Não me é fácil participar de um debate no qual pode surgir imediatamente a suspeita de que se viesse a lançar condenações, abandonando-se assim o puro caminho da ciência. Tenho fundadas esperanças que a presente contribuição irá demonstrar que este não é o meu caso. Aliás este meu trabalho pretende apresentar uma crítica incisiva, coisa que também me resulta difícil, porque me sinto pessoalmente e de modo particular ligado a Hans Küng durante anos de serena colaboração, vividos juntos na faculdade de Tubinga. Por outro lado, seria insensato não entabular um debate simplesmente porque vêm à baila, com duro tom polêmico, decisões fundamentais: se o assunto é importante e palpitante, também para aqueles que estão fora da torre de marfim da elite erudita, tais reservas pessoais devem ser postas de lado. Junte-se ainda o fato de que, como se ouve em diversas partes, Küng se teria limitado a expor aquilo que uma grande parte dos teólogos católicos pensa em segredo (assim afirmou recentemente Walter von Loewenich em “Christ und Welt”); assim dizendo, obviamente é impugnada a honestidade da teologia católica, e o silêncio dos interessados projeta uma sinistra luz. O que há de verdadeiro nisto tudo é que Küng alentou um mal-estar largamente difundido e que a pergunta, por ele feita com tão picante agudez, a partir do Concílio fez-se sentir mais ou menos distintamente por toda parte na consciência eclesial: o que nos diz a história a esse respeito? Que dizer dos dogmas e do poder de formulá-los? Não seria então o caso de se dar o atestado de boa conduta aos esforços de interpretação que, através da gama de todas as problemáticas levantadas pela história, permanecem ainda apegados à intangibilidade de princípio do dogma, procurando justificá-la, e confessar ao invés com franqueza e livremente os erros da história, começando tudo de novo com coragem em qualquer ponto onde for necessário? Estas perguntas exigem uma resposta, mesmo que não tivesse aparecido a interpretação de Küng; o que Küng fez foi somente torna-las mais agudas.
Estes são, em poucas palavras, os motivos principais por que também resolvi abandonar a minha relutância com relação a este debate, aceitando, “no interesse do assunto”, o convite do compilador da presente série de artigos; assim presto a minha contribuição com algum pensamento sobre o tema. Podemos dar por pressupostas, óbvias e conhecidas, as costumeiras advertências sobre a inevitável fragmentariedade da contribuição, as quais omitimos a bem da brevidade; que, pois, um artigo prevalentemente crítico não desconheça contudo o lado positivo do livro de Küng, pode-se deduzir claramente de tudo quanto dissemos antes, quando afirmávamos que ele trouxe à baila de maneira explícita e inequívoca problemas que devem ser reformulados; denunciou nebulosidades na estrutura histórica e sistemática da teologia católica, as quais persistem de fato e até agora têm sido às mais das vezes contornadas e não enfrentadas de peito aberto. Isto é e continua sendo um mérito que não deve ser minimizado. Contudo, não posso deixar de considerar leviana a maneira como Küng pretende resolver o problema, pois enquanto dá a impressão de querer desfazer-se corajosa e lealmente de todos os rodeios para dizer de maneira menos complicada em que pé se acham as coisas, na realidade apresenta-se cheio de contradições e na prática não se torna menos tortuoso do que a teologia corrente contra a qual se lança ao campo de batalha. Antes de encarar diretamente a questão, numa primeira parte, faz três observações sobre coisas que poderiam parecer superficiais, mas que, na verdade, estão em relação estreita com o problema fundamental enfocado pelo livro.
I. Problemas preliminares: linguagem e estilo de argumentação
a) Observações sobre a linguagem
A primeira coisa que no livro de Küng me surpreende é a sua linguagem combativa, que em larga escala respira antes o clima da luta de classes, ao invés daquele da análise científica ou propriamente do “sentir com a Igreja”. Naturalmente, pode-se objetar que é a classe dominante que faz uso justamente de um truque dissimulatório para chegar a esta análise científica, pois com isto ela consegue manter os súditos em condições de inferioridade. Mas quando se marca com fogo o pensamento da comunidade familiar eclesial, apresentando-o como “imanente no sistema”, dentro do “sistema” eclesial, a objeção aqui citada, não menos imanente no pensamento sistemático da luta de classe, não é decerto apta a por em discussão este sistema. Agindo assim, não se pode sequer obviar o perigo de que a luta de classes venha a ser declarada dogmaticamente a única visão certa da realidade. Sob este aspecto, o problema linguagem tem ressonâncias muito profundas: cada “jogo de palavras” é expressão dum conceito da realidade, e a pergunta que logo nos aflora é indubitavelmente aquela de se saber se a Igreja representa de verdade uma unidade espiritual indivisivelmente ligada ao assunto por ela patrocinado ou se não constituiria, ao invés, um aparato de que o Evangelho precisa, sim, mas que é considerado unicamente do ponto de vista finalístico, de modo que possa ser montado ou desmontado a bel-prazer. Quem admite a primeira hipótese, não está obrigado a ter a Igreja concreta como absolutamente acima da crítica; considerará, antes, a crítica indispensável, mas procurará formulá-la, partindo de uma perspectiva completamente diferente. Por todas estas razões e também por motivos especificamente científicos, meus nervos não aguentam quando ouço aquele jargão tão conhecido que ecoa quando se fala de “medidas repressivas”,[1] quando se estigmatiza a “fidelidade acrítica à linha romana, alcunhada de ‘obediência’”,[2] quando se fala de “reação romana”,[3] quando se indigitam as declarações do magistério pontifício como “documentos facciosos, inspirados numa bisonha teologia e ideologia romanas”,[4] quando o autor afirma que a crise deverá ser enfrentada e superada “sem deixar-se influenciar por hipócritas exortações… a uma obediente ‘humildade’ e ‘amor’ à Igreja”,[5] quando exorta à “longa marcha através das instituições”,[6] quando, com uma ironia mordaz, diz causar-lhe admiração o fato de que o carisma da infalibilidade “tenha funcionado somente duas vezes em cem anos”,[7] e quando, finalmente (para não citar tantos outros exemplos), na conclusão do livro se afirma, de maneira completamente inesperada, que o teólogo deve fazer tudo “com modéstia e objetividade”.[8]
b) Observações sobre a argumentação histórica
Uma segunda crítica preliminar que levanto é contra as numerosas inexatidões históricas que abundam no livro. Também aqui, limito-me somente a alguns exemplos. É inexato querer assacar unicamente contra a obstinação romana a culpa do fato de que a plena “comunhão” com as Igrejas orientais não tenha ainda sido reconstituída;[9] na verdade existe aqui, também e justamente da parte das Igrejas orientais, toda uma série de reservas e de protelações, que não pode ser apagada com uma simples esponjada. Inexato é também que Leão I tenha sido o primeiro a arrogar-se o título pagão de “pontifex maximus”; na realidade, este título só foi introduzido na Renascença, em consonância com a universal tendência arcaizante do uso estilístico papal, enquanto que o título veterocristão de “Sumus pontifex”, bem distinto do precedente, é uma criação genuinamente cristã.[10] Inexato é igualmente aquilo que se afirma acerca da presumida definição dogmática de Bonifácio VIII.[11] Inexata é a asserção de que com a frase “Igreja romana”, da qual fala o Decretum Gratiani, se entendesse naquela época a igreja universal.[12]
Inexato é, outrossim, tudo quanto se diz sobre a posição assumida pelas igrejas orientais com relação aos concílios: a teoria dos eslavófilos, na qual se baseia Küng, foi decisivamente rejeitada pela dogmática ortodoxa.[13] Inexato, e portanto fácil de induzir a erro, é aquilo que escreve Küng: “No início dos concílios ecumênicos não sentíamos de fato ligados – como mais tarde – à letra por assim dizer inspirada do concílio. Existe uma variada mudança na terminologia e na conceituação…”[14] Se com isto tem a intenção de afirmar que foi possível introduzir novos conceitos, desenvolvendo ulteriormente o pensamento e retendo-o de outro lado, então não subsiste propriamente nenhuma diferença entre os velhos e os novos concílios. Se, porém, quer dizer que sempre se teve a liberdade de alijar a doutrina enunciada por um concilio anterior, substituindo-a por outra, então isto é absolutamente falso. Para nos convencermos do contrário, basta que se leia de novo o cânon 6 do Concílio de Éfeso: “O santo sínodo estabeleceu que a ninguém é lícito apresentar, ou escrever, ou compor outra fé (isto é, profissão de fé) afora aquela definida pelos santos Padres reunidos em Niceia com o Espírito Santo”.[15] A mesma coisa vem de novo frisada, com renovada energia, na introdução e na conclusão do texto da definição emanada em Calcedônia.[16] Inexato é também tudo quanto se diz a respeito da posição de Santo Agostinho com relação aos concílios ecumênicos;[17] inexato é finalmente o que Küng expõe, louvando-se num trabalho claramente unilateral de H. Sasse sobre a doutrina da inspiração em Santo Agostinho.[18]
Por amor à brevidade, interrompo aqui a enumeração dos exemplos; no decorrer de nosso exame daremos de encontro com outros.
