Segunda-feira, Dezembro 30, 2024

Dignitatis Humanae: Um desenvolvimento doutrinal não contraditório

O artigo que segue é a conferência do Pe. Brian W. Harrison no ‘Dignitatis Humanae Colloquium’ realizado em Nórcia, Itália. Esse extraordinário evento se deu em 30 de outubro a 1ª de novembro de 2015 e contou com a presença de ilustres pensadores e autoridades, tais como: Cardeal Raymond Burke, Pe. Dominique de Saint-Laumer, Pe. Basile Valuet e Roberto de Mattei.

 

DIGNITATIS HUMANAE: UM DESENVOLVIMENTO DOUTRINAL

NÃO CONTRADITÓRIO

Pe. Brian W. Harrison, O.S.

 

Uma das controvérsias mais espinhosas e mais importantes do meio século desde que a Igreja no Concílio Vaticano II publicou a sua Declaração sobre a Liberdade Religiosa, Dignitatis Humanae (DH), é saber se este documento pode ser reconciliado com a doutrina católica tradicional sobre a situação dos não-católicos em uma sociedade civil. Esta doutrina foi classicamente exposta em encíclicas papais tais como Mirari Vos (1831) de Gregório XVI, Quanta Cura acompanhada pelo Syllabus do Beato Pio IX (1864), Immortale Dei (1885) e Libertas (1888), de Leão XIII, e Quas Primas (1925) de Pio XI.

Publiquei dois livros[1] e uma série de artigos[2] defendendo a continuidade substancial – mas não a identidade – entre o conteúdo doutrinário da DH e aqueles documentos papais acima citados. Neste artigo vou descrever, de forma bastante esquemática, os principais pontos no caso da continuidade.

 

I. Em primeiro lugar, certas distinções importantes precisam ser ter em mente:

 

(a) entre a doutrina da Igreja (ensino proposto como verdadeiro para todos os tempos e lugares) e a lei da Igreja ou julgamentos políticos prudenciais (adaptáveis de acordo com as diferentes circunstâncias culturais/históricas).

 

(b) entre uma Declaração do Concílio Vaticano II, como a DH e documentos conciliares mais vinculativos, como as Constituições Dogmáticas. Declarações Conciliares (entre as quais existem outras duas, a Nostra Aetate e a Gravissimum Educationis, sobre o diálogo inter-religioso e a educação católica respectivamente) não são destinados a serem lidos como se propusessem uma doutrina universal, atemporal e imutável do início ao fim. Todos os três começam com alguns princípios doutrinários gerais básicos deste tipo e, em seguida, passam a dar aplicações práticas desses princípios que a Igreja considera adequadas para os nossos tempos.

 

(c) entre afirmar um direito de fazer X e afirmar um direito de imunidade de coerção em fazer X. Em um documento puramente jurídico ou legal que estabeleça apenas o que deva e não deva ser proibido e punido por lei positive humana, esta distinção seria inaplicável, e até sem sentido. Mas em um documento doutrinal e teológico tal como a DH, que, em primeiro lugar considera os direitos e deveres morais , e apenas secundariamente as suas implicações para os códigos de direitos humanos, a distinção é crucial. A DH especifica claramente que o que se afirma como o direito natural à liberdade religiosa é apenas a segunda espécie de direito. A afirmação teológica de que existe um direito humano para fazer X significa simplesmente que X é em si um tipo de ação que é moralmente e objetivamente correta e justificável. Mas para afirmar o direito de imunidade de coerção humana em fazer X – isto é, o direito de não ser impedido por autoridade humana de fazer X – não implica necessariamente que X seja objetivamente um comportamento bom. É simplesmente um reflexo da importante distinção entre pecado e crime; ou seja, ele reconhece a competência limitada do governo quando se trata de penalizar o comportamento errante de cidadãos. Sto. Tomás reconheceu há muito tempo que não é função da lei humana (autoridade civil) proibir e punir toda e qualquer espécie de pecado.[3] Ele respondeu negativamente sobre a questão se pais muçulmanos ou judeus poderiam  ser, dentro da justiça, impedidos por governos católicos de ensinar seus filhos as suas respectivas religiões não-cristãs.[4]  Significa isso que Sto. Tomás está afirmando ou insinuando que existe um “direito de ensinar os filhos a falsa doutrina” – doutrina contrária às verdades reveladas, tais como a da Encarnação e a da Trindade? De modo nenhum. Há apenas um direito de não ser impedido pelo governo de o fazer.

