Segunda-feira, Dezembro 30, 2024

Comentário teológico e pastoral ao Decreto sobre o Ecumenismo (parte 2)

Pe. Miguel Nicolau e Pe. José Sánchez Vaquero*

 

Valor doutrinal do Decreto sobre o Ecumenismo

Comentário teológico e pastoral ao Decreto sobre o Ecumenismo (parte 1)

Comentário teológico e pastoral ao Decreto sobre o Ecumenismo (parte 2)

Comentário teológico e pastoral ao Decreto sobre o Ecumenismo (parte 3)

Comentário teológico e pastoral ao Decreto sobre o Ecumenismo (parte 4)

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Capítulo 1

PRINCÍPIOS CATÓLICOS SOBRE O ECUMENISMO

(nºs 2 -4)

 No primeiro esquema, anterior, este capítulo tinha por título “Princípios do ecumenismo católico”, (De oecumenismi catholic principiis); mas devido aos pedidos de vários Padres, durante a segunda Sessão do Concílio, mudou-se o título para o atual, (De catholicis oecumenismi principiis). A razão é não haver um ecumenismo católico e outro acatólico; não se pode dizer que haja tantas espécies de ecumenismo, quantas as comunidades separadas, como pretendia uma emenda ao título deste capítulo. O ecumenismo é uno, ainda que possam ser, e são diversos, os princípios segundo os quais participam no movimento ecumênico, as diferentes comunidades. O Concílio quer expor os princípios católicos em ordem à participação no ecumenismo.

 

Concepção católica da unidade (nº 2)  

2 a.A caridade de Deus para conosco, manifestou-se em que o Filho unigênito de Deus, foi enviado pelo Pai, para que, feito homem, regenerasse a todo o número humano pela redenção e o unificasse[1]. Antes de oferecer a si mesmo no altar da cruz, como vítima imaculada, orou ao Pai pelos que acreditassem, dizendo: “Que todos sejam um, como Tu, Pai, o é em mim e eu em Ti, para que também eles sejam um em nós, a fim de que o mundo creia que Tu me enviaste” (Jo. 17, 21) Institui na sua Igreja o admirável sacramento da Eucaristia, pelo qual se significa e realiza a unidade da Igreja. A seus discípulos deu o mandamento novo, do amor mútuo[2] e prometeu-lhes o Espírito Paráclito[3], que permaneceria com eles para sempre como Senhor e vivificador.

 

A unidade no pensamento do Pai (nº 2a)

O desígnio e plano eterno do Pai, de nos redimir a todos, por meio do seu Filho, que enviou ao mundo, é um desígnio que nos descobre o seu amor (I Jo. 4, 9) e o seu intuito de unidade entre todos os homens. Jesus Cristo é, com efeito, segundo o pensamento do Pai, “a Cabeça do Corpo da Igreja; Ele é o principio, o primogênito dos mortos, para que tenha a primazia em todas as coisas. E aprouve ao Pai que nele habitasse toda a plenitude [da graça, da qual participamos], e por Ele reconciliar consigo, pacificando pelo sangue da sua cruz, todas as coisas, as da terra e as do Céu” (Col. 1, 18-20). Cristo tinha que morrer, não só pelo povo judaico, mas também “para congregar num corpo todos os homens, filhos de Deus, que estavam dispersos” (Jo. 11, 52).

 

O Filho quer a unidade (nº 2a)

Esta unidade de todos os cristãos foi objeto da sublime oração sacerdotal de Jesus Cristo, antes de se imolar na cruz. Rogou ao Pai, não só pelos Apóstolos, que já criam nele, mas também por todos aqueles que, mediante a palavra dos Apóstolos iam no futuro acreditar. E o modelo de unidade que estabelecia e desejava, era a unidade perfeita que existe entre o Pai e Filho. “Que todos [não exclui ninguém] sejam um; [e o termo de comparação é]: como Tu, Pai estas em mim, e eu em Ti, que eles sejam em nós uma só coisa” (Jo. 17, 21). Não pode apresentar-se exemplo ou comparação de unidade mais forte e íntima, permanecendo dois seres distintos, como a unidade entre o Pai e o Filho, que é a unidade de natureza, conservando a distinção de pessoas. Por conseguinte, o Senhor deseja entre os cristãos, a máxima unidade que possa existir, que é, portanto, uma unidade de caridade e amor, uma unidade de mútua benevolência e união interna e íntima, na graça santificante. A vida divina, de que vivem substancialmente o Pai e o Filho, é a mesma vida de que participam os cristãos, não pela sua mesma natureza e essência, mas como algo que lhes é acrescentado e acidental, algo sobrenatural. Contudo, todos os cristãos participam, misteriosamente, a mesma vida divina e da mesma fonte de Cristo.

Não basta, com efeito, segundo o pensamento de Cristo, que exista só este laço misterioso e secreto de uns cristãos com outros, vivendo da mesma seiva. É mister que se manifeste e apareça no exterior. Pois, esta unidade tem de ser um sinal – disse – “para que o mundo creia que Tu me enviaste” (Jo. 17, 21). Esta unidade externa, terá de se manifestar, imediatamente, no mútuo amor e na mútua beneficência. Mas não basta. A diversidade nas doutrinas básicas e nos modos de proceder fundamentais, não é sustentáculo de amor.

A Eucaristia, instituída. por Cristo, no meio de uma Ceia fraternal, é símbolo da união entre os cristãos: “Porque muitos formamos um só Corpo, todos os que participamos do mesmo Pão e do mesmo Cálice” recordava-o S. Paulo (1 Cor. 10, 17). E na missa do Santíssimo Sacramento dizemos, orando sobre as oblatas: “Concede, Senhor, à tua Igreja os dons da unidade da paz, que estão misticamente significados nos dons oferecidos”.

O mandamento de Cristo a seus discípulos, antes de morrer, foi o da caridade e mútuo amor: “Dou-vos um mandamento novo, que vos ameis uns aos outros, como eu vos amei, que vos amei mutuamente. Nisto conhecerão todos que sois meus discípulos, se tiverdes caridade uns para com os outros” (Jo. 13, 34 -35). Quem deseja este amor, não quer cismas nem discórdias ou separações entre os cristãos.

Mas há ainda mais. Jesus Cristo é artífice desta união, porque prometeu enviar-nos o Espírito Santo, (Jo. 16, 7) e enviou-O, de fato, derramando-O, com abundância, nos crentes. Mas o Espírito Santo é espírito de unidade, na Igreja.

 

A unidade pelo Espírito Santo na Igreja (nº 2b)

2 b. Suspenso, pois, na cruz e glorificado, o Senhor Jesus derramou o Espírito prometido. Por Ele chamou e congregou na unidade da fé, esperança e caridade, o Povo da Nova Aliança, que é a Igreja, como ensina o Apóstolo: “Há um só corpo e um só Espírito, como fostes chamados a uma só esperança pela vossa vocação. Um só Senhor, uma só fé, um só batismo, (Ef. 4, 4 – 5). Com efeito, “todos quantos fostes batizados em Cristo, vos revestistes de Cristo…, pois, todos vós sois um em Cristo Jesus” (Gal. 3, 27-28). O Espírito Santo que habita nos crentes e enche e governa toda a Igreja, realiza essa admirável comunhão dos fiéis e une-os todos tão intimamente com Cristo, para estabelecer com todo o mundo Cristo, que Ele mesmo é o Principio da unidade da Igreja. Ele realiza a distribuição das graças e ministérios[4] e enriquece a Igreja de Jesus Cristo com múltiplos dons, “para a perfeição plena dos santos, em ordem à obra do ministério, para a edificação do Corpo de Cristo” (Ef. 4, 12).

 

O Espírito Santo é como que a alma ou o princípio vital, na Igreja; e é à alma que se atribui a unidade de um organismo, a interna, na comunidade de vida e a externa que aparece aos homens. Ao Espírito Santo devemos atribuir, não só o viver cada um a vida interna, misteriosa, da graça santificante, mas também a vida externa, na unidade do Corpo místico. Foi o Espírito Santo quem suscitou e chamou o Povo da Nova Aliança para o unir na mesma fé, na mesma esperança e no mesmo amor.

O pensamento da unidade deste Corpo, por ser um só Corpo e um só Espírito que o informa, ressoa poderosamente nas cartas de S. Paulo: «É um só Corpo e um o Espírito; assim como fostes chamados numa só esperança do vosso chamamento. Um é o Senhor, uma a fé, um o batismo” (Ef. 4, 4 – 5). “Quantos fostes batizados para Cristo, revestistes-vos de Cristo. Não há já judeu, nem grego, servo ou livre, homem ou mulher porque todos sois um, em Cristo Jesus” (Gal. 3, 27-28).

