Contra a FSSPX
Original em inglês: https://contrasedevacantism.blogspot.com/2021/03/contra-sspx.html?m=0
Tradução: Gustavo Lopes
A legitimidade das consagrações de Écône de 1988 e, por implicação, o status da FSSPX, depende principalmente dos argumentos aduzidos contra a autoridade do Papa para instituir ritos litúrgicos inteiramente novos. Uma questão secundária é o decreto do Concílio Vaticano II sobre a liberdade religiosa. Supondo que a DignitatisHumanae seja herética, é duvidoso que isso tenha garantido as consagrações de 1988 e a continuada ordenação de padres. Para fins de argumentação, vou admitir a última e argumentar a favor da ortodoxia da Dignitatis Humanae.
Antes da promulgação do Codex Iuris Canonici de 1983, o cânon 953 do CIC de 1917 exigia a aprovação do Romano Pontífice para as consagrações episcopais. O cânon 2370 também infligia a pena de suspensão ipso jure (pela própria lei) àqueles que consagrassem bispos sem a aprovação papal. Em 9 de abril de 1951, o Santo Ofício mudou a censura para uma excomunhão lataesententiae reservada especialmente à Santa Sé.
O bispo de qualquer rito ou dignidade que conferir a consagração episcopal a um clérigo que não tenha sido nomeado pela Santa Sé, ou expressamente confirmado por esta, e também a pessoa que recebeu tal consagração, ainda que impelido por grande medo, estão sujeitos ipso facto à excomunhão reservada specialissimo modo à Santa Sé.
Além disso, aqueles que receberam a ordenação de bispos excomungados incorreram na suspensão ipso facto reservada à Santa Sé. Cânon 2372 do CIC de 1917 diz:
Aqueles que recebem ordens de alguém que está excomungado, suspenso ou interditado por uma sentença declaratória ou condenatória, ou de um apóstata notório, herege ou cismático, contraem ipso facto uma suspensão a divinis reservada à Sé Apostólica. Seja aquele que de boa fé for ordenado por qualquer das pessoas acima mencionadas, não terá o exercício da ordem assim recebida até que seja dispensado.
Embora as excomunhões tenham sido levantadas em janeiro de 2009 por Bento XVI, a suspensão a divinis permanece para todos os clérigos ordenados ilicitamente. Quanto à FSSPX em si, a Santa Sé suprimiu a sociedade em 1975 e não teve nenhum status canônico desde então. Em seu artigo “Chegando ao Estatuto Jurídico da Fraternidade Sacerdotal São Pio X”, Pe. John G. Lessard-Thibodeau observa: “Em 23 de julho de 1976, Lefebvre incorreu na pena de suspensio a divinis como consequência de cisma na forma de desconsiderar a supressão, contumácia pública persistente e ordenação de padres sem cartas dimissórias.” [1]
A FSSPX costuma apelar para o princípio da epikeia para argumentar a favor da consagração de 1988 e a continuação da ordenação de padres. Este princípio afirma essencialmente que, quando a lei da Igreja se torna prejudicial ao bem-estar geral da comunidade religiosa, essas leis não são mais vinculativas (pelo menos temporariamente). Como observam os canonistas John Abbo e Jerome Hannan,
Uma lei deixa de existir quando deixa de ser razoável; pois então todo o seu propósito de promover o bem-estar da comunidade é derrotado [anulado]. Isso ocorre de duas maneiras: quando a lei se torna inútil (negativamente) e quando a lei se torna prejudicial (positivamente). De ambas as maneiras, a lei cessa intrinsecamente. Se não for derrotado [anulado] todo o propósito, mas apenas o propósito parcial da lei, a lei sobrevive. Além disso, mesmo que o propósito da lei deva cessar absolutamente, mas apenas em relação a certas disposições da lei, esta sobreviveria nas partes ainda motivadas por um propósito adequado. [2]
No entanto, seu apelo à epikeia só seria razoável se a FSSPX pudesse demonstrar que o Novus Ordo Missae foi ilegalmente promulgado. Para estabelecer sua legitimidade, os adeptos da FSSPX argumentam que a promulgação do Novus Ordo Missae por Paulo VI viola diretamente o cânon 13 da sétima sessão de Trento e a constituição apostólica Quo Primum de Pio V. Aqui, irei abordar alguns dos argumentos aduzidos contra a licitude do Novus Ordo Missae.
1. Cânon 13 da Sétima Sessão do Concílio de Trento
A objeção mais comum levantada contra a licitude do Novus Ordo Missae é baseada no 13º cânone da sétima sessão de Trento, que proíbe os pastores de adulterar as cerimônias que cercam os sacramentos. O cânone diz:
Se alguém disser que os ritos recebidos e aprovados pela Igreja Católica, que se costumam empregar na administração solene dos sacramentos podem, sem pecado, ser desdenhados ou omitidos pelos ministros, segundo seu arbítrio, ou mudados em outros novos por qualquer pastor da Igreja: seja anátema. [3]
Geralmente há dois argumentos aduzidos a partir deste cânone: (1) o termo “pastor” se estende ao papa; e (2) que a Igreja não tem autoridade para instituir ritos litúrgicos inteiramente novos que envolvem a Eucaristia. Vou abordar a segunda objeção primeiro. O termo “ritos” refere-se a todas as cerimônias que envolvem os Sacramentos, não apenas a Eucaristia. Isso é evidente a partir do Antídoto de João Calvino,
O que eles querem dizer com os Ritos da Igreja recebidos e aprovados, todos sabem. Consequentemente, por meio dessa advertência, eles estabelecem quaisquer superstições que a presunção humana tenha superinduzido nas puras ordenanças do Senhor. O genuíno rito do Batismo é simples, e a administração da Ceia é simples, se olharmos para o que o Senhor ordenou.