Outros exemplos claros seriam o aviso do Nosso Senhor às almas avarentas que ajuntam o seu tesouro na terra ao invés de no céu, e para aqueles que pecam por omissão ao negligenciar os pobres. Esses pecados podem ser mortais: eles levam à punição eterna. Mas isso não significa que Jesus estivesse querendo dizer que o governo pode de forma justa punir um homem por seu “delito” de ser interiormente muito apegado aos bens deste mundo, ou que seria justo nos mandar para a cadeia, não só por falta de pagamento dos nossos impostos para o governo, mas também por não doar o suficiente de nossa renda a causas beneficentes. Ao estender ao governo a autoridade para punir todo tipo de pecado – até mesmo todo tipo de pecado grave – na prática seria uma receita de tirania totalitária. Assim, a coerção pode ser injusta – e, assim, violar os direitos de outra pessoa – não apenas quando é infligida ao inocente, mas também quando é infligida a um transgressor por alguém que ultrapasse a sua própria autoridade ao infringi-la.

 

(d) Finalmente, é preciso evitar a falácia de se supor que se dissermos que um governo deve tolerar uma determinada atividade, estamos insinuando ou pressupondo que ele também tenha um direito, pela justiça, para reprimir aquela mesma atividade se assim o quiser fazer. Ao dizer que um governante tolera a atividade A significa simplesmente que, embora desaprovando A, ele decide não reprimi-la mesmo que ele disponha de suficiente força física (polícia ou militar), e talvez permissão legal para fazê-lo. Se ele também teria ou não um verdadeiro direito (ou seja, a autoridade moral) para reprimir A é uma questão distinta. Em alguns casos, ele teria, em outros, ele não teria. Portanto, os críticos do Vaticano II estão criando uma falsa dicotomia quando – como muitas vezes acontece – alegam identificar uma contradição implícita entre a linguagem da DH de “direitos” na sociedade civil para aqueles que praticam várias religiões diferentes e a linguagem papal tradicional que falava de mera “tolerância” civil para a atividade religiosa não católica. A distinção feita na alínea (c) acima também precisa ser mantida em mente aqui. Resulta de tudo isso que os respectivos conceitos de ter um direito de não ser impedido pelo Estado de exercer a atividade religiosa A (que é a linguagem da DH), e de ser tolerado pelo Estado na realização de A (a linguagem do magistério pré-conciliar) não são de forma alguma logicamente incompatíveis.

 

II. Observe-se ainda que, de acordo com a DH 1, a liberdade religiosa afirmada neste documento deixa “intacta”, ou “em nada afeta” (em latim integram) a “doutrina católica tradicional acerca do dever moral que os homens e as sociedades têm para com a verdadeira religião e a única Igreja de Cristo”. Agora, a palavra “sociedades” aqui certamente inclui as comunidades civis ou políticas como tais. Isto foi claramente formulado e pessoalmente aprovado  e ordenado pelo Papa Paulo VI, em seguida, lido pelo relator (porta-voz oficial do comitê de redação) para os Padres que estavam reunidos que estavam para votar esta versão final da DH. O relator disse-lhes que este e outros acréscimos de última hora no texto foram feitos para expressar mais claramente a coerência doutrinária da declaração que eles estavam sendo solicitados a votar em concordância com os “documentos eclesiásticos até o tempo do Sumo Pontífice Leão XIII”, especialmente com a “insistência” destes documentos sobre” o dever moral da autoridade pública (potestas publica) para com a verdadeira religião”. Como resultado, ele disse, “é evidente que esta parte da doutrina não foi negligenciada”.[5]Portanto, qualquer interpretação da DH que a coloque em contradição com a doutrina de papas anteriores não pode, de acordo com o pensamento da Igreja , expressar o verdadeiro significado da Declaração.

 

III. Tendo em mente os critérios de interpretação acima, podemos agora definir muito brevemente um caso de não-contradição. O que perturba dissidentes tradicionalistas sobre DH é principalmente a sua afirmação no artigo 2º que, “dentro dos devidos limites”, em matéria religiosa, ninguém seja forçado a agir contra a própria consciência Esta afirmação, dizem eles, é pouco ortodoxa e inconciliável com o ensino papal anterior, não obstante a condição “dentro dos devidos limites”.

