A ECLESIOLOGIA NO PERÍODO PRÉ-NICENO
1. Os Padres Gregos
A literatura anterior a Irineu de Lyon contém diversos elementos e motivos eclesiológicos importantes que, todavia, não chegam a configurar uma visão global e sistemática da eclesiologia. Uma maturação maior é visível de Irineu de Lyon em diante.
a) Antes de Irineu de Lyon – A Carta de Clemente romano aos cristãos de Corinto (cerca de 96) expõe a ordem e o lugar que cada crente ocupa na comunidade. Como o AT tinha distinguido ofícios sagrados e determinados momentos e lugares para oferecer os sacrifícios (1 Clem. 40,5), assim também na Igreja deve haver uma precisa estrutura que deriva diretamente da vontade de Deus. Ele enviou Cristo, que por sua vez confiou aos apóstolos a Boa-Nova- ( 42,1); eles estabeleceram por toda parte seus primeiros discípulos vindos à fé como bispos e diáconos (Ibid. 42,4). Assim Clemente, servindo-se de um argumento não só teológico, mas também ético, político e cosmológico, lança as bases teológicas dos ofícios eclesiásticos que remontam ao próprio Deus por via de sucessão.
Inácio de Antioquia aprofunda esse conjunto de ideias em suas sete cartas, escritas entre os anos 110 e 135; nelas se esforça por defender a unidade da Igreja. Essa unidade (ενωσις) na fé, na liturgia e na disciplina baseia-se no governo de um bispo (επισκοπος) monárquico (Eph., 6, 1; Magn., 8,2); o bispo é o vigário de Cristo (Magn., 6, 1), a imagem ou tupoV do Pai (Trall., 3, 1). Uma comunidade não deve criticar o bispo nem fazer que se cale, “porque tudo o que o pai de família manda em sua casa é necessário que nós o acolhamos como aquele que o mandou” (Eph., 6, 1). A tríade hierárquica, que é formada por um επισχοπος (bispo), vários πρεσβυτεροι (presbíteros) e διακονοι (diáconos) é comparada, por Inácio, com a ordem descendente que se realiza entre Deus, Jesus Cristo e o colégio apostólico; além disso, o bispo age como cabeça da comunidade, como Cristo é a cabeça da Igreja e Deus é cabeça de Cristo (Smyr. 8, 1-2). Assim, as cartas inacianas tornam-se um dos primeiros testemunhos de introdução do episcopado monárquico (monoepiscopado) e dos três graus do sacramento da ordem, mas os estudiosos se perguntam se o modelo ali apresentado era uma realidade já plenamente enraizada ou tão-somente uma imagem ideal em fase de desenvolvimento, que com o passar do tempo teria substituindo a direção colegial da comunidade.
O romano Hermas, cuja obra foi escrita aproximadamente em 140, apresenta a Igreja como preexistente (Vis. 2, 4, 1) e na mesma, servindo-se da alegoria de uma torre em construção, descreve-a como uma realidade escatológica (Vis. 3, 1-8); Sim. 9); quem se santifica e faz penitência antes que seja terminada a construção da torre (Sim. 9, 32-33) entrará na Igreja da vida eterna (Sim. 9,18), o reino de Deus (Sim. 9, 31). Mas Hermas identifica também a Igreja com seus membros; ela aparece inicialmente como uma matrona anciã, porque o espírito dos cristãos envelheceu e apagou-se, sem forças por suas fraquezas e incertezas (Vis. 3, 11, 2); mais adiante, porém, a Igreja aparece juvenil, alegre e brilhante, porque os crentes “alcançastes o rejuvenescimento dos vossos espíritos” (Vis. 3, 9, 1-2).