Em outras palavras, o termo “ritos” no 13º cânone é equivalente ao termo mais genérico “sacramentais”. É claro que nenhum católico negaria que a Igreja tem autoridade para instituir sacramentais inteiramente novos. Tal seria uma violação do cânon 1145 do CIC de 1917. Em seu comentário sobre o cânon 1145, Pe. Charles Augustine observa,
Só a Sé Apostólica pode instituir os sacramentais, interpretar autenticamente os que estão em uso, ou abolir ou alterar alguns deles. Isto não é um dogma, visto que o Concílio de Trento não definiu este poder diretamente, mas apenas negativamente determinou que os ritos que acompanham a administração dos Sacramentos não podem ser arbitrariamente condenados, omitidos ou alterados. Nosso texto reivindica o poder exclusivo de instituir os sacramentais para a Santa Sé. Isso não é surpreendente se nos lembrarmos do ditado geral: Lex orandi, lexcredendi. Os sacramentais são a expressão viva da fé e da esperança que há na Igreja. No entanto, isso não significa que nenhum sacramental foi instituído sem a concordância da Sé Apostólica. Pois mais do que um deles, especialmente os ritos que envolvem a administração do Baptismo, são indubitavelmente de origem apostólica. Isso explica por que a Santa Sé sempre se recusou a se afastar de práticas como unções, saliva, respiração, mesmo entre as nações que se opunham a esses ritos. Somente o poder legislativo e ministerial da Igreja pode declarar quais ritos, por seu sinal externo, significam a bênção ou o favor que Deus deseja conceder. [4]
O teólogo dogmático Pe. Joseph Pohle também entende o termo “ritos” no 13º cânon como se referindo a sacramentais. Ele escreve,
Tese IV: Embora a Igreja não tenha o direito de instituir os sacramentos, ela possui o poder de instituir sacramentais
Esta proposição pode ser qualificada como “certa”
Prova. Nas três teses anteriores explicamos o que a Igreja não pode fazer em relação aos sacramentos. A presente define o que ela pode fazer.
Existem dois tipos de sacramentais: (1) como os que acompanham a administração dos Sacramentos (por exemplo, os exorcismos pronunciados no Batismo, o uso de sal, a unção da testa), e (2) aqueles que podem ser usados independentemente dos sacramentos e têm quase matéria e forma próprios (por exemplo, as diferentes bênçãos eclesiásticas). Os primeiros são chamados de cerimônias sacramentais, os últimos sacramentais no sentido estrito do termo.
1. Que a Igreja tem o poder de instituir cerimônias ou ritos sacramentais, fica claro a partir da seguinte declaração do Concílio Tridentino: “Se alguém disser que os ritos recebidos e aprovados pela Igreja Católica, que se costumam empregar na administração solene dos sacramentos podem, sem pecado, ser desdenhados ou omitidos pelos ministros, segundo seu arbítrio, ou mudados em outros novos por qualquer pastor da Igreja: seja anátema.”
a) Como prova deste dogma, o Santo Sínodo dá o exemplo de São Paulo, que conclui as suas observações sobre a Eucaristia com estas palavras: “E o resto porei em ordem, quando vier”. Há abundantes evidências patrísticas da antiguidade das cerimônias sacramentais empregadas pela Igreja. A maioria dos que estão em uso pode ser rastreada muito além do século IX, como mostra uma olhada no Sacramentário de Gregório Magno e nos escritos de RhabanusMaurus, Alcuin e Isidoro. Nos primeiros dias do Cristianismo, diferentes cerimônias estavam em voga, como pode ser deduzido das obras de Tertuliano.
O argumento teológico para nossa tese repousa principalmente no fato de que a Igreja possui poder legislativo para ordenar tudo o que ela julga adequado para embelezar seus serviços e promover a salvação das almas. As cerimônias sacramentais servem a ambos os propósitos, dando expressão visível às idéias que fundamentam os mistérios sagrados da religião, e estimulando, nutrindo e aumentando a devoção dos fiéis. [5]
Na verdade, o Concílio de Trento afirmou explicitamente sua autoridade para instituir liturgias inteiramente novas em torno da Eucaristia na vigésima primeira sessão. O Concílio declara:
Cap. 2. O poder da Igreja sobre a
administração do sacramento da Eucaristia
<O santo Sínodo> declara ainda que a Igreja teve sempre o poder de, na administração dos sacramentos, salva a substância, estabelecer ou mudar o que julgasse mais conveniente à utilidade de quem recebe ou à veneração dos próprios sacramentos, segundo a variedade de situações, tempos e lugares.
A frase “salva a substância” refere-se à forma sacramental da Eucaristia. Isso é evidente na declaração do Catecismo de Trento,
A forma a ser usada (na consagração) deste elemento, evidentemente consiste naquelas palavras que significam que a substância do vinho se transformou no sangue de nosso Senhor. Visto que, portanto, as palavras já citadas declaram isso claramente, é claro que nenhuma outra palavra constitui a forma.