Ora, levando em conta a estrutura daqueles “devidos limites” que encontramos no artigo 7º da Declaração, este controvertido ensino da DH pode ser sintetizado com a seguinte proposição:

 

P1: É injusto para a autoridade humana (católica ou não-católica) impedir as pessoas de agir publicamente de acordo com a sua consciência em assuntos religiosos, a menos que tal ação viole as normas legais, com base na ordem moral objetiva, que são necessárias para a salvaguarda: (a) os direitos de todos os cidadãos; (b) a paz pública; e (c) a moralidade pública. (Esses três benefícios são tidos por conformar coletivamente “o componente básico do bem comum”, ou em uma outra denominação “uma justa ordem pública”. É importante estar ciente de que DH define “ordem pública” em termos desses três fatores.) 

Mas P1 não era de fato a doutrina tradicional da Igreja. Ela não pode ser encontrada – naquelas palavras ou em outras que tenham o mesmo significado – no magistério pré-conciliar, ordinário ou extraordinário. Pois os papas de épocas anteriores, que por vezes exortaram os governantes católicos para reprimir todas as manifestações públicas de religiões não-católicas, certamente teriam respondido afirmativamente, caso tivessem sido perguntados se tais manifestações violavam uma ou mais das três normas estabelecidas na proposição P acima. (Voltaremos a este ponto abaixo).

 

Ergo, DH não contradiz a doutrina tradicional da Igreja.

 

Pode-se argumentar, no entanto, que P colida com a máxima doutrinal tradicional de que “o erro não tem direitos”. Não é assim. A máxima é, obviamente, uma figura de linguagem; pois, evidentemente, apenas pessoas, e não as idéias em abstrato, podem realmente possuir “direitos”. O que significa é que o erro jamais pode ser ou objeto de qualquer direito humano (isto é, aquele que o direito nos autoriza), ou o fundamento de qualquer direito humano (isto é, a sua razão, base, ou justificação). Mas  a DH não diz nada contrário a isso. Ela apenas enfatiza que o governo só deve exercer cuidadosamente um papel limitado, ao restringir a prática religiosa dos cidadãos: ela ensina que o objeto do direito natural à liberdade religiosa é precisamente a imunidade de coerção por parte do governo (ou outros poderes humanos), e não a crença no, ou a propagação do, conteúdo doutrinário desta ou daquela religião. O Catecismo da Igreja Católica, que nos dá um comentário autêntico sobre o significado da DH, reforça isso ao afirmar, com uma referência de nota de rodapé da Encíclica Libertas de Leão XIII, que “O direito à liberdade religiosa não é nem a permissão moral de aderir ao erro , nem um suposto direito ao erro”(# 2108).

Aqueles que sustentam a descontinuidade ainda podem objetar que, em qualquer caso, a Igreja pré-Vaticano II permitia frequentemente – na verdade, exortava – aos governos reprimir todas as atividades religiosas públicas, exceto aquela da verdadeira religião, o catolicismo, e que isso foi agora recusado pela DH. Tais restrições legais, de fato, eram observadas em nações como Espanha e Colômbia até o Vaticano II. Em outras palavras, a linha ética tradicional entre a atividade religiosa legalmente admissível e juridicamente reprimível em público era a linha entre a verdade e o erro, e não os três critérios que limitantes especificados pelo Concílio Vaticano II (ver P acima), que prescinde de toda a questão verdade-versus-erro.

Isso é uma contradição doutrinária real? Não. Para prescindir de uma posição doutrinária anterior, ou para evitar reiterá-la, não significa contradizê-la. E em qualquer caso, a doutrina tradicional deixou em aberto a questão de saber se essa linha entre a verdade e o erro deve ser sempre e em todo lugar a linha ética entre a atividade pública legalmente admissível e juridicamente reprimível. Na verdade, o magistério pré-conciliar era praticamente silencioso sobre onde essa linha deveria ser traçada pelos governos não-católicos. E uma vez que o Vaticano II queria muito resolver essa questão, inevitavelmente encontrou-se na posição de ter que quebrar novos caminhos doutrinários. Em consonância com o objetivo do Vaticano II de alcançar a toda a humanidade, esta Declaração foi dirigida aos governantes de todas as nações, não apenas aqueles com governos católicos e/ou que detenham população de maioria católica.

