Cristãos separados e “elementos” da Igreja
Em 9 de novembro de 1960, na sessão inaugural do XI ano acadêmico do Instituto de Cultura Religiosa de Ferrara, Sua Eminência o Cardeal Bea proferiu uma palestra sobre os problemas da unidade, distinguindo a “severidade da Igreja em relação à heresia e ao cisma como tais” e sua “atitude de caridade e compreensão para com os irmãos separados[1]”.
“Não devemos esquecer que, apesar de todas as diferenças na doutrina e no culto, os irmãos separados ainda têm muitas coisas em comum conosco. Os orientais ainda mantêm uma sucessão apostólica regular de seus bispos, e, portanto, sacramentos válidos, especialmente a Santa Eucaristia; a liturgia eucarística da Santa Missa ocupa o centro de suas vidas religiosas, sendo considerada como o ‘verdadeiro sacrifício de reconciliação para os vivos e para os mortos’, e é celebrada com grande solenidade. Na doutrina, eles preservam a antiga tradição apostólica e patrística e diferem da lei da Igreja latina apenas em alguns pontos, especialmente na negação dos dogmas definidos pelos Concílios após a sua separação, como a primazia e a infalibilidade do Pontífice romano. O culto à Santíssima Virgem Maria também é muito querido para eles, embora não tenham aceitado a definição dogmática da Imaculada Conceição e da Assunção, dogmas contidos em seus livros litúrgicos e geralmente aceitos por seus fiéis.
Quanto aos protestantes, a herança que receberam da Igreja mãe é lamentavelmente menos rica do que a dos orientais, mas eles também preservaram preciosos elementos da doutrina e do culto católicos, embora em graus diversos nas diferentes formas de protestantismo. Em muitos protestantes, especialmente entre os simples fiéis, destaca-se acima de tudo uma piedade sincera, uma grande veneração pela Palavra de Deus contida na Sagrada Escritura e um esforço sério para observar os mandamentos de Deus na vida diária”[2].
Mas qual é o significado e a extensão teológica dessa comunidade de bens? E quais são as consequências concretas no comportamento pastoral?
O PATRIMÔNIO CRISTÃO DOS IRMÃOS SEPARADOS
O termo “patrimônio” não é novo; muitos documentos eclesiásticos o utilizam[3]. É fácil perceber que a descrição dada a ele se torna mais abundante quando se trata dos cristãos separados do Oriente.
Uma das alusões mais marcantes é aquela de Leão XIII – cujo trabalho ecumênico foi significativo e foi recentemente analisado[4] – em Praeclara gratulationis, em 1894: em suma, disse o Papa, não estamos separados por diferenças tão grandes, e tiramos nossos argumentos doutrinários do próprio patrimônio dos orientais[5]. Eles não conservaram, de fato, uma parte muito importante da revelação divina? Eles não têm o culto de Nosso Senhor Jesus Cristo? Eles não veneram afetuosamente sua santa Mãe? Eles não têm o uso dos sacramentos? É assim que fala Pio XI[6]. Todo esse patrimônio de liturgia, de ordens sagradas, de vida cristã, insiste Pio XII[7], deve ser devidamente valorizado. Neste último trecho, observaremos o uso do termo “patrimônio”.
Para as cristandades surgidas da Reforma, as alusões geralmente se referem à profissão da fé cristã, enraizada no batismo. Todos esses cristãos, de fato, “orgulhosamente carregam o nome de cristãos” e “reconhecem apenas Cristo Jesus como o Redentor”[8]. Eles receberam “a iniciação cristã”. “Eles seguem os mandamentos do Senhor, sua disciplina, seus exemplos muito santos”[9]. A esses testemunhos, poderíamos adicionar cem outros[10] que, de Leão XIII a João XXIII, são unânimes, às vezes literalmente.