Isso também enfraquece a primeira objeção a respeito do termo “pastores” se aplicando ao papa. Claramente, o cânon 13 estava proibindo os padres e bispos locais de interferir nas cerimônias litúrgicas que envolvem os sacramentos. Em nenhum lugar ele nega que a Autoridade Suprema o faça. Para interpretar corretamente o 13º cânone, precisamos entender seu contexto histórico e propósito. De acordo com o teólogo do final do século 19, Pe. John Hogan (1829 – 1901), o 13º cânone foi emitido pelo Concílio para abordar as objeções protestantes sobre a autoridade da Igreja não apenas em instituir novos ritos litúrgicos, mas também sua capacidade de vincular as consciências em questões litúrgicas. Ele escreve,
O protestantismo, como sabemos, foi uma revolta contra toda a organização e vida exterior da Igreja. Seus ritos sacramentais foram quase inteiramente postos de lado, com suas doutrinas subjacentes, pelos primeiros assim chamados reformadores; e no que eles retiveram deles, o belo e instrutivo cerimonial dos tempos cristãos deu lugar a um ritual frio e sem vida. Foi em oposição a isso que o Concílio de Trento formulou o 13º Cânon de sua 7ª Sessão. [6]
Pe James O’Kane (1825 – 1874) acrescenta: “É evidente que manter a proposição condenada pelo cânon de Trento seria implicitamente sustentar que a Igreja não tem poder para instituir cerimônias ou exigir sua observância sob pena de pecado, que é um erro de fé.”[7] Para qualquer um que conteste este ponto, eu submeto a você nada menos que a interpretação de São Roberto Belarmino. Ele escreve,
As cerimônias instituídas pela Igreja não podem ser omitidas sem pecado, mesmo sem escândalo. Isso depende de outra questão, se as leis eclesiásticas obrigam à consciência. Discutimos sobre esse ponto em Sobre o Pontífice Romano, livro 4, cap.15 e segs. A razão particular é de Paulo em Romanos 13, 1-2, “não há autoridade que não venha de Deus; as que existem foram instituídas por Deus. Assim, aquele que resiste à autoridade opõe-se à ordem estabelecida por Deus; e os que a ela se opõem atraem sobre si a condenação”. E no versículo 5, “Portanto, é necessário submeter-se, não somente por temor do castigo, mas também por dever de consciência”. Tal ensino, mesmo que o Apóstolo o aplique aos príncipes em tempos específicos, quando ele acrescentou no versículo 4, “mas, se fizeres o mal, teme, porque não é sem razão que leva a espada;” não obstante, o ensino geral é sobre todos aqueles que têm poder, como Calvino concede em The Institutes, 4,10 § 5, e é claro por essas palavras no versículo 1, Não há autoridade que não venha de Deus. Pois essa mesma proposição é equivalente a isso: Todo o poder vem de Deus. Além disso, na Igreja não se pode negar que há um certo poder daqueles que foram colocados antes dos outros, visto que nas Escrituras está escrito: “aquele que preside, presida com zelo” (Romanos 12, 8), e “Eis por que eu vos escrevo de longe para que, estando presente, não tenha de usar de rigor, em vista do poder que o Senhor me conferiu.” (2 Coríntios 13, 10). Ou ainda: “obedecei aos que vos guiam” (Hebreus 13:17). Portanto, ocorre que aquele que não preserva as leis da Igreja pecará em consciência. Todas essas coisas mostram isso: “Eles resistem às ordens de Deus; eles adquirem condenação para si mesmos, ficam sujeitos à necessidade; não apenas por causa da ira, mas também por causa da consciência.” (Ver loc. Cit.). Mas, em particular, que as cerimônias não são todas de livre observância é provado pelo fato de que graves conflitos surgiram na Igreja por causa das cerimônias, e as leis foram impostas sob as mais severas penalidades em relação às cerimônias, e por fim foram considerados hereges quem não obedeceu. Tais são todos os argumentos manifestos de que este assunto não é livre: pois os conflitos não surgem de assuntos que são livres.[8]
Na seção citada acima, Belarmino cita seu tratado Sobre o Romano Pontífice. Para o bem da posteridade, reproduzirei a seção relevante aqui:
Até agora provamos que o Sumo Pontífice é um juiz das controvérsias que surgem na Igreja e que é certo e infalível em seu julgamento. Agora vem a terceira pergunta(questão):
Se o Sumo Pontífice pode obrigar os fiéis a acreditar ou fazer o que ele julgou. A mesma coisa é entendida sobre outros bispos, exceto por proporção. Mas antes de entrarmos em nossos argumentos ou nos de nossos adversários, valerá a pena registrar algumas coisas sobre o estado da questão, bem como a opinião de nossos adversários.
Portanto, primeiro deve-se notar que não falamos do Papa como um príncipe temporal de uma certa província. Desta forma, é certo que ele pode impor leis a seus súditos e também recorrer a eles com a espada. Os hereges não negam isso com respeito ao arranjo em que o Papa é um príncipe temporal, embora neguem que seja adequado para ele exercer tal regra. Falaremos mais sobre esse assunto no próximo livro. Portanto, agora tratamos apenas do Pontífice porque ele é o Pontífice de toda a Igreja Católica. Além disso, perguntamos se ele pode ter verdadeiro poder sobre todos os fiéis em assuntos espirituais, assim como os reis temporais têm em assuntos temporais, na medida em que, assim como eles podem fazer leis civis, também o Papa pode fazer leis eclesiásticas verdadeiramente obrigatórias em consciência, bem como punir os transgressores com penas espirituais, pelo menos, como excomunhão, suspensão, interdição, irregularidade, etc. Trataremos do poder temporal ou civil que o Papa tem direta ou indiretamente no livro seguinte. No momento, estamos discutindo apenas o espiritual ou eclesiástico, cujo fim é a vida eterna. [9]
…
Por último, deve-se notar que agrada a muitos hereges a opinião que ensina que não há autoridade na Igreja para fazer leis que obriguem os fiéis em consciência. Assim anteriormente os valdenses pensavam, como atesta Santo Antonino. Marsilius de Padua ensinou a mesma coisa em um livro intitulado Defensor da Paz, contra o qual Albert Pighius escreveu; John Wycliffe ensinou a mesma coisa, de onde se concluiu que os decretos dos papas eram apócrifos, e apenas homens estúpidos se dedicaram a reconhecê-los. Jan Hus ensinou mais tarde a mesma coisa, como John de Wessalia observa em um pequeno livro sobre sua condenação que foi feito em Moguntium, em 1479, o primeiro dos quais era que os prelados da Igreja não podiam fazer uma lei que obrigasse na consciência, mas só poderia exortar os homens a guardar os mandamentos de Deus.
Posteriormente, em nossos próprios tempos, todos os luteranos e calvinistas ensinam a mesma coisa. Sobretudo Lutero em seu livro Sobre o Cativeiro Babilônico, no capítulo sobre o Batismo: “Com que direito o Papa constitui leis sobre nós? Que lhe deu o poder de colocar cativa a liberdade que nos foi dada pelo Batismo, quando nem o Papa, nem um bispo, nem qualquer homem deveriam ter o direito de constituir uma sílaba sobre um verdadeiro cristão, a menos que isso fosse feito com o consentimento do mesmo.” Ele ensina coisas semelhantes em seu livro sobre a liberdade cristã, que IodocusClicthouseus refuta, bem como John de Rochester [Fisher] em seu ataque à afirmação do artigo 27. No entanto, Lutero o trata com mais veemência em sua explicação da visão de Daniel, e para que ele pudesse condenar as leis eclesiásticas até mesmo por seus atos, no ano de 1520 ele queimou publicamente todo o corpo da lei canônica, como John Cochlaeus escreveu na vida de Lutero.
