros sobre Maria, dos anos sessenta, apresentava claramente a interpretação católica clássica[17]. Mas no seu comentário recente do evangelho de Lucas (1982), sem explicar porquê, mas provavelmente sob a influência das duas obras de Brown (1977) e de Fitzmyer (1981), ele rejeita o que ele próprio chama a «interpretação teológica tradicional», que via na Χάρις de que fala o anjo «uma qualidade interior» de Maria; esta «graça», diz ele agora, significa que ela vai receber uma missão particular que estava no plano de Deus; este favor divino é «a maternidade messiânica», dom (charis) único que faz dela a ‘bem-amada’ de Deus por excelência; é por isso que ela é ‘cheia de graça’»[18].

 

            3. Estas divergências e estas flutuações na exegese moderna de Lc. 1,28 convidam-nos a reflectir sobre a questão do método. Concedamos que a tradição católica se deixou influenciar demasiadamente pelo latim «gratia plena»; é portanto preferível, numa exegese crítica de κεχαριτωμένη, renunciar ao emprego de palavras como «cheia, cumulada, plenitude», sem decidir em que medida estes termos distorceram necessariamente o sentido da palavra grega; mas indubitavelmente, é ao nível do grego que deve encaixar antes de mais a discussão. Por outro lado, há uma parte de verdade na nota de Brown: Lucas, que utiliza πλήρης χάριτος [N.T.: cheio de graça] para Estêvão em Act. 6, 8 (e πλήρης πνεύματος ἁγίου [N.T.: cheio do Espírito Santo] para Jesus em Lc. 4, 1; acrescentemos para João: πλήρης χάριτος καὶ ἀληθείας [N.T.: cheio de graça e de verdade] em Jo. 1, 14) recorre em Lc. 1, 28 a uma outra fórmula para falar de Maria (κεχαριτωμένη). Por consequência, é provável que a nuance, aqui, venha a ser diferente. Mas, dito isto, insistamos no facto de que se deveria doravante deixar de polemizar contra «gratia plena» da tradição latina. Isso é uma coisa estéril e ineficaz na medida em que não se opõe a esta leitura uma interpretação positiva e precisa do κεχαριτωμένη grego. Ora isso requer evidentemente que nos empenhemos antecipadamente a fazer um estudo aprofundado do verbo χαριτοῦν. Por outro lado, devemos perguntar aos que criticam a exegese tradicional, com que direito eles dizem que Lucas descreve aqui a eleição de Maria por parte de Deus e, portanto, uma acção divina que deve ainda realizar-se. É ainda mais paradoxal o facto de a forma verbal utilizada pelo evangelista não estar na voz activa (como seria por exemplo o caso se ele tivesse escrito: ὁ θεὸς ἐχαρίτωσέν σε, [N.T.: Deus derramou a graça sobre ti] cf. Ef, 1, 6), mas uma forma passiva, que tem como sujeito uma pessoa humana, Maria; mais ainda, o perfeito passivo indica que, desde antes da Incarnação, ela é já κεχαριτωμένη. Mas será metodologicamente erróneo querer apontar, num sentido ou noutro, as implicações doutrinais e o alcance teológico da expressão, enquanto não se lhe conhece o sentido exacto. É preciso portanto, com toda a evidência, empreender primeiro um estudo preciso do verbo grego utilizado aqui (e somente aqui!) por Lucas. Este será o objecto da nossa segunda parte.

 

 

II. Estudo filológico

 

            Para estudar κεχαριτωμένη de Lc. 1, 28 do ponto de vista filológico, muitas abordagens complementares são necessárias. Examinaremos em primeiro lugar o campo semântico dos verbos da mesma formação (os verbos em –όω); de seguida e sobretudo, estabeleceremos um dossier quase completo (de acordo com as fontes hoje disponíveis) de casos onde se encontra χαριτόω na literatura grega[19], distinguindo estes textos segundo o emprego profano, religioso (não bíblico) e neotestamentário do verbo. Como se irá ver, a nuance do verbo em muitos casos não é fácil de precisar, e menos fácil ainda de exprimir (constata-se isto desde logo na variedade das traduções propostas).

 

1. Os verbos em –όω

           

            Muitos autores, desde a Renascença até aos gramáticos de hoje, sublinharam a importância do facto de χαριτόω pertencer à categoria dos verbos em –όω, que são causativos[20]. No seu estudo detalhado destes verbos, Moulton e Howard afirmam: «The dominant force of these verbs in –όω was instrumental or factitive» [N.T.: A força dominante destes verbos em –όω era instrumental ou factitiva][21]; e a recente gramática de Blass-Debrunner-Rehkopf declara também nitidamente: «Mit -οῦν werden Faktitiva gebildet, meist zu o-Stämmen: δολιοῦν, ‘trügen’ Röm 3, 13 VT von δόλιος» [N.T.: com -οῦν são formados os factitivos, principalmente os derivados de substantivos de tema em ο: δολιοῦν, ‘enganar’ Rom. 3, 13 VT de δόλιος][22].

            Eis uma série de exemplos destes verbos (indicamos em cada ocorrência os casos de emprego no NT):

 

ἀγαθοῦν

αἰματοῦν

ἀλλοτριοῦν

ἀνακαινοῦν

ἀργυροῦν

δικαιοῦν

δουλοῦν

 

ἐλευθεροῦν

θαυμαστοῦν

θεμελιοῦν

κακοῦν

λευκοῦν

μελανοῦν

νεκροῦν

σκληροῦν

σκοτοῦν

ταπεινοῦν

τουφλοῦν

ὐπνοῦν

ὐψοῦν

χαλκοῦν

χρυσοῦν

fazer o bem

ensanguentar (cf. αἰματᾶν, estar ensanguentado)

tornar estranho

renovar (2Cor. 4, 16; Col. 3, 10)

endinheirar, dotar de dinheiro

tornar justo (Rom. 3, 26.30; 4,5)

reduzir à escravidão (distinguir de δουλεύειν, ser escravo) (Act. 7, 6 …)

tornar livre, emancipar, libertar (Jo. 8, 32.36; Rom. 8,2)

tornar surpreendente ou admirável

assentar sobre fundamentos, fundar (Ef. 3, 17)

maltratar, danificar (Act. 7,6; 12,1)

tornar branco, branquear

tornar negro, enegrecer (pelo contrário μελανεῖν, ficar negro

fazer morrer, mortificar (Rom. 4,19; Col. 3,5)

tornar duro

fechar a boca, amordaçar

abaixar, humilhar (Mt. 18,4; Lc. 3,5)

tornar cego, cegar (Jo. 12,40)

adormecer

elevar, exaltar (Lc. 1,52; Jo. 3,14)

forjar em bronze, cobrir de bronze

revestir de ouro, dourar (Ap. 17,4; 18,16)

 

            À luz destes paralelos, o verbo causativo χαριτοῦν (que deriva de χάρις, «graça») devia normalmente significar na linguagem ordinária «tornar gracioso», tornar amável ou charmoso. E é também normal que o verbo tenha sido empregado sobretudo no particípio passivo (aquele que é gracioso, que é amável). É precisamente neste sentido que nos orientam os antigos lexicógrafos bizantinos (eles indicam sinónimos do particípio): para Hesíquio, κεχαριτωμένος (na passiva) equivale a χαρίεις, gracioso, amável [23]; e Suídas explica χαριεργός (aquela que trabalha com graça: epíteto de Atena, protectora dos artesãos) indicando o efeito que ela obtém através da arte, através do trabalho artesanal: χαριεργός: ἡ κεχαριτωμένα ἐργαζομένη, aquela que fabrica obras belas[24]. O particípio perfeito passivo κεχαριτωμένος (é a forma verbal que nós temos em Lc. 1, 28) significa portanto para estes autores o efeito de uma acção anterior (é por isso que eles os dois utilizam o particípio passivo): uma coisa bela, graciosa, elegante (ou melhor: que foi tornada bela, graciosa, elegante).