Hoje em dia, destaca-se particularmente a realidade eclesial do batismo que a maioria dos cristãos separados recebeu validamente, assim como a “boa fé” da maioria deles. Sobre esses pontos, mais uma vez, concedemos a palavra ao Cardeal Bea, que os abordou repetidamente:
“Notemos, em primeiro lugar, que os textos severos citados anteriormente do Novo Testamento se referem àqueles que, pessoal e conscientemente, se afastam da verdadeira fé e da obediência à Igreja de Cristo. Ora, certamente este não é o caso de todos aqueles que hoje estão separados de nós. A grande maioria deles enfrenta uma herança que lhes foi transmitida por seus antepassados, que muitas vezes foram arrancados da Igreja pela força e pela astúcia. Lembremo-nos do famoso ditado: “cujus regio, illius religio”. Assim como não é por mérito nosso que nascemos e fomos criados em uma família pertencente à Igreja Católica, da mesma forma não há demérito da parte deles em serem filhos de pais separados de nossa Igreja. Ao receberem de boa fé essa herança transmitida por seus pais, esses não-católicos podem sinceramente acreditar estar no caminho certo.
Além disso, não devemos esquecer que se esses irmãos separados foram validamente batizados, podemos aplicar-lhes o que foi explicitamente dito na encíclica Mediator Dei (A.A.S., XXXIX, 1947, p. 555) de Pio XII, de santa memória, sobre o efeito do batismo, ou seja, que os batizados se tornam “membros do Corpo místico de Cristo” em sentido comum. Além disso, a eles também se aplica o que o Direito Canônico afirma, partindo da doutrina de São Paulo sobre o batismo, que por este sacramento os batizados são “constituídos pessoas na Igreja de Cristo, com todos os direitos e deveres dos cristãos, exceto se houver um impedimento para o exercício dos direitos” (Cfr C. J. C., can. 87)”[11].
Os trechos que acabamos de revisar nos documentos pontifícios não são isolados: eles demonstram que os próprios papas, especialmente desde Leão XIII, reconhecem os “bens” cristãos que estão presentes e vivos no coração das comunidades separadas. Deve-se acrescentar que esses mesmos documentos enfatizam, com igual unanimidade e força, que o patrimônio cristão das comunidades separadas é incompleto, inacabado e, portanto, imperfeito, mas que tende a uma conclusão que será alcançada na plenitude católica.
Essas “realidades” cristãs são frequentemente chamadas de “vestigia ecclesiae”. A expressão não é nova. Já se encontra em Calvino, em relação à Igreja Católica: “No entanto, escreve ele, como naquela época ainda havia algumas prerrogativas pertencentes à Igreja que permaneciam aos judeus, assim também não negamos que os papistas hoje tenham alguns vestígios – superesse ex dissipatione vestigia ecclesiae – que lhes foram preservados pela graça de Deus apesar da dissipação da Igreja”[12]. Atualmente, nos meios ecumênicos, e especialmente desde a Assembleia de Evanston (1954), evita-se mais essa expressão, primeiro porque é sempre desagradável para uma “igreja” falar assim de outra “igreja”, e depois porque ainda há alguma confusão no pensamento dos teólogos sobre os “vestígios da Igreja” e sobre as “marcas da Igreja”.
Assim, fala-se mais geralmente hoje em dia dos “elementos da Igreja”. O que são eles? Eles são geralmente definidos em relação ao aspecto visível da Igreja. Neste sentido, diz-se que a Igreja é o conjunto dos “meios de graça” que constituem a instituição apostólica. Esses “meios de graça” podem ser classificados de acordo com a distinção comum dos três ofícios ou munera exercidos ministerialmente pela Igreja: o ofício sacerdotal, com os sete sacramentos; o ofício magisterial, com o ministério variado da Palavra de Deus; o ofício de jurisdição, com toda a direção pastoral dos fiéis. A totalidade desses meios de salvação forma a instituição apostólica em sua integridade, a Igreja Católica Romana.