Melanchthon ensina a mesma coisa na Confissão de Augsburg e em sua defesa da mesma; o mesmo acontece com Calvino; a opinião de todos eles é quase a mesma e pode ser reduzida a certos títulos.
1) Eles ensinam que os bispos e, portanto, até o Papa podem constituir uma certa ordem na Igreja para preservar a disciplina útil, como definir em que dia os homens devem ir à igreja, quem deve cantar os Salmos e como, ou as Escrituras que devem ser lido na Igreja, etc.; mas ainda assim, tais constituições não obrigam em consciência, exceto em razão de escândalo, de forma que alguém seja livre para guardar ou não guardar essas leis de uma maneira sem escândalo para os outros. Mas o Papa ou os bispos não podem constituir nenhuma lei verdadeira que não esteja expressamente nas Escrituras.
2) Eles ensinam que não apenas o Papa ou os bispos não podem fazer uma nova lei, mas também não podem obrigar os cristãos a guardar a lei de Deus por meio de uma ordem da autoridade. Mesmo que ocorra na forma de julgamento no procedimento contra os transgressores, eles ainda podem apenas recorrer à exortação, conselho e repreensão para fazer os homens preservarem a lei de Deus.
3) Eles ensinam que embora haja um poder de excomunhão na Igreja (ou seja, de rejeitar homens incorrigíveis do corpo), no entanto, eles não significam que esse poder está no Papa ou no bispo em si, mas apenas no Igreja, que para eles significa o corpo de ministros junto com o consentimento do povo. Isso não deveria ser uma surpresa, já que eles negam que o Papa é maior do que um bispo, ou que um bispo é maior do que um padre em relação à autoridade. Além disso, eles nada concedem aos sacerdotes, exceto que eles podem pregar e ministrar os sacramentos aos homens sobre os quais um magistrado secular comanda.
Mas na Igreja Católica sempre se acreditou que os bispos sobre suas dioceses (assim como o Pontífice Romano sobre toda a Igreja), são verdadeiros príncipes eclesiásticos, que podem impor leis que obriguem em consciência, julgar em casos eclesiásticos, e longamente, punir pelo costume de outros – tudo sem o consenso do povo ou o conselho dos sacerdotes. Provaremos brevemente essas coisas. [10]
O 13º Canon nunca foi entendido como proibindo o Sumo Pontífice de alterar ou criar inteiramente novos ritos litúrgicos. Por exemplo, observa Santo Afonso de Ligório em sua História no Concílio de Trento,
Não há dúvida de que a Igreja tem o poder de estabelecer e mudar os ritos ou cerimônias aplicados na administração dos Sacramentos, como o próprio Concílio de Trento ensina (Sess. 21, cap. 2). No entanto, este poder pertence apenas à Igreja, razão pela qual proíbe qualquer outro de mudar os ritos, caso contrário, como diz Santo Agostinho (Epist. 54, alias 118) coisas novas constituídas pelos ministros perturbariam a ordem e a paz comum da Igreja. [11]
Da mesma forma, o teólogo italiano Giovanni Perrone (1794-1876) escreve,
Esta definição afeta diretamente o poder pelo qual a Igreja foi instruída por Cristo para instituir aquelas coisas que dizem respeito à administração dos Sacramentos, exceto por sua substância [isto é, forma dos sacramentos], precisamente como este mesmo Concílio declarou (Sess. 21 cap. 2) dizendo, “Além disso, declara que este poder sempre esteve na Igreja, que, na dispensação dos sacramentos, sua substância sendo intocada, pode ordenar, ou mudar, o que quer que julgue mais conveniente, para o lucro daqueles que recebem, ou para a veneração dos ditos sacramentos, de acordo com a diferença de circunstâncias, tempos e lugares.” É por isso que, da mesma forma, desprezar os ritos aprovados e recebidos da igreja ou omiti-los a seu bel-prazer, ou transformá-los em novos ritos por sua própria autoridade privada, é também negar o poder conferido à Igreja por Cristo, o que não pode ser feito de todo. [nota de rodapé 3] “(171) que a igreja foi equipada com este poder por Cristo é certo: 1) do apóstolo [Paulo], em 1Cor 11, quando ele escreveu muitas coisas sobre o sacramento da eucaristia, e ele conclui no versículo 34, ‘o que resta, colocarei em ordem quando eu vier’.”
Nota de rodapé 3:
Devemos notar aqui tanto a respeito disso como a respeito de algumas outras teses desse tipo, na medida em que são sobre a fé, tanto também contêm um fato unido a um direito. Um fato na presente proposição é que os ritos ou outras cerimônias que são assumidos na administração solene dos Sacramentos; certamente estes não são instituídos divinamente nem contidos na revelação divina. Direito é o poder conferido à Igreja por Cristo para estabelecer ritos ou cerimônias desse tipo; além disso, este direito é garantido pela revelação divina. Além disso, negar, desprezar ou ensinar que esses ritos podem ser omitidos sem pecado é, pelo menos indiretamente, atacar o próprio direito que é adequado à Igreja pela instituição divina; conseqüentemente, isso é contra a fé. [12]
2. Quo Primum
Os neotradicionalistas também citam com frequência a constituição apostólica de Pio V, Quo Primum (1570), na tentativa de debilitar a licitude do Novus Ordo Missae. Geralmente há dois argumentos aduzidos de Quo Primum: (1) Pio V afirma explicitamente que o Missal Romano não pode ser alterado; e (2) que suprimir costumes imemoriais é uma injustiça. Com relação ao primeiro ponto, Pio V escreve,
Ordenamos e decretamos que nada seja acrescentado ao Nosso Missal recentemente publicado, nada omitido dele, nem qualquer coisa seja mudado nele, sob pena de Nosso desagrado.