Os apologetas gregos do século II esforçam-se por apresentar as comunidades eclesiais ao mundo pagão partindo do fato de que a Igreja não é perigosa, seja no plano social, moral ou político. Em seu diálogo com o judeu Trifon, Justino demonstra que os cristãos são o novo povo de Deus (Dial. 119-141), o verdadeiro Israel (Dial. 11, 5; 123, 9; 135, 3).
b) Irineu de Lyon e Hipólito de Roma – Irineu de Lyon, entre a segunda metade e o fim do século II, apresenta pela primeira vez uma eclesiologia construída com certa sistematicidade. Certamente para ele a Igreja ainda não é um tema teológico independente, mas contempla exclusivamente do ponto de vista do serviço que a Igreja presta à verdade salvadora, visto que, em controvérsia com os gnósticos, Irineu entende que custodiar e transmitir a verdade são a especificidade da Igreja. Ela é o único “vaso” digno do qual o Espírito Santo depositou a fé como bem precioso, fé que permanece jovem e mantém jovem e saudável o vaso (Ad haer. 3, 24, 1); é também a “casa” da verdade (Ibid. 3, 4, 1). “mãe e nutriz” dos crentes (Ibid. 2, 24, 1; 5, 20, 2). O Filho de Deus reuniu a Igreja e é seu chefe (Ibid. 3, 6, 1; 3, 16, 6; 5, 18, 1); o Espírito de Deus, que garante à Igreja a posse da verdade, cercou aqueles que detém o ministério (Ibid., 3, 24, 1): sobretudo os bispos instituídos pelos apóstolos e seus sucessores até hoje (Ibid. 3, 3, 1-3), pelo que Irineu considera o ministério episcopal como um exercício magisterial que, em virtude da sucessão apostólica, assegura a fiel transmissão da verdade. Assim, a Igreja constitui também o vínculo entre os apóstolos e as gerações sucessivas, porque ela possui a verdade que os profetas anunciaram e que Cristo levou a cumprimento, pregada pelos apóstolos, ouvida e conservada fielmente e participada aos seus (Ibid. 2, 30, 11). Diz Irineu: “Ubi enim ecclesia, ibi spiritus Dei; et ubi spiritus Dei, illic ecclesia et omnis gratia; spiritus autem veritatis” (Ibid. 3, 24, 1); esta famosa frase pressupõe que Igreja, Espírito e verdade formem um único conjunto. Como conteúdo do verdadeiro conhecimento na Igreja, Irineu elenca: 1) a doutrina dos apóstolos; 2) o antigo organismo da Igreja em todo o mundo; 3) o sinal ou selo do corpo de Cristo segundo as sucessões dos bispos, aos quais os apóstolos confiaram as Igrejas locais; 4) a conservação, não falsa, das Escrituras; 5) sua coleção completa, sem acréscimos nem omissões; 6) uma leitura sem fraude; 7) uma explicação harmoniosa; 8) finalmente, o dom sublime da caridade (Ibid. 4, 33, 8). A unidade dos membros da Igreja se funda sobre o dato de que todos reconhecem um único Deus Pai, creem na mesma economia da encarnação do Filho de Deus, conhecem a mesma efusão do Espírito, observam os mesmos preceitos e o mesmo sistema de governo da Igreja (Ibid. 5, 20, 1). Embora a Igreja seja una em todo o mundo, também as comunidades locais são Igrejas, e aquelas fundadas pelos apóstolos servem como norma nas controvérsias doutrinais e disciplinares (Ibid. 3, 5, 1); mas a Igreja romana, fundada pelos apóstolos Pedro e Paulo, tem uma origem mais excelente e, portanto, toda Igreja local deve estar de acordo com ela, porque em Roma se manteve a tradição que vem dos apóstolos (Ibid. 3, 3, 2).
A eclesiologia do escritor apresentada sob o nome de Hipólito de Roma († cerca de 235) é semelhante à de Irineu, mas já deixa entrever as concepções eclesiológicas dos Padres gregos posteriores. A Igreja está fundada sobre Cristo, e só em união perpétua com ele pode existir (In Dan. 1, 9, 8; 1, 17, 8-12; 4, 37, 2; Antichr. 59). Hipólito encontra na Bíblia numerosos tipos da Igreja – particularmente característica é a interpretação eclesiológica da figura de Susana e do paraíso: a Igreja é uma comunidade santa e, porquanto paraíso renovado, constitui já agora uma realidade escatológica (In Dan. 1, 24, 5; 4, 38, 2). Os cristãos são santificados pelo batismo (In Dan. 1, 16; 1, 33; 4, 59, 4), mas os pecadores que não vivem segundo a santidade recebida pertencem à Igreja só em aparência (In Dan. 1, 24, 5; 4, 38, 2). Hipólito, autor também de Retutatio, entrou em conflito com o bispo de Roma, Calisto (217-222), o qual, baseando-se em Rm 14,4, Mt 13,30 e Gn 6, via a Igreja como uma comunidade de puros e impuros (Hipólito, Refutatio 9, 12, 20-23). Em continuidade com Irineu, Hipólito afirma que a Igreja tem a posse da verdade pela presença do Espírito; os bispos são chamados de maneira particular por Deus e em condições de pregar essa verdade (Refutatio 1, praef. 6-7).