c) “Romano” e “católico”
Uma terceira observação preliminar nos conduz diretamente ao âmago da questão levantada pelo livro. A meu ver, está errada a maneira como, no capítulo dedicado à “Humanae Vitae”, são contrapostos “teologia romana” e “sistema romano”, de um lado, e fé católica e teologia católica, de outro. Küng mostra aqui, de maneira totalmente convincente, como, com base no tipo lidimamente “romano” de teologia (como ela vem desenvolvida principalmente nas universidades pontifícias de Roma e pelos teólogos da Cúria), as afirmações da encíclica devem ser consideradas objetivamente infalíveis e equivalentes a um dogma. É preciso ainda convir com ele quando prossegue afirmando que esta é “a doutrina romana, ainda que talvez por isso não seja católica…”. Que aqui está diagnosticada uma crise, é coisa evidente:[19] justamente sobre esta é que se baseia a indiscutível seriedade do livro. Mas o lado desconcertante da ulterior argumentação desenvolvida por Küng consiste no fato de que ele, na prática, identifica este determinado tipo escolástico de teologia com a teologia católica em geral, desenvolvendo como que uma alternativa para ela, toda uma concepção que não só rompe os liames com um tipo de instrução escolar que ficou desta forma sempre circunscrito, mas justamente com toda a tradição católica. Com efeito, a maneira como Küng concebe a ideia do domínio espiritual, como define a “sucessão apostólica”, como analisa o problema do poder dos concílios, insurgere-se também propriamente e de maneira decidida contra a forma basilar da antiga Igreja, contra aquilo que, visto do ponto de vista histórico dos dogmas, representa o conteúdo do conceito “católico”. A referência à argumentação de Lutero em Leipzig segue-se aqui com toda razão. Mas Küng deveria ter presente a este respeito que, na circunstância de Lutero, Leipzig marca o ponto no qual não se limita mais (como havia acontecido nas primeiras escaramuças da polêmica com Eck) a contestar a linha pseudo-isidoriana do pensamento medieval em favor da tradição da igreja antiga, mas –acossado por Eck, porém na prática desenvolvendo coerentemente a sua colocação inicial – contesta também até a antiga Igreja, abrindo assim um caminho que não só teria interrompido as relações com a Idade Média e com os seus específicos desenvolvimentos, mas teria recomeçado tudo de novo, lá do fundo das raízes, conduzindo desta maneira para fora daquela Igreja que leva a denominação da Igreja da Tradição.[20] Ora, se Küng mantivesse coerentemente esta posição, que reaparece repetidas vezes na sua obra, então não consigo compreender como ele possa dizer, em outra passagem, que é e fica sendo um “convicto teólogo católico”.[21]
Aqui surge novamente um problema de linguagem, o qual porém encarna ao mesmo tempo um acicatante problema central da Igreja pós-conciliar. O conceito de “católico” designa uma entidade histórica, que se apresenta tão largamente aberta para o futuro até ao fim, mas que tem também contornos bem precisos (horos: linha de fronteira – não é por nada que os textos fundamentais dos antigos concílios assim a chamam!). Se assim não fosse, o adjetivo “católico” representaria um conceito absolutamente indiferente, e por conseguinte representaria um conceito despido de qualquer importância. Ora, não é lícito usar indiscriminadamente e sem limitações um conceito histórico, o qual, apesar de sua flexibilidade, tem contudo limites claramente demarcados; é uma simples questão de veracidade e tanto é verdade que vem posta com todo direito em destaque pelo próprio Küng como uma virtude fundamental cristã. Com efeito, podemos ser alemães, suíços ou franceses e colocarmo-nos contra toda a sua história (isto se baseia no fato de que estes conceitos exprimem uma origem e, em todo o caso, uma determinação jurídico-estatal, mas nenhuma convicção); mas não podemos, pelo contrário, querer ser católicos, e dar simultaneamente a este conceito um significado que insula fora da realidade já firmada do autêntico catolicismo. Certamente não constitui infâmia opor-se à entidade histórica da impostação “católica”: para tanto existem motivos. Mas é impossível dar a um conceito já fixado uma acepção privada completamente nova e, com o significado da linguagem, anular também a possibilidade de entendimento sobre a palavra. Para mim, este processo de dissolução de linguagem alinha-se entre os mais estranhos acontecimentos da evolução pós-conciliar. O termo “católico” vem sendo endossado por opiniões que nada mais tem a ver com a entidade histórica do catolicismo. Sorrateiramente, na consciência pública, o conceito de “católico” – o qual por sua natureza denota uma opção espiritual de fundo e um acervo de convicções a ele ligadas – vem sendo transformado no mesmo plano dos conceitos de alemão, francês, suíço, etc. Nisto se vê claramente apenas uma denominação a mais para determinada forma organizativa de um “cristianismo” entendido de uma forma mais genérica (cujo esvaziamento o antecede). No fundo, afirma-se que é indiferente a qual das variadas organizações religiosas se pertença; fica-se naquela em que se nasceu, procurando de vez em quando fazer dela o que se julga certo. Não quero dizer que em Küng as coisas cheguem a este ponto (e as explicações que faremos a seguir o demonstrarão); mas a arbitrariedade em que cai o conceito “católico”, quando é reivindicado ao mesmo tempo por várias partes e contestado em seus componentes históricos fundamentais, vem dar sem dúvida um decisivo impulso a esta tendência. Esta dissolução da história e a consequente desagregação da linguagem decerto não leva a nenhum progresso. Quero de novo frisar que dou decididamente razão a Küng, quando faz uma nítida distinção entre teologia romana (ensinada nas escolas de Roma) e fé católica: libertar-se das peias da imposição da teologia romana escolástica representa um dever, do qual segundo meu modesto parecer depende justamente a possibilidade de sobrevivência do catolicismo. Mas, sinto-me obrigado a contradizê-lo decididamente, quando ele, alinhando-se na disputa sustentada por Lutero em Leipzig, propõe como alternativa um conceito que tende a solapar até as decisões dogmáticas fundamentais da Igreja católica e a sua central tradição conciliar. Um caminho deste tipo não pode absolutamente ter a pretensão de apresentar-se com o sinal de “católico”.