Em seu artigo, “Quais mudanças foram feitas no Missal Tridentino antes de 1962?” (What changes were made to the Tridentine Missal before 1962?) Pe. Aaron Williams lista várias mudanças que foram feitas no Missal Romano após a promulgação do Quo Primum. Ele observa,
Embora o Papa São Pio V, em sua constituição apostólica Quo Primum, prometesse a ira dos Santos Pedro e Paulo sobre qualquer um que tentasse mudar o MissaleRomanum de 1570, o Missal Tridentino de fato sofreu muitas alterações menores (e às vezes até maiores) antes de atingir a forma de 1962 em uso hoje na Forma Extraordinária do Rito Romano.
Em 1605, o papa Clemente VIII reconheceu que, em meros trinta e cinco anos desde a publicação do MissaleRomanum, muitas mudanças editoriais foram feitas por editores independentes sem permissão, particularmente em relação a certas antigas citações das escrituras das versões em latim antigo. Os editores estavam reproduzindo esses textos de acordo com a edição oficial da Vulgata. O Papa Clemente ordenou que esses textos fossem restaurados às suas versões mais antigas. No entanto, em 1634, o Papa Urbano VIII reverteu essa decisão ordenando que os textos das escrituras no Missal refletissem os da edição da Vulgata. Embora nenhuma alteração de rubrica tenha ocorrido, ele também ordenou que algumas rubricas fossem reformuladas para serem mais compreensíveis.
Nenhuma mudança adicional foi feita no próprio Missal até 1884, quando o Papa Leão XIII ordenou uma revisão do calendário. Naquela época, o calendário estava ficando tão cheio de festas que muitos santos estavam sendo totalmente omitidos – sendo substituídos por outras festas no mesmo dia. Além da retirada dessas festas, Leão XIII também ordenou a restauração de rubricas que, embora nunca mudadas nas versões oficiais, estavam sendo alteradas nas impressões locais, particularmente na França e nas regiões circunvizinhas. Leão XIII também estabeleceu o costume das tradicionais “Orações após a Missa rezada” que, embora não fizessem parte do próprio Missal, eram obrigatórias.
Em 1920, o Papa Bento XV ordenou uma grande revisão do Breviário e uma alteração considerável do Missal, que foi idealizada pelo Papa São Pio X, embora nunca iniciada antes de sua morte. Esta revisão incluiu o acréscimo de várias festas e uma reforma das rubricas do calendário, particularmente no que se refere à prática das comemorações sazonais e à restauração dos dias feriais da Quaresma. Outras festas foram acrescentadas no século 20, incluindo Cristo Rei no último domingo de outubro (1925), a elevação da Festa do Sagrado Coração à de primeira classe (1932) e a Missa Votiva de Nosso Senhor Jesus Cristo Sumo e Eterno Sacerdote (1935).
O Papa Pio XII fez talvez as mudanças mais significativas com sua reforma da Semana Santa em 1955, mas ele também introduziu várias outras festas, incluindo a Assunção, o Coração Imaculado de Maria e São José Operário. Também foi dada permissão para o uso de hinos vernáculos durante a missa rezada e a leitura das leituras em vernáculo. E, é claro, em 1962, o Papa São João XXIII emitiu uma nova edição do missal que acrescentou o nome de São José ao Cânon Romano e removeu o termo ‘pérfido’ da intercessão da Sexta-feira Santa pelos judeus. [13]
Deve-se notar também que Pio V emitiu proibições semelhantes contra fazer alterações no Breviário em sua bula papal, Quod a nobis (9 de julho de 1568).[14] Não só proíbe os pastores de alterar o breviário, mas também suprime todos os breviários locais que não tenham mais de duzentos anos. Pio V escreve,
Tendo assim proibido a qualquer pessoa o uso de qualquer outro, ordenamos que o nosso breviário e forma de orar e cantar sejam mantidos em todas as igrejas do mundo… de acordo com o costume e rito da Igreja Romana, exceto a referida instituição ou costume superior a duzentos anos: informando que este breviário, a qualquer tempo, não pode ser alterado no todo ou em parte, exceto se nada lhe possa ser acrescentado ou retirado… [15]
Em sua carta ao Arcebispo Studium Pio (16 de agosto de 1842), o Papa Gregório XVI lista o Breviário como um dos Ritos da Igreja. Ele escreve,
Nada seria mais desejável do que ver observadas por todos aqueles que estão sob seus cuidados e em todos os lugares as constituições de São Pio V, nosso Predecessor de memória imortal, que desejou que ninguém fosse dispensado da obrigação de adotar o Breviário e o Missal publicado, de acordo com o pensamento do Concílio de Trento, para o uso do Rito Romano, exceto aqueles que por mais de dois séculos usaram um Breviário ou Missal diferente.
- Costumes imemoriais
Em sua constituição apostólica Quo Primum, Pio V permite o uso de liturgias com mais de 200 anos. Ele escreve,
Este novo rito por si só deve ser usado, a menos que a aprovação da prática de celebrar a missa de maneira diferente tenha sido dada no próprio tempo da instituição e confirmação da igreja pela Sé Apostólica, pelo menos 200 anos atrás, ou a menos que tenha prevalecido um costume semelhante tipo que tem sido seguido continuamente por um período não inferior a 200 anos, em que a maioria dos casos Nós de forma alguma rescindimos sua prerrogativa ou costume acima mencionados. Porém, se este Missal, que julgamos oportuno publicar, for mais agradável a estes, concedemos-lhes permissão para celebrar a Missa segundo seu rito, desde que tenham o consentimento do bispo ou prelado ou de todo o Capítulo, não obstante quaisquer disposições em contrário.
O Cânon 30 do CIC de 1917 distingue três tipos de costumes: particulares, centenários e imemoriais. Costumes particulares são aqueles que foram observados por pelo menos trinta anos, costumes centenários são aqueles que foram observados por pelo menos cem anos, e costumes imemoriais são aqueles que foram observados por tanto tempo quanto qualquer pessoa da comunidade pode se lembrar. Alguns argumentam que a supressão de costumes imemoriais (neste caso, o Usus Antiquior) é uma injustiça contra o patrimônio da Igreja. Há um problema duplo com esse argumento.