Estes “elementos da Igreja” – como se pode observar – às vezes podem ser dissociados do todo que constitui a Igreja Católica. Pode-se possuir alguns deles sem possuir os outros. Alguns desses elementos podem ser possuídos em graus diversos. Certamente, esta é uma situação anormal; mas a posse parcial pode ser real e importante: basta lembrar o batismo, cujos efeitos são realizados naqueles que receberam validamente este sacramento.
Esses elementos criam entre aqueles que os possuem uma certa comunhão real, uma certa unidade objetiva. Assim, por exemplo, entre todos aqueles que são validamente batizados, estabelece-se uma semelhança objetiva real na ordem das realidades da Igreja. Esta semelhança e esta comunhão reais são evidentemente mais ou menos completas, dependendo do número e da importância eclesiológica dos elementos que as constituem. Elas permanecem reais, mesmo que, de boa fé, esses cristãos não desejem estar em comunhão com a Igreja Católica Romana, na qual não reconhecem a verdadeira Igreja de Cristo. Se quisermos considerar o que isso representa concretamente na vida das diferentes comunidades cristãs, de acordo com o fato de possuírem mais ou menos elementos da Igreja, entenderemos quão complexa é a condição dogmática dos cristãos separados.
Enfim, esses elementos da Igreja são, por si mesmos, direcionados para uma realização plena, aquela que eles terão na Igreja Católica, em virtude de sua “ecumenicidade”. Há muito tempo, de fato, percebe-se que os elementos da Igreja não são realidades fixas, materializadas e estáticas, mas sim valores vivos, espirituais, que tendem constantemente ao seu cumprimento, à sua realização. Eles são levados a essa realização autêntica pela graça do Senhor e pela ação do Espírito Santo. O sentido da perfectibilidade das comunidades cristãs está, portanto, profundamente enraizado em uma visão real e sobrenatural da ordem cristã.
UM NOVO ESTADO DE ESPÍRITO
A mudança solicitada, com base nesse pensamento pontifício, diz respeito principalmente à disposição de espírito, ao “olhar” com o qual consideramos internamente os cristãos separados. Em vez de vê-los principalmente e às vezes exclusivamente como “não-católicos”, deveríamos considerá-los mais como “cristãos”, mas privados do “cumprimento” que consideramos necessário. Ao dizer “não-católicos”, nos acostumamos a ver nos irmãos separados apenas os elementos que “faltam” em sua concepção do cristianismo: este comportamento é em parte válido, já que existem entre nós divergências dogmáticas essenciais; mas é em parte falso, pois na verdade negligencia os valores cristãos, às vezes muito importantes, que estão presentes neles. Ao dizer “cristãos” privados do “cumprimento” que julgamos indispensável, o olhar é mais “positivo”: é, antes de tudo, a vida cristã, a fé na Palavra, o batismo, até mesmo a Ceia ou a Eucaristia, em suma, os bens cristãos possuídos em comum que são imediatamente evocados à mente. Quanto ao termo “inacabado”, ele marca adequadamente o princípio que limita essa comunidade, e que se verifica de maneira diferente de acordo com a profissão de fé das várias comunidades separadas.
Essa mudança de espírito e de perspectiva interna é de importância crucial, pois se traduz – e tem se traduzido – na doutrina e na pastoral. Se negligenciarmos verdadeiramente e concretamente o patrimônio cristão dos irmãos separados, se os “definirmos” apenas pelo que eles não são ou não são completamente, podemos dizer que esse julgamento é realista e justo? E esse comportamento muito “negativo” se desenvolverá em uma teologia, em um estatuto jurídico, em uma oração, etc., com um espírito igualmente “negativo”. Por outro lado, levar em consideração verdadeiramente, tanto em ideias quanto em ações, o patrimônio cristão de nossos irmãos separados é mudar fundamentalmente de comportamento: nos consideraremos “irmãos”, até certo ponto, às vezes muito alto; elaboraremos o estatuto teológico do outro com base nessa comunidade parcial de bens, mas às vezes considerável; estabeleceremos uma disciplina eclesiástica que reconheça a própria condição daqueles sobre os quais legislamos; consideraremos como natural que, às vezes e em circunstâncias específicas, uma oração unânime possa ser legitimamente vivida em comum. Em suma, a perspectiva será diferente, assim como o vocabulário usado para “nomear” os outros, assim como a doutrina elaborada para “explicar” os outros, assim como o comportamento adotado para “encontrar” os outros, etc. Para ser real e eficaz, essa visão “positiva” do patrimônio cristão de nossos irmãos separados deve ser traduzida em todas as abordagens concretas que empreendemos. Esse é o cerne desse novo estado de espírito, que uma comparação entre o ecumenismo e as missões pode iluminar em parte.