A chave para apreciar esta não-contradição reside em observar algumas nuances que ‘suavizam as bordas’, por assim dizer, de ambas posições doutrinárias, antigas e novas, permitindo assim a sua reconciliação. Isto significa prestar atenção no que eles se abstém  de dizer, bem como no que eles realmente dizem:

 

Primeiro: a doutrina tradicional nunca foi tão rigorosa ao ponto de afirmar (embora também não haja negado) que em todos os países e em todos os tempos – a partir de Pentecostes até o Dia do Julgamento – que estaria dentro dos limites da justiça da autoridade civil (seja em sociedades predominantemente católicas ou não-católicas) reprimir todas as manifestações religiosas públicas não-católicas. (Aqueles que nunca foram membros da Igreja, nós pela caridade presumimos, não estão, na maioria dos casos, provavelmente, violando suas próprias consciências, ao permanecerem como não-católicos). Alguns teólogos muito conservadores, incluindo o Arcebispo Marcel Lefebvre, têm sustentado que tal repressão nunca em nenhuma circunstância seria injusta, e que na pior das hipóteses seria, por vezes, imprudente ou sem caridade. Mas essa afirmação não-qualificada da justiça universal de tal repressão nunca alcançou o status de doutrina da Igreja ou de magistério ordinário ou extraordinário. De fato, outros teólogos tradicionais renomados (por exemplo, Suárez, Von Ketteler, e mesmo o Papa Gregório Magno) anteciparam o Vaticano II, em certa medida, dizendo que autoridades civis católicas estão obrigadas pelas exigências da justiça (não simplesmente pela prudência) a tolerar a adoração ao menos de monoteístas não-batizados – principalmente judeus e muçulmanos – realizadas em sinagogas, mesquitas ou outros locais de culto público.[6] Mais uma vez, precisamos lembrar que penalizar alguém pode ser injusto sob dois aspectos: (a) quando ele é inocente ou quando a pena é de desproporcional à sua ofensa; ou (b) quando ele é culpado e merece a pena imposta, mas ser imposto por alguém que não detém autoridade para impor. (Se eu conseguir dominar um ladrão que invadiu minha casa, e conseguir mantê-lo preso no meu porão por três anos, eu estou lhe fazendo uma injustiça. Ele pode muito bem merecem quatro anos de prisão; mas eu como cidadão privado não tenho o direito de decidir sobre qualquer penalidade e administrá-la. Ou seja, o ladrão, embora seja ele culpado, tem o direito de imunidade de punição por mim).

 

Segundo: a posição do Vaticano II não é tão liberal a ponto de negar que, sob certas circunstâncias do passado, a manifestação pública de idéias e práticas religiosas errôneas poderia ter sido, enquanto tal, uma ameaça punível adequada ao bem comum da sociedade (ou seja, que seria pôr em risco os direitos dos outros cidadãos, e/ou a paz pública e/ou a moral pública).

 

Em suma, as doutrinas pré-conciliar e conciliar, respectivamente, não são tão “absolutas” de forma a se excluírem e se contradizerem. O fio condutor perene na doutrina da Igreja, desde os tempos antigos até hoje, tem sido a de que, por um lado, as pessoas fora da Igreja, especialmente aquelas que se presumem ser invencivelmente ignorantes da verdade do catolicismo, têm direito a um certo grau de liberdade religiosa civil (por exemplo, no mínimo, os não-cristãos nunca devem ser coagidos ao batismo e  à aderir a Igreja, e devem gozar de liberdade civil para ensinar sua religião em particular aos seus próprios filhos), mas, por outro lado, o Estado também tem o direito impor algumas limitações à disseminação de idéias nocivas e perigosas no interesse do bem comum da sociedade. Portanto, há dois polos aqui, “positivo” e “negativo”, que precisam ser mantidos em equilíbrio: o respeito à consciência em erro  (tolerância) e a necessidade de evitar a propagação da propaganda mais perigosa.