II. A contradição do livro de Hans Küng
A tese de que a posição de Küng não só põe em discussão um dado tipo de escola, mas justamente a forma basilar do catolicismo, deve agora ser demonstrada com dados concretos, de fato. A este respeito, nas vigorosas afirmações do livro, apresenta-se uma bem nutrida série de provas documentárias; mas quando o lemos mais atentamente apercebemo-nos que este livro, na aparência tão simples e claro (como já acentuamos no começo), na realidade é muito mais sinuoso, até mais sinuoso do que aquela mesma teologia ensinada nas escolas e contra cujos rodeios e subterfúgios Küng se mostra tão indignado. A contradição fundamental, constituída pelo fato de que ele contesta a “forma mentis” católica e ao mesmo tempo arroga a mesma para si, no fundo continua repetindo-se na mesma forma de argumentação de que o livro se vale. Tentarei agora explica-lo mais de perto, analisando duas séries dos seus pensamentos.
a) “Leadership” e “Scholarship”
Uma das ideias-mestras da eclesiologia de Küng é a distinção entre ofício da pregação pastoral e magistério científico. O papa poderia, em seu ofício de pregação pastoral, exercer uma função altamente positiva, mas extrapolaria quando, em nome de toda a Igreja, quisesse decidir como se fosse o detentor do magistério científico.[22]
Todo concílio que no seu sentido próprio se propusesse a fazer teologia e não “só” pregação, estaria indo além da sua finalidade.[23] Paralelamente ao magistério do Papa, existiria o outro dos doutores, dos teólogos.[24] Com respeito a isto, surge a pergunta: “O presidente de uma Igreja não é também automaticamente o seu mestre?”. Esta pergunta é retórica; de acordo com Küng, cumpre distinguir entre magistério e ofício pastoral (“ou em breves palavas… ‘Direção da Igreja’”). Seria necessário opor-se a uma “limitação, canalização e monopolização dos carismas numa hierarquia de pastores”. O Novo Testamento não conheceria nenhum sistema baseado num homem só: cada um tem o seu carisma, e aquele dos mestres não seria um todo especial, por si só existente.[25] Como existe uma especial sucessão dos apóstolos nos vários serviços pastorais, assim existiria também uma sucessão dos profetas e dos doutores.[26] Na Igreja, bispos e párocos teriam a “Leadership” (isto é, a alta direção), enquanto que os teólogos teriam a “Scholarship” (isto é, guia no ensinamento). A relação entre as duas funções deveria ser esta: “Leadership by proclamation; scholarship by investigation”.[27] Em consonância com estes princípios, na descrição do futuro Papa diz-se que o serviço de Pedro poderá ser somente um primado pastoral, um serviço pastoral em prol da Igreja inteira.[28] Küng acha o modelo fundamental deste esboço na constituição da Igreja primitiva, na qual os doutores figuravam como estado social independente e depois também no emparelhamento da baixa Idade Média entre magistério dos teólogos (principalmente em Sorbona) e magistério do Papa. Em seguida voltaremos ao assunto; por ora, chamamos a atenção para a peculiar nebulosidade ao afirmar que o Papa, os concílios e os bispos não podem formular decisões sobre questões particulares técnico-científicas da teologia, e então neste caso se estará dizendo uma banalidade que por princípio ninguém contestará. Mesmo que a delimitação prática dos limites ao assunto se torne cansativa e debatida, seria preciso pronunciar-se sobre problemas concretos de delimitação, para poder fazer algo mais do que se reduzir apenas uma repetição de um princípio universalmente reconhecido; e aqui na prática haveria muito que fazer. Ou então (esta é a impressão de que todo o contexto nos dá), ao contrário, Küng pretende lançar-se muito além, interpretando a pregação da mensagem cristã num sentido unicamente edificante; e então acode logo a pergunta sobre que valor empenhativo possui (ela deve deveras ser guiada!) e assim nos achamos de novo diante do problema das relações entre teologia e ofício diretivo. Embora possa parecer a Küng, não é assim tão fácil separá-los uma do outro. Era teologia ou era pregação aquilo que o Concílio de Niceia enunciou em seu Credo, quando falou da consubstancialidade do Pai com o Filho? E quando aquele de Calcedônia acrescentou a igualdade essencial do Filho com a natureza do homem? Se era teologia, representava ou não uma caminhada para além dos limites? E se, ao contrário, se tratava de pregação, é válida ainda hoje ou já se perdeu toda e qualquer importância?
Como se vê, um conceito aparentemente claro, quando observado mais de perto, revela-se bastante obscuro; não vai além da mera enunciação da problemática levantada até agora. As coisas esclarecem-se um pouquinho, quando se observa o pano de fundo histórico que Küng tem diante dos olhos em sua argumentação. Podemos apreendê-lo naquilo que ele chama de constituição carismática da Igreja. Esta ideia possui por sua vez dois pontos focais. O primeiro visualiza-se na tese “Todo cristão está na sucessão dos apóstolos… A Missão e o serviço apostólico são levados avante primariamente por toda a Igreja”.[29] Por conseguinte, à pergunta: “Quem pode e deve propriamente ensinar na Igreja”, se responde: “Todo membro da Igreja, todo cristão pode e deve anunciar.”.[30] E ainda mais incisivamente: “…Somente aquele que, através do testemunho dos homens é instruído por Deus pelo Espírito Santo, pode retransmitir a mensagem com legitimidade. E esta é, segundo o testemunho do Novo Testamento, a posição de todo cristão”.[31]
Por detrás destas afirmações, apresenta-se novamente a ideia da Igreja vista como uma estrutura carismática dotada por princípio de uma equiparação jurídica de todos os carismas; daí se segue logicamente o protesto contra a “absorção” e a “monopolização” dos carismas por parte da única hierarquia episcopal.[32] Esta ideia da contraposição dos carismas culmina concretamente na acentuação que se dá à autonomia do carisma dos profetas e dos doutores em face daquele dos bispos e dos presbíteros. Como já foi apontado, aos doutores é atribuída também uma sucessão própria, que ombrearia em plena paridade de direitos com a sucessão na hierarquia.[33] Na verdade, também aqui as decisões e as antíteses apresentam-se claras só na aparência, porquanto páginas atrásse frisa, outrossim, que seria inadmissível que o poder dos serviços de presidência derivassem simplesmente do poder da comunidade;[34] também não está de forma alguma dito que, aos domingos, qualquer um possa subir ao púlpito, arbitrariamente, mas que aquele que está em casa, ou então onde quer que se encontre e esteja pregando “voluntariamente”, nem sempre será o pregador mais indicado para o público (!).[35] Além disso subentendem-se com isto os “dons” naturais de cada homem em particular? As aptidões profissionais? Ou, o que será? Bastante clara (ainda que não isenta de reservas) fica somente a tese de que todo cristão seria um sucessor dos Apóstolos; mas justamente esta tese está em contradição com toda a tradição da Igreja, com todas as provas do Novo Testamento, que não conhece absolutamente uma tal extensão do conceito de “Apóstolo”, mas considera o apostolado como uma função específica, à qual nem sequer de longe se aplica uma tal generalização, mesmo na geração imediatamente após àquela dos Apóstolos.