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Sabemos que o fiel está estabelecido na unidade da Igreja de uma maneira plena e perfeita em virtude de um triplo vínculo: sobrenatural, sacramental e comunitário. No entanto, como as três formas dessa unidade podem ter uma existência separada, a reflexão teológica, se deseja ser respeitosa da realidade eclesial de cada um, deverá introduzir certas distinções.
Assim é também no que diz respeito à obra missionária. Ninguém hoje em dia ousaria afirmar que os “infiéis” – chamemos assim as pessoas que, nos séculos passados, nem sequer tinham ouvido falar no nome de Jesus Cristo – são necessariamente condenados e que nenhum deles estará no céu. Ora, estar “no céu” ou “ser salvo” implica que se desfrutou, já aqui na terra, da participação na vida divina pela graça e pelas virtudes teológicas: não se pode participar do banquete celestial sem ter vestido a veste nupcial (Mateus, 22, 12). Se admitimos que onde o pecado abundou, a graça superabundou (Romanos, 5, 20), podemos então ver, no coração dessa imensa multidão humana chamada “pagã”, uma porção, conhecida apenas por Deus, onde a Luz está presente e onde o Amor está em ação. (E, a propósito, como estamos na era em que esses povos e nações adquirem uma independência que os torna “maiores” no âmbito político e social, seria desastroso se os católicos não renovassem sua visão teológica desses povos, para ver naqueles que, entre eles, estão “bem dispostos” uma comunidade “salva”, “vivendo no Amor divino”, “possuindo as arras do Espírito”, e “caminhando em direção ao Pai”, em vez de considerá-los como uma “terra pagã”, geralmente destinada, senão à condenação, pelo menos à condição paradoxal dos “limbos”). Mas então, perguntamos, se os “pagãos” podem chegar ao céu sem os missionários, para que serve enviar estes? E aqui parece desmoronar um argumento que se desenvolvia em favor das missões: salvar a alma dos infiéis. Levou meio século para difundir, primeiro nos meios teológicos e depois mais amplamente entre os fiéis, o sentido da obra missionária, o motivo específico da missão, a saber, esquematicamente: testemunhar a mensagem evangélica e estabelecer a Igreja, fundada na fé, a estrutura sacramental da Igreja, bem como seu Corpo social visível, porque esta é a condição “normativa” completa e ideal da religião de salvação instituída por Cristo.
Todo esse processo de mudança de perspectivas na teologia missionária é extremamente instrutivo para o problema ecumênico. Primeiro, os fiéis costumam considerar os “pagãos” como geralmente privados da graça santificante, isso devido a uma interpretação bastante simplista da teologia relacionada à necessidade da Igreja. Em seguida, quando lhes é dito que “a salvação dos infiéis” é possível, eles correm o risco de escorregar para o relativismo religioso: “então, todas as religiões são boas!”. Finalmente, quando lhes é explicado o que um “infiel” pode alcançar e também o que sempre lhe faltará, esses católicos gradualmente se acostumam a uma visão mais matizada, mais complexa, mas menos “fácil” do que aquela que inflamou sua juventude a favor dos “pagãos” dos países missionários.