c) Os teólogos alexandrinos: Clemente e Orígenes – Clemente de Alexandria (cerca de 150-215), em controvérsia com o gnosticismo, sustentou que a Igreja terrena e a Igreja celeste não podem se separar uma da outra, dado que a Igreja terrena é a “imagem” da Igreja celeste ( 4, 66, 1; 6, 107, 2). Esta última é a “reunião dos eleitos” (Strom. 7, 29, 4; cf. Paid. 2, 6, 2; Strom. 7, 68, 5). Os verdadeiros gnósticos ocuparam nela os melhores lugares (Strom. 7, 105, 1 – 108, 1). A Igreja católica é uma como Deus é uno e, além disso, é mais antiga que as heresias porque abrange os justos escolhidos antes da criação (Strom.7, 106-107). A Igreja é também esposa de Cristo e mãe virgem, de maneira que nela e por ela o Logos ensina (Paid. 1, 22, 2-3; 1, 42, 1; 2, 8, 1; 2, 99, 1). A Igreja é, assim, a prova do poder sempre atuante de Deus: “Como sua vontade é a realização da obra que chamamos mundo, do mesmo modo a sua vontade segue-se a salvação dos homens que se chama Igreja” (Paid. 1, 27, 2). Nas ordens eclesiásticas (bispos, presbíteros e diáconos), Clemente vê “imagens do mundo angélico e da futura condição em que podem esperar, segundo as Escrituras, aqueles que seguiram as pegadas dos apóstolos em perfeita justiça” (Strom. 6, 13, 107). E visto que os justos não presidiram aqui sobre a terra enquanto deveriam tê-lo feito, o justo sentar-se-á sobre os 24 tronos para julgar o povo, como diz Ap 4,4 (Strom. 6, 13, 106); Clemente entende talvez os 24 tronos como um tribunal para o duplo povo, composto por hebreus (antiga aliança) e pagãos (nova aliança).
Sempre mantendo essa tendência espiritualizante e platônica, Orígenes (185-253) presta mais atenção que Clemente à Igreja empírica e pensa ser oportuno descrever condições concretas da comunidade cristã às vezes muito negativas. O pecador público deve ser excomungado para purificar a Igreja, mas nela existem sempre pecadores ocultos que não poderão ser expulsos, como acontecera também com os gebuseus em Jerusalém (Hom. Ios. 21, 1-2). Os pecadores, portanto, não podem ser eliminados da Igreja neste mundo. A comunidade concreta, por causa da presença nela dos pecadores, é Igreja de um mundo imperfeito e impróprio, o mais comum, diferentemente do modo mais próprio de ser Igreja, sem mancha nem rugas (De orat. 20,1), uma condição que pertence à escatologia. Com tal série de considerações Orígenes não pretende opor a Igreja espiritual à Igreja concreta (a contraposição nele é entre a Igreja e as correntes heréticas, entre os “eclesiásticos” e os “heterodoxos”), nem muito menos coloca em relação pecado e santidade como algo simultâneo e dialético (contrariamente a quanto afirma H. U. von Balthasar), nem como uma antecipação do simul iustus peccator de Lutero (contra Benz), nem mesmo vê Orígenes a Igreja como uma casta meretrix (contra H. U. von Balthasar), a partir do momento em que a imagem da prostituta se refere a um contexto muito preciso. A Igreja é por natureza santa e, embora a perfeição da santidade pertença à escatologia, agora somos Igreja na medida em que o crente é santo.