Assim sendo, para a tese sustentada por Küng, só restam em última análise duas possibilidades de interpretação, dentre as quais não se pode, com base em seu livro, saber com clareza qual delas perfiliar. Resta a possibilidade de reduzir tudo a postulados, os quais sempre existiram na teologia católica e que aqui seriam anunciados com uma linguagem particularmente drástica: a exigência de se respeitar o campo de manobras da teologia; a exigência de deixar projetarem-se nas comunidades paroquiais os diversos talentos de que são dotados os indivíduos; a exigência de fazer com que também leigos participem convenientemente no anúncio da mensagem cristã, permitindo-lhes que cheguem até a pregação; a constatação de que não poucos jerarcas são péssimos pregadores e rudes teólogos. Tudo isto, porém, já está cansado de ser sabido e vem sendo repetido desde há muito tempo e por muitos, de modo que resta perguntar se seria mesmo necessário o gesto impetuoso deste livro ou se realmente se pretende ir mais além. Não se estaria querendo, pelo contrário, por princípio, negar à hierarquia a faculdade de decidir de maneira vinculante sobre as coisas de fé e também, por conseguinte, sobre o objeto fundamental da teologia? E desta forma, não se estaria querendo favorecer em substância uma pastoral sem poder autoritário, de vez que todos possuem o mesmo idêntico poder? Baseados na colocação geral do livro, este parece ser a interpretação mais provável; mas o próprio Küng a contradiz, e por si mesmo se contradiz tão amiúde, que não podemos agir com segurança. A tendência para um igualitarismo de poder da comunidade carismática e com isto para uma ilimitada liberdade da teologia, bem como a tendência para a conservação das estruturas eclesiais basilares, andam lado a lado numa maneira nitidamente contraditória e desarmônica.
b) Dogma e infalibilidade
Uma posição ainda mais central é ocupada por uma segunda série de afirmações, que se digladiam numa contradição análoga à precedente, embora a meu ver a propensão geral do livro se apresente aqui como uma tendência inequívoca. Küng retoma com ênfase a tese de Barth: “Nemo infallibilis nisi Deus ipse”.[36] A pergunta retórica: “Um homem, que não Deus, é inerrante?”, aplica-se tanto ao Papa como aos concílios e fica resolvida negativamente tanto num caso quanto no outro.[37] Como consequência, fica declarado desta maneira que é “ilícito equiparar a verdade da Igreja à verdade de Deus”;[38] afasta-se a tese de que “a Igreja, o seu governo ou a sua teologia estejam em condições de fazer proposições, das quais se possa dizer que são a priori não suscetíveis de serem falsas;[39] e afirma-se finalmente que a infalibilidade diz respeito não à Bíblia e muito menos à Igreja, “e sim”, em sentido estrito, somente a Deus e à sua palavra.[40] Em todos estes casos aqui citados, o tom drástico da linguagem torna difícil entrever com exatidão a verdadeira substância daquilo que Küng tem a intenção de afirmar; com efeito, nem o Vaticano I, nem a tradição da Igreja tem afirmado que um homem seja inerrante. Contra a equiparação da verdade da Igreja à verdade de Deus, de uma vez por todas, pronunciou-se o IV Concílio de Latrão, em 1215, quando declarou que todas as afirmações humanas, à medida que são afirmações mediatas e traduzidas, são mais dissimiles do que semelhanças à realidade de Deus,[41] de modo que quanto a este particular nem tinha sequer cabimento um protesto de Küng. Até agora não consegui saber qual o significado exato da frase que diz “proposições das quais se possa dizer que são a priori não suscetíveis de serem falsas”. Se é que a infalibilidade se limita, em sentido estrito, somente a Deus e à sua palavra, isto é, ao “Evangelho” e o que significa a fórmula “em sentido estrito”: se esta fórmula quer designar a distinção essencial existente entre a certeza em matéria de fé conferida à Igreja e o fato de estar na verdade típica de Deus (Ele mesmo é a verdade), então nada mais de novo se está fazendo a não ser adentrar portas já abertas. É bem possível que aqui não se visasse a outra coisa, senão a enunciar lugares-comuns que são de ordinária administração, em qualquer teologia sofrivelmente séria?
Cumpre assim levar a pergunta mais adiante. Nas divagações de Küng, ocupa um largo espaço a tese de que nenhuma afirmação humana pode ser genuinamente verdadeira, mas sim que cada uma delas pode ser ao mesmo tempo verdadeira e falsa. A maneira como expôs este pensamento em seu livro, partindo da proposição “Deus existe”[42] e baseando-se na afirmativa “Ama o teu próximo como a ti mesmo”,[43] que ele aduz em sua resposta a Karl Rahner, não se pode senão qualificá-la de grosseiro sofisma. Ou se pretende simplesmente repisar na banalidade de que as afirmações humanas são distorcíveis em seu significado porque a linguagem humana não tem condições de exprimir limpidamente a verdade – e neste caso então o palavreado não teria razão de ser – ou se afirma que todas as assertivas humanas são fundamentalmente iguais frente ao problema da verdade e, neste caso, se estaria taxando de absurdo jogo de palavras não só o dogma como também a teologia. Com efeito, tanto na análise do preceito do amor ao próximo como naquela da proposição “Deus existe”, a argumentação de Küng parece ter a tendência de demonstrar que, no fundo, o contrário de tais afirmações é perfeitamente certo como o é a própria afirmação contrária e que, neste fato, se coloca exemplarmente em evidência a intrínseca natureza das proposições enunciativas humanas; mas, analisando de perto o conjunto do livro, esta impressão desfaz-se novamente, dando mais a sensação de que ali se quer apenas sublinhar drasticamente o caráter limitado das afirmações humanas.