Se o princípio de vida, interna e única, dentro do Corpo Místico, se deve ao Espírito Santo, a diversidade de membros e as funções deste Corpo, que se manifestam também na sua vida externa, devem-se do mesmo modo, ao Espírito Santo. “Há diversidade de dons, mas um mesmo o Senhor. Há diversidade de operações, contudo é um mesmo Deus que opera todas as coisas, em todos. E concede-se a cada uma manifestação do Espírito, para utilidade comum. A um é-lhe dada pelo Espírito, a linguagem da sabedoria; a outro a linguagem da ciência, segundo o mesmo Espírito; a outro a fé, no mesmo Espírito; a outro o dom de curar, pelo mesmo Espírito; a outro o dom de operar milagres; a outro, profecia, a outro, discernimento dos espíritos, a outro, interpretação de línguas. Mas todas estas coisas as opera um só e o mesmo Espírito, que reparte por cada um, como quer” (I Cor. 12, 4 – 11)… “Todos nós fomos batizados num mesmo Espírito, para constituir um só Corpo, e todos, quer judeus, quer gentios, servos, ou livres, bebemos dum só Espírito. Porque o Corpo não é um só membro, mas muitos” (I Cor. 11, 13-14).

É impossível que dependendo o cristianismo autêntico, da ação do mesmo Espírito, haja uma separação ou destruição que possa dizer-se obra autêntica do Espírito. Será obra dos homens, não do Espírito.

 

Mediante o Colégio Apostólico e o Primado de Pedro (n° 2c)

2c. Cristo, para estabelecer com todo o mundo, esta sua Santa Igreja, confiou ao Colégio dos Doze, a missão de ensinar, governar e santificar[5]. Entre eles escolheu Pedro, sobre quem, após a profissão de fé, decidiu edificar a sua Igreja. Prometeu-lhe as chaves do reino dos céus[6], e depois da profissão do seu amor, confiou-lhe todas as ovelhas, para que confirmasse na fé[7] e as apascentasse em perfeita unidade[8], permanecendo o próprio Jesus Cristo, para sempre, a pedra angular[9] e pastor das nossas almas[10].

 

O modo de conservar esta unidade, segundo a mente de Cristo, está na autoridade constitucional da Igreja. A autoridade é principio de unidade, em toda a sociedade. Se Cristo quis unidade na sua Igreja, fundou-a com a autoridade que era necessária para a conseguir.

O poder moderador na Igreja reside, por instituição de Cristo, no Colégio dos Apóstolos; a ele conferiu o oficio de ensinar autenticamente, isto é, de impor, com autoridade, a doutrina evangélica e o que o Mestre ensinou (Mt. 28, 18-20; Mc. 16, 15-16); confiou-lhe, além disso, o encargo de governar (Mt. 18, 18) e de santificar os homens, (Lc. 22, 19; I Cor. 11, 24-25; Jo. 20, 21-23; Mt. 28, 19…). Transmitiu-lhes a sua missão (Jo. ao, 21).

Este princípio de autoridade colegial (que supõe já uma autoridade unida e compacta, entre os membros deste Colégio) tem um elemento chave, do qual, de modo nenhum pode prescindir. Este elemento chave verdadeiro fecho de abóbada, sem o qual, o Colégio não subsiste, é a autoridade primacial de Pedro (Mt. 16, 18-19; Jo. 21, 15-17; Lc. 221 32). O poder conferido ao Colégio, não lhe foi dado sem Pedro. Mas a Pedro só, foi-lhe dado o mesmo poder, supremo e pleno, que foi dado a todos com ele. Por isso, não pode haver Colégio Apostólico, faltando Pedro e Pedro é o elemento fundamental, a chave, do Colégio Apostólico.

O Primado de Pedro é outro poderoso princípio de unidade para a Igreja. O Concílio põe-no em relevo.

Cristo quis edificar a sua Igreja sobre Pedro. E segundo as palavras do Concílio, “decretou, depois da confissão de Pedro, edificar a sua Igreja sobre Pedro”. Observaram seis Padres conciliares que o decreto de Cristo, de edificar a sua Igreja sobre Pedro, suposta a necessária presciência que Cristo tinha, era anterior a confissão de Pedro. Poderiam ter acrescentado que tal pensamento está conforme à maneira de falar de um responsório litúrgico, da festa da Cadeira de S. Pedro: “Simão Pedro, antes de te ter chamado da barca, te conheci e te constituí príncipe sobre o meu povo, e dei-te as chaves do reino dos céus[11]”. O Secretariado preferiu, contudo, conservar a frase decretou, depois da confissão de Pedro; mas entendendo-a no sentido de manifestar, externamente, o propósito de edificar a Igreja, ainda que tivesse tido, antes, a vontade interna de o fazer; assim como se pode dizer que um rei decreta fazer uma coisa no momento em que, externamente, manifesta asua vontade[12].

A promessa feita por Cristo, de dar a Pedro as chaves do Reino dos Céus, isto é, plena e suprema jurisdição na Igreja (Mt. 16, 19), cumpriu-a mais tarde, quando o encarregou de apascentar todas as suas ovelhas (Jo. 21, 15-17) depois de Pedro ter professado o seu amor ao Mestre[13]. Pedro tinha que confirmar na fé estas ovelhas, segundo o mandato que Cristo lhe tinha dado com antecipação. Pois, lhe dissera antes da Paixão: “Eu roguei por ti, Pedro, para que a tua fé não desfaleça; e tu, urna vez convertido, confirma os teus irmãos” (Lc. 221 31).

Se o Colégio Apostólico e o Primado de Pedro têm de dar unidade à Igreja, porque há ainda uma pedra mais fundamental e permanente: a pedra angular, que é Cristo (Cfr. Ef 2, 20); e um Pastor das nossas almas (I Pedr. 1, 25) que não perece. Recorda-o, oportunamente, o Concílio Vaticano II, como o proclamou antes o Vaticano I, no principio da Constituição sobre Igreja Pastor aeternus[14].

 

Mediante os Sucessores dos Apóstolos e do sucessor de Pedro (nº 2d)

2d.Jesus Cristo quer que o seu povo cresça, por meio da pregação fiel do Evangelho, da administração dos Sacramentos    e do governo na caridade, por parte dos Apóstolos e seus sucessores, – os bispos com a sua cabeça, o sucessor de Pedro – sob a ação do Espírito Santo e realiza a sua comunhão na unidade: na confissão de uma só fé, na comum celebração do culto divino e na fraterna concórdia da Família de Deus.

 

É evidente que a unidade que Cristo previu para a sua Igreja, mediante o primado de Pedro e o Colégio Apostólico, uma vez que morreram Pedro e os Apóstolos, não podia faltar. Pois, Cristo instituiu uma Igreja permanente, mesmo para depois da morte dos Apóstolos, e disse que estaria com eles até a consumação dos séculos.

Faltando as pessoas dos Apóstolos, não faltaram os sucessores no oficio; e faltando Pedro, o Primaz, não faltou o sucessor de Pedro, no ofício do Primado. Assim continuou a Igreja no decurso de tantos séculos, com as mesmas características estabelecidos por Cristo na sua instituição.

Se se admite, com tanta razão, e por várias confissões cristãs a permanência do oficio episcopal, não vemos nós, católicos, porque não aceitar a permanência do oficio primacial. É com esta autoridade episcopal e primacial, instituída por Cristo, que se conserva a unidade que Ele quis na sua Igreja.

É esta autoridade hierárquica que fomenta a unidade. A ela compete a pregação fiel do Evangelho. Eles, o Papa e os Bispos, são os pregadores natos e autênticos da doutrina de Jesus Cristo; os demais, são-no, por missão ou delegação deles, e a todos os que ensinam na Igreja, professores e pregadores, corresponde-lhes o dever de se ater às doutrinas do Magistério autêntico. Não ensinam, não ensinamos, em nome próprio e por cátedra própria. Ensinam, ensinamos, em nome, e por missão dos Mestres autênticos que Cristo colocou na sua Igreja. É condenável, portanto, a excessiva originalidade ou audácia na doutrina, se se aparta das diretrizes traçadas pelo Magistério autêntico. É, com este espírito, que se conserva a unidade de doutrina[15].

Depois da pregação autentica, que conserva a unidade da fé, vem a unidade do culto, com a celebração comum da sagrada Liturgia e a administração dos sacramentos. Este culto e Liturgia são consequência da fé e da doutrina. É também um sinal da unidade da fé

Cabe, portanto, à Hierarquia, regular esta celebração do culto e vigiá-la, para manter a unidade.