Orígenes vê a origem histórica da Igreja no NT. No AT existia a Sinagoga, “a primeira Sinagoga”, que foi também “a primeira esposa” de Cristo (Comm. Mt 14,17). “Há diferença entre a Igreja e Sinagoga. Na Igreja não existe mancha nem ruga nem coisas semelhantes. É santa e imaculada… O centurião construiu a sinagoga antes de conhecer Jesus, antes que o Filho de Deus testemunhasse não ter encontrado tanta fé em Israel” (De orat. 20, 1). A passagem da Sinagoga (AT) para a Igreja (NT) corresponde à passagem da exterioridade para a interioridade (Orat. 20, 2). Mas a Igreja preexistia já antes da criação do mundo (Comm. Cant. 2); essa Igreja preexistente é esposa de Cristo, e ele veio ao mundo para procurar a esposa caída no mundo (Ibid.).
Já apresentamos acima, seguindo Orígenes, a Igreja sponsa de Cristo e a intencional (querida) equiparação entre ecclesia vel anima. Da temática esponsal da Igreja faz parte seu ser “lua” iluminada por Cristo “sol” (Hom. Gen. 1, 5-7; Comm. Ioh. 1, 25-26; 6, 59; Hom. Ez. 9, 3). Nessa imagem cósmica – sol e lua, luminares do mundo – a luz da Igreja, reflexo da de Cristo, é vista em total dependência dele, como luz destinada a desaparecer quando o sol da justiça resplandecer completamente diante dos homens (Hom. Ez. 9, 3; Comm. Ioh. 1, 165); então será a festa da lua nova porque esta, plenamente renovada, deposto o homem velho, aproximar-se-á tanto do sol que vai unir-se a ele e desaparecer em sua luz (Hom. Num. 23, 5). A luz plena do sol pertence à escatologia; nesse meio tempo, o luar da Igreja é uma mediação para o mundo (Comm. Ioh. 1, 163; 6, 301-302).
O fato de que a vinda de Cristo não foi reconhecida pela maior parte de Israel favoreceu o chamado dos gentios à fé, e assim a Igreja se tornou fundamentalmente uma Igreja das nações, e a ela se refere Orígenes em quase todos os seus escritos. Mais que uma teologia do povo de Deus, Orígenes desenvolve a teologia dos dois povos: o “primeiro”, aquele de “então” ou antes de nós (De princ. 4, 14; Comm. Mt. 12, 4; Hom. Ier. 11, 6), o “carnal” (Hom. Gen. 7, 2-6; 14, 1), que é “irmão” da Igreja (Comm. Cant. 2), e o “segundo” (Hom. Num. 21, 1), o “novo” que provém das nações (Comm. Mt. 16, 15; fragmento In Lc. 15, 4; fragmento In Ps. 118, 9). São os dois povos no ventre de Rebeca (Gn 25,23), onde, em vez de Jacó, o irmão mais novo que suplanta o irmão mais velho, é a Igreja que suplanta a Sinagoga (Hom. Gen. 12, 3; Hom. Iud. 5, 5; fragmento In Ps. 118, 110; esta imagem estava já presente em Irineu, Tertuliano e Hipólito). Uma pequena parte de Israel acreditou em Cristo; esta Igreja dos hebreus é importante teologicamente (Comm. Ioh. 10, 185-186; Comm. Mt. 16, 15; Hom. Num. 17, 8), mas Orígenes presta muito mais atenção à Igreja das nações. Esta, formada a seguir da recusa de Israel, é vista como criação de Deus (fragmento In Ps. 118, 126-127) que das pedras (Lc 3,8) suscita filhos de Abraão (Hom. Lc. 22; Hom. Ier. 4, 5; Comm. Ioh. 6, 121). É um ato de graças (Comm. Mt. S 135) que deriva de um chamado por parte de Deus, expectativa (Hom. Ier. 5, 2) depois dos flagelos do inverno (Comm. Cant. 3) entre os dois chamados de Israel (Ibid.) como uma passagem de uma geração para outra. À Igreja das nações se aplicam as parábolas dos convidados ao banquete (Mt 22, 1-14) e aquela dos chamados para a vinha (Mt 10, 1-16; 21, 29-32). A Igreja adere a Cristo “in fide semplici”: esta fé é o consentimento dado à pregação do Evangelho, que destrói aquela fortaleza construída por “dogmas dos gentios e orgulho de argumentações” (Hom. Num. 13, 2). As nações recebem esse chamado de Deus enquanto estão em situação de pecado, e as diversas figuras de mulheres pecadoras do AT e do NT são referidas à Igreja; isso não quer dizer que se fale do pecado da Igreja, mas sim de sua proveniência como “meretriz” marcada pela idolatria e pela libertinagem, pecados que precisou abandonar com a conversão a Cristo. Orígenes dedica muito espaço a tema do etíope (a mulher de Moisés, Nm 12,1), da rainha de Sabá (1Rs 10, 1-10), do eunuco que salva Jr (Jr 38, 7-13), da “negritude” (Ct 1,5): “Sou negra mais formosa”; a este tema dedica um longo comentário em Comm. Cant. 2: a etíope, da Etiópia, país estrangeiro para Israel, crê por primeiro e, embora seja negra devido a seus pecados, porque o sol da justiça ainda não a iluminou, é bela pela penitência e pela fé.