            Isto já traz consequências para a interpretação do κεχαριτωμένη do relato da Anunciação. No seu artigo, citado acima, M. Cambe afirmava (por qual motivo?) que a χάρις aqui «deve tomar-se sobretudo do lado da sua fonte (em Deus)… Também o cuidado de precisão exegética levou muitos autores a traduzir κεχαριτωμένη por ‘objecto da graça (ou do favor)’»[25]. Mas nós constatamos que interpretar a expressão lucana «do lado de Deus» é típico da exegese protestante, que não considera o efeito já produzido em Maria; queira-se ou não, é necessariamente neste sentido que orienta a tradução que se propõe muitas vezes: «objecto do favor divino»; toda a atenção é então voltada para a acção de Deus. Mas isto é precisamente o contrário de tudo o que temos vindo a constatar sobre o conteúdo de χαριτοῦν: com efeito trata-se de um verbo causativo («Faktitivum», dizem os gramáticos alemães), mas que é empregado aqui na passiva. O acento não recai mais sobre a acção causativa do Deus que age (por exemplo, pela sua «eleição»), mas sobre o efeito que daí de seguiu para Maria. Esquece-se demasiado – já o dissemos – que κεχαριτωμένη é um particípio passivo aplicado a Maria. A tradução que se apresenta distorce portanto fortemente o sentido da expressão; ela fica mesmo duplamente inexacta, visto que negligencia tanto a característica do verbo causativo utilizado aqui, como a forma verbal que Lucas lhe deu.

            Mas dir-se-á, talvez não sem razão: tudo isto é teórico e abstracto. Para sermos convincentes, estas considerações devem ser verificadas nos textos e ilustradas concretamente pelo emprego semântico de χαριτοῦν na cultura grega. É o exercício que vamos agora fazer. Comecemos pela análise dos textos «profanos», onde as considerações religiosas estão totalmente ausentes.

 

2. O emprego de χαριτοῦν em sentido profano.

 

            Para este aspecto, dispomos de dez empregos do verbo, que se estendem por um período de talvez quinze séculos. O primeiro que vamos citar (Sir. 18,17 LXX) é também o primeiro testemunho conhecido do surgimento de χαριτοῦν na língua grega. Reservamos para o parágrafo seguinte os textos onde o verbo descreve ainda uma realidade humana, mas onde de uma maneira ou de outra, essa realidade humana está em relação com a acção divina. Classificamos os exemplos desta primeira série, seguindo o sentido de χαριτοῦν (sentido moral ou sentido físico, para pessoas ou para coisas).

 

            a) Qualidade moral

 

            Temos aqui dois textos bíblicos e um texto do mundo helenístico:

– «Será que uma palavra não vale mais que um rico presente? Mas no homem amável (παρὰ ἀνδρὶ κεχαριτωμένῳ) encontramos uma e outra coisa» (Sir. 18,27 LXX).

– «Com aquele que é bom, tu te mostrarás bom, e com o homem amável tu serás amável (καὶ μετὰ τοῦ κεχαριτωμένου κεχαριτωθήσῃ)» (Sl. 17(18), 26 Simaco)[26].

– No seu tratado de astrologia, Hefestião de Tebas escrevia (em 381): «O que nasceu na terceira zona será cheio de charme (ἔσται κεχαριτωμένος), terá muitos amigos (πολύφιλος) e será sensual»[27]. Notar-se-á o paralelismo entre κεχαριτωμένος e πολύφιλος: se alguém «tem muitos amigos», é um sinal que ele tem «muito charme» (com um aspecto erótico), que soube «tornar-se amável», que agrada aos que estão à sua volta.

 

            b) Beleza ou graça física

 

1)      Três autores utilizam χαριτοῦν para descrever a graciosidade feminina:

– Clemente de Alexandria († antes de 215), que cita Sir. 9,8: «Afasta os olhos duma mulher graciosa (ἀπὸ γυναικὸς κεχαριτωμένης) e não olhes muito para uma beleza (κάλλος) estranha»[28]

– O sofista Libânio († 393), na descrição de uma bela mulher: «Eu vi a Beleza: um belo olho (καλὸν ὄμμα), sorridente e tornado gracioso (κεχαριτωμένον) por seus olhares de soslaio; uma sobrancelha curvilínea, com uma curvatura bem marcada; faces simétricas, mais brilhantes que o vermelho vivo de uma maçã»[29]. Um texto análogo encontra-se no retórico Nicéforo[30].

 

2)     Duas vezes seguidas, nos textos cristãos, o verbo é empregado para falar de um belo menino, ou dum inválido tornado novamente «gracioso»:

 

– Entre os actos apócrifos dos apóstolos, encontra-se o relato do martírio de São Mateus (por volta do ano 400). No início, o autor conta que o Menino Jesus aparece ao apóstolo; depois da saudação de Jesus, Mateus responde: «A graça e a paz estejam contigo, gracioso menino (ὦ παιδίον κεχαριτωμένον)»; no fim do parágrafo volta uma expressão sinónima, que indica o sentido da primeira: «Que é que eu posso oferecer-te, belo menino (παιδίον καλόν)?»[31].

– No seu tratado ascético, o abade São Doroteu († depois de 535) compara as atenções dos santos para com um irmão pecador aos cuidados de uma mãe para com o seu filho deficiente: «Como uma mãe que tem um filho deficiente (υἰὸν ἄμορφον) não sente repugnância dele e não se afasta dele, mas cuida dele com amor, para lhe dar uma bela aparência (ἡδέως κοσμεῖ αὑτόν) e faz o que ela pode para o tornar gracioso (διὰ τὸ χαριτῶσαι αὑτόν), assim os santos acolhem este irmão, dando-lhe costumes regulares (κοσμοῦσιν), etc.»[32].

 

c) Aparência agradável ou atraente dada a coisas feias ou repugnantes

 

Nos dois últimos exemplos desta série, χαριτοῦν é utilizado para realidades impessoais (uma poção mágica e o corpo de um mártir):

– «Σκευασία μέλανος» (receita para a preparação de uma poção mágica: ms. do século XVII, língua já próxima do grego moderno). Depois de ter enumerado os ingredientes da poção, o autor convida o seu leitor a pronunciar (ou fazer pronunciar) os nomes de 16 anjos (ou espíritos), e a recitar esta invocação: «Santos anjos, concedei rapidamente a vossa assistência, tornai a tal ponto atraente o aspecto (χαριτώσατε τόσον εἷδος) desta poção, que nós a engulamos e que ela prossiga o seu caminho de maneira benéfica, que ela seja apreciada e eficaz»[33].

– Panegírico de São Gregório de Nissa († 396) em honra de São Teodoro Mártir: «O corpo que sofreu uma morte tão simples é abandonado como coisa vulgar. Mas aquele que foi tornado atraente pela paixão do martírio (τὸ δὲ τῷ πάθει τοῦ μαρτυρίου χαριτωθέν), é desejado (ἐπάσμιον) e objecto de disputa»[34].