A diferença entre o antigo e o novo tem sido basicamente uma gradual mudança de ênfase na posição da Igreja. Tradicionalmente ela enfatizou mais o fim “negativo” do extremo – o direito do Estado para reprimir erro; e desde meados do século 20 em diante, ela enfatiza mais o direito da pessoa humana à imunidade de coerção. Mudanças de ênfase, no entanto – até mesmo a ponto de tornar a regra que outrora foi a exceção – não são contradições. O que temos aqui, ao invés disso, são mudanças de juízos prudenciais a respeito de onde encontrar o equilíbrio certo entre a liberdade necessária e a justa moderação. Pelo novo julgamento prudencial implícito na Declaração conciliar, a Igreja dá mais peso agora do que anteriormente o fez à sinceridade subjetiva e à necessidade de respeitar as consciências em erro na sociedade civil, especialmente nas condições religiosas pluralistas que predominam no mundo de hoje. Mas uma mudança de ênfase não é uma contradição doutrinária.

Podemos traçar um paralelo aqui com a posição desenvolvida da Igreja sobre a pena capital. Ela continua a ensinar que isso não é intrinsecamente (sempre e em toda parte) injusto; mas ela agora faz o juízo prudente que a pena capital possa raramente – ou praticamente nunca – ser justificada em circunstâncias modernas (cf. CCC # 2267). Da mesma forma, o Vaticano II não ensina que é ou era intrinsecamente (sempre e em toda parte) injusto para um Estado católico reprimir todas as manifestações públicas de religiões não-católicas como sendo per se um perigo para os elementos fundamentais do bem comum (que é o que Vaticano II quer dizer com “uma justa ordem pública”). Mas o Concílio de fato sugere claramente, pelo que ele diz e pelo que ele significativamente deixa de dizer, o juízo prudente que, nas circunstâncias modernas, tal repressão, em qualquer país do mundo, violaria o direito natural à liberdade religiosa das pessoas afetadas. (A significativa omissão do Concílio em mencionar que os países predominantemente católicos seriam uma exceção a esta regra é óbvia.).

Quando as mais altas autoridades da Igreja nos tempos antigos muitas vezes instavam a repressão estatal da atividade religiosa pública não-católica, enquanto tal, elas certamente julgavam que a propagação de tais erros constituíam ameaças a pelo menos um dos, e muitas vezes todos os três, valores sociais que DH # 7 diz serem legalmente obrigatórios de proteção contra os abusos de liberdade religiosa (ver a nossa proposição de P acima).

 

  1. Os Direitos dos outros cidadãos: A propagação de erros religiosos sedutores entre uma população católica – especialmente aqueles com pouca instrução – era certamente considerado como um grave perigo para sua salvação eterna e, portanto, uma violação do seu direito de viver em uma sociedade cristã que a ajudasse, ao invés de impedi-la, em sua batalha contra Satanás e sua peregrinação para o céu. (pois, para um católico, cair em heresia ou apostasia é pecado mortal e ainda resulta em excomunhão automática.[7])
  2. A Moralidade pública: A triste experiência na cultura ocidental tem mostrado repetidamente – e com clareza crescente nas últimas décadas – que uma vez que a autoridade social e legalmente reconhecida da Igreja Católica como o única e autêntica intérprete da lei moral natural é rejeitada, como resultado de propaganda anticatólica, a moralidade pública, leva, por fim, a uma queda catastrófica também: conseguimos legalizar o divórcio, o aborto, a procriação artificial, o controle de natalidade não natural, o chamado “casamento” gay, os direitos de adoção para duplas homossexuais, etc. E aqueles que promovem esses desvios, ao mesmo tempo que denunciam o “ódio” e a “intolerância” daqueles que se atrevem a expressar seu desacordo, estão hoje cada vez mais violando o direito à liberdade religiosa dos fiéis tradicionais (cf. nº 1 acima).
  3. A Paz pública: Em muitos períodos da história, a propagação da heresia era, muitas vezes, na verdade, uma ameaça para a paz pública. (O mesmo pode ser dito hoje dessas mesquitas e madrassas em que os imãs islâmicos pregam o dever da jihad armada contra o Ocidente.). A heresia levou a guerras religiosas desastrosas. Os primeiros protestantes não eram mais tolerantes do que os católicos eram naquela época e, frequentemente, perseguiam a Igreja, depois que alcançaram o poder pela força das armas. Novamente, se violou o direito dos católicos à liberdade de culto (cf. nº 1 acima), bem como a paz pública.