A Hierarquia apascenta com a doutrina e a pregação; apascenta com os sacramentos e o culto; apascenta também com “o governo no amor”. O regime e governo que deste modo.fomenta a mútua conexão, de uns membros com os outros, e de todo o povo cristão, tem de ser “governo no amor”, na caridade. Nada une tanto como a caridade. E esta sim, que é obra do Espírito Santo, “por quem a caridade de Deus foi difundida nos nossos corações” (Rom. 5, 5). Assim, aparece “a concórdia da família de Deus”. Pediu-se numa emenda para se introduzir esta palavra, “família” de Deus, porque tem – dizia-se – uma ressonância religiosa particular e agrada muito aos povos de África[16]. Esta inserção foi aceita, com agrado, uma vez que o conceito de família é muito próprio do Novo Testamento que chama irmãos a todos os fiéis, e é frequente na Liturgia[17].

Em resumo: o ofício de pregar, administrar sacramentos e governar no amor, ministério próprio dos sucessores de Pedro e dos demais Apóstolos, corresponde, pela mesma ordem[18], a consumação na unidade do povo cristão, mediante a unidade na fé, a unidade no culto e a concórdia fraterna.

 

O mistério da unidade da Igreja (nº 2e)

2e.Assim, a Igreja é o único rebanho de Deus. Como bandeira erguida entre as nações[19], oferecendo a todo o gênero humano[20] o Evangelho da paz, peregrina na esperança a caminho da pátria celeste[21].

Este é o Sagrado mistério da unidade da Igreja, com Cristo e por Cristo, realizando o Espírito Santo a variedade dos seus ministérios. O supremo modelo e princípio deste mistério é a unidade de um só Deus, Pai e Filho no Espírito Santo, na Trindade de Pessoas.

 

Deste modo, a Igreja aparece com unidade visível; é o “único rebanho de Deus”. Como lugar de salvação e refúgio, para gozar da plenitude dos benefícios de Deus. Com esta unidade visível, a Igreja é como uma insígnia ou estandarte, levantado, para ser visto por todos os povos e nações. A imagem é de Isaias (11, 10-12) e repetiu-a o Concílio Vaticano I[22].

Assim, a unidade da Igreja é visível, como fazia notar Leão XIII: “Do que se segue — dizia — que está num grande e pernicioso erro, quem idealiza a seu arbítrio uma Igreja que esteja como que escondida e não visível e manifesta. Do mesmo modo, os que a têm como uma instituição humana, com ritos externos e com certa forma de disciplina, mas sem comunicação perene dos dons da graça divina e sem aquelas coisas que cada dia, abertamente, dão testemunho da vida que vem de Deus. Repugna que qualquer das duas Igrejas, assim entendidas, possa ser a Igreja de Cristo, como repugna que o homem possa constar, só de corpo ou só de alma. A conexão ou união daquelas, como que duas partes, é totalmente necessária para a verdadeira Igreja, quase como o é para a natureza humana, a união intima da alma com o corpo[23].

Esta unidade da Igreja, visível por uma parte, interna e vivificante por outra, faz que ela seja instrumento apto para a pregação do Evangelho da paz e do bem, a todo o gênero humano. Assim, caminha com esperança, em direção à pátria celeste.

Fica exposta, em tudo o que se disse anteriormente, relativo a este número, a concepção da Igreja, isto é, o mistério da sua unidade em todos os seus elementos externos e internos. A unidade realiza-se em Cristo, ou seja, no Corpo de Cristo, que é Cristo; como lhe chama S. Paulo, depois de descrever o Corpo com todos os seus membros e funções, com a Cabeça, Cristo, e todos os fiéis. A unidade realiza-se por Cristo, porque Ele é a causa meritória e causa instituidora e eficiente de tudo o que realiza a unidade. Ao Espírito Santo, atribui-lhe S. Paulo a distribuição dos ofícios e carismas, dentro do Corpo Místico (I Cor. 12, 4-11).

O modelo supremo de toda a unidade, é a unidade na Trindade de Deus. Dali, procede também o princípio da unidade para a Igreja, que é o desígnio do Pai, a vontade do Filho que funda a unidade, e a graça do Espírito Santo que a mantém. A Trindade das pessoas, em Deus, concilia-se com a unidade do Pai e do Filho, cuja expressão de amor, o amor produzido, é o Espírito Santo. São um “no Espírito Santo”.

 

Divisões e Unidade (nº 3)

3 a.Nesta Igreja de Deus, una e única, surgiram logo deste os primeiros tempos, algumas cisões[24], que o Apóstolo condena com severidade[25]. Nos séculos posteriores, nasceram dissensões ainda maiores. Comunidades não pequenas, separam-se da plena comunhão da Igreja Católica, algumas vezes, não sem culpa dos homens de ambas as partes. Contudo, os que agora nascem e são instruídos na fé de Cristo, nessas comunidades, não podem ser acusados do pecado da separação e a Igreja Católica abraça-os com fraterno respeito e amor. Aqueles, pois, que crêem em Cristo e receberam devidamente o batismo, estão em certa comunhão, embora imperfeita, com a Igreja Católica. Efetivamente, as divergências, de vários modos existentes, entre eles e a Igreja Católica, – quer em questões doutrinais e por vezes também disciplinares, quer acerca da doutrina da Igreja, – criam não poucos obstáculos à plena comunhão eclesiástica, algumas vezes muito graves, que o movimento ecumênico procura superar. No entanto, justificados pela fé no batismo, estão incorporados em Cristo[26]e por isso com razão são honrados com o nome de cristãos e juntamente reconhecidos pelos filhos da Igreja Católica como irmãos, no Senhor[27].

 

As divisões que houve na Igreja. Houve-as desde o princípio. S. Paulo dá-no-lo a conhecer, ao repreender os de Corinto porque, “quando vos reunis em assembleia – diz – há discórdias entre vós, segundo ouço; e creio-o em parte; pois é necessário que haja heresias [ou separações], para que entre vós se manifestem os de virtude provada” (I Cor. 11, 18-19). Também os judaizantes, entre os Gálatas, perturbavam a paz daquela igreja; desistiam e apartavam-se do Evangelho que S. Paulo lhes tinha pregado, e passavam-se a outro evangelho, sendo – dizia-lhes – “que não há outro; o que há é que alguns vos perturbam e pretendem perverter o Evangelho de Cristo” (Gál. 1, 6-7). Mas, se algum pregasse um evangelho diferente do recebido, devia ser “anátema”, devia ser excomungado (v. 9).  S. João Evangelista lamentava-se de que, como uma antecipação da chegada do Anticristo, no fim dos tempos, “muitos se fizeram anticristos” (I Jo. 1, 18), pois, procediam com o espírito do Anticristo, inimigo do Evangelho de Cristo. Haverá sempre cizânia na Igreja (Mt. 13, 30) o que não poucos Padres interpretam como tratando-se das heresias.

S. Paulo não admite, antes condena, estas dissensões entre os cristãos. Soube dos de Corinto que há discórdias entre eles, que uns são de Paulo, outros de Apolo, o pregador eloquente; outros de Cefas, que é aqui nomeado pelo seu qualificativo de Primaz; outros finalmente, de Cristo. “Mas será que Cristo está dividido?” (I Cor. I, 11-13), isto é, o Corpo Místico de Cristo. Não devem existir tais partidos entre os cristãos, nem sequer no caso de coexistir uma identidade de fé e de doutrina. Tão-pouco pode louvar os que criam cismas nas assembleias e nos ágapes (I Cor. 11, 22).

O material humano, débil e fraco, é propenso a estas dissensões que são promovidas pela natureza humana, não pelo Espírito. A História fala-nos de separações de maior vulto do que possam ser umas diferenças ou partidos locais. Referimo-nos, e o Concílio também se lhe refere, à separação dolorosa das igrejas orientais, ortodoxas, que romperam a comunhão com a Sé Apostólica Romana, depois de oito séculos de irmandade. E ainda que a unidade tenha sido restabelecida nos Concílios, segundo de Lião (a. 1274) e Florentino (a. 1438-1445) não foi, contudo, por muito tempo.

A rotura com Roma, de não poucas igrejas do norte da Europa, fenômeno conhecido pelo nome de Protestantismo, nas suas diversas formas de Luteranismo, Calvinismo, Anglicanismo, etc., é ainda mais recente e foi um corte dolorosíssimo para a unidade.

Estes são os fatos.

 

A culpabilidade

Se houve culpa no momento de se darem estas roturas, e por vezes, culpa de ambas as partes, como afirma o Concílio[28], hoje, contudo, não se pode afirmar o mesmo dos que nascem no atual estado de separação.