 

3. Os empregos de χαριτοῦν em contexto religioso não bíblico

 

            a) Qualidade moral (com uma nota religiosa)

 

            Na secção precedente (2, a), apresentamos três textos onde o particípio perfeito passivo κεχαριτωμένος significava «amável» (no sentido moral) ou «aquele que se tornou amável». Nos exemplos seguintes, tratar-se-á ainda mais da mesma qualidade moral, mas com uma conotação formalmente religiosa; este charme, esta amabilidade diante dos homens é então considerada como um dom de Deus, ela pratica-se diante de Deus ou com o sentimento de gratidão para com Deus somente:

 

Carta de Aristeias, 225: «Ter-se feito agradar (τὸ δὲ κεχαριτῶσαι) de toda gente, é ter recebido um belo presente (καλὸν δῶρον) da parte de Deus, o melhor»[35].

Testamentos dos XII Patriarcas (Testamentum Joseph, 1, 6), onde José conta como foi preso e depois libertado pela intervenção de Deus (cf. Gen. 39, 21): «Eu estava na prisão e o Senhor tornou-me amável (aos olhos do carcereiro) (ἐχαρίτωσέν με); eu estava em apuros e ele libertou-me (καὶ ἔλυσέ με)»[36].

– Hermas, o Pastor, Sim., IX, 24,3: «E o Senhor, vendo a sua simplicidade e a sua candura, abençoou-os no trabalho das suas mãos e pela sua graça concedeu-lhes o dom de se fazerem agradar (ἐχαρίτωσέν αὐτούς) em todas as suas empresas»[37].

– Actas de Filipe, 48: «Tu és charmoso (κεχαριτωμένος) na paz de Cristo, porque não há malícia na tua alma»[38].

– Papiro, com uma invocação mágica e sincrética (século IV): «Salvé sol, salvé sol (…). Dá-me a graça (…) diante de todo o género humano (…). Torna-me belo (…) como Iao, rico como Sabaoth (…), célebre como Gabriel: eu te ficarei agradecido (χαριτώσομαι)»[39].

– No seu comentário ao Génesis, Dídimo o Cego († 398) explica o versículo de Gen. 6,8, que indica porque é que Noé foi salvo do dilúvio («Noé encontrou graça diante do Senhor Deus»): «Foi porque se tinha preparado que Noé encontrou graça diante do Senhor Deus: pelas obras da virtude, ele tinha-se tornado agradável (a Deus) (χαριτώσας ἐαυτόν), após o que ele recebeu (εξάμενος, aspecto passivo) a graça de Deus»[40].

– Anastácio de Antioquia († 599) explica como a mortificação do jejum durante as sete semanas da quaresma é iluminada pelo seu carácter sagrado: «O número sete pareceu-nos perfeito e sacrossanto e tornou-nos mais agradáveis (μᾶλλον κεχαρίτωκεν) os dias dos nossos santos combates»[41].

– Terminemos com um texto pagão de Achmet (por volta de 900), sobre a interpretação dos sonhos: «O intérprete deve ser alguém prudente, muito sábio, ter sempre o temor divino: a sua interpretação será por isso tanto mais segura, porque ele chegou a fazer-se agradar pelo deus (ἀπὸ θεοῦ κεχαρίτωται)»[42].

 

            b) O espírito do homem transformado pela graça

 

1)                 Só temos um texto onde χαριτοῦν é utilizado em ligação formal com πνεῦμα; de facto, à primeira vista, pelo menos, há aí uma relação surpreendente, sobretudo se o verbo, como na nossa passagem, é utilizado numa forma passiva (κεχαριτωμένον), para determinar o substantivo τὸ πνεῦμα (como é que o πνεῦμα pode ser objecto da acção da graça?). É, no entanto, o que se encontra numa passagem do início dos Stromata de Clemente de Alexandria: os mistérios que o Senhor comunicou aos apóstolos, explica ele, chegaram até ele pela tradição oral, isto é, pela transmissão da Palavra de Deus. Mas «não há senão um só mestre» (cf. Mt. 23, 10), o Senhor, «que é a fonte do espírito (τὸν νοῦν) e da palavra» (12,3). Ao compor a sua obra, Clemente esforça-se por ser fiel a esta tradição:

 

Eu sei bem qual é a fraqueza desta acção de escrever (γραφή) as minhas recordações, em comparação com este espírito cheio de graça (τὸ πνεῦμα ἐκεῖνο τὸ κεχαριτωμένον) que eu fui considerado digno de ouvir[43].

 

            A nuance exacta de τὸ πνεῦμα τὸ κεχαριτωμένον não é fácil de captar: τὸ πνεῦμα não pode ser o Espírito Santo. Trata-se provavelmente do «espírito» comunicado por Cristo aos apóstolos, e depois transmitido na tradição oral, na pregação da Palavra de Deus e «ouvido» por Clemente; este espírito (esta tradição humana) é chamado aqui τὸ κεχαριτωμένον, porque ele é portador da graça, porque ele foi transformado pela graça e pelo espírito de Cristo[44]. Clemente, por sua vez, esforça-se por exprimi-lo no seu escrito, para transformar tanto quanto possível as suas palavras numa explicação dos mistérios para os seus leitores cristãos; assim, também as suas palavras poderão comunicar a graça.

 

2)                 Mas nós podemos ainda acrescentar dois textos da época bizantina. Eles são ambos de Eustácio de Tessalónica († cerca de 1194), que foi arcebispo desta cidade e um reputado helenista. Em 1185 ele tinha sido testemunha do saque de Tessalónica pelos Normandos da Sicília e deixou uma descrição detalhada desse saque[45]. A certa altura, os Latinos mostraram-se particularmente agressivos e ameaçadores: acompanhado de alguns amigos, Eustácio irá encontrar-se com o seu chefe, o comandante Alduíno, e pede-lhe que intervenha para evitar o massacre:

 

Pela acção da graça de Deus (θεοῦ χαριτοῦτοϛ) nós conseguimos persuadi-lo (ἐπείθομεν)[46].

 

Uma fórmula quase idêntica do mesmo autor encontra-se num contexto totalmente diferente, a saber: no seu tratado sobre a reforma da vida monástica[47]. A um monge ambicioso e recalcitrante, que mostrava aversão pelo seu bispo e sonhava ele próprio vir a sê-lo, Eustácio dirige exortações à humildade: convida-o a suportar o que o oprime e a aceitá-lo como um aguilhão, a exemplo do Apóstolo (cf. 2Cor. 12, 7); depois acrescenta:

 

Se tu perdes a coragem, escuta ao menos isto: «Basta-te a minha graça» (cf. 2Cor. 12,9); … mas ser-te-á possível, com perseverança, quebrar o teu aguilhão, pela acção que tiver exercido em ti a graça de Deus (διὰ τοῦ χαριτώσαντός σε θεοῦ)[48].

 

4. O título κεχαριτωμένη num hino cristão à Virgem Maria.

 

            Chegamos ao último testemunho que nos falta assinalar. É um dos raros exemplos que nós encontramos de um emprego de      κεχαριτωμένη aplicado a Maria, fora dos comentários patrísticos à cena da Anunciação. Este texto é muito interessante, na medida em que não tem nenhuma pretensão teológica; ele reflecte simplesmente a piedade popular no Egipto na época bizantina; mais precisamente, ele é um testemunho da difusão que tinha conhecido a exegese patrística dessa expressão, muito provavelmente através da liturgia bizantina[49]. Trata-se de uma ostraca não muito danificada, onde se encontra um hino à Virgem Maria[50]. O facto de o editor apresentar o texto como um hino já faz pensar que se trata de um texto litúrgico. O ritmo e o estilo são muito semelhantes ao célebre acatistos.