Na mesma luz ambígua, vagueiam aquelas elucubrações nas quais Küng apresenta a “clareza” (doxa) como uma propriedade que só é inerente a Deus e que não se aplica às afirmações da Igreja. Se com isto pretendia dizer que a teologia dos tempos modernos às vezes se tem identificado perigosamente com a ideia cartesiana de clareza,[44] a sua tese seria ainda digna de ser levada em consideração; mas, na maneira como está, mais do que outra coisa parece um simples jogo de palavras que, entre outras coisas, peca notavelmente só pela falta de clareza.[45]A mesma observação aplica-se com relação à afirmativa de que crer quer dizer “… ainda que através de todas as proposições quiçá ambivalentes e quiçá em casos particulares até falsas, aceitar em toda a sua própria existência a mensagem, a pessoa anunciada: crer em Jesus Cristo”.[46] No caso de que com isto se queira afirmar que todas as proposições enunciativas são, em última análise, somente meios para exprimir a fé na pessoa, então estou plenamente de acordo com ele.[47] Se, ademais, se quer lembrar que todas as proposições não passam de pobres e desbotados reflexos e que, na esteira dos tempos, muitos enunciados tem sido falsos e continuarão sempre a ser falsos também no futuro, concordo ainda com ele. Mas se, pelo contrário, quer sustentar que na Igreja não se dão enunciados merecedores de crédito, então cumpre opor-se resolutamente a ele, porque em tal caso até a intencionalidade sobre a pessoa torna-se ilusória e falaz. Voltaremos ainda a discutir este assunto. Demorando-nos ainda um pouquinho no tema das “proposições”, vemo-nos obrigados a declarar ambígua também a argumentação bíblica de Küng. Que a São Paulo não interessavam primariamente as fórmulas,[48] é assunto tão claro, que nem me passa pela mente que alguém possa contestá-lo. Mas que São Paulo apreciasse decididamente também as fórmulas, pelo menos se evidencia de igual modo incontestável: a dramática introdução de 1 Cor 15 (v. 1s e notadamente v. 11); também as passagens de 1 Cor 12,3 e 1 Cor 1,10. A resoluta tomada de posição neste sentido que caracteriza a primeira Carta de São João é lembrada pelo próprio Küng. A inequivocabilidade da fé na univocidade da sua profissão expressa na palavra, constitui justamente a nítida linha de demarcação que separa a pregação neotestamentária da interpretação gnóstica, a qual repousa substancialmente sobre a ilimitada liberdade de interpretação da palavra e do pensamento, bem como sobre a impossibilidade de fixação linguística do pensamento.[49] A luta contra o gnosticismo tem sido, em substância, uma luta pela profissão de fé contra o arbítrio da interpretação, uma luta que visava a defender a possibilidade de afirmação da verdadeira e realmente empenhativa palavra; em sumam uma luta pela fé suscetível de extrinsecar-se em proposições. Como se vê, afloram aqui problemas velhíssimos bem como questões de princípio.
Conforme declara o próprio Küng, não se pode excluir “que também a Igreja, hoje em dia, não possa prescindir de tais fórmulas defensivo-definitórias para estabelecer uma linha de demarcação nos confrontos com o não-cristão, com a incredulidade e a superstição”.[50] Não quero me enveredar pelo emaranhado das polêmicas com que Küng, no presente contexto, em parte deforma a História e em parte, com as suas formulações ambíguas, faz supor haja adversários que na realidade nem sequer existem;[51] pelo contrário, limito-me à descrição positiva das proposições que Küng nos apresenta. De acordo com o que ele diz, elas são entendidas “como medida momentânea visando a reconstituir a paz na Igreja”.[52] Tais enunciados, ainda que tenham um caráter definitivo e obrigatório e portanto dogmático para esta situação, “não seriam contudo ‘formulações feitas para a eternidade’ (e quem alguma vez sonhou com isto?), mas representariam uma regulamentação da linguagem pragmática e condicionada à situação”.[53] Como consequência, afirma-se: “Aceitar a obrigatoriedade de proposições de fé não significa ainda dever aceitar a infalibilidade”.[54] Tais medidas seriam necessárias “quando por uma insanável confusão teológica e face a incuráveis teólogos confucionistas, o anúncio do Evangelho não esteja mais garantido”. Neste caso, os presidentes da Igreja, “decerto em colaboração com todos os teólogos de boa vontade, reunir-se-ão para dizer, com fé no Espírito de Deus, uma palavra clara sobre o que é e o que não é… autêntica fé cristã”.[55]
Estas teses soam estranhamente ingênuas. Quem seriam, pois, os “teólogos de boa vontade”? Por onde se poderia aferir essa boa vontade? Poderia haver teólogos que admitissem “não serem de boa vontade”? Muitos cristãos sérios hoje em dia são precisamente de opinião que atualmente existe essa situação descrita por Küng, em que “os teólogos não conseguem mais resolver os seus próprios problemas”, em que o anúncio do Evangelho não é mais garantido e para o que se faz mister uma “palavra clara”. Quem se vê sistematicamente constrangido a ouvir sermões em que se nega a ressurreição de Cristo ou então essa negação vem insidiosa e veladamente encoberta em palavras de um linguajar que não se pode tomar ao pé da letra, em que a Divindade de Cristo ou mesmo a Trindade de Deus já não parecem mais dignas de menção, esse certamente achará bem difícil poder sufocar esta impressão. As palavras graves do bispo Dietzfelbinger, pronunciadas no último sínodo da Igreja Evangélica Alemã, são de alcance para todos e não somente para a área protestante; devemos agradecer a providência pelo fato de que, aqui, um bispo luterano tenha prestado um grande serviço a toda a cristandade atormentada.
Mas, prescindido do fato de que, nas condições apresentadas por Küng, torna-se impossível uma palavra definitiva, pois as condições fazem absolutamente ilusório um postulado, o seu conceito de dogma afigura-se-nos inaceitável: contra tal conceito de dogma, por amor à verdade, temos que nos revoltar. Com efeito, uma obrigatoriedade de proposições que não repouse sobre a certeza da sua verdade, na prática poderia ser qualificada unicamente como medida coercitiva totalitária. Uma regulamentação empenhativa, mas somente pragmática da linguagem e, portanto, meramente condicionada à situação do momento, reduziria a Igreja a um puro e simples partido ligado às circunstâncias do momento, degradando-a ao plano chãmente funcional. Os dogmas possuem, em si, incontrovertivelmente, também um caráter de regulamentação da linguagem;[56] mas reduzi-los somente a isto significaria perder de vista a específica reivindicação de verdade encampada pela profissão de fé, desclassificando novamente a linguagem humana a instrumento pragmático apto, sim, a prestar um serviço ao ativismo humano, mas no fundo completamente surda em relação à verdade. Se afirmarmos como princípio a revisão da profissão de fé, em substância poremos por terra um dos pressupostos fundamentais da fé católica. Com efeito, para esta fé fica certo, firme e inquestionável que a única motivação legítima para a obrigatoriedade do dogma é a sua verdade certa e que esta sua verdade implica na sua estabilidade e na sua intrínseca irreformabilidade. Isto não significa que o dogma se coloque fora da linguagem humana, ficando assim imune da sua intrínseca comunicabilidade e limitação; não significa tampouco que o dogma não seja de qualquer modo suscetível de ulterior ampliação, compreensível mais a fundo e, por conseguinte, melhor exprimível também do ponto de vista linguístico. Significa, isto sim, que o dogma, embora na sua formulação morfológica humana cheia de defeitos, na sua impostação fundamental claramente discernível, é sempre verdadeiro porque, estando polarizado na verdade – Jesus Cristo – participa da perene estabilidade justamente típica da verdade.