 

Desde o Concílio Vaticano II, uma vez que o pluralismo religioso é cada vez mais a realidade de fato todo o mundo, a nova norma de direito ou de ordem pública da Igreja em suas relações com os Estados é que nem mesmo em estados com maioria católica pode a simples dissidência pública da doutrina católica, sem quaisquer fatores agravantes, ser considerada mais uma ameaça suficientemente grave para o bem comum que garanta a repressão legal. Mas, novamente, isto não é uma contradição da doutrina anterior. O relator no Vaticano II explicou oficialmente aos Padres antes que eles votassem a versão final da DH que as exigências do próprio bem comum podem mudar consideravelmente ao longo do tempo; e ele apontou que esse fato era relevante ao abordar as preocupações de alguns Padres que disseram não querer que o Concílio fizesse um julgamento extremamente severo da própria doutrina e prática anteriores da Igreja.[8] Na verdade, uma apreciação de como mudanças nas condições históricas podem razoável e legitimamente influenciar a formulação e aplicação prática da doutrina católica é sem dúvida o elemento mais importante ao mostrar sua continuidade diacrônica essencial através dos séculos, nos casos em que isso não é imediatamente aparente.

 

 



[1]1) Brian W. Harrison, O.S., Religious Liberty and Contraception (Melbourne: John XXIII Fellowship, 1988);  2) Arnold T. Guminski and Brian  W.  Harrison,  O.S., Religious Freedom:  Does Vatican Council II  Contradict Traditional Catholic Doctrine? A Debate (South Bend: St. Augustine’s Press, 2013).

[2]Os seguintes artigos na Living Tradition estão acessíveis  online: “Pius IX, Vatican II and Religious Liberty” (LT #9, January 1987), emwww.rtforum.org/lt/lt9.html; “ReligiousLiberty: ‘Rights’ versus ‘Tolerance’” (LT #16, March 1988), em www.rtforum.org/lt/lt16.html; “John Courtney Murray: A Reliable Interpreter of Dignitatis Humanae?” Parts I e II (LT##33-34, January-March1991), em www.rtforum.org/lt/lt33.html e www.rtforum.org/lt/lt34.html; e uma revisão do livro do Michael Davies, The Second Vatican Council and Religious Liberty (LT #44, January 1993), em www.rtforum.org/lt/lt44.html.

[3]Cf. Summa Theologiae, Ia IIae, Q. 96, a. 2.

[4]Cf. Summa Theologiae, IIa, IIae, Q. 10, a.12.

[5]“. . . ex quo patet hanc doctrinae partem non praetermitti” (Acta Synodalia, IV, VI,719).

[6]De acordo com esses teólogos, nem as autoridades civis nem as eclesiásticas cristãs tem qualquer jurisdição sobre os não-batizados em suas atividades religiosas, desde que estas não incluam práticas contrárias ao que é cognoscível pela razão e pelo direito natural, como a idolatria e o politeísmo. Os judeus foram considerados “fora dos limites”  pelas autoridades cristãs por uma razão adicional, a saber, que a sua providencial existência como uma comunidade religiosa distinta deixou-os como testemunhas vivas – independente da, e até mesmo hostis para com a, própria Igreja – de sua própria origem histórica e  da veracidade histórica de ambos Antigo e Novo Testamentos.

[7]Cf. Catecismo da Igreja Católica #2089 e Código de Direito Canônico c.751.

[8]Bispo De Smedt, o relator, expressou o seu acordo com os Padres que tinham levantado esta preocupação, e que tinham exortado de que “deve-se levar em conta o fato de que a própria sociedade humana exibiu diferentes modos de pensar e de viver em diferentes épocas.” “Isto”, respondeu o relator, “é bem verdade, mas está de forma equivalente expresso quando afirmamos que a norma para o cuidado da religião é o bem comum. O bem comum, como todos sabem, é algo relativo: ele está ligado à evolução cultural dos povos e tem de ser julgado de acordo com este desenvolvimento ” (Acta Synodalia, IV, VI, 723, 15 n, tradução deste escritor.)

 

PARA CITAR


HARRISON, Pe. Brian W. Dignitatis Humanae: Um desenvolvimento doutrinal não contraditório. Disponível em <http://www.apologistascatolicos.com.br/index.php/concilio-vaticano-ii/liberdade-religiosa/835-dignitatis-humanae-um-desenvolvimento-doutrinal-nao-contraditorio> Desde 25/11/2015. Tradução: JBF

 

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