            Eis as partes essenciais do texto (em razão do seu interesse, apresentamo-lo também em grego, para que se possa ver que palavras correspondem ao que citamos na tradução):

 

            Alegra-te, mãe de Deus, virgem imaculada,

                        que deste à luz virginalmente a Deus, o Verbo, segundo a carne,

            Alegra-te, imaculada, esposa não esposada,

            Alegra-te por teres recebido a palavra do santo anjo,

                        virgem transformada pela graça,

 

            Χαῖρε θεοτόκε ἀμίαντε παρθένε

ἡ τὸν θεὸν λόγον κατὰ σάρκα ἀσπόρως γεννήσασα,

            Χαῖρε ἀμίαντε νύμφη ἀνύμφευτε,

            Χαῖρε δεξαμένη τὸν λόγον τοῦ ἀγγέλου ἀγίου,

                        κεχαριτωμένη παρθένε[51]

 

Note-se, no início, a insistência em «imaculada» (ἀμίαντε, retomada na linha 3); mas mais particularmente interessante para nós é a espécie de inclusão entre ἀμίαντε παρθένε na primeira linha e κεχαριτωμένη παρθένε na última; se a mãe de Deus é uma «virgem sem macha (= imaculada), é porque ela é uma «virgem transformada pela graça». A primeira fórmula dá o aspecto negativo (sem mancha), e a segunda indica o aspecto positivo, a explicação (transformada pela graça). Descobrem-se também uma inclusão e um paralelismo entre as palavras «Deus» (θεός, contido em θεοτόκε) e «graça» (χάρις, contida em κεχαριτωμένη). No conjunto da estrofe há um contraste entre os três primeiros hemistíquios e o último: aqueles descrevem a realidade humana da mãe de Deus (ela é sem mancha, ela deu à luz virginalmente, ela é esposa não esposada); mas no último hemistíquio é indicada a causa transcendente deste triplo paradoxo: a acção da graça. Observe-se ainda, nos hemistíquios 1 e 4, que são colocados em paralelo: um adjectivo (ἀμίαντε) e um particípio perfeito passivo (κεχαριτωμένη); neste último, é verdade, o aspecto propriamente verbal da acção súbita não é muito sensível: é o estado actual da Virgem que é sublinhado. Mas revela que o particípio passivo é o de um verbo causativo, χαριτοῦν, e que o facto de ser posto em paralelo com um adjectivo que evoca a realidade oposta, a mancha (na qual o autor pensa espontaneamente, mas para a negar: sem mancha), mostra que, neste caso, o papel de κεχαριτωμένη é excluir toda a mancha. Trata-se, portanto, de uma excepção, de uma transformação em vista do que é a situação geral fugitivamente evocada. Último ponto a notar: de acordo com o movimento rítmico do triplo Χαῖρε do que parece ser uma estrofe (semelhante às do hino acatistos), a fórmula final, mais breve, produz o efeito de uma pausa, de uma síntese: a mãe de Deus é sem mancha, ela é virgem, ela é esposa não esposada; tudo isto é o efeito da graça[52].

 

5. O emprego de κεχαριτωμένη em Lc. 1, 28 (aspecto filológico)

 

            a) Da investigação precedente, nós podemos já tirar algumas conclusões importantes para a interpretação de κεχαριτωμένη em Lc. 1,28.

 

1)                 O verbo χαριτοῦν, que São Lucas é um dos primeiros a utilizar, recebe desta formação em -οῦν um valor causativo; ele indica o efeito que a χάρις produz  sobre alguém ou alguma coisa e significa portanto: «tornar gracioso» (Bailly). Este aspecto, evidentemente, é sobretudo desconcertante quando o verbo é empregado na voz activa: φύσις ἐχαρίτωσεν (αὐτήν), «a natureza o tinha tornado gracioso» (Nicéforo, ver n. 30); Νῶε… διὰ τῶν τῆς ἀρετῆς ἔργων χαριτώσας ἑαυτόν, «pela prática das virtudes, Noé tinha-se tornado agradável» aos olhos de Deus (Dídimo o Cego, cf. p. 11)[53].

2)                 O mesmo aspecto encontra-se, no entanto, também nitidamente nos dois únicos casos onde reencontramos o verbo numa forma participial da voz passiva, seja no presente, seja no aoristo: «um belo olho que se tornou gracioso (κεχαριτούμένον) pelos seus olhares de soslaio» (Libânio, cf. p. 9); o cadáver de um santo «que tinha sido tornado gracioso (χαριτωθέν, gratiosum effectum) pela paixão do martírio (Gregório de Nissa, cf. p. 10).

 

3)                 Mas a forma verbal mais habitual é o particípio perfeito passivo (κεχαριτωμένος), precisamente a forma que nós temos em Lc. 1, 28; o acento é então colocado no resultado adquirido ou no estado presente da pessoa em questão: «um homem amável» (Sir 18,27 LXXX; cf. p. 9); «uma mulher graciosa» (Sir. 9, 8 em Clemente de Alexandria, cf. n. 28)[54], «um belo menino» (Mart. Matth., cf. p. 10). Em Lc. 1, 28, κεχαριτωμένη, poderia certamente, só do ponto de vista filológico, significar «graciosa», como o compreendia Erasmo («gratiosa») e Lutero; mas nós veremos um pouco mais adiante, e sobretudo na parte exegética, que todo o contexto exclui absolutamente este sentido profano da expressão.

 

b) O que temos vindo a dizer explica porque é que alguns autores[55] pensam que κεχαριτωμένη em Lc. 1, 28 poderia ser equivalente a um simples adjectivo. Entretanto duas razões se opõem e obrigam, apesar do passivo, a manter integralmente o valor verbal do particípio.

Antes de mais, no contexto imediato, o laço estreito entre os vv. 28 e 30, que tratam ambos da χάρις divina: κεχαριτωμένη (v. 28) e εὑρες χάριν παρὰ τῷ θεῷ (v. 30). Muitos autores são tentados a considerar estas duas expressões como mais ou menos sinónimas. Mas vê-se, pela relação das duas mesmas fórmulas em Dídimo o Cego e Procópio de Gaza, nos seus comentários de Gen. 6,8, ou ainda, pela releitura interpretativa de Gen. 39,21 no Testamentum Joseph 1,6, que somos obrigados a manter a sua diferença; a aproximação dos aspectos nestes dois casos paralelos permite igualmente precisar o seu sentido e escolher a relação precisa que eles têm entre si[56]: o facto, para Noé, de «se ter tornado agradável (χαριτώσας ἑαυτόν)» aos olhos de Deus pela prática das virtudes, era da sua parte uma «preparação pessoal» em virtude da qual ele «encontrou graça (εὗρεν χάριν)» diante de Deus (a graça de ser salvo do dilúvio); e no caso de José no Egipto: «O Salvador, conta ele, me tornou amável (ἐχαρίτωσέν με)» (aos olhos do carcereiro) (Test. Jos. 1,6); e assim «ele lhe concedeu (encontrar) graça junto do carcereiro chefe» (Gen. 39,21 LXX). O caso é semelhante em Lc. 1, 28: o facto de, para Maria, ser κεχαριτωμένη (de ter sido «tornada amável» aos olhos de Deus) é uma preparação (operada sem dúvida nenhuma pela graça de Deus) para que ela possa a seguir receber a graça da maternidade divina à qual Deus a predestinava. O particípio perfeito passivo κεχαριτωμένη guarda, portanto, o seu valor verbal: ele descreve um estado presente de Maria, mas que é efeito de uma acção antecedente de Deus nela. Frisemos que este estado de Maria assim descrito não é a sua beleza exterior ou a sua graça física (como em Sir. 9,8), porque o paralelismo que nós acabamos de analisar mostra que se trata do que a graça de Deus operou nela como preparação para a Incarnação: isto só pode ser uma realidade de ordem espiritual, da ordem precisamente da graça.