No que diz respeito à definição do dogma (conforme Nolte), a afirmação de Küng é, portanto, bastante clara e inequivocamente alheia àquilo que se pode conciliar com o conceito de “católico”. Contudo, também, aqui fica bastante obscuro se estaria disposto a aceitar consequências. Há dúvida quanto a isto, se lermos a sua definitiva tomada de posição com relação ao Vaticano I.
Com efeito, à pergunta “Portanto, o Concílio errou?” ele responde muito hermeticamente: “Será melhor dizer que, face aos problemas fundamentais, se mostrou cego. Ao invés de concentrar-se nesta problemática fundamental, preteriu-a”.[57] Depois da tremenda tormenta de raios que Küng desencadeara antes contra este concílio, fica-se certamente desiludido com tal resposta. Quem sabe se o concílio era realmente “infalível”?
NOTA CONCLUSIVA
Quem ler atentamente o livro de Küng, para sua grande surpresa constatará como por detrás de sua dramática linguagem se esconde uma singular indecisão em desenvolver o assunto. Os contrastes são em parte retoricamente acentuados, pelo que se revestem dum valor enunciativo pouco real; e, em parte, quando vêm à ribalta antíteses reais, surgem então elas cautelosamente apagadas e atenuadas por asserções contrárias. Na prática é bastante difícil estribar-se nos “enunciados” em particular contidos no livro, porque aos mesmos vêm continuamente opostos outros “enunciados” contrastantes. Neste sentido, as hesitações de Küng com relação às “proposições enunciativas” encontram uma indubitável confirmação exatamente em seu próprio livro. Outrossim, é verdade que as proposições isoladas permanecem mais ou menos sempre ambíguas, mesmo que com isto não se desfaça a distinção entre verdadeiro e falso. Mas, acontece que nenhum dogma é uma proposição isolada. A teoria das proposições que a priori não podem ser falsas e a acentuação do problema das proposições fazem parte das grosseiras ênfases retóricas de Küng. Todo dogma está em particular relacionado com o significado unitário da profissão de fé, como interpretação e precisão deste todo, como “enucleação” que justamente como tal exige, porém, sistematicamente uma “reinserção” no todo.[58] A profissão de fé, por sua vez, diz espeito ao ato da profissão, visto com autêntica e vital realização humana, por meio do qual o homem se insere no contexto da comunidade de fé, enveredando com ela pelo caminho que conduz a Deus. Analisar esta dupla relação da única fórmula com todo o conjunto da profissão de fé e da profissão de fé como afirmação entendida como tal, representaria na verdade uma tarefa necessária e por enquanto amplamente em aberto, para se dar uma explicação melhor do alcance e ao mesmo tempo dos limites do dogma. As palavras duras e os gestos combativos do livro de Küng podem deveras representar um desafio lançado neste sentido; mas, elas mesmas assumem, aos ouvidos de um observador atento, o aspecto de uma trovoada fragorosa, cuja principal linha de força está no fato de poder ser ouvida.
[1] P. 62.
[2] P. 17.
[3] P. 17.
[4] P. 19.
[5] P. 22.
[6] P. 24.
[7] P. 116.
[8] P. 196.
[9] P. 18. Gostaria de mencionar a maneira como Küng adota com desenvoltura o jargão da divisão em “pré-conciliar” e “pós-conciliar” (p. exemplo, às páginas 11 e 16: pré-conciliar = autoritário). Eu pergunto que tipo de nova divisão da história da salvação está se agora introduzindo. Certamente, a verdade não começa a existir com o Concílio. Além disto, esta divisão é tanto mais absurda, quanto uma grande quantidade daqueles que a usam, jogam ao mesmo tempo resolutamente também o Concílio no cesto de papel, pois, focalizado em sua verdadeira luz, até o Concílio se torna estranhamente “pré-conciliar”, isto é, firme na linha contínua da transição.
[10] P. 91. Como desculpa para Küng, cumpre dizer que esta afirmação pode ser lida também nos autorizados historiadores de Direito, Feine e Gaudemet, assim como RGG V 461 (K. Aland) e no LThK VIII 613 (M. Bierbaum). Todavia, que a mesma seja falsa, isto é, que o título “Pontifex Maximus” tenha entrado no uso eclesiástico somente no século XV, enquanto que o título “Summus Pontifex” seja conotação cristã genuinamente nova, H. Marot o demonstrou exaustivamente em “La Collégialité et le Vocabulaire Episcopal du Ve au VIIe siècle”, em: Irénikon 37 (1964) 198-221.
[11] P. 95. A este propósito, confira a retificação também desta tese errada do LThK feita por K. A. Fink, em Theologische Quartalschrift 146 (1966) 590.
[12] P. 149. Para documentar a insustentabilidade desta asserção, para mim inconcebível partindo das fontes, julgo que sejam necessárias somente duas citações. No Decreto Gelasiano (Decr. Grat. d. 21 c. 3 – cfr. Denzinger-Schönmentzer 350), se diz: “Quamvis universae per orbem Catholicae Ecclesiae unus thalamus Christi sint, sancta tamen Romana Catholica et Apostolica Ecclesia nullis synodicis constitutis ceteris Ecclesiis prelata est, sed evangélica você Domini et Salvatoris nostri primatum obti nuit”. Na passagem d 22 c 2, tirando-a do Pseudo-Isidoro, Epist. Anacl. III 30-32 (= Hinschius 83 s) é referida a seguinte citação: “Sancta Romana et Apostolica Ecclesia non ab Apostolis, sed ab ipso Domino Salvatore nostro primatum obtinuit et eminentiam potestatis super universas ecclesias …” A decisiva contraposição entre “Romana Ecclesia” e “ceterae Ecclesiae” exclui categoricamente a interpretação de Küng.
[13] Pp. 164 ss. A par da Dogmática de Karmíris, mencionada pelo próprio Küng, cumpre aqui lembrar a sempre clássica obra de Chr. Andrutsos: Dogmatiké tés Orthodoxou Anatolikés Ekklésias (Atenas, 1956) 287-292 como também a dissertação dedicada justamente a este problema do qual metropolita St. Charkianakis: Perè tò aláthéton tés ekklésías em té orthodoxõ theología (Atenas 1965): aqui, às páginas 128-153, encontra-se um amplo debate travado com os eslavófilos, cujas ideias são avaliadas à luz da dogmática ortodoxa. É pena que este importante trabalho sobre o tema da infalibilidade, feito por um eminente ortodoxo, tenha passado até agora quase que desapercebido no Ocidente.
[14] P. 167.
[15] Conciliorum Oecumenicorum Decreta (Fribugo de Brisgóvia 1962).