Em primeiro lugar, em seu artigo, “Costumes Imemoriais e o Missal Romano de 1962”, Pe. AnselmGribbin argumenta que, uma vez que um costume imemorial se tornou uma lei universal, ele não retém mais a força do costume. Em segundo lugar, mesmo que o UsusAntiquior mantivesse a força do costume, não há nada que impeça a Igreja de revogá-lo. O Cânon 5 do CIC de 1917 afirma explicitamente que a Igreja pode revogar até costumes universais e imemoriais. O cânone diz:
Os costumes atualmente em vigor, sejam universais ou particulares, mas contra as prescrições desses cânones, se de fato forem expressamente reprovados, devem ser corrigidos como uma corrupção da lei, mesmo que sejam imemoriais, nem podem ser revividos no futuro; outros costumes, claramente centenários ou imemoriais, podem ser tolerados se os Ordinários determinarem que, devido a circunstâncias de pessoa ou lugar, eles não podem ser prudentemente removidos; outros costumes são considerados suprimidos, salvo disposição expressa em contrário do Código.
Em sua correspondência com Paulo VI, Jean Guitton observou que o principal problema do novo missal não eram os cânones, mas o ofertório. Os neo-tradicionalistas argumentam que as mudanças feitas no ofertório implicam essencialmente uma rejeição da dimensão sacrificial da Missa. Ratzinger observa, no entanto, que a “dimensão sacrificial nunca foi localizada no Ofertório, mas na Oração Eucarística, o Cânon.” [17] Ele continua abordando a etimologia do termo “Ofertório”, que é derivado do latim offerre. Como Ratzinger observa, “offerre” não significa sacrificar, mas sim preparar. A ideia era simplesmente que o altar tivesse que ser preparado para a Eucaristia. Isso foi visto como uma preparação externa para o que estava para acontecer.
Liberdade Religiosa
Muitos filósofos e teólogos comentaram o decreto do Vaticano II sobre a liberdade religiosa. Os neotradicionalistas argumentam que existe uma contradição formal entre a DignitatisHumanae e o ensino magisterial anterior. No entanto, nas palavras de E. William Stokey, “É o ensino anterior, e não o ensino mais recente, que necessita de uma qualificação cuidadosa.” [18] A Dignitatis Humanae não emite uma condenação geral da coerção civil em questões religiosas, mas se qualifica “dentro dos limites devidos”. De fato, existem circunstâncias que justificariam a supressão de certas formas de expressão religiosa, embora o próprio documento não detalhe essas circunstâncias. A questão então é: quando pode um estado secular ou católico suprimir certas formas de expressão religiosa? Em minha opinião, um estado secular pode suprimir certas formas de expressão religiosa que vão contra a lei natural (por exemplo, idolatria); Considerando que um estado católico pode suprimir o proselitismo entre os cidadãos católicos e até mesmo impedir a construção de edifícios religiosos que podem minar o ethos católico da cidade. Como Daniel J. Castellano observa,
A construção de edifícios religiosos pode ser um assunto controverso, dependendo de sua localização e propósito específico. Se sua localização ou propósito for orientado para corromper a fé da maioria católica, um estado católico pode justamente impor limites a tal construção, mas ao mesmo tempo tem a responsabilidade de permitir que as minorias religiosas adquiram instalações adequadas para o culto público em proporção a seus números. [19]
Eu pessoalmente acho o ensinamento em Dignitatis Humanae sobre liberdade religiosa incontroverso, uma vez que está enraizado em dois princípios ensinados pelo próprio Santo Tomás de Aquino, que é a liberdade de consciência [20] e o dever objetivo de adorar a Deus [21]. De acordo com o erudito tomista, Pe. Dominic Legge,
Tomás de Aquino nunca considera a lei, nem a justiça, nem ius (o objeto da justiça), como pertencentes a uma pessoa individual abstraída de uma ordem teleológica mais ampla. Em vez disso, um ius subjetivo ou direito é, para Santo Tomás de Aquino, sempre uma maneira de ver como um indivíduo pertence a uma ordem maior e é ele mesmo teleologicamente ordenado, de acordo com a razão, a um bem.
Isso é verdade até mesmo para o direito de adorar a Deus de acordo com sua consciência, que pertence a indivíduos que têm o uso da razão e da livre escolha. Para Tomás de Aquino, esse direito não pertence a eles como indivíduos puros ou absolutos, abstraídos da ordem mais ampla em que o homem existe. Em vez disso, esse direito subjetivo é em si uma outra forma de expressar como o homem é ordenado a Deus. [22]
Ele continua,
Nessa visão, então, os direitos individuais não são contrapostos ao bem comum, como se um aumento do bem comum necessitasse de uma diminuição da liberdade individual. Em vez disso, que os indivíduos estejam seguros em suas liberdades como cidadãos – que eles “possuem direitos” – é precisamente um aspecto ou dimensão do bem comum, e a proteção desses direitos na lei é um meio para garantir o bem comum de uma república justa. Em tudo isso, os direitos subjetivos são entendidos como uma função de uma ordem abrangente em direção a um bem. Em outras palavras, os direitos são importantes (ou mesmo fundamentais e indispensáveis) precisamente por causa da primazia abrangente do bem comum e do lugar que cada indivíduo ocupa na ordem do todo. [23]
…
Eu gostaria de responder resumindo o essencial do que considero ser a posição de Santo Tomás. O ius, ou o que é devido a outro, o objeto da justiça, depende, primeiro, da ordem abrangente do cosmos, que é estabelecida de acordo com a sabedoria de Deus e, portanto, é inteligível e teleológica, e que é composta de pessoas dotados de razão e livre escolha que são membros de várias comunidades que se organizam em ordem hierárquica. Então, em segundo lugar, este ius é uma função da relacionalidade que decorre do lugar que essas pessoas ocupam nesta ordem. Essa ordem também não é uma abstração: é a ordem histórica, concreta, particular em que me encontro. O homem vem ao mundo como filho de pais, vivendo em uma comunidade humana, como uma criatura sob Deus. Ele mesmo não criou ou gerou esta ordem. Consequentemente, o homem existe necessária e inevitavelmente em uma teia entrelaçada de relações, de pertencer como parte a outros todos: sua família, seu clã, sua cidade, toda a raça humana, todo o corpo de Cristo, toda a criação. Essas relações não são constituídas pela escolha do homem. Em vez disso, poderíamos dizer que o homem está natural e originalmente nesses relacionamentos.