Dá gosto pensar na boa fé com que procedem – temos de supô-lo numa imensa maioria dos casos – muitos dos que nasceram em confissões diferentes do Catolicismo, aqueles mesmos que, desde a infância, ouviram doutrinas contrárias às da Igreja Católica e acusações contra ela que deram azo a preconceitos inveterados. Não é deles a culpa, se tais acusações e preconceitos se gravaram nas suas mentes. A verdade e o mútuo conhecimento têm de fazer-se luz, pouco a pouco.

Segundo a Teologia Católica, não se abandona, sem culpa, a religião católica, nem se admite inculpavelmente a dúvida séria e deliberada sobre esta religião, por aqueles que foram instruídos e educados nela retamente. Pois, “aqueles que receberam a fé sob o Magistério da Igreja, nunca podem ter uma causa justa para mudar a sua fé ou dela duvidar”[29]. Compreende-se, com efeito, que, nesta hipótese de uma reta e prolongada educação religiosa, sempre permanece, em ordem à perseverança na fé, o motivo objetivamente válido da Igreja e tantos outros motivos, válidos do mesmo modo, objetivamente. E permanece também o auxílio subjetivo, da graça divina, que atua nestes católicos como sinal positivo, quer dizer, conservando-os na sua fé e que não os deixa, a não ser que eles, culpavelmente, a deixem.

Mas isto, que vale para os católicos que abandonaram a fé, depois de se terem formado retamente, não é o mesmo caso dos que nasceram em países não católicos e, desde a infância, foram educados noutras doutrinas. Sem dúvida que tais crianças e adolescentes e muitos outros, adultos, estão em boa fé. Cada homem é um mundo, como costumamos dizer, e é muito difícil penetrar no íntimo de sua consciência. Temos de deixar a Deus o juízo sobre o interior de cada homem. E como dizia Pio XII na Humani generis, “a inteligência humana pode, por vezes, sentir dificuldade em formular um juízo certo de “credibilidade” sobre a fé católica, ainda que tantos e tão maravilhosos sinais externos, tenham sido dispostos por Deus, com os quais, e mesmo à luz da simples razão natural, se pode provar, com certeza, a origem divina da religião”[30]. E uma das causas desta dificuldade, fora as paixões e má vontade com que se pode resistir à graça, são os preconceitos que há na alma[31].

Por isso, temos de deixar a Deus que perscruta os corações, (Ps. 7, 10) o sondar e julgar o íntimo de cada homem. Pela nossa parte, temos de inclinar-nos, quanto nos seja possível, à benevolência no julgar, e a pensar na boa fé dos que com sinceridade manifestem os seus pontos de vistas diferentes, ou as suas dificuldades ou dúvidas.

 

A união com a Igreja e a incorporação no Corpo Místico

Não podemos olhar como estranhos os cristãos de outras confissões. Pelo contrário, devemos olhá-los como irmãos e como filhos da Igreja. Foi João XXIII quem, na sua primeira encíclica, se expressou com esta terminologia: “Deixai que vos chamemos com grato desejo – dirigindo-se aos cristãos separados – irmãos e filhos… A todos os que estão separados de nós, nos dirigimos como a irmãos, com as palavras de S. Agostinho: “Queiram ou não queiram, são nossos irmãos. Deixarão de o ser, se deixarem de dizer: Pai nosso”[32].

Quais são os laços de união que ligam os católicos aos irmãos separados? Não se pode negar que estão em alguma comunhão com a Igreja Católica.

Em primeiro lugar, a fé comum em Cristo, une os católicos aos cristãos acatólicos. O reconhecimento de Cristo como Salvador, e muito mais como Deus, é um poderoso laço de união. É estarmos, uns e outros, alistados no partido de Cristo.

Todos os cristãos professam a fé em Cristo e reconhecem-no como Messias verdadeiro, como seu Salvador e Redentor; e a imensa maioria, também confessa, como Pedro outrora (Mt. 16, 16) que Ele é o Filho de Deus vivo. Admitem a divindade de Jesus Cristo.

Junta se o batismo foi válido, que é, primeiro, um sinal externo de se ter inscrito neste partido; e, segundo, inclui o caráter interno, sacramental, como marca, interna de pertença a Cristo e à sua Igreja. O caráter, segundo expressões e comparações antigas, marca o homem como ovelha de Cristo, como saldado de Cristo. Mais ainda: o batismo válido, e recebido de boa fé, segundo a reta norma da própria consciência, como supomos e queremos supor, produz a vida da graça nos irmãos separados. Que maiores vínculos de irmandade com os cristãos separados, se eles e nós vivemos esta vida da graça? O batismo, como o indicam a mesma palavra e a analogia simbólica com a matéria próxima deste sacramento, é uma lavagem, uma purificação. É a purificação de todos os pecados, começando pelo original, e é, portanto, (por parte do rito, se não tropeça com impedimentos de impenitência e falta de conversão a Deus), uma infusão da graça santificante, com toda a nobreza de linhagem sobrenatural que ela comunica, ao fazer-nos filhos adotivos de Deus.

Verdadeiramente, ainda que só existissem os laços de união, mencionados até aqui, em virtude do batismo, eles só por si, bastariam para criar uma estima recíproca entre os cristãos, superior a qualquer outra. Pois, que mais se pode pedir que supere o ser filho de Deus por adoção e participantes da natureza divina?

A união com estes cristãos, apesar de tudo, não é perfeita.Pois, há divergências doutrinais; não há a mesma profissão de fé entre eles e nós, por exemplo, no tocante à estrutura hierárquica da Igreja. A comunhão, portanto, só por este capítulo, não pode ser perfeita. As divergências são também de ordem disciplinar e, em geral, na ordem das estruturas da Igreja; já porque se não admita a obediência ao Romano Pontífice, já pela diversidade em pontos de disciplina sacramental ou de regime.

Desconhecer estas diferenças e divergências, seria desconhecer a realidade. Calá-las seria partir de falsos supostos e com um irenismo prejudicial. Reconhecê-las, é determinar o ponto em que está a dificuldade que se procura resolver. A isso tende o movimento ecumênico.

Em resumo: estão unidos a Cristo os que adquiram a graça da justificação pela fé e pelo batismo (Cfr. Rom. 3, 30).

Com razão se lhes chama cristãos e os olhamos como irmãos.

Poder-se-á perguntar se estes Irmãos separados permanecem incorporados no Corpo Místico de Cristo. Se bem que a palavra usada pelo Concílio, Christo incorporantur, poderia dá-lo a entender, uma vez que “incorporar-se em Cristo” é “formar parte do seu Corpo”, contudo, não foi a intenção do Concílio entende-lo neste sentido da incorporação no Corpo Místico.

Com efeito, entre as emendas apresentadas, muitas se referiram a esta frase. Seis Padres propuseram que, para evitar esta nova interpretação, se dissesse “unem-se a Cristo” (Christo uniuntur), não: “incorporam-se”; pretendia-se assim evitar que houvesse oposição à doutrina de Pio XII que na Mystici Corporis, exige algo mais para se incorporar como verdadeiro membro no Corpo Místico, isto é, exige, além do batismo, a profissão da verdadeira fé[33]. Propunham também os Padres esta emenda, por serem da mesma opinião muitos teólogos; e além disso, por lhes parecer duvidoso o apelo para o Decreto pro Armenis[34], se, (quando diz que “pelo batismo nos tornamos membros de Cristo e do Corpo da Igreja”) pretende referir-se a qualquer batizados; pois, está unicamente a falar num contexto que parece se referir só aos católicos.

Por razões parecidas propunham 22 Padres que omitisse a frase Christo incorporantur. Outro propunha que, em vez de, “incorporam-se em Cristo”, se dissesse somente: “pertencem já de alguma maneira ao povo de Deus”.

Como se vê, a expressão de que os cristãos separados “se incorporam” em Cristo, não tinha passado despercebida. O Secretariado declarou o sentido que unicamente lhe queria dar, no qual foi votada e aprovada pelos Padres; a saber: “o texto diz somente “em Cristo” [incorporam-se], não “no Corpo Místico de Cristo”, que é a Igreja; com o que se evita a questão controvertida sobre os membros da Igreja”[35].

Os cristãos separados, ainda têm alguma comunhão com a Igreja Católica, não é, contudo, perfeita.

 

Bens da única Igreja de Cristo que podem estar fora dos limites visíveis da Igreja Católica (nº 3 b)

3 b. Além de que, dos elementos ou bens de cujo conjunto se forma e vivifica a Igreja, alguns, mesmo muitos e muito importantes, podem encontrar-se fora do âmbito visível da Igreja Católica, como a Palavra de Deus escrita, a vida da graça, a fé, a esperança e a caridade e outros dons interiores do Espírito Santo e elementos visíveis. Todas estas coisas, que provêm de Cristo e a Ele conduzem, pertencem por direito à única Igreja de Cristo.