[16] Ibid. 59, 16ss: … mèdéna pròs tòn plèsíon diaphónein em tois dogmas ités eusebeías, isto é, Jo 14,27 é interpretado como uma injunção do Senhor tendente a lembrar que na Igreja não é lícito desligar-se dos “dogmas da religião”; tomando isto como ponto de partida, bem de novo inculcado o Credo niceno e, às páginas 61,3ss, diz-se que este santo, grande sínodo ecumênico, o qual desde o começo sempre ensinou o “kérigma” imutável (asáleuton = immobilem), estabeleceu já de início que tón tié, hagion paterón tén pístin ménein aparegkheíréton (= a profissão de fé dos 318 santos padres permaneça intacta, irreversível). No final, é aplicada novamente à definição do Concílio, que frisa continuamente a própria fidelidade à mente dos Padres, a fórmula efesina da inalterabilidade: médenì exeinai prophérein é goun syggraphein é syntithénai é phronein … hetérós = a ninguém seja lícito falar, escrever, conceber, ensinar ou pensar de maneira diversa (p. 63,7ss). Se quiséssemos reconstruir uma linha de evolução, a mesma deveria correr na direção exatamente inversa àquela indicada por Küng: a inflexibilidade, inicialmente levada até ao apego à letra, foi aos poucos se atenuando, para dar lugar a uma visão menos apaixonada da historicidade da linguagem. Ter elaborado esta historicidade é um dos maiores méritos da escolástica, a qual, observada do ponto de vista das Igrejas orientais, ainda fortemente ligada aos antigos concílios, justamente por esta razão, tem assumido facilmente aos seus olhos uma coloração modernística. Decisivos têm sido a este respeito os comentários a Pedro Lombardo, Sent. III d 25 (sobre a questão: que coisa se precisa crer, até onde se havia chegado nas fases históricas anteriores e por que etc.). A importância da evolução do pensamento, que se foi extrinsecando em reelaborações sempre novas desta famosa “Distinctio” do Mestre, a bem da verdade, não tem sido suficientemente valorizada. Alguma coisa a propósito se pode encontrar em V. Marcolino, em “Das Alte Testament in der Heilsgeschichte” (Münster 1970).
[17] P. 169. F. Hoffmann, a quem Küng se refere para valorizar a sua interpretação do conhecidíssimo texto De bapt contra Don. 2,3,4, diz exatamente o oposto de Küng: “De modo que … também os concílios plenários seriam falíveis? Uma ideia deste gênero é insustentável…” (citado em: J. Betz-H. Fries, “Kirche und Überlieferung” (Friburgo de Brisgóvia 1960) 86s. – Cfr. Também o primoroso comentário de H. Bavaud em: “Oeuvres de S. Autustin 29”, Bibliothèque Augustinienne (Desclée 1964) 594-596, bem como as respectivas anotações contidas em Chr. Andrutsos, op. cit. (vd. nota 13), p. 289.
[18] P. 173. Cfr. a bibliografia relativa à concepção da Escritura e da Revelação eposada por S. Agostinho, em C. Andresen, “Bibliografia Augustiniana” (Darmstadt 1962) p. 69ss. e as bibliografias correntes em REA. Diga-se entre parênteses, que não está certa nem sequer a citação de Santo Agostinho com a qual Küng abre seu livro: deve tratar-se de De Trin I 3,5 ao invés de I 2,5.
[19] P. 49.
[20] P. 158. É bem verdade, Lutero, nos primeiros tempos, contrapõe a antiga Igreja aos “Decretos” (= ao Direito Eclesiástico medieval, de coloração pseudo-isidoriana), respaldando-se continuamente na Igreja grega (ed. Seitz, p. ex., p 56, 61, 70, 71, 83, 87, 96, 111 etc.); mas depois se afasta nos pontos decisivos da forma basilar na Igreja antiga. Pois, no decorrer do debate a “pedra” de que se fala em Mateus 16,18 não só se aplica a todas as Igrejas e à fé de todos os que creem (assim, p. ex., à p. 73), mas com ela é atribuída a todos o poder da “petra”, “… quia non in sua persona solum, sed omnium apostolorum et totius ecclesiae audivit: Tibi dabo claves etc” (p. 86). Com isto, o elemento específico do poder apostólico, que por autoconsciência da Igreja antiga é constitutivo, é identificado como poder da Igreja inteira (cfr. a afirmação de Küng: “Todo cristão é um sucessor dos apóstolos”); o que se extrinsica, então, é uma rígida funcionalização – inconcebível para a antiga Igreja e para a ortodoxia grega – de múnus hierárquico, que é totalmente identificado com a função da pregação da palavra: “apostolus nuncius verbi, et apostolatus… officium verbi, et sic… apostolatus et administrativo fere idem erunt” (p. 132) … “ministério dumtaxat verbi, quod est vere apostolatus et administrativo ecclesiae” (ibid.). Daí flui automaticamente a tese (novamente inconciliável com a Igreja antiga e com as Igrejas orientais) da falibilidade dos concílios, da palavra vista como única e suprema instância, em função da qual devem ser corrigidos até os próprios concílios. Cfr. p. 119: … “mihi reservo… concilium facere ius divinum nun possit…, ideo neque haereticum est, nisi quod contra ius divinum…; ideo concilium nihil ad propositum”. Segue-se, pois, uma radicalização da equivalência anunciada por Santo Agostinho “ecclesia universalis = numerus praedestinatorum”, no sentido de que é assim formulado um conceito de Igreja independente por princípio do múnus hierárquico (p. 87e 98). Frente a esta aberração, passa em segundo plano até a apregoada fundamental igualdade entre presbítero e bispo, contrária ao conceito da Igreja antiga (“idem est ergo presbyter qui episcopus”: p. 61). Interessante é ainda ver com que ardor Lutero se bateu pela ideia de um primado pastoral. Com efeito, ele fala de um papa que deveria ser um autêntico cura de almas, e acrescenta em seguida: “Non est dubium quin totus orbis oviis manibus et profusis lacrimis sit excepturus talem virum” (p. 116; cf. 140). Que em seguida Lutero, naturalmente sob a impressão dos inesperados desenvolvimentos que houve, por causa de suas ideias, tenha querido reentrosar-se sem tardança na estrutura da Igreja antiga, demonstra-o V. Pfnür, no artigo “Einig in der Rechtfertigungslehre?” (Wiesbaden 1970) 15-27.
[21] P. 21.
[22] P. 34.
[23] P. 67.
[24] P. 150: aqui essa afirmação é apresentada como tese histórica, a qual corresponde, porém, à convicção de Küng; cfr. as passagens referidas nas notas subsequentes.
[25] P. 188.
[26] P. 189.
[27] P. 194.
[28] P. 201.
[29] P. 65.
[30] P. 183. Cfr. p. 66: “Segundo o Novo Testamento, todos são chamados ao anúncio da palara”.
[31] P. 184.
[32] Pp. 66 e 108.
