Segunda-feira, Dezembro 30, 2024

Confessionalidade católica do Estado segundo a Declaração

O Concílio manteve no texto definitivo a cláusula da possível e justa confessionalidade do Estado, por circunstâncias histórica-sociológicas, seja qual for a religião, desde que respeite a liberdade privada e pública das demais religiões (cf. o parágrafo terceiro do n. 6). Isto vale, portanto, para a religião Católica em um país como Espanha, tradicional e majoritariamente católico. Mas a Declaração disse mais que isto em favor da confessionalidade católica do Estado: para além destas razões comuns a qualquer religião, no número preliminar se ratifica expressamente a doutrina tradicional da obrigação moral dos homens e das sociedades para com a verdadeira religião e única Igreja de Cristo (n. 1, parágrafos 2-3). Não se fala nominatim do “Estado”, mas de “as sociedades”, termo mais amplo que inclui ao Estado e demais sociedades. Sobre esta inclusão do Estado no termo genérico “sociedades” não cabe dúvida tendo em conta a referência imediata à doutrina tradicional, em que se fala expressamente da obrigação do Estado, por exemplo, nas Encíclicas de Leão XIII e nos Discursos de Pio XII.

Por conseguinte, o Estado Espanhol deve ser confessionalmente católico porque seus cidadãos são tradicional e majoritariamente católicos, e antes de tudo e sobretudo, porque com isso, afortunadamente, pode cumprir com a obrigação moral que tem para com a religião verdadeira e a única Igreja de Cristo. Nem o pluralismo religioso, nem o laicismo ou materialismo militantes são obstáculos para o cumprimento do dever em nosso país.

Admitir a confessionalidade estatal católica somente por motivos sociológicos, não especificamente religiosos, como crê P. A. D’Avack[1], seria mutilar não somente a doutrina tradicional católica, mas a própria Declaração conciliar em seu número introdutório. A negação da competência absoluta dos homens de governo para reconhecer e professar a religião levaria consigo inevitavelmente a negação de sua obrigação de professá-la e mantê-la. Por que aos homens de Estado lhes será negado competência para discernir ou aceitar conscientemente a verdadeira religião, concedendo-a ao comum dos demais homens? É que por ser homens de Estado perdem personalidade? Dizer que as pessoas morais não são capazes de um ato de fé é supor que a pessoa moral é assim como uma ficção adequadamente distinta das pessoas que a integram. É que a Igreja, o Colégio Episcopal, etc., que são sem dúvida pessoas morais, não são capazes do ato de fé?

É claro que o discernimento da religião cristã, sobrenatural, não é função própria, nem da competência própria da autoridade civil (como poderia sê-lo uma religião pagã), nem sequer do simples cidadão: A fé é dom de Deus, difundido generosamente através da sociedade sobrenatural que é a Igreja, mas o homem de Governo, o próprio e mais que os demais homens, pode, com a graça de Deus, aceitar responsavelmente este dom e o juízo da Igreja sobre o mesmo. Resultaria por demais paradoxo que hoje em dia, quando se aspira a “consecratio mundi”, a crsitianização das estruturas sociais, etc., se deixa-se a margem dessa intenção a primeira das estruturas que é a estatal. Qual será a responsabilidade dos homens católicos de governo, enquanto tais, senão que seu regime seja católico?[2]

A confessionalidade estatal católica tem outro aspecto negativo: a situação desvantajosa das demais religiões, que ipso facto, ficam, pelo menos, reduzidas a não-oficiais, sem os privilégios da religião católica. Segundo a cláusula do n. 6, estas religiões não estatais (por exemplo o catolicismo na Inglaterra ou o anglicanismo na Espanha) devem gozar de liberdade privada e pública: o poder estatal não deve reprimi-las em suas manifestações normais. Mas na hipótese da confessionalidade estatal católica, não somente por razões sociológicas comuns, não especificamente religiosas, mas em virtude do dever natural e divino-positivo de professar a religião Católica, tal como está ratificado no n. 1 da Declaração, tem o Estado Católico o dever de reconhecer plena liberdade privada e pública às comunidades não católicas?