Não esquecemos o problema ecumênico: ele é surpreendentemente semelhante ao que vivemos há meio século no campo missionário. Desta vez, trata-se de irmãos separados. Não apenas é possível para eles viverem a vida divina da graça e das virtudes teologais – como os “infiéis” – mas também, até certo ponto, a segunda forma de unidade, chamada “sacramental”, pela recepção válida do batismo, com todos os efeitos sobrenaturais ligados a esse sacramento, e às vezes também pela recepção válida do sacramento da Ordem. Até certo ponto também, eles professam a fé cristã, aderem à moral cristã, aceitam uma existência eclesial, etc… Mas então, ouve-se dizer novamente, se os protestantes podem ser salvos e até mesmo chamados de “cristãos”, se são validamente batizados, se creem no Evangelho e em Cristo, o que mais têm de importante a buscar ao se tornarem católicos, ao entrarem na Igreja católica? E assim também desmoronam alguns argumentos que foram apresentados contra os cristãos separados, como a necessidade de garantir a salvação dos “hereges”, colocando neste último termo toda a obstinação consciente que se atribui aos “hereges formais”, conforme a expressão comum dos teólogos.
Será necessário um período igualmente longo para integrar nos manuais comuns de teologia e na mentalidade de todos os fiéis uma visão mais precisa do que realmente é, do ponto de vista cristão e eclesiástico, um irmão separado, uma comunidade cristã separada. A saber: um organismo religioso orgânico, rico em elementos cristãos, mais ou menos completos, dependendo das diversas situações, dos protestantes, anglicanos, ortodoxos. Essa mudança de perspectiva já está em andamento; e podemos discernir nos fiéis um estado de espírito paralelo ao que diz respeito à teologia missionária. Primeiro, os fiéis consideram os irmãos separados como geralmente privados de tudo o que é “católico”, por uma interpretação estreita do Extra Ecclesiam nulla salus e de um Extra Ecclesiam nulla sanctitas relacionado a isso. Em seguida, quando lhes são descritos os diferentes elementos cristãos presentes e frutíferos nos irmãos separados, são tentados pelo relativismo eclesiástico: “então todas as ‘igrejas’ são iguais!”. Finalmente, quando lhes é explicado o que um cristão separado pode viver do cristianismo e o que sempre lhe faltará, esses fiéis se acostumam lentamente a uma visão mais matizada – especialmente quando se trata de comparar os católicos e os cristãos que aceitam uma estrutura eclesiástica episcopal – embora possam lamentar a época em que o catolicismo lhes parecia possuir “todo” o cristianismo, enquanto os outros apenas desfrutavam de um cristianismo “deturpado”, profundamente alterado, enfim, a ser rejeitado com veemência.
AS COMUNIDADES DE CRISTÃOS SEPARADOS
Se é relativamente fácil lembrar aos católicos o verdadeiro alcance teológico e pastoral da expressão atualmente comum “irmão separado”, por outro lado, é muito delicado abordar a questão do significado teológico das comunidades cristãs separadas, como tais.
Essas comunidades, enquanto tais, não são sem valor nem significado aos olhos do Senhor. Certamente, pode-se questionar, e legitimamente, onde se encontram a ortodoxia, o luteranismo, o anglicanismo como comunhões eclesiásticas universais. E, por uma questão de honestidade, devemos observar que alguns autores católicos não reconhecem nenhum significado teológico estrito a essas comunidades. No entanto, não se esgota o assunto ao provar que à ortodoxia ou ao luteranismo faltam as condições essenciais para serem universais. Concretamente, a Igreja de Deus se realiza e se expressa por excelência nas diferentes igrejas locais: “a Igreja de Deus que está em Corinto”, disse São Paulo (I Coríntios, 1, 2). Portanto, localmente, existem “comunidades”, na unidade visível de uma profissão de fé, pela recepção válida do batismo, com a prática dos sacramentos considerados cristãos, na adesão aos preceitos do Senhor e à disciplina moral evangélica, com toda a rede de atividades e obras que caracterizam toda comunidade cristã, e sob a direção pastoral de ministros legitimamente comissionados, pelo menos de acordo com uma certa concepção do ministério. É difícil negar a essas comunidades separadas todo significado teológico.