[33] Pp. 67 e 189. À página 67 Küng maneja com surpreendente desenvoltura o complicado texto da Didakhé. Para se constatar quão pouco são historicamente fundadas as suas afirmações a esse propósito, basta confrontar a cuidadosa análise que delas faz J. Colson em: “Ministre de Jésus-Christ ou le sacerdoce de l’évangile” (Paris 1966) 257-279, especialmente pp. 261ss. No que diz respeito ao problema ainda sempre insolvido do texto da Didakhé que possuímos, a sua data e a sua origem espiritual, diz E. Peterson, em “Fühkirche, Judentum und Gnosis” (Friburgo de Brisgóvia 1959) 146-182: “Na realidade, o texto de Bryennios me parece que apresenta uma tardia redação da Didakhé… O autor… deve ter-se interessado por certo conceito, talvez sectário, da Igreja e criou uma obra que é, sem dúvida, menos expressão de uma realidade do que uma descrição mediata, literária e utópica dos primeiros tempos da Igreja” (p. 181). Também as pesquisas neotestamentárias não devem ser minimizadas com tanta facilidade como faz Küng: refiro-me a esse respeito às importantes observações feitas por H. Schürmann, em “Traditiongeschichtliche Untersuchungen zu den synoptischen Evangelien” (Düsseldorf 1968) 331s.
[34] P. 187.
[35] P. 185.
[36] P. 196.
[37] P. 112.
[38] P. 114.
[39] P. 142.
[40] P. 178.
[41] P. 806. É conhecido que E. Przywara reservou para esta assertiva, a partir da qual ele confessa ter compreendido a “Analogia entis”, um lugar central no seu pensamento teológico; cfr. em resumo o seu artigo “Analogia entis”, no LThK I, pp. 468-473.
[42] P. 131.
[43] Cfr. Stimmen der Zeit 187 (1971) 43-64 e 105-122.
[44] Cfr. as notabilíssimas observações de E. Biser, em “Das Wahrheitsproblem der Glaubenbegründung”, em Hochland 61 (1969) 1-12, o qual chega não só a demonstrar a forte influência exercida sobre a impostação moderna da motivação da fé pelo ideal científico cartesiano, mas também a seguir o influxo das Meditações de Descartes até dentro do texto do Vaticano I (p. 5).
[45] Ver as explanações de Küng sobre “Clareza”: p. 137.
[46] P. 156.
[47] Permito-me reportar ao meu artigo: “Glaube in Zukunft” (Munique 1970) 34s. e: “Einführung in das Christentum” (Munique 1970) 52s.
[48] P. 119.
[49] Ótimas reflexões sobre o assunto podem ser encontradasem A. Adam,em “Lehrbuch der Dogmengeschichte” I (Gütersloh 1965) 307ss, especialmente a citação trazida por Mani à página 309. Poder-se-ia demonstrá-lo muito bem também analisando o importante texto gnóstico intitulado “Acta Joannis”, v. 94-105, ed. Bonnet, II, 1, pp. 197-203.
[50] P. 119. Infelizmente, Küng, em suas reflexões sobre as “proposições” sobre o “dogma” se valeu à farta da dissertação do seu aluno J. Nolte, no seu trabalho “Dogma in Geschichte” (Friburgo de Brisgóvia 1971), a que ele se refere explicitamente (p. 129 obs. 1). Apesar de toda a inteligência nele demonstrada, não posso senão considerar este trabalho completamente errado; espero poder externar meu parecer a este respeito, muito em breve, na Theologische Revue.
[51] Só como exemplo, aquilo que se diz à página 121 acerca de Newman e dos teólogos de Tubinga é grosseiramente tendencioso. A explicação da fé, mediante dogmas vinculantes, não é, de modo algum, um achado do século XIX, mas era praticada como tal, por exemplo, pelos Padres de Calcedônia; e, na teologia da Idade Média, tal reflexão é praticada regularmente, no âmbito do III Sent. d. 25. Por exemplo, na definição com vistas à kainophõnía é necessário acrescentar uma explicação, sobre cujo caráter vinculante o Concílio não tem dúvidas (Conciliorum… decreta, pp. 60ss). O fato de que São Tomás, a par do Concílio de Calcedônia, entenda o dogma em sentido defensivo, não impede de modo algum que o mesmo anuncie um conteúdo doutrinário positivo. Além disso, esta teoria do Aquinate representa somente uma das teorias sustentadas na Idade Média a respeito do dogma; junto com ela existem muitas outras concepções, as quais não interpretam de modo algum o dogma em sentido meramente defensivo. Cfr. sobre o assunto meu estudo “Offenbarung-Schrift-Überlieferung”, em Trierer Theologische Zeitschrift 67 (1958) 13-27. Interessantes a este propósito são também as ideias desenvolvidas por Anselmo de Havelberg em seus Diálogos; cfr. a edição de 1/1 de G. Salet em “Sources chrétiennes” (Nr. 118, Paris 1966), e especialmente também a instrutiva Introdução de Salet. Quando Küng, à p. 120, nos diz que “um definitivo juízo de condenação sobre homens… só cabe a Deus”, pode-se imediatamente revidar que o anátema não foi nunca concebido como um veredito.
[52] P. 120. Quando se diz que o anátema é uma medida que não deveria automaticamente se refletir sobre os descendentes inocentes das pessoas envolvidas, então toca-se por princípio num ponto muito importante: para eles, com efeito, aquilo que começou um dia como heresia, agora já é Igreja, na qual chegam à fé. O fato de que o Vaticano II – certamente tarde demais – tenha mudado a terminologia com relação aos protestantes e se tenha posto a falar agora de “communiones ecclesiales” (e até de “ecclesiae”) é compreensível justamente partindo deste princípio. Que depois a própria impostação da questão possa apresentar-se sob uma luz diversa parece claríssimo, se observarmos como hoje a cristologia das Igrejas não-calcedonianas é julgada substancialmente correta até pelas Igrejas orientais. Por outro lado, do ponto de vista prático, as coisas não são tão fáceis assim como Küng no-las apresenta. Com efeito, com as divisões cresce e avança muito além também a divergência na doutrina e na impostação constitucional: infelizmente, esta divergência não desaparece de uma só vez, pelo simples fato de que se declare já morta e sepultada a geração passada.
[53] P. 120.
[54] P. 122.
[55] P. 195.
[56] Cfr. K. Rahner, “Was ist eine dogmatische Aussage?”, em Schriften zur Theologie V. (Einsiedeln 1965) 54-81, especialmente pp. 67-72; J. Ratzinger,”Zur Frage nach der Geschichtlichkeit der Dogmen”, em O. Semelroth, Martyria Liturgia Diakonia (Miscelânea em honra de H. Volk) (Maiena 1968) 59-70; do mesmo autor, “Einführung in das Christentum” (Munique 1970) 67.
[57] P. 123.
[58] Cfr. H. U. v. Balthasar, “Einfaltungen” (Munique 1969).
FONTE
RATZINGER, J. Contradições no livro “Infalível?”, de Hans Küng. In: RAHNER, K (coord.) O problema da infalibilidade: resposta à interpolação de Hans Küng. [tradutor: Pe. Jesus Hortal, S. J.] São Paulo, Ed. Loyola, 1976. pp 92-112.