Quanto à estrutura da Igreja, Orígenes a apresenta como dado consolidado e, portanto, não a coloca em discussão. Os bispos, presbíteros e diáconos desenvolvem um papel de orientação, têm a “presidência” (προεδρια) na Igreja, “o trono episcopal ou a honra (τιμη) presbiteral ou o ministro (διακονια) para o povo de Deus” (Comm. Mt. 15, 26; cf. Hom. Ier. 14, 16). A desordem (αταξια) na Igreja é vista como pecado (fragmento In Cor. 15). Essa estrutura se exprime na liturgia e na práxis sinodal. Em Orígenes falta uma doutrina sobre a sucessão apostólica no sentido episcopal, como aquela exposta por Irineu. A eficácia das decisões eclesiais depende da qualidade espiritual do ministério; por exemplo, um bispo que estivesse pessoalmente em estado de pecado ligaria e desligaria em vão, porque não teria um critério claro a respeito da virtude e, portanto, não poderia estar certo de que seu julgamento corresponda ao do céu (Comm. Mt 12, 14). Não se trata de um donatismo ante litteram, mas da convicção de que o discernimento espiritual se realiza só como fruto de uma vida virtuosa. Já o leigo piedoso e santo é superior aos bispos, e diante de Deus é bispo (Hom. Num. 2, 1; Comm. Mt series 12; Hom. Ier. 11, 3); mas Orígenes não pretende revitalizar a Igreja institucional, e sim salientar a importância da santidade nos membros da Igreja, sobretudo em seus ministros. A função profética da Igreja é um carisma diferente do da profecia do AT (Comm. Rom. 9, 3) e não é semelhante ao carisma do doutor ou do mestre, que apresenta algumas analogias com o carisma dos profetas do AT; talvez por causa da crise montanista, o papel do profetismo neotestamentário praticamente se extinguiu.
O bispo Metódio (último anos do século III) é um crítico da teologia de Orígenes, mas a eclesiologia de Metódio coincide notavelmente com a de Orígenes: de um lado, vê a Igreja como a esposa do Logos e mãe dos crentes, que gera por meio do batismo (Simp. 3, 8); por outro lado, a vê como a assembleia dos crentes, constituída propriamente por aqueles que progrediram no conhecimento e na virtude, isto é, em santidade (Simp. 4, 8-9; 8, 5-8). Também os bispos devem ser pessoalmente santos para exercer dignamente seu ministério (Lepra 15, 3-5; 18, 4-5).
2. Os Padres Latinos
O termo grego εκκλησια adquire entre os cristãos do século II o cunho de termo técnico, e também a língua latina o assume como neologismo: ecclesia.