A compreensão de Tomás de Aquino de justiça e, portanto, de direitos, é, portanto, bastante diferente do Iluminismo e dos relatos pós-Iluminismo derivados da teoria do contrato social, que postulam que o homem existe primeiro como uma espécie de indivíduo independente em um “estado de natureza” primitivo e, portanto, traz para as relações que escolhe para entrar em certos direitos fundamentais que são, em certo sentido, anteriores a essas relações. Essas teorias, quer estejamos falando de Hobbes, Locke ou de autores mais recentes como John Rawls, tendem a se abstrair das relações históricas concretas e, podemos dizer, das condições iniciais em que de fato nascemos. Eles visam desenvolver uma conta dos direitos básicos ou fundamentais que os seres humanos têm puramente em virtude de ser humano, de modo que a justiça se torne, pelo menos em parte, conceder o que é devido em virtude desses direitos, e para que os indivíduos possam então perseguir quaisquer bens que eles considerem dignos de sua escolha.
Para Tomás de Aquino, em contraste, o fim último do homem não é uma questão de escolha arbitrária, nem mesmo para Deus. Todo o plano da providência divina se origina na sabedoria de Deus como uma ordenação da razão com respeito ao bem. E assim, nascemos no mundo como criaturas que naturalmente ocupam um lugar nessa ordem, e que são naturalmente ordenadas a um fim final, um bem, que não escolhemos. Nem nossos relacionamentos são questões de escolha; simplesmente temos certos relacionamentos: relações familiares, relações com nossos vizinhos, participação em uma comunidade política e cívica mais ampla e assim por diante. Justiça, portanto, tem a ver com nossa correta ordenação do bem que não determinamos por nós mesmos. Baseia-se em uma realidade fora de nós, na ordem das relações nas quais existimos inevitavelmente.
Para um tomista, então, os direitos não são propriedades dos indivíduos como mônadas morais. Nem podemos encontrar a fonte dos direitos em uma definição abstrata da natureza humana, mas sim considerando o homem como uma criatura racional e livre, ordenada a Deus e ao bem comum da hierarquia das comunidades a que pertence. Isso nos permite ver, então, como os direitos estão ligados à justiça, à teleologia e ao bem comum.
Em relação à Justiça: Os direitos são uma forma de ver o que é devido, o ius ou iustum, na medida em que é devido a alguém que pode então procurar que aquele “devido” seja reivindicado. Isso é, em termos tomistas, um “direito”. Por causa da natureza do homem, podemos tirar certas conclusões sobre o que o homem é, o que o homem deve ser e, portanto, como devemos tratar as outras pessoas, uma vez que elas são iguais a nós na medida em que são humanas. No entanto, os direitos não são funções de indivíduos como indivíduos, mas sim de pessoas que pertencem a uma hierarquia de conjuntos ordenados (famílias, cidades, toda a raça humana, todo o cosmos), cada um dos quais tem seu próprio bem comum.
Em relação à teleologia e ao bem comum: o direito é teleológico. Está sempre voltado para o bem comum, real ou meramente aparente. E os direitos são igualmente teleológicos: armam o que é necessário para que as pessoas sejam devidamente ordenadas umas às outras e à autoridade política em vista do bem comum. Respeitar os direitos do outro, dar-lhe o que lhe é devido, não só diz respeito ao seu bem privado, mas significa agir em relação justa com a ordem do todo, com o bem comum.
Na verdade, Tomás de Aquino ensina que os fins do homem não estão dispostos lado a lado em um plano horizontal, mas existem em uma hierarquia ordenada: ele é ordenado aos bens individuais (como o bem de sua vida biológica), e então aos bens comuns mais elevados e nobres (como a boa vida que ele compartilha em uma família virtuosa, uma vizinhança próspera e amigável e uma sociedade justa) e, finalmente, para Deus, o bem comum universal de todo o universo. Leis de vários tipos direcionam o homem para esses vários níveis de bem. Portanto, os direitos também podem ser entendidos como função de uma justa ordenação de cada pessoa em direção ao bem comum.
Observe, entretanto, como essa visão difere de uma típica teoria contemporânea de direitos. Na visão tomista clássica, o fim (o bem comum) e a ordem da comunidade para esse fim são primordiais. Os direitos articulam reivindicações de justiça em relação ao fim. Consequentemente, os direitos não são reivindicações absolutas ou ilimitadas, nem são eles próprios o fundamento último ou a razão de nossa comunidade política. Em vez disso, os direitos sempre apontam para algo mais além e mais nobre do que um bem individual ou privado: o bem comum do todo. Isso não quer dizer, é claro, que os direitos individuais devam sempre se curvar diante das demandas da autoridade política. Ao contrário, Tomás de Aquino sustenta que alguns direitos são uma função da ordem do homem a um bem que é anterior ou transcende a comunidade política (como o vimos argumentar a respeito do direito de um pai cuidar de seu filho). Mas mesmo esses direitos não existem por si próprios; em vez disso, eles estão em virtude de sua relação com um bem.