Não poucas ações sagradas da religião cristã, são também celebradas pelos irmãos separados de nós, as quais, de vários modos, segundo a diversa condição de cada Igreja ou Comunidade, podem, sem dúvida, produzir realmente a vida da graça e devem ser tidas como aptas para abrir o acesso à comunhão da salvação.

Por isso, ainda que cremos que as Igrejas[36] e Comunidades separadas, como tais, têm defeitos, de forma alguma estão desprovidas de significado e valor no mistério da salvação. Pois o Espírito de Cristo não recusa servir-se delas como meios de salvação, cuja virtude deriva da mesma plenitude de graça e verdade confiada à Igreja Católica.

 

Há todavia mais pontos de contato entre católicos e cristãos separados. Estes podem servir-se e servem-se, de fato, das Sagradas Escrituras. Reconhecem as mesmas Escrituras (salvo várias diferenças, em alguns, a respeito de certos livros chamados deutero-canônicos) e reconhecem-nas como palavra de Deus escrita, inspirada por Ele, que é útil para ensinar, para argumentar, para corrigir, para formar na justiça, a fim de que o homem de Deus seja perfeito, apto para toda a obra boa (2 Tim. 3, 16-17). E nestas Escrituras encontram modos comuns e belíssimos, Salmos e cânticos da Bíblia, para orar a Deus, inspirados pelo mesmo Deus. Como o expressou S. Agostinho: “Para que o homem tivesse maneira digna de louvar a Deus, Deus louvou-se a si mesmo; e porque Deus se louvou a si, encontrou o homem maneira de O louvar”[37]. Com esta oração, agradável a Deus, inspirada por Deus, podem congratular-se todos os cristãos.

Além da palavra de Deus escrita, admitida mais universalmente por todos os cristãos, existe também, em muitos deles, a Palavra de Deus transmitida pela Tradição. Com os ortodoxos orientais, existem vínculos de estreita unidade, como são os que derivam da participação durante dez séculos, duma tradição riquíssima e antiquíssima na Igreja. A Igreja dos sete grandes Concílios, a Igreja dos Padres de primeira grandeza, cuja memória delicia a alma e a eleva com a abundância e suavidade de uma doutrina inesgotável; profunda em S. Atanásio e S. Basílio, perspicaz e luminosa em S. Gregório Nazianzeno; arrevesada, popular e abundante como cascata, no Príncipe dos oradores sagrados, S. João Crisóstomo. E tantos e tantos outros, cujo escritos lemos com prazer. São comuns com os orientais as efusões de devoção à Mãe de Jesus, de que estão impregnados, por exemplo, os escritos de S. Efrém.

Há ainda outros bens da Esposa de Cristo, que se podem encontrar fora da Igreja Católica. Como são, a divina, sobrenatural, a esperança, que deriva desta fé, a caridade que vivifica estas virtudes, os dons do Espírito Santo, a vida da graça

Poder-se-iam acrescentar ainda, como elementos comuns visíveis, o símbolo dos Apóstolos que todos professam. Depois, a profissão de fé de Nicéia, admitida por muitos; a pregação do mesmo Evangelho ou mensagem de salvação, trazida por Jesus Cristo. Admitem também o fato da revelação divina, com que Deus nos falou ultimamente por seu Filho, depois de nos ter falado, muitas vezes, e de muitas maneiras pelos Padres e Profetas (Heb. 1, 1).

Muitas Igrejas separadas participam do mesmo Pão Eucarístico. E além do sacrifício da Eucaristia, reconhecem e admitem os sete sacramentos, propriamente ditos.

Por isso, o Concílio, tratando das ações sagradas que realizam à maneira de sacramentos[38], isto é, tratando dos “atos do culto realizados em comum”[39] afirma que entre os irmãos separados têm lugar não pouca dessas ações sagradas, próprias da religião cristã.

A Igreja reconheceu, em diversas ocasiões, a validade da vida sacramental nas Igrejas ortodoxas orientais.

“A transmissão ininterrupta do exercício, válido, do poder de ordem, no interior das Igrejas dissidentes, é um testemunho comovedor da profundidade da vontade salvífica de Deus, que, enquanto continua desta forma a dispensar as graças convenientes do seu sacrifício e dos seus sacramentos… nos revela o desígnio maravilhoso de começar, em certo modo, a formar a sua Igreja, fora da sua Igreja”[40].

Estas ações sagradas, esta vida sacramental, que por direito pertence à única Igreja de Cristo podem produzir a vida da graça e servir no plano divino, para abrir o acesso à comunhão da salvação.

Por tudo o que fica dito, se vê, que também as Igrejas separadas[41] que se contra distinguem da católica e única Igreja de Cristo, podem conservar, e de fato conservam, alguns meios de salvação, como são a fé que mantêm na palavra de Deus, o batismo e os demais sacramentos, a contrição dos pecados e a caridade, virtude teologal, etc. O Espírito Santo serve-se destes meios de salvação, cuja força deriva daquela plenitude de verdade e de graça que há na única Igreja de Cristo, que é a católica. Com o que se volta a repetir, de outra maneira, o que pouco antes se disse negativamente: que pensamos que as Comunidades ou Igrejas separadas sofrem de algumas deficiências quanto aos meios de salvação.

Isto, contudo, não quer dizer que estas Comunidades não significam nada, nem sirvam para nada, na ordem salvífica de Deus ou mistério da salvação.

  

Não participam, porém, da unidade que Cristo quis para a sua Igreja (n°3 c)

3 c.Contudo, os irmãos separados de nós, quer como indivíduos quer nas suas Comunidades e Igrejas, não gozam daquela unidade que Jesus Cristo quis dar a todos, os que regenerou e convivificou num só corpo e numa vida nova e que a Sagrada Escritura e a venerável Tradição da Igreja, declaram. Com efeito, só por meio da Igreja Católica de Cristo, que é o instrumento geral da salvação, se pode conseguir toda a plenitude dos meios de salvação. Cremos, na verdade, que o Senhor confiou todos os bens do Novo Testamento, a um só Colégio Apostólico, a que Pedro preside, para construir na terra um único Corpo de Cristo, no qual é necessário que se incorporem, totalmente, os que de qualquer forma já pertencem ao povo de Deus. Povo que, embora permaneça sujeito ao pecado, nos seus membros, durante a sua peregrinação terrena, cresce em Cristo e é suavemente conduzido por Deus, segundo os seus misteriosos desígnios, até que, alegre, chegue à total plenitude da glória eterna, na Jerusalém celeste.

 

Anteriormente, ao comentar o proêmio (n°1) expusemos as razões por que a Igreja de Cristo tem de ser uma com unidade de doutrina, unidade de governo e unidade de sacrifício e de sacramentos. Demos os motivos pelos quais consta que Jesus Cristo e S. Paulo desejavam esta unidade. Poderíamos juntar outros argumentos da Tradição.

Na realidade, só a verdadeira e única Igreja de Cristo, goza da plenitude dos meios de salvação. E esta verdadeira Igreja de Cristo, é aquela que Cristo fundou sob o governo do Colégio Apostólico, onde Pedro exerce o ofício do Primado. Não há Colégio Apostólico sem Pedro e Pedro é o seu Primaz e Presidente. A Igreja, que continua este regime dos sucessores do Colégio Apostólico, com o sucessor de Pedro no Primado, é a que goza dos bens que Cristo confiou à sua Igreja.

Este é o verdadeiro corpo de Cristo e “no qual é necessário que se incorporem, totalmente, os que de qualquer forma já pertencem ao povo de Deus”. Com o que se torna a afirmar que a comunhão dos irmãos separados, com a Igreja Católica, não é plena, nem perfeita, nem podem dizer-se incorporados no Corpo de Cristo de uma forma plena.

 

A Igreja recomenda a participação no ecumenismo (n°4)

O ecumenismo sinal dos tempos (n°4 a)

4. a Se bem que hoje, pelo impulso da graça do Espírito Santo, em muitas partes do mundo, pela oração, pela palavra e pela ação, se fazem muitos esforços para se alcançar aquela plenitude de unidade que Jesus Cristo quer, este Santo Concílio, exorta todos os fiéis católicos a que, reconhecendo os sinais dos tempos, solicitamente participem no movimento ecumênico.