Em Tertuliano de Cartago (cerca de 160-220) predomina a imagem paulina do corpo de Cristo, da qual ele faz depender suas reflexões eclesiológicas. Não só a emprega em seus tratados apologéticos com o significado secular de associação (“Somos um corpo para a consciência da religião, a unidade da disciplina e a associação da esperança”: Apol. 39, 1), mas também extrai dessa imagem conclusões teológicas que vão além do significado puramente metafórico. Acontece uma inconfundível identificação entre a Igreja e a pessoa de Cristo, a ponto de se poder entender a Igreja como um prolongamento da encarnação. Por isso, a presença do Deus Trino no corpo de Cristo é total: “É evidente o motivo pelo qual (no símbolo batismal) é recordada a Igreja: com efeito, onde estão presentes as três Pessoas divinas, o Pai, o Filho e o Espírito Santo, ali está também a Igreja, que é o corpo das três Pessoas” (De bapt. 6). Se a Igreja é essencialmente realidade celeste (De bapt. 8, 4; 15, 1; Adv. marc. 3, 24, 3-5; Cor. 13, 4) e Reino de Deus que se opõe ao mundo (Ad mart. 2; De spect. 5; Cor. 13), deve-se ao fato de que a Igreja, “no sentido próprio e eminente do termo, é o próprio Espírito no qual está a Trindade da única divindade, o Pai, o Filho e o Espírito Santo. É ele que une a Igreja, aquela que, segundo o Senhor, consiste nas três Pessoas” (De pud. 21, 16). Em seu comentário ao Pai-nosso Tertuliano afirma que a presença do Pai e do Filho na Igreja faz com que ela se torne uma “mãe” (De orat. 2). Nessa ordem de ideias, Tertuliano ensina o paralelismo entre Adão/Eva e Cristo/Igreja: “Se Adão era figura de Cristo, o sono de Adão representa a morte de Cristo, que devia adormecer na morte para que de seu lado ferido pudesse formar-se a Igreja como verdadeira mãe dos vivos” (An. 43, 10). O emprego da imagem do Corpo de Cristo reforça a ênfase com que Tertuliano fala da necessária unidade da Igreja (una ecclesia in coelis: Bapt. 15, 1; una ecclesia sumus: De virg. vel. 2, 3); ela vive em cada um de seus membros, sente e sofre como cada um, porque ela é o próprio Cristo (De paen. 10).
Também Tertuliano, como Irineu, acentua a unidade da Igreja perante as heresias. Essa unidade corresponde à unidade de Deus (De bapt. 15, 1) e se manifesta na unidade da fé das Igrejas locais e na comunhão entre elas (De praescr. 20; De virg. vel. 2, 2), porque todas as Igrejas são originariamente apostólicas (De praescr. 20, 8). Os bispos são aqueles que transmitem a tradição (De praescr. 32), e por isso os ofícios eclesiásticos são necessários para manter a ordem na Igreja. Em seu período montanista Tertuliano não modifica a imagem que faz da Igreja, mas critica a fraqueza moral dos bispos e, sobretudo, não reconhece a autoridade deles de perdoar pecados graves; segundo Tertuliano, já montanista, a verdadeira Igreja, que só possui o poder de perdoar, é a Igreja do Espírito (ecclesia spiritus) e não a Igreja institucional dos bispos (ecclesia numerus episcoporum: De pud. 21, 17). No De pud. 21, 1 Tertuliano distingue doctrinam apostolorum et potestatem e conclui: enquanto que a ortodoxia doutrinal pode ser transmitida por via de sucessão episcopal a partir da tradição estabelecida pelos apóstolos, o “poder” disciplinar deve ser autenticado na Igreja contemporânea demonstrando que os atuais bispos estão na posse do mesmo Espírito que habitou em Cristo e em seus apóstolos. Conforme pensa Tertuliano montanista, os bispos perdem seu “poder” disciplinar quando pecam e se tornam mundanos; este erro rigorista da eclesiologia de Tertuliano reaparecerá nos séculos III e IV na Igreja norte-africana, e caberá a Agostinho resolvê-lo teologicamente durante sua controvérsia com os donatistas.
Cipriano de Cartago († 258) elaborou suas ideias eclesiológicas partindo da rebelião de alguns eclesiásticos diante da reconciliação dos lapsi depois da perseguição do Imperador Décio (250) e da controvérsia sobre o batismo. Durante aquela perseguição, alguns cristãos apostataram oferecendo sacrifícios aos deuses (os lapsi ou “caídos”); houve também mártires e confessores da fé. Estes últimos (os confessores) sobreviveram à perseguição depois de terem sido torturados e escreveram “cartas de paz”, graças às quais, pelos méritos dos mártires falecidos e pelos próprios confessores, os lapsi foram readmitidos na vida eclesial sem se exigi deles penitência. Em seu tratado De lapsis Cipriano se opõe a essa rápida reconciliação; entende-a relaxada e exige dos lapsi um período de penitência; ao mesmo tempo, exorta os confessores a abster-se de escrever as cartas de paz. Essa prática penitencial foi adotada também pelo bispo de Roma, Cornélio (251-253); a ele se opôs Novaciano, autoproclamado bispo do partido rigorista, que exigia prolongar a penitência para os lapsi até o momento da morte. Também na África setentrional houve alguns que se opuseram à prática penitencial de Cipriano, apoiado pela maioria dos bispos. Nesse polêmico contexto Cipriano escreveu o De Ecclesiae unitate.