No meu entender não se dá tal dever, correlativo a um estrito direito de tais comunidades à não coação pública (dando sempre por ilegítima e antinatural a coação religiosa propriamente dita). E é porque o direito à liberdade que se proclama no n. 6 é um direito fundado em razões sociológicas comuns, prescindindo das razões próprias que possam assistir a uma religião para ser, em princípio, por exigências religiosas intrínsecas, a única religião pública, como é o caso da religião Católica. Esta ressalva[3] não está expressamente formulada no n. 6, mas está virtualmente na afirmação preliminar sobre a permanência íntegra da doutrina tradicional sobre a obrigação do Estado para com a Igreja Católica. Ora, segundo a doutrina tradicional católica, a não permissão de culto público acatólico dentro de um Estado Católico não pode ser mais que uma transação, uma permissão ou tolerância, ou, se se prefere um respeito às demais religiões, em razão do bem comum nacional ou internacional. Basta-nos recordar a doutrina inequívoca de Pio XII: “Antes de tudo é preciso afirmar claramente que nenhuma autoridade humana, nenhum Estado, nenhuma Comunidade de Estados, seja o que for seu caráter religioso, podem dar um mandato positivo ou uma positiva autorização de ensinar ou de fazer o que seria contrário à verdade religiosa ou ao bem moral… O que não corresponde à verdade e à norma moral não tem objetivamente direito algum nem de existência, nem de propaganda e nem de ação. Segundo: o não impedi-lo por meio de leis estatais e de disposições coercitivas pode, contudo, fazer-se justificado pelo interesse de um bem superior e mais universal”[4].

Junto com isto, hoje em dia é bem fácil reconhecer uma série de motivos em favor do respeito à liberdade religiosa de outras confissões em um país confessionalmente católico como a Espanha, aberta pelos quatro lados à convivência européia. Isso é matéria de um estatuto jurídico, a nível pragmático-jurídico, sem contradizer os princípios teológicos e de direito natural. Digamos pela última vez que enquanto o erro religioso não funde direitos, o bem das pessoas, sobretudo o bem comum, funda o dever-direito ou tolerância.

 

 


[1] “A eventual confessionalidade católica de um Estado, não pode portanto ter o caráter de um ato de fé, porque o Estado, como pessoa moral, é radicalmente incapaz de semelhante ato, sendo de por si uma realidade que não pode ser intrinsecamente elevada à ordem sobrenatural. Falando estritamente, e a partir de um ponto de vista cristão, não pode se dar uma “confessionalidade estatal” em sentido próprio, como não pode existir uma verdadeira “religião estatal”, porque estes termos, em seu sentido preciso e integral, são conceitos pagãos e totalitários. Ali onde existam as condições sociológicas necessárias, isto é, um Estado em que os católicos sejam a totalidade ou a grande maioria da população, esse Estado poderia certamente, por razão da fé religiosa de seus cidadãos, reconhecer formalmente a Igreja Católica como sua religião social e atribuir-lhe aqueles direitos que, enquanto tal lhe correspondem e inclusive uma posição de privilégio frente as outras religião professadas tão somente por exíguas minorias. Mas este reconhecimento dos direitos da Igreja é uma simples disposição pragmática-jurídica, fundada sobre a fé dos cidadãos, e não um ato de fé do próprio Estado nem uma afirmação própria de valor especulativo, que ficaria fora de seu âmbito peculiar. Este é o máximo de confessionalidade a que pode chegar-se” (A liberdade no magistério atual da Igreja Católica, em “Ius Canonicum” 5 (1965) p. 381). Estas afirmações minimalista as fez o professor da Universidade de Roma, em Pamplona, antes da promulgação da Declaração conciliar. É de supor que hoje já não diria o mesmo depois das mudanças introduzidas no esquema.

[2] A satisfação a esta obrigação será, naturalmente, muito distinta nas diversas formas de governo: republicano ou monárquico, constitucional ou estado constituinte, etc.

[3] N.doT: “O Relator faz menção expressa desta ressalva: “Caeterum observandum est in hac pericopa (a do n. 6) non tractari de omnibus iuribus quae Ecclesiae agnoscenda sunt”. Estes direitos são os que se deixam a salvo no número 1 preliminar. Portanto, os dois números não se contradizem nem limitam, mas se completam…” (p. 117 do mesmo artigo).

[4] Discurso Ci riesce, AAS 45 (1953) 798. Cf. Art. Sobre a liberdade religiosa, em “La Ciencia Tomista” 91 (1964) 370-389.

 

FONTE


RODRIGUEZ, Pe. Victorino. Estudo histórico-doutrinal da declaração sobre a liberdade religiosa do Concílio Vaticano II, La Ciencia Tomista, abril-jun, 1966, n. 295, pp. 135-138.

 

PARA CITAR


RODRIGUES, Pe. Victorino. Confessionalidade católica do Estado segundo a Declaração. Disponível em <http://www.apologistascatolicos.com.br/index.php/concilio-vaticano-ii/liberdade-religiosa/760-confessionalidade-catolica-do-estado-segundo-a-declaracao> Desde 20/01/2015. Tradutor: SDS.

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