Elas podem ser consideradas como “meios de salvação”. Sem dúvida, a Igreja Católica é “o” meio de salvação instituído por Cristo. No entanto, “na Sua infinita misericórdia, Deus quis que, uma vez que se tratava de meios de salvação ordenados para o último fim do homem não por necessidade intrínseca, mas apenas por instituição divina, seus efeitos salvíficos pudessem também ser obtidos em certas circunstâncias, quando esses meios são apenas objeto de desejo ou voto”[13]. É através dos ritos sacramentais válidos (mesmo que haja um problema teológico quanto ao exercício legítimo do ministério) que os cristãos separados são gerados para a vida sobrenatural e podem desfrutar dos efeitos eclesiásticos do Batismo, do Matrimônio. É pelo sacramento da Eucaristia, da Penitência, da Unção dos Enfermos que os cristãos separados com um sacerdócio válido são feitos participantes do Espírito do Senhor e crescem em comunhão fraterna. É pelo ministério dos pastores que os cristãos reformados ouvem a Palavra de Deus e se unem ao sacrifício de louvor de sua comunidade. É através das obras multifacetadas de seus ministros que as comunidades cristãs separadas conservam sua pureza cristã e crescem na obediência à Palavra de Deus. Em suma, essas comunidades são, de fato, “meios de salvação”.
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Essas comunidades são “igrejas”? Às vezes, esse termo é entendido em um sentido “sociológico”. E nada impede que seja assim, contanto que não se deslize do plano sociológico para o plano teológico. Mas além disso? Muitos documentos eclesiásticos oficiais usam o termo “igreja” quando se referem às comunidades ortodoxas. Uma lista exaustiva foi até compilada[14]. O mínimo que se pode inferir dessas passagens é que seria surpreendente se as encíclicas e outros documentos pontifícios sempre utilizassem o termo “igreja” em um sentido puramente sociológico; seria muito mais provável admitir que esses documentos reconhecem uma certa realidade “eclesiológica” nessas comunidades, especialmente quando possuem uma estrutura sacramental significativa e um ministério sacerdotal válido. Falou-se até mesmo, em relação às diferentes comunidades ortodoxas, de “igrejas particulares” privadas da comunhão com a Sé Apostólica e dos benefícios de ordem doutrinária, espiritual e pastoral associados a essa comunhão.
As comunidades resultantes da reforma não são chamadas de “igrejas” – com algum significado eclesiológico – nos documentos eclesiásticos. Os cristãos separados, membros dessas comunidades, são muito sensíveis a essa recusa. Eles não entendem por que sua comunidade, um “meio de salvação”, não pode ser chamada de “igreja” em um sentido teológico válido. Ao dizer “válido”, eles não querem dizer que sua comunidade corresponde precisamente à noção de Igreja no sentido em que se realiza na comunhão católica romana, mas eles questionam se o termo “igreja” não pode ser aplicado em um sentido “próprio” a um círculo de cristãos mais amplo do que aquele que coincide adequadamente com a comunhão católica romana. Um sentido “amplo”, de fato, não é necessariamente um sentido “impróprio”. Francamente falando, deve-se reconhecer que teólogos católicos e reformados geralmente não abordam esse problema por esse viés. Portanto, neste domínio, é necessário continuar a ser cauteloso sobre o uso do termo “igreja” para designar as comunidades cristãs separadas, aguardando que, em futuras conversas, novos aspectos desse problema muito delicado sejam considerados.
[1] Cfr Docum. Cathol., 15 janvier 1961, c. 79-94.
[2] Art. cit., c. 85-86.
[3] Você encontrará uma exposição detalhada dessa questão em G. BAUM, L’unité chrétienne d’après la doctrine des Papes, de Léon XIII à Pie XII. Paris, Ed. Cerf, 1961, p. 66-85.