A outra razão para manter o carácter verbal do particípio é o tipo estritamente gramatical. Nós retiramo-la de um artigo recente e muito sugestivo de É. Delebecque sobre Lc. 1,28[57]. O autor lembra uma regra que já estava muito esquecida, a saber: «a construção dos verbos gregos que exprimem um sentimento, ou uma emoção» (p. 353); no caso presente trata-se da alegria: «O uso requer que a proposição completiva comandada por estes verbos seja colocada no particípio» (ibid.). Era preciso, pois, encontrar aqui uma tradução do género de: «Alegra-te de seres (de teres sido) cumulada de graça» (tradução ainda provisória). Acrescentada à precedente, esta nota implica quase necessariamente que o particípio tenha conservado um valor verbal; por outras palavras, ele descreve o que a graça operou em Maria[58]; e é precisamente disto que o anjo a convida a alegrar-se.

Lembremos, enfim, o uso de κεχαριτωμένη do texto de Lc. 1,28, no hino bizantino à Virgem citado mais acima. O paralelismo, neste hino, entre o particípio κεχαριτωμένη e o adjectivo ἀμίαντε (que é duas vezes repetido) mostra que, para o autor, a ausência de contaminação em Maria é o efeito produzido nela pela graça: isto implica aqui também que o particípio passivo guarde de qualquer maneira o seu valor verbal. Nós proporíamos portanto para Lc. 1,28 a mesma tradução que neste hino a Maria: «Alegra-te por seres (teres sido) transformada pela graça».

Depois desta investigação sobre o sentido simplesmente filológico do verbo χαριτοῦν em grego, precisamos de passar à exegese de Lc. 1,28 e ao exame do conteúdo teológico deste termo que foi aplicado aqui a Maria. Isto será o objectivo de um próximo artigo.

 Tradução: PZA, 2017


[1] Na bibliografia especial sobre κεχαριτωμένη não são citados os comentários de Lc. Ou os diferentes estudos sobre o conjunto do relato da Anunciação. Apresentamos os artigos por ordem cronológica: L. CERFAUX, «Gratia plena», Memórias e relatórios do Congresso marial realizado em Bruxelas 8-11 de Setembro de 1921 (Bruxelas 1822) I, 34-40 (este artigo é um dos primeiros, senão mesmo o primeiro do falecido Cerfaux; ele não consta infelizmente da «Bibliographie Lucien Cerfaux», organizada por J. Coppens para o Recueil Lucien Cerfaux (Gembloux 1953) I, XXXIII-XLIII); S. LYONNET, «Χαῖρε κεχαριτωμένη», Bib. 20 (1939) 131-141; F. STUMMER, «Beitrage zur Exegese der Vulgata. 3: Lc. 1, 28» ZAW 62 (1950) 161-167; C. MOHRMANN, «Ave gratificata», RStorChlt 5 (1951) 1-6 (retomado em: Études sur le latin des chrétiens, I (Roma 1961) 189-194); J. LEAL, «La salutación del Angel en el estúdio de la Inmaculada desde su definición (1854-1959)», EstEcl 28 (1954) 341-415; J. FANTINI, «Κεχαριτωμένη (Lc. 1, 28): interpretatión filológica», Salamanticensis I (1954) 760-763; M. DE TUYA, «Valoración exegético-teológica del ‘Ave gratia plena’ (lc. 1, 28)», Ciencia Tomista 83 (1956) 3-27; F. BOURASSA, «’Κεχαριτωμένη’ (Lc. 1, 28)», ScEccl 9 (1957) 313-316; E. R. COLE, «What Did St. Luke Mean by κεχαριτωμένη?» AmER 139 (1958) 228-239; PIETRO DELLA MADRE DI DIO, «Gratia plena», EphCarm 11 (1960) 75-126; A. STROBEL, «Der Gruss na Maria (Lc. 1, 28). Eine philologische Betrachtung zu seinem Sinngehalt», ZNW 53 (1962) 86-110; M. Cambe, «La Χάρις chez Saint Luc. Remarques sur quelques textes, notamment le κεχαριτωμένη», RB 70 (1963) 193-207; G.M.VERD, «’Gratia plena’ (Lc. 1, 28). Sentido de una tradución». EstEcl 50 (1975) 357-389; É.BELEBECQUE, «Sur la salutation de Gabriel à Marie (Lc. 1, 28)», Bib 65 (1984) 352-355; B. GHERARDINI, Lutero-Maria: pro o contro? (Pisa 1985) 285-290; IDEM, «L’Immaculata Concezione in Lutero», Divinitas 30 (1986) 271-283.

[2] Cf. a tese dactilografada de F. MARCHISANO, L’interpretazione di κεχαριτωμένη (Lc. 1, 28) fino alla metá del secolo XIII. Contributo alla mariologia bíblica (Diss. Ad lauream in Fac theol. Pont. Univ. Greg.; Roma 1957); um extracto da tese foi publicado alguns anos mais tarde (Roma 1968).

[3] Das Lukasevangelium, I (THKNT III; Freiburg-Basel-Wien 1969) 45, e n. 33; para uma percepção mais completa da exegese moderna (até 1955), cf. MARCHISANO, L’interpretazione, 25-26.

[4] CAMBE, «La Χάρις chez Saint Luc», 203.

[5] Ver dois trabalhos de B. Gherardini indicados no fim da bibliografia.

[6] Ver por exemplo o que ele dizia de Maria numa homilia de 1516: «Ex omni mari totius massae generis humani única praeservata stilla» [N.T.: Da totalidade do mar que é toda a massa do género humano ela é a única gota que foi preservada], Sermo in die Conceptionis Mariae (WA 1, 107).

[7] W. GRUNDMANN, Das Evangelium nach Lukas (THKNT 3; Berlim 21961) 56.

[8] E. SCHWIZER, Das Evangelium nach Lukas (NTD 3; Göttingen 1982) 19. Mas qual é esta «Gegenwart des Herrn» [N.T.: Presença do Senhor]? Não se pode tratar aqui senão da Incarnação do Senhor no seio de Maria; mas esta ainda não teve lugar. Como é que o autor pode dizer: «was mit ihr geschehen ist und geschieht» [N.T.: o que acontece e se realiza nela]? Fórmulas vagas que só criam confusão.

[9] K.H.RENGSTORF, Das Evangelium nach Lukas (NTD 3; Göttingen 81958) 24. Notemos o paradoxo: o perfeito grego (κεχαριτωμένη) remete normalmente para uma acção passada cujos efeitos permanecem; para Rengstorf, ao contrário, ela refere-se «àquilo que vai seguir-se». Porquê?

[10] I.H.MARSHALL, The Gospel of Luke (Exeter 1978) 65. Aqui, como nas três citações precedentes, os itálicos são nossos.