Os teóricos dos direitos contemporâneos podem objetar que esta visão tomista clássica subordina a liberdade que os direitos individuais garantem sob o bem comum de tal forma que esses direitos serão ameaçados sempre que o governo (ou a maioria) os achar inconvenientes. Não é justamente por isso, perguntariam eles, que devemos armar o primado dos direitos individuais entendidos como anteriores à sociedade política e independentes do bem comum? Uma resposta completa a essa objeção exigiria um tratamento muito mais longo do que o que pode ser fornecido aqui, mas podemos pelo menos identificar a confusão sobre o bem comum oculto em tais questões. Da perspectiva de Tomás de Aquino, o bem comum não é algo que compete com o bem dos indivíduos, nem é como outros bens privados que são diminuídos quando são compartilhados (por exemplo, mais pessoas convidadas para a festa significa uma fatia menor de bolo para cada uma). O bem comum é precisamente o tipo de bem que pode ser compartilhado por muitos sem diminuir, como o bem da vitória de uma equipe esportiva, ou o bem da justiça em uma cidade, ou o bem da paz entre os Estados. Dizer que os direitos estão em relação a um bem, então, não significa que algum tipo de “bem comum” estranho ou hostil triunfe ou mesmo destrua o bem do indivíduo. Em vez disso, o bem comum é um bem para o indivíduo, um bem de um tipo mais elevado e mais nobre do qual o indivíduo participa e sem o qual é impossível ter uma medida plena de felicidade humana. Os seres humanos são ordenados não apenas a bens privados como comida e abrigo, mas também a bens comuns como justiça, verdade, amizade cívica e paz, e sem pelo menos alguma medida desses bens comuns, eles não florescerão nem serão verdadeiramente felizes. Nas palavras de Tomás de Aquino (parafraseando a Política de Aristóteles), a cidade existe “não apenas para que os homens vivam, mas para que vivam bem”. Esses indivíduos têm direitos que podem fazer valer, direitos que o direito positivo deve reconhecer, pertencem, portanto, não apenas ao bem privado dos indivíduos, mas ao bem comum da comunidade: as “Bênçãos da Liberdade” (como o Preâmbulo de a Constituição dos Estados Unidos afirma) não deve ser pensada como descrevendo um bem meramente privado, a propriedade individual de indivíduos distintos, mas sim uma dimensão do bem comum. Faz parte do bem comum que a comunidade seja justa, que reconheça o que é devido aos seus membros, que seja regida pelo Estado de Direito e que seja composta por cidadãos livres capazes de dirigir suas próprias vidas por suas próprias escolhas responsáveis. Quando a lei reconhece e protege o direito justo de um cidadão, ela está fazendo algo bem diferente dos gastos excessivos que distribuem benefícios materiais (isto é, bens essencialmente privados) para os clientes favorecidos do governante. Reconhecer o que é devido aos indivíduos é (pelo menos em parte) o que torna uma sociedade justa.
Nessa visão, então, os direitos individuais não são contrapostos ao bem comum, como se um aumento do bem comum necessitasse de uma diminuição da liberdade individual. Em vez disso, que os indivíduos estejam seguros em suas liberdades como cidadãos – que eles “possuem direitos” – é precisamente um aspecto ou dimensão do bem comum, e a proteção desses direitos na lei é um meio para garantir o bem comum de uma república justa. Em tudo isso, os direitos subjetivos são entendidos como uma função de uma ordem abrangente em direção a um bem. Em outras palavras, os direitos são importantes (ou mesmo fundamentais e indispensáveis) precisamente por causa da primazia abrangente do bem comum e do lugar que cada indivíduo ocupa na ordem do todo. [24]
[1] https://ruor.uottawa.ca/bitstream/10393/37735/1/Lessard-Thibodeau_John_%202018.pdf
[2] John A. Abbo& Jerome Daniel Hannan, “The SacredCanons: A ConcisePresentationoftheCurrentDisciplinaryNormsoftheChurch,” Volume 1 (St. Louis: B. Herder Book Co., 1960), 44.
[3] H. J. Schroeder, O.P., CanonsanddecreesoftheCouncilof Trent, (St. Louis, MO: B. Herder Book Co,. 1941), 53.
[4] Charles Augustine, A CommentaryontheCodeof Canon Law, Book III, Volume IV (St. Louis: B. Herder Book, 1920), 559-560.
[5] Joseph Pohle, The Sacraments: A DogmaticTreatise (Volume I), editedby Arthur Pruss (St. Louis, Mo: B. Herder, 1915), 111-113.
[6] John Hogan, “The ArtoftheLiturgy,” in American Ecclesiastical Review, Volume 13, (Philadelphia, PA: American Ecclesiastical Review Co.. 1895), 323.
[7] James O’Kane, Notes ontheRubricsofthe Roman Ritual RegardingtheSacraments in General (Dublin: James Duffy, 1867), 47.
[8] Robert Bellarmine, Controversies T. III, lib. 2, De EffectuSacramentorum, ch. 31.
[9] Robert Bellarmine, Onthe Roman Pontiff, Volume II, Book 4, translatedby Ryan Grant. (Post Falls, ID: Mediatrix Press, 2016), 235.
[10] ibid., 237-238
[11] Afonso de Ligório, Opera Dogmatica, Tr. V ConciliiTridentini Decreta et Canones, Disp. V, Sess. VII, Decretum de Sacramentis, n. 35. (Tradução por Ryan Grant).
[12] Giovanni Perone, PraelectionesTheologicae, T. 3, De SacramentorumRitibus, pp. 44-46: 169. [QuotesSess. VII can. 13] 170. (Translationby Ryan Grant)
[13]https://adoremus.org/2019/03/q-what-changes-were-made-to-the-tridentine-missal-before-1962/
[14]https://books.google.com/books?id=-cXYqusIEx8C&dq=breviarium%20romanum&pg=PP9#v=onepage&q&f=false
[15] https://books.openedition.org/pur/110216?lang=en
[16]https://www.academia.edu/37099150/Paul_VI_and_Jean_Guitton_on_Archbishop_Marcel_Lefebvre
[17] Joseph Ratzinger, GodisNearUs: The Eucharist, the Heart of Life (San Francisco: Ignatius Press, 2003), 66.
[18] https://www.catholicculture.org/culture/library/view.cfm?recnum=8777
[19] https://www.arcaneknowledge.org/catholic/councils/comment21-13.htm#ch4
[20] Summa Theologiae, 1ª2ae, Q. 19, a.5.
[21] III Contra Gentiles, 119. 7.
[22] Dominic Legge, “Do ThomistsHaveRights,” Nova et Vetera, EnglishEdition, Vol. 17, No. 1 (2019): 137.
[23] ibid., 146.
[24] ibid., 143-147.