Entre muitos aspectos práticos que foram considerados em suas cartas e tratados, salienta-se aquele do papel de direção do bispo nos relacionamentos com a comunidade. Entre as repressões do Império e diante dos conflitos intraeclesiais, Cipriano concentra nas próprias mãos todas as competências e apresenta a si mesmo como senhor do clero e guia do povo, por cujo bem se sente responsável. Na questão dos lapsi, atribui só ao bispo o pleno poder sobre a penitência, e não aceita que os confessores da fé se intrometam com suas cartas de paz. Diante dos cismas originados dessa calorosa questão, Cipriano defende o valor da unidade da Igreja. Desde o momento em que a Igreja é necessária para a salvação – salus extra ecclesiam non est: Ep. 73, 21 – esforça-se por procurar o critério que garanta a pertença a ela, e o encontra na comunhão com o bispo eleito de maneira legítima. Essa colocação eclesiológica, absolutamente ortodoxa, com sua lógica cria as premissas para a posterior disputa sobre o batismo administrado por hereges e cismáticos, porque Cipriano refutará a validade das ações daqueles ministros que, ou não foram nomeados legitimamente, ou não vivem a colegialidade com os bispos da Igreja católica. Em continuidade com uma tradição não só norte-africana, mas também da Ásia Menor, confirmada pelos Sínodos de Cartago do ano 255 e de 256, Cipriano se declarou contra a validade do batismo administrado por um herege ou cismático e, partindo da afirmação de que fora da Igreja o Espírito Santo não atua, afirmava ser necessário rebatizar aqueles que tinham sido batizados por um ministro indigno. Por seu turno, o bispo de Roma, Estevão (254-257), colocou em guarda os africanos quanto a adotar essa posição, porque desmentia as tradições eclesiais segundo as quais o batismo era sempre válido, independentemente da dignidade do ministro. Esse importante combate doutrinal encontrará solução definitiva no fim do século IV, graças às reflexões teológicas de outro norte-africano, Agostinho, o qual, enfrentando os donatistas, demonstrou que os sacramentos são válidos só graças a sua correta administração e à reta intenção da pessoa que batiza, mesmo que esta seja indigna.
O presbítero romano Novaciano, depois da morte do papa Fabiano (236-250), começou a atuar na comunidade em 250 e chegou a ocupar posição eminente. Sob sua responsabilidade desenvolveu-se a troca de cartas com Cartago; três de suas cartas foram conservadas no corpus epistolar de Cipriano (nn. 30, 31 e 36); com elas Novaciano sustenta a posição de Cipriano na questão dos lapsi. Mas, visto que em 251 não foi eleito bispo de Roma, ele, o presbítero mais em evidência, e sim Cornélio (251-253), que adotou em relação aos lapsi a mesma posição tolerante que aconteceu sob Cipriano depois da perseguição, tornou-se chefe do partido rigorista e se fez consagrar bispo, tornando-se assim antipapa. Novaciano sustentava o ideal extremista de uma Igreja “pura”, cujos membros precisavam também eles ser puros; portanto, quem pecava gravemente depois do batismo não podia continuar a pertencer a ela (cf. Eusébio de Cesareia, HE VI, 43, 13-17).
FONTE:
Literatura patrística / sob a direção de Angelo di Bernardino, Giorgio Fedalto, Manlio Simonetti; [tradução José Joaquim Sobral]. São Paulo: Editora Ave-Maria, 2010. pp. 596– 604.
PARA CITAR
BERNARDINO, A; FEDALTO, G; SIMONETTI, M (Orgs.). Eclesiologia. Disponível em: <http://apologistascatolicos.com.br/index.php/patristica/estudos-patristicos/982-eclesiologia-patristica-parte-ii>. Desde: 15/12/2015.