                Convém sem dúvida citar também comentadores protestantes de países latinos; eis o que escreve o teólogo italiano G.MIEGGE: «’Chaire, kecharitoméne’… significa simplesmente: ‘Salvé, tu que tiveste a ventura de ser objecto da atenção benévola de Deus, o qual te escolheu (sublinhado nosso) como instrumento dos seus caminhos», La vergine Maria (Turim 21982) 27; e para a Suíça francófona escutemos A. SCHRAEDER: «… o anjo prometia-lhe nestes termos a grande bênção que lhe ia ser concedida», Évangiles de Mathieu, Marc et Luc (Lausanne 1895) 447 (aqui ainda o sublinhado é nosso); na sua tradução, no entanto, o autor, que procurava ser «tão exactamente conforme quanto possível ao texto grego» (p. 9) escrevia: «Tu que foste recebida em graça».

                Pelo contrário, a Bible de la Pléiade voltou à tradução de Erasmo: «Graciosa»; espantamo-nos com o acolhimento caloroso que lhe foi dado. L.LE-GRAND: «A tradução da Pléiade (‘graciosa’), diz ele, é excelente por dar a perceber o sentido etimológico subjacente», L’annonce à Marie (Lc. 1, 26-38). Une apocalypse aux origines de lÉglise (LD 106; Paris 1981) 277, 15; sem dúvida que este adjectivo deriva de «graça», mas será que na palavra francesa [portuguesa] «gracioso» se pode perceber a ideia de graça de Deus? Ver o dicionário Grand Robert, e o que nós dissemos mais acima no texto. Talvez não seja inútil lembrar o que escrevia polemicamente Maldonado, a propósito precisamente da palavra «gratiosa» aceite por alguns reformadores: «Quam (Mariam) si tantum gratiosam aut dilectam aut gratam aut acceptam aut aliquid huiusmodi ex his, quae Mariae hostes haeretici commenti sunt, dixisset, nihil sane dixisset non illi commune cum multis» [N.T.: Se o anjo tivesse dito que Maria é somente graciosa, ou amada, ou agradável, ou acolhida, ou algumas dessas coisas que os inimigos hereges de Maria comentaram, ela não teria tido absolutamente nada que não fosse comum a muitas outras mulheres]. Porque precisamente, como o faziam já notar Orígenes, Santo Ambrósio e outros, a saudação que o anjo dirige a Maria é única, em toda a Bíblia; cf. o nosso próximo artigo, n. 3.

                [11] L.Cl. FILLION, Évangile selon S. Luc (Paris 1882) 42.

                [12] L. SOUBIGOU, Sous le charme de l’évangile selon saint Luc (Desclée de Brouwer 1933) 50.

[13] S ZEDDA, Vangelo secondo Luca, in: La Bibbia parola di Dio, III (Marietti 1980) 231.

Para o tempo da Renascença, citemos os comentários de Maldonado, Tolet e Cornelius a Lapide; e para a época moderna, cf. ainda Schanz, Knabenbauer, Lagrange, Marchal («O perfeito grego… indica a posse permanente e não transitória (da graça)… Esta graça abundante, ela possui-a desde antes da concepção de Jesus: Deus preparou-a para a sua missão», p. 27), Stöger, Schürmann («So antizipiert auch κεχαριτωμένη in gnadenhaft effektiver Weise, was im Folgenden verheissen wird: Gottes Gnade bereitet sich die jungfräuliche Messiasmutter» [N.T.: Assim κεχαριτωμένη antecipa aquilo que de facto foi prometido misericordiosamente: Deus com a sua graça preparou a Virgem para ser a mãe do Messias], p. 44).

[14] Cf. J. SCHMID, Das Evangelium nach Lukas (Regensburg 41960) 40-41: K. STAAB, Das Evangelium nach Markus und Lukas (Echterbibel; Würzburg 1956) 15: «Es ist die Gnade der Erwählung, Mutter des Sohnes Gottes zu werden» [N.T.: É a graça da eleição, para ser a Mãe do Filho de Deus]; ele acrescenta que uma tal dignidade supõe sem dúvida, como consequência, que Maria recebeu graças especiais (cf. «gratia plena» da Vulgata), mas que isto não está expresso no termo grego; cf. também J. Ernst.

                Sobre os excessos que uma certa leitura demasiado directamente dogmática do nosso texto – excessos que provocaram a reacção crítica de hoje – cf. la nota polémica de J. COPPENS, «La définibilité de l’Ássomption», ETL 23 (1947) 5-35: «Lc. 1, 28 é uma passagem de que alguns pretendem servir-se a torto e a direito, para apoiar todos os privilégios de que a fé e a teologia ornaram Maria»; este texto não pode de maneira nenhuma, acrescenta ele, provar o dogma da Assunção, porque nesse caso, era preciso compreender «cheia de graça» como uma «totalidade absoluta, a de todas as graças e de todos os privilégios sobrenaturais»; ora o original grego «não comporta a afirmação de plenitude» (p. 16-17). O autor sublinha com força o que o texto original não diz. Mas o que é que o texto significa então na realidade? J. Coppens não o explica de maneira nenhuma. A questão permanece aberta.

[15] R.E. BROWN, The Birth of the Messiah (New York 1977) 325-327.

[16] J. FITZMYER, The Gospel according to Luke I-IX (AB 28; New York 1981) 345-346 (os itálicos no texto inglês são nossos). Esta distinção entre gratia gratis data e gratia gratum faciens é interessante; nós voltaremos aí na parte filológica e veremos que o sentido do verbo χαριτόω leva-nos a uma conclusão exactamente inversa da de J. Fitzmyer (ver também o próximo artigo, n. 33). No entanto, ele viu bem a dificuldade que representa o perfeito κεχαριτωμένη; mas ele ignora-o simplesmente, sem dar nenhuma explicação…

[17] HORTÊNSIO DA SPINETOLI, Maria nella Bibbia (Génova 21964) 72-74; Maria nelle Tradizione bíblica (Bologna 31967) 80-82 (texto idêntico ao da obra precedente): «a ‘gratificação’…. é apresentada como um facto já acontecido»; ele chega mesmo a dizer, numa linguagem propriamente teológica: «A graça de Maria não é nem um favor extrínseco, nem uma ajuda passageira, mas um dom permanente, que adorna, embeleza e enriquece sobrenaturalmente o seu espírito. É, por outras palavras, a graça santificante, elevação e participação na mesma natureza e vida divina», Maria nella Bibbia, 73 (sublinhado nosso).

[18] Luca. Il vangelo dei poveri (Assisi 1982) 70. Mostrando uma certa incoerência com a sua nova posição, o autor – por costume, sem dúvida, e por inadvertência – retoma aqui a expressão tradicional «cheia de graça»; mas, se se trata, como ele diz, de um favor que «fará distinguir Maria das outras mulheres», a saber, a sua maternidade messiânica próxima, como pode ele dizer que Maria, desde esse momento é já «cheia de graça»?

                [19] O único autor que explorou este terreno até ao presente é M. de Tuya (ver bibliografia). Ele sublinha correctamente a raridade do emprego de χαριτοῦν: para um período de sete séculos (II a.C. até V d.C), ele não encontrou senão 12 textos (5 textos bíblicos: Sir. 9, 8 [em Clemente de Alexandria]; 18, 7; Sl. 17(18), 26 [em Símaco]; Lc. 1, 28; Ef. 1, 6; e 7 textos não bíblicos: Epistola Aristeae, 225; Testamentum Joseph, 1, 6; Pastor de Hermas, Sim., IX, 24, 3; Act. Mat., 1; Act. Fil., 48; o papiro BGU IV, 1026; Libânio, Descriptiones, 30, 12). Nós prolongamos a nossa investigação até ao fim da época bizantina e pudemos acrescentar uma boa vintena de novos empregos do verbo: 7 textos patrísticos (8, se contarmos um texto de Procópio de Gaza, que somente retoma o de Dídimo o Cego; cf, infra, n. 40); 8 textos litúrgicos bizantinos (em ostraca ou papiro) e 6 textos profanos, o que perfaz um total de 34 textos. Não tomamos em conta nesta lista os comentários patrísticos (gregos) de Lc. 1, 28 e Ef. 1, 6, onde o verbo χαριτοῦν aparece evidentemente muitas vezes.