[4] R. F. ESPOSITO, Leone XIII e l’Oriente cristiano, Rome, Ed. Paoline, 1960, 744 p. Este trabalho foi composto com base em fontes, muitas das quais ainda são inéditas. Sua publicação seria uma grande honra para Leão XIII.
[5] “Eo vel magis quod non ingenti discrimine seiunguntur; imo, si pauca excipias, sic cetera consentimus, ut in ipsis catholici nominis vindiciis non raro ex doctrina, ex more, ex ritibus, quibus orientales utuuntur, testimonia atque argumenta promanus” (Leo XIII, Epist. Apost. Praeclara gratulationis, 20 Iunii 1894; cfr. ASS, XXVI (1893-1894), p. 707).
[6] “Praesertim cum apud illos populos tanta divinae Revelationis pars religiosissime asservata sit; et sincerum Christi Domini obsequium et in eius Matrem intemeratam amor pietasque singularis, et ipsorum Sacramentorum usus vigeat” (PIUS XI, Litt. Encycl. Rerum Orientalium, 8 sept. 1928; cfr. AAS, XX (1928), p. 287).
[7] “Itemque aestimatione debita ea omnia amplectatur oportet, quae Orientalibus gentibus fuere, peculiare veluti patrimonium, a maioribus tradita; simul quae ad sacram Liturgiam et ad Hierarchicos Ordines spectent, simul etiam quae ad ceteras christianae vitae rationes pertineant, modo eadem cum germana religionis fide rectisque de moribus normis penitus concordent” (PIUS XII, Litt, Encycl. Orientalis Ecclesiae, 9 Apr. 1944; cf. AAS, XXXVI (1944), p. 137).
[8] “… qui etiamsi eumdem Christum Iesum veluti Redemptorem agnoscant, et in christiano nomine glorientur…” (PIUS IX, Litt. Apost. Iam vos omnes, 13 sept, 1868; cf. Mansi, Amplissima Collectio Conc., t. 50, c. 203)
[9] “Scotorum nobiscum de fide dissidentium complures quidem Christi nomen ex animo diligunt, eiusque et disciplinam assequi et exempla sanctissima persequi imitando nituntur” (LEO XIII, Epist. Encycl. Caritatis studium, 25 Iullii 1898; cf. AAS, XXXI (1898-99), p. 11).
[10] “Iesum Christum Filium Dei eundemque Servatorem generis humani agnoscunt et fatentur” (LEO XIII, Epist. Encycl. Satis cognitum, 29 Iunii 1896; cf. AAS, XXVIII (1895-96), p. 738).
“… qui se Christi asseclas esse gloriantur, quique in ipso cum singulorum, tum humanae consortionis spem salutemque reponunt…” (PIUS XII, Litt. Encycl. Lux veritatis, 25 Dec. 1931; cf. AAS, XXIII (1931), p. 510).
“… sono a Noi vicini per la fede in Dio e in Gesù Christo” (PIUS XII, Nundus Radiophon. Nell’alba, 24 Dec. 1941; cf. AAS, XXXIV (1942), p. 21).
[11] Cfr Docum. Cathol., 15 janeiro 1961, c. 85-86.
[12] Ver Institution de la religion chrétienne, L. IV, c. 2, n. 11 e 12: Corpus Reformatorum, t. 30, c. 775-776 e t. 32, c. 612-614.
[13] Cfr Epist. S. Officii ad R. J. Cushing, Archiepiscopum Bostoniensem, se lê: “Quandoquidem ut quis aeternam obtineat salutem, non semper exigitur ut reapse Ecclesiae tamquam membrum incorporetur, sed id saltem requiritur, ut eidem voto et desiderio adhaereat” (The American Ecclesiastical Review, 127 (Oct. 1952), p. 308).
[14] Y. CONGAR, Chrétiens désunis, Paris, Ed. Cerf, 1937, p. 381-382 e Irénikon, 1950, p. 22-24.
FONTE: Chrétiens separes et elements d’eglise, Collectanea Mechliniensia, 47, 1962.