 

Com a frase “sinal dos tempos”, cresce a persuasão de que é o Espírito Santo quem move hoje, no mundo, a preocupação pela unidade plena que Cristo quis para os cristãos[42]. A Instrução do Santo Ofício sobre o movimento ecumênico, reconhecia que este movimento era “impulsionado pela graça do Espírito Santo”[43]. E não é difícil dar a razão: pois, a tendência para a unidade entre os cristãos, corresponde aos desígnios do Pai e à vontade manifesta de Jesus Cristo; e, portanto, é obra do bom Espírito. S. Paulo enumera, entre as “obras da carne”, (o espírito humano)… ódios, discórdias, ciúmes, iras, richas, dissenções, divisões,invejas…” (Gál. 5, 20-21); enquanto que “os frutos do Espírito são caridade, …paz, longanimidade, afabilidade…” (ibid., v.22). A tendência para a unidade cristã, não pode ser senão obra do Espírito de unidade. Seguir, por conseguinte, a moção ecumênica, com a oração, com a palavra e pelas ações, é cooperar com a ação do Espírito Santo. O Concílio exorta a esta participação.

  

Como participar no ecumenismo (n°4 b)

4b.Por ”Movimento ecumênico” entendem-se as atividades e iniciativas que, segundo as várias necessidades da Igreja e oportunidade dos tempos, se empreendem e ordenam a favorecer a unidade dos Cristãos. Tais são: primeiro, todos os esforços para eliminar palavras, preconceitos e atos, que, segundo a justiça e a verdade, não correspondem à condição dos irmãos separados e, portanto, tornem mais difíceis as mútuas relações com eles; depois, o diálogo” entabulado entre peritos competentes, em encontros de Cristãos das diversas Igrejas e Comunidades, organizados com espírito religioso, em que cada um explica mais profundamente a doutrina da sua Comunhão e apresenta com clareza as suas características. Pois, por este diálogo, todos adquirem um conhecimento mais verdadeiro e um mais justo apreço da doutrina e da vida das duas Comunhões; além disso, essas Comunhões conseguem também uma colaboração mais ampla em certas obrigações exigidas, em ordem ao bem comum, a toda a consciência cristã e onde for permitido, participam na oração em conjunto. Finalmente, todos examinam a sua fidelidade à vontade de Cristo quanto à Igreja e, na medida do necessário, empreendem vigorosamente o trabalho de renovação e de reforma.

 

Por ecumenismo, entendem-se aquelas atividades e iniciativas que se ordenam a promover a unidade dos cristãos, segundo as necessidades da Igreja e a oportunidade dos tempos. Compreende-se que estas atividades e iniciativas podem variar com as circunstâncias de lugares e tempos. Por isso, nem sempre será prudente aplicar, sem mais, num país, o que se faz noutro. O que numa parte cai bem e dá resultado, é possível que noutra, produza frutos perniciosos.

Mas, falando de um modo geral, parece que hoje, em todas as partes, dará bons resultados utilizar os meios de participação assinalados pelo Decreto. São os seguintes:

1° Eliminar juízos, palavras e ações que não correspondem à verdade e causam dano às relações mútuas. Acima de tudo a verdade. E é possível que também nós, os católicos, sejamos por vezes, vítimas de preconceitos inveterados. Não devemos pensar, por exemplo, que a conduta moral dos acatólicos é péssima ou sempre pior que a dos católicos. Este juízo não corresponderá à verdade. Muito menos podemos pensar ou presumir, enquanto se não prove, má fé nos acatólicos de hoje, nascidos num ambiente afastado da Igreja. Está bem de ver que não há motivo para manifestar tais juízos nas palavras ou nas obras, negando-se, por exemplo, a prestar-lhes certos serviços ou uma colaboração honesta.

2° Entabular “diálogo” entre peritos, bem instruídos, de diversas confissões. Em tais reuniões e diálogos, cada um explica mais a fundo a doutrina da sua Igreja ou Comunidade e procura apresentar, com clareza, as suas características.

Já se entende, mas convém relembrar, que este diálogo só pode fazer-se com fruto, tratando-se de pessoas verdadeiramente entendidas e de verdadeiros peritos. Pois, caso contrário, serão mais aptos para criar confusão que para esclarecer. Não basta, segundo o nosso parecer, uma cultura religiosa comum, ou um mero título acadêmico, que, por vezes, significa muito pouco. E além de ciência profunda, é necessário sabê-la expor com clareza, sublinhando os pontos essenciais distinguindo-os dos acidentais. Se não se reúnem estas condições, o diálogo pode causar dano a ambas as partes.

Mas, se estas condições se realizam, devidamente, podem dissipar preconceitos, podem determinar os pontos chave e essenciais dos problemas ou das dissensões; podem contribuir para um crescente conhecimento mútuo e mútua estima; podem facilitar a colaboração nos empreendimentos religiosos contra o materialismo e o ateísmo teórico e prático, que é hoje inimigo comum; podem, finalmente, promover a colaboração nos objetivos comuns de todas as confissões cristãs.

Até poderão ser, tais diálogos, uma preparação para a oração conjunta se estiver autorizada.

Em tais reuniões, examinar-se-á a própria conduta, em ordem a ver se se conserva a fidelidade à vontade de Cristo, no tocante ao modo como Ele quis a sua Igreja e proceder-se-á consequentemente.

 

Sob a vigilância dos Pastores (n°4 c)

4c. Tudo isso, realizado com prudência e paciência pelos fiéis da Igreja Católica, sob a vigilância dos Pastores, contribui para promover a equidade e a verdade, a concórdia e a colaboração, o amor fraterno e a união, de modo que por este caminho, pouco a pouco, vencidos os obstáculos que impedem a perfeita comunhão eclesiástica, todos os Cristãos se congreguem na celebração duma só Eucaristia, na unidade de uma única Igreja, a qual, Cristo, desde o início deu à sua Igreja e que cremos subsistir, indefectível, na Igreja Católica e que esperamos cresça, até à consumação dos séculos.

 

Compreende-se que tais diálogos e assembleia ou reuniões comuns, de indivíduos de diferentes confissões, exigem uma vigilância solícita por parte da autoridade hierárquica. Cabe-lhe indicar as normas e modo de realizar tais reuniões e diálogos e exigir as condições e circunstâncias que lhe pareçam oportunas. O Diretório Ecumênico, que se prepara, determinará ou esclarecerá mais em concreto, alguns pormenores.

Não corresponderia a um desejo ecumênico, impulsionado pelo Espírito Santo, a participação em tais diálogos, às ocultas da Hierarquia ou ludibriando a sua vigilância. O Espírito Santo não se contradiz, nas suas moções, e move certamente à obediência e docilidade à legítima autoridade.

É necessário que tudo se faça – diz o Concílio – “com prudência e paciência”.

Paulo VI, solícito e vigilante pelo bem de toda Igreja, falou publicamente, em Roma, numa audiência geral, durante o Oitovário pela Unidade (1965) sobre as condições em que deve efetuar-se a prática do ecumenismo bem entendido[44].

Por isso, torna-se necessário proceder com prudência e paciência e assim, podem tais diálogos contribuir para a verdade e justa equidade, para a concórdia e colaboração, para a união e fraternidade.

 

A meta

A meta será, quando se tiverem superado todos os obstáculos, a celebração de uma mesma Eucaristia. Sempre esta celebração conjunta, foi olhada como um sinal de unidade perfeita. A Eucaristia é o símbolo da nossa unidade. Já o dissemos (nº 2, a). Voltaremos a repeti-lo. Porque todos nós, “somos um só Corpo, pois todos participamos de um mesmo Pão” (I Cor. 10, 17). Na oração sobre as oblatas (secreta) da missa do Corpo de Deus, pede-se que o Senhor conceda à sua Igreja a graça  da unidade e da paz que misticamente se significam nos dons oferecidos[45]. O pensamento repete-se na missa votiva “para a unidade da Igreja” e também na oração sobre as oblatas: “Santificais, Senhor, estes dons oferecidos para a união do povo cristãos e por eles, concede os dons da unidade e da paz à tua Igreja”.

Assim, todos os cristãos se congregarão na unidade da Igreja de Cristo, una e única. É a unidade que teve a Igreja desde o princípio, dada por Cristo e cremos com fé (não se trata somente de um “somos de opinião”[46]) que a unidade continua e subsiste na Igreja Católica e aumentará, como esperamos, até ao fim dos tempos.

  

Não se opõe às conversões individuais (nº 4 d)

4 d. É, pois, evidente, que a obra de preparação e reconciliação de cada um dos que desejam a plena comunhão católica é, por sua natureza, distinta da ação ecumênica. Não há, porém, nenhuma oposição, pois, ambas procedem da disposição admirável de Deus.

 

O movimento ecumênico, de que falamos, não é o mesmo que o apostolado das conversões individuais entre os cristãos. O movimento ecumênico tende, pela sua mesma natureza, a facilitar a união das massas, ainda que pode ter também como resultado, conversões individuais. Estas, não se excluem, ainda que não provenham do movimento ecumênico.