[20] Para a Renascença, cf. o comentário de TOLET (Nota 66); no século XIX, ver sobretudo C. PASSAGLIA, De Immaculato Deiparae Semper Virginis Conceptu commentarius, P. II, Sectio V, cap. IV, art. 6 (Roma 1854) 1092-1094; ele explica muito bem: « χαριτόω (…) sua ipsa derivatione ac forma exprimit aliquem gratia afficere, instruere, ornare, et eo usque locupletare ut gratiosus ipse sit gratiaque repletus» [N.T.: χαριτόω, pela sua própria derivação e forma, significa dotar, prover, ornar alguém de graça e enriquecê-lo de tal maneira que ele fica gracioso e cheio de graça] (1903); para os comentadores de Lc, cf. Schanz, Knabenbauer, Lagrange; entre os estudos mencionados na bilbiografia (n.1), ver J. Fantini, M. de Tuya, Pietro della Madre di Dio, B. Gherardini; cf. também R. LAURENTIN, Les Évangiles de l’Enfance du Christ (paris 1982) 29-30.

Mas é preciso sobretudo darmo-nos conta do que dizem os gramáticos do grego do NT (ver as duas notas seguintes).

[21] J.H. MOULTON – W.F. HOWARD, A Grammar of the New Testament Greek (Edinburg 1929) II/2, 393-397 (cf. p. 397). Eles fazem notar que se encontram 96 verbos em –όω no NT, «with 25 additional compound verbs» [N.T.: com 25 verbos compostos adicionais] (p. 394).

[22] BLASS-DEBRUNNER-REHKOPF, Grammatik des neutestamentlichen Griechisch (14. völlig neubearbeitete und erweiterte Auflage [N.T.: edição completamente revista e ampliada]; Göttingen 1976) § 108, 1 (p. 86). Estes dois gramáticos dão uma série de exemplos. Na lista que nós próprios apresentamos, muitos verbos são diferentes dos deles: nós escolhemo-los porque o seu sentido «causativo» está aí particularmente claro.

[23] De acordo com o Thesaurus linguae graecae, VII, 1347. É significativo que Hesíquio e Suídas não expliquem directamente o próprio verbo χαριτοῦν, mas unicamente o particípio passivo κεχαριτωμένος, a propósito de adjectivos aparentados.

[24] Suidae Lexicon (éd. A.ADLER) (Lipsiae 1935) IV, 789.

[25] Ver mais acima a nota 4 (e a bibliografia, n.1). M. Cambe (p. 203, n. 27) cita muitos autores de língua francesa que adoptam esta tradução (Goguel, Joüon, Vaganay, novo Crampon, Laurentin). Mas, como nós dizemos mais adiante no texto, esta exegese é de origem protestante; cf. já para a época de Lutero, M. FLACIUS ILLYRICUS, Clavis Scripturae Sacrae seu de sermone sacrarum litterarum (nova edição; Frankfourt e Lipsig 1719) I, 382: «Graecum verbum χαριτόω… indicat ultroneum liberalemque favorem. Nam χαριτόω significat gratis diligo» [N.T.: o verbo grego χαριτόω indica um favor espontâneo e liberal. Com efeito, χαριτόω significa amo gratuitamente]. O particípio κεχαριτωμένη de Lc. 1, 28 significa para ele «gratis dilecta» [N.T.: amada gratuitamente], e é explicado no v. 30. A tradução «gratia plena» da Vulgata está portanto errada, conclui ele. Mas sobre que base afirma ele que χαριτόω significa «gratis diligo»  [N.T.: amo gratuitamente]? É uma afirmação gratuita.

[26] No v. 26b, os LXX tinham: καὶ μετὰ τοῦ ἀνδρὸς ἀθῴου (inocente) ἀθῴος ἔσῃ. Porque é que Símaco modificou para κεχαριτωμένου? Pode pensar-se que foi em razão do paralelismo: no primeiro hemistíquio, o TM tinha חםיד que nós traduzimos por «bom»; no segundo hemistíquio חמים (perfeito) terá sugerido a Símaco que aqui esta «perfeição» do homem deve ser próxima da «bondade» de que ele tinha acabado de falar; isto está bem expresso na nossa tradução: «(um) homem amável» é normalmente um homem bom.

[27] O texto está publicado em A. ENGELBRECHT, Hephaestion von Theben und sein astrologisches Compendium. Ein Beitrag zur Geschichte der griechischen Astrologie (Wien 1887) I, 1, 67,7.

[28] CLEMENTE DE ALEXANDRIA, O Pedagogo, III, 11, 83,3 (GCS Clemente, I, 282, 10-11; SC 158, 160), onde ele cita Sir. 9,8, seguindo uma versão ligeiramente diferente da dos LXX. Eis o texto desta última: ἀπόστρεψον ὁφθαλμὸν ἀπὸ γυναικὸς εὐμορφου καὶ μὴ καταμάνθανε κάλλος ἀλλότριον. Em Clemente, o adjectivo εὔμορφος (de bela forma, belo) dos LXX é substituído por κεχαριτωμένη, talvez porque este particípio atrai menos a atenção sobre o aspecto físico da beleza (καλλος) feminina (εὐμορφος, de μορφή, forma) e sublinha-lhe mais a «graça» (χάρις).

[29] Descriptiones, 30, 12 (edição FOERSTER, VIII, 544).

[30] Nicéforo dá a seguinte descrição de Mirra, a filha do rei assírio Teias: «A natureza tinha-lhe dado formas graciosas (Μύρραν… φύσις μὲν ἐχαρίτωσεν εἰς μορφήν), mas o amor tinha-a constrangido a violar as leis da natureza», Rhetores graeci (edição C. WALZ) (Stuttgart-Tubingen 1832) I, 429, 31-32.

[31] M. BONNET, Acta apostolorum apocrypha, II/1: Martyrium Matthaei, 1 (p. 218, 2 e 11); cf. mais adiante: παιδίον εὔμορφον, 13 (p. 232, 1); τὸ παιδίον τὸ εὔμορφον, 26 (p. 255,4).

[32] S. DOROTEU, Doctrinae, VI, 7 (PG 88, 1693 B).

                Observe-se nestes autores uma certa constância no vocabulário: em dois textos (o de Clemente de Alexandria e do Martírio de Mateus), nós tínhamos a equivalência entre κεχαριτωμένος e εὔ-μορφος; neste de São Doroteu, ao contrário, trata-se dum contraste, mas com o contrário de εὔμορφος, isto é, ἄμορφος; o resultado é portanto o mesmo: χαριτῶσαι (τινα), é fazer com que ele não seja ἄμορφος, é o tornar εὔμορφος ou κεχαριτωμένος; por outro lado, nós notamos por três vezes (em Clemente de Alexandria e Libânio, e depois no Martírio de Mateus) o paralelismo entre κεχαριτωμένος (ou χαριτούμένος) e καλός (ou καλλος); concretamente trata-se da beleza ou da graça de uma pessoa. Em grego moderno, χαριτωμένος quer dizer «charmoso».