Disse-se que o número de conversões individuais tinha diminuído ultimamente, por exemplo, na Inglaterra, em consequência da propaganda ecumênica que reconhecia os bens que há nas outras confissões, distintas da católica. Dizia-se que esta propaganda tinha tirado a muitos, o desejo de se converterem e ingressar no Catolicismo. E que tinha aumentado a propaganda protestante, desde que se começou a falar de ecumenismo.

Na verdade, cremos que, se o movimento ecumênico se faz e se propaga como deve ser, isto é, com o respeito e caridade que se devem à consciência e aos irmãos equivocados, mas com clareza e simplicidade em apresentar o ponto de vista católico, não vemos que isto (que se dá segundo a moção do Espírito Santo) impeça o movimento particular das conversões para a Igreja, que se dá também segundo a moção do mesmo Espírito. O Espírito Santo não se contradiz nas suas obras[47]. Tudo sucede segundo a disposição admirável de Deus.

 

O que os católicos devem fazer (nº 4 e)

4 e. É sem dúvida necessário que na ação ecumênica os fiéis católicos se preocupem com os irmãos separados, rezando por eles, dialogando com eles sobre as coisas Igreja, sendo os primeiros a ir ao seu encontro. Mas antes de mais nada, devem, por sua parte, considerar com sinceridade e deligência o que é preciso renovar e fazer na própria família católica, para que a sua vida dê um testemunho mais fiel e mais claro da doutrina e dos ensinamentos dados por Cristo através dos Apóstolos.

 

A solicitude ecumênica diz respeito a todos, ainda àqueles católicos de países que não sejam pluriconfessionais. O interesse pelos irmãos é de todos.

Primeiro e antes de tudo, a oração. Pois, se o Senhor não constrói a casa, trabalham em vão os que a procuram levantar (Ps. 126, 1).

Segundo, comunicar-lhes as coisas da Igreja; isto é, falar-lhes delas de um modo prudente e discreto, segundo o parecer dos bispos e sob a sua orientação pastoral.

Terceiro, ir ao seu encontro; não esperar só, que eles venham. Já se entende que estes passos devem ser dados onde seja prudente e eficaz.

Sobretudo, que cada católico, com sinceridade e deligência, procure renovar-se, para que a vida dos católicos seja um testemunho mais fiel e mais claro da doutrina e do que Cristo quis na sua Igreja. A caridade, por exemplo, em receber os de outras confissões, pode ser um testemunho claro, do modo como Cristo queria que nós, cristãos, nos tratássemos e uma ocasião para dar a conhecer a doutrina de Jesus Cristo sobre a unidade.

 

Ainda que a Igreja é Santa não o são todos os seus membros (nº 4 f)

4 f.Pois, ainda que a Igreja tenha em si toda a verdade revelada por Deus e todos os instrumentos da graça, nem por isso os seus membros vivem com todo o fervor correspondente, pelo que, a face da Igreja refulge menos diante dos irmãos separados e de todo o mundo e o crescimento do reino de Deus é retardado. Portanto, todos os católicos devem tender à perfeição cristã[48] trazendo no seu corpo a humildade e a mortificação de Cristo[49] e esforçar-se, cada um segundo a sua condição, para que a Igreja de dia para dia se purifique e se renove, até que Cristo a apresente a Si, gloriosa, sem mancha nem ruga[50].

 

Professamos no Credo, que a Igreja é santa e explicamos no Catecismo que a Igreja é santa porque o seu Esposo, Jesus Cristo, é santo, a sua doutrina é santa (é a plenitude da verdade revelada por Deus), os seus sacramentos e demais meios de santificação, são santos e podem fazer santos os que de coração professam esta doutrina verdadeira e usam os meios de santificação da Igreja.

Isto, não se opõe a que alguns ou muitos membros da Igreja, não sejam santos. As parábolas com que Cristo descreveu o que se passava no seu Reino ou Igreja,  dão-no-lo a entender perfeitamente. Pois, havia cizânia misturada com o trigo (Mt. 13, 24-30); havia peixes bons e maus (Mt. 13, 47-50).

Esses católicos maus ou menos fervorosos, não mostram a verdadeira face da Igreja aos irmãos separados e ao mundo inteiro; com a sua conduta, retardam a dilatação do Reino de Deus.

Por isso, convém que todos tendam à renovação e perfeição da sua vida, segundo os conselhos de S. Paulo (Rom. 12, 1-2) e de S. Tiago (Iac. I, 4); e assim, tendendo a perfeição da vida cristã, procurem que a Igreja com a humildade e mortificação de Cristo, levada nos corpos (Cfr. 2 Cor. 4, 10; Fil. 2, 5-8), se purifique e se renove cada vez mais, com nova juventude e apareça como a Esposa, de Cristo, sem mancha nem ruga (Cfr. Ef. 5, 27).

 

In necessariis unitas, in dubiis libertas, in omnibus caritas (nº 4 g)

4 g.Todos, na Igreja, segundo o ofício dado a cada um, mantendo a unidade nas coisas necessárias, conservem a devida liberdade, tanto nas diversas formas de vida espiritual e de disciplina, como na diversidade dos ritos litúrgicos, até mesmo na elaboração teológica da verdade revelada. Em tudo, porém, pratiquem a caridade. Por esse modo de proceder manifestarão cada vez mais plenamente a autêntica catolicidade e apostolicidade da Igreja.

 

O pensamento de S. Agostinho[51] que serve de epígrafe a este parágrafo, aproveita-o o Concílio para exprimir a conduta ideal dos católicos, nas relações entre si e nas relações com os irmãos separados.

Nas coisas necessárias, é preciso conservar a unidade.

Tais são as de fé definida e as de fé, ensinadas pelo Magistério ordinário[52] ainda que não estejam definidas. Além disso, para conservar a unidade, será boa norma aceitar o que se manda defender e ensinar pela legítima autoridade eclesiástica. Este Magistério autêntico e preceptivo da Igreja, ainda que não seja definitório e peremptório, é norma de obediência e segurança doutrinal.

Fica um vasto campo para a liberdade, na variedade de sentenças e pareceres que se referem a formas de vida espiritual e de disciplina. Porque pretender levar a todos pelo mesmo caminho? É um princípio de direção espiritual, que é grande erro querer levar a todos da mesma maneira. Os espíritos são diferentes; o Espírito sopra, em cada caso, onde quer. Cabe-nos a nós, não nos adiantarmos à moção do Espírito, mas sim, segui-la e cooperar com ela, na direção dos demais. É bem de ver que pode haver diversidade nos ritos litúrgicos; é outro princípio admitido e proclamado na Constituição Litúrgica do Vaticano II[53]

Mesmo na elaboração da Teologia, pode haver maneiras diferentes, dentro duma justa liberdade. Já Pio XI o fazia notar na Encíclica Studiorum ducem, sobre o Anjo das Escolas: “Que uns não exijam dos outros, mais do que exige de todos a Igreja, Mãe e Mestra de todos; porque, naquelas coisas, sobre que se costuma discutir nas escolas católicas, entre os melhores autores, a ninguém se deve proibir que siga a opinião que lhe pareça mais verosímil”[54]

Em tudo e acima de tudo, a caridade. A caridade é sempre norma de paz e faz com que se receba, com espírito aberto, aquilo que é tido por verdade. Se sempre, nas discussões, presidisse a norma da caridade ou ao menos a da cortesia! Não se trata de vencer um adversário, mas de convencer. Para isso, ajuda chegar à cabeça, mas passando pelo coração. A razão principal, sem dúvida, deste modo caritativo de agir é que os que  assim procedem, manifestarão mais e cada dia melhor, a autêntica maneira de ser da verdadeira Igreja de Cristo, católica e apostólica.

 

Reconhecer e estimar os bens dos outros (n.° 4 h)

4 h. Por outro lado, é necessário que os católicos reconheçam, com alegria, e estimem os bens verdadeiramente cristãos, oriundos de um patrimônio comum, que se encontram nos nossos irmãos separados. É justo e salutar reconhecer as riquezas de Cristo e as obras virtuosas na vida dos outros que dão testemunho de Cristo, por vezes até o derramamento de sangue. Pois Deus é sempre sublime e digno de admiração nas suas obras.

Nem se deve esquecer que tudo o que o Espírito Santo opera, pela graça, nos irmãos separados, pode também contribuir para a nossa edificação. Tudo o que é verdadeiramente cristão, nunca se opõe aos genuínos bens da fé e pode até fazer que se consiga mais perfeitamente o próprio mistério de Cristo e da Igreja.

 

Há bens religiosos que provém dum patrimônio universal e comum. Encontram-se também, entre os cristãos separados de nós.