[33] Catalogus codicum astrologorum Graecorum, XII: Codices rossicos (descr. M.A.F. SANGIN) (Bruxelas 1936) 162, 14.

[34] De Sancto Theodoro martyre (PG 46, 740 B).

[35] Cf. a edição de A. PELLETIER, Lettre d’Aristée à Philocrate, 225 (SC 89, 202.204). Note-se o carácter activo da graça recebida de Deus.

[36] Por si só, a primeira parte da frase ficaria um pouco obscura; por isso a tradução aproximada e vaga de R.H. CHARLES: «My God showed favour unto me» [N.T.: o meu Deus mostrou-se favorável  para comigo] (The Apocrypha and yhe Pseudepigraphica of the Old Testament, II, 346). Mas devemos lembrar-nos de que o texto se refere a Gen. 39, 21 LXX; só se compreende bem à luz deste versículo bíblico: κύριος… ἔδωκεν αὐτῷ χάριν ἐναντίον τοῦ ἀρχιδεσμοφύλακος; note-se no δεσμοῖς do Testamentum Joseph o eco de ἀρχιδεσμοφύλακος da passagem do Génesis, e no ἐχαρίτωσέν o retomar de χάριν. Mas as três últimas palavras do texto bíblico desapareceram no Testamentum Joseph, o que torna este texto mais obscuro; elas estão, no entanto, implicitamente presentes no ἐχαρίτωσέν, que substitui ἔδωκεν χάριν dos LXX. Não se trata simplesmente do «favor» divino para com José, mas de um favor que transforma o prisioneiro aos olhos do seu carcereiro, ao ponto de ganhar as suas boas graças; assim, José obterá a sua libertação.

[37] SC 53, 340. A tradução de R. Joly («Le Seigneur… les a remplis de grâces» [N.T.: o Senhor encheu-os de graças]) é muito imprecisa; ela não tem em conta o sentido causativo do verbo.

[38] M. BONNET, Acta apostolorum apocrypha, II/2, 21,18.

[39] BGU, IV, 1026 (23,24).

[40] DÍDIMO O CEGO, Sur la Génese, II (SC 244,48). O comentário de Dídimo foi retomado abreviadamente no de PRÓCORO DE GAZA, In Genese 6,8 (PG 87/1, 272 C).

                O interesse destas duas passagens é que, como em Lucas, encontramos aí a expressão εὗρεν χάριν relacionada com o verbo χαριτοῦν (ἐαυτόν) (cf. Lc. 1,28.30, em ordem inversa: κεχαριτωμένη – εὗρεν χάριν), o que permite captar melhor a sua relação. Contrariamente ao que se pensa muitas vezes, elas não são sinónimas; isto vê-se muito bem em Dídimo e Procópio: χαριτώσας ἐαυτόν (na activa) descreve o que fez Noé para «se preparar» (ἐκ τῆς οἰκείας προπαρασκευῆς), por meio de obras de virtude; εὗρεν χάριν indica que, por causa precisamente disto (ἐκ κτούτου) «ele encontrou graça diante do Senhor Deus». Dídimo (seguido por Procópio) pode então concluir: «É por ter procurado correctamente que ele encontrou» (p. 50,25-26). Esta distinção servir-nos-á mais adiante para a exegese correcta do texto de Lucas: κεχαριτωμένη (1,28), εὗρεν χάριν (1,30).

                Observe-se que este caso de relação, em Gén. 6,8 e na releitura que dele se faz na patrística, é semelhante ao de Gen. 39,21 e da sua retomada no Testamentum Joseph 1,6 (ver n.36): o ἔδωκεν de Gen. 39,21 LXX (é o Senhor que é o sujeito), foi substituído no texto dos Testamentos por ἐχαρίτωσέν με (fala José); de maneira semelhante, em Gen. 6,8 LXX, εὗρεν χάριν ἐναντίον κυρίου τοῦ θεοῦ (diz Noé) é acompanhado de χαριτώσας ἐαυτόν em Dídimo; nos dois casos, χαριτοῦν acrescenta um comentário antropológico ou moral ao que o texto bíblico tinha dito da referência directa a Deus.

[41] Citado por J. DAMASCENO, De sacris jejuniis (PG 95, 76 B)

[42] Achmet, Oneirocriticon (edição de F. DREXL) (Lipsig 1925) 2,18.

[43] Stromata, I, 1, 14.1 (GCS II, 10,18; SC 30, 53). Reproduzimos a tradução de SC, excepto o termos substituído «esta recolha de notas», por «esta acção de escrever as minhas recordações»

[44] É preciso comparar três termos: o espírito de Cristo, a transmissão da palavra, o escrito de Clemente. A tradição oral, primeiro, e o livro de Clemente, depois, devem ser penetrados por este espírito de Cristo e transformados por ele. É precisamente o que sugere a comparação com o delírio dionisíaco que as Bacantes comunicavam a quem elas batiam com o seu tirso sagrado (um longo bastão enfeitado com heras e trepadeiras); Clemente explica: «Ele (este escrito) poderá ser uma imagem que reavivará a recordação do arquétipo, em todo aquele que tiver sito tocado pelo tirso sagrado». A ideia de uma transformação súbita está portanto subjacente ao passivo κεχαριτωμένον: o «espírito» da transmissão oral (humana) foi «espiritualizado» (transformado) pela graça, ele devia exprimir-se no escrito de Clemente e comunicar-se aos leitores.

[45] EUSTÁCIO, De Thessalonica urbe a Latiinis capta (PG 136, 9-140). Mas é preferível consultar-se a nova edição de S. KYRIAKIDIS, Eustazio di Tessalonica. La espugnazione di Tessalonica (texto crítico e versão italiana (Palermo 1961); cf. também a versão alemã de H. HUNGER, Die Normannen in Thessalonike (Graz-Wien-Koln 1955).

[46] De Thessalonica urbe, 116 (PG 136, 116 B); KYRIAKIDIS, Eustazio, 128,17; HUNGER, Die Normannen, 121: «Mit Gottes gnädiger Hilfe gelang uns die Überredung, in den moisten Fällen» [N.T.: com a ajudada graça de Deus aconteceu que o persuadimos, comovendo-o ]. O facto de a delegação ter tido sucesso na persuasão do chefe normando é atribuído por Eustácio à acção divina: χαριτοῦτοϛ descreve a mudança operada nas disposições do comandante pela graça de Deus.

[47] De emendanda vita monachica (PG 135, 729-910).

[48] De emendanda, 844 D. Notemos uma pequena diferença, em Eustácio, entre os dois empregos que faz do verbo χαριτοῦν (na voz activa): na obra citada anteriormente, ele escrevia simplesmente θεοῦ χαριτοῦτοϛ, no particípio presente, mas sem complemento (sem dúvida porque a acção da graça se fazia sentir tanto entre os membros da delegação, que vinham suplicar junto do comandante, como no coração do próprio Alduíno, que se deixou persuadir); pelo contrário, nos seus conselhos ao monge, Eustácio escreve: «διὰ τοῦ χαριτώσαντός σε θεοῦ, no particípio aoristo e com a indicação do complemento directo; toda a acção da graça, aqui, exerce-se unicamente sobre o monge; com a ajuda desta graça (que precedera) este chegará, com perseverança, a quebrar o aguilhão. O aspecto causativo do verbo está especialmente bem indicado.

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