Se ainda dos pagãos e gentios (mesmo no caso de serem pecadores), se deve dizer que “nem todas as obras dos pecadores são pecados”, a fortiori se deverá dizer dos cristãos que podem viver, e de facto muitos vivem a vida da graça de Deus. Não há inconveniente nenhum em reconhecer as obras de virtude que praticam, antes pelo contrário, a equidade e a justiça, assim o aconselham. Podem dar e dão de fato, em não poucas ocasiões, testemunho de Cristo. Com as suas esmolas, com a sua vida morigerada, com a sua honradez, com o seu zelo missionário, com a sua vida de oração… Quem não recorda o modo que Noni se fez católico, preparado por uma vida de oração e honradez cristã, na sua família protestante?[55]. É justo e salutar reconhecer estas riquezas do Cristianismo e estas obras de virtude onde quer que se encontrem. São testemunhos da força santificadora do cristianismo.

E algumas vezes, este testemunho chegou mesmo ao derramamento de sangue. Foram mártires os irmãos separados. Entre os mártires da Uganda, recentemente canonizados por Paulo VI, havia alguns anglicanos. Reconheceu-o publicamente o Papa, na homilia de canonização. Depois de mencionar os mártires Carlos Lwamba, Matias, Mulumba Kalemba e seus vintes companheiros, acrescentou : “São também dignos de menção, outros, que professando a religião anglicana, morreram pelo nome de Cristo”[56].

Os cristãos separados podem, diante de Deus e dos homens, ter verdadeiros mártires, se o motivo da sua morte, é o ódio da verdadeira fé cristã que eles possuem, ao menos em parte. Pressupõe-se a boa fé nos seus erros específicos e a caridade e paciência, inspiradas, com que aceitam o martírio. A Igreja, contudo não lhes atributa culto, porque não morreram em plena comunhão com ela[57].

Mas o que Deus operou neles é digno de admiração.

O que a graça do Espírito Santo opera os cristãos separados, é bom e pode servir-nos de edificação. O que é verdadeiramente cristão nunca impede, nem pode causar dano à fé autêntica. Porque, pois, não reconhecer a bondade de tais obras? Foram feitas pelo impulso do Espírito Santo e servirão para conhecer melhor o plano de Deus, no mistério de Cristo e da Igreja. Pio XI insistiu em certa ocasião, falando à Federação Universitária Católica Italiana (9 de janeiro de 1927), na estima que se deve ter aos bens cristãos, autênticos, que há noutras confissões: “Também aos católicos – dizia-lhes – falta por vezes a piedade fraterna, porque lhes falta o conhecimento. Não se conhece tudo o que há de precioso, de bom, de cristão, naqueles pedaços de antiga verdade católica. Os fragmentos, separados de uma barra de ouro, também são ouro. As veneráveis cristandades orientais conservam tão veneranda santidade de coisas, que merecem não só todo o respeito, mas ainda toda a simpatia”[58].

E hoje poderíamos referir-nos ao mosteiro protestante  de Taizé. A prática dos votos monásticos, introduzida naquele cenóbio, que procura e promove a unidade e a reconciliação de todos os cristãos, não pode deixar de nos alegrar, porque ( depois dos ataques de que foram alvos tais votos pelos reformadores do século XVI), o reconhecimento destes conselhos e meios de perfeição, é reconhecer a doutrina do Evangelho e aproximar-se mais da vida católica.

 

As divisões impedem a catolicidade (n.º 4 i) 

4 i. Contudo, as divisões dos cristãos impedem que a própria Igreja realize a plenitude da catolicidade que lhe é peculiar naqueles filhos que, na verdade, unidos a ela pelo batismo, estão, apesar de tudo, separados de sua plena comunhão. E até para a mesma Igreja se torna mais difícil exprimir, na realidade da vida, sob todos os aspectos, a plenitude da catolicidade.

 

Se os cristãos estão divididos, há um impedimento para que a Igreja manifeste, plenamente, a sua catolicidade, naqueles que, embora pertencendo-lhe pelo batismo, estão separados da união  e plena comunhão com ela. Se falta esta união perfeita, não podem participar da plenitude dos bens que a Igreja lhes comunicaria. A catolicidade falha, portanto, no que diz respeito a estes irmãos separados.

A catolicidade da Igreja sofre, também, quanto aos não cristãos. Pois, devido a estas divisões e cismas, não se manifesta tão perfeita a catolicidade, como poderia mostrar-se plenamente, se todos aparecessem unidos.

  

Que os bispos promovam e dirijam a ação ecumênica (n.° 4 j)

4 j.Este santo Concílio nota com alegria que a participação dos fiéis católicos na acção ecumênica, aumenta cada dia mais. Recomenda-a aos Bispos de todo o mundo, para que seja promovida com diligência e por eles dirigida prudentemente.

 

O Concílio novamente aprova e recomenda a participação no movimento ecumênico. A recomendação é para os fiéis e para os Bispos. Devem harmonizar a diligência  e habilidade em promover o ecumenismo, com prudência. A eles cabe dirigir este movimento nos respectivos países[59]. O Diretório ecumênico, que se prepara, descerá a outros pormenores mais particulares, que seriam aqui impróprios dum documento Conciliar.

 

 


* O Pe. José Sánchez somente é autor da primeira parte do capítulo terceiro, o qual trata das Igrejas Orientais.

[1] Cfr. Jo. 4, 9; Col. I, 18-20; Jo 11, 52.

[2] Cfr. Jo. 13, 14.

[3] Cfr. Jo. 16, 7.

[4] Cfr. I Cor. 12, 4-11.

[5] Cfr. Mt. 28, 18-20, em relação aJo. 20, 21-23.

[6] Cfr. Mt. 16, 28, em relação a Mt. 18, 18.

[7] Cfr. Lc. 22, 32.

[8] Cfr. Jo. 21, 15-17.

[9] Cfr. Ef. 2, 20.

[10] Cfr. I Petr. 2, 25; Conc. Vaticanum I, Sess. IV (1870), Constitutio Pastor Aeternus: Coll. Lac. 7, 482 a.

[11] Primeiro responsório do primeiro noturno.

[12] Cfr. Modi a Patribus Conciliaribus propositi a Secretariatu ad christianorum unitatem fovenda mexaminati, I, Prooemiumet caput I, “De catholicis oecumenismi principiis” (Typi polyglottis Vaticanis 1964), pp. 15-16, nº 28. Designamos estes fascículos, impressos para uso dos Padres e Peritos conciliares, pela abreviatura Modi.

[13] Não precisamente um amor maior que o dos outros Apóstolos, como se dava a entender no esquema prévio. O Secretariado aceitou esta emenda, proposta por seis Padres. Modi I, p. 18, nº 29.

[14]Collectio Lacensis, VII, 482 a.

[15] Sobre o modo como os bispos recebem e reproduzem o Magistério do Romano Pontífice e, sendo sujeito passivo deste Magistério, são também sujeito ativo de um magistério próprio, falamos largamente em Problemas del Concilio Vaticano II, Madrid 1963, c. II (Magistério “ordinário” no Papa e nos Bispos). Neste capítulo não só falamos dos bispos como sujeito passivo do magistério papal, mas também dos bispos como sujeito de um magistério pessoal e próprio.

[16]Modi I, p. 17, nº 35.

[17] Ibid.

[18] Foi pedido expressamente numa das emendas, que a “concórdia fraterna”, que estava em segundo lugar, fosse posta em terceiro lugar, porque devia corresponder ao “governo no amor”, que estava em terceiro lugar, no primeiro membro. Cfr. Modi I, pp. 16-17, nº 34.

[19] Cfr. Is. 11, 10-12.

[20] Cfr. Ef. 2, 17-18, em relação a Mc. 16, 15.

[21] Cfr. I Pedr. I, 3-9.

[22]Constitutio De Fide Catholica, c. 4; DENZINGER Enchiridion, Symbolorum, nº 28 (1895-1896) 710.

[23] Encíclica Satis cognitum (29 de Julho de 1896): Acta Sanctae Sedis, 28 (1895-1896) 710.

[24] Cfr. I Cor. 11, 18-19; Gál. 1, 6-9; I Jo. 2, 18-19.

[25] Cfr. I Cor. 1, 11 sgs.; 11, 22.

[26] Cfr. Conc. Florentinum, Sess. VIII (1439), Decretum Exultate Deo: Mansi 31, 1055 A.

[27]Cfr. S. AUGUSTINUS, In Ps. 32, Enarr.II, 29; PL 36, 299.

[28] A culpabilidade por parte dos homens da Igreja Católica, não por parte da mesma Igreja, enquanto tal, é algo que se reconhece pela História. Reconheceram-no o Papa Adriano IV e o Cardeal Reinaldo Pole (no Concílio de Trento, este último). E quanto ao cisma entre o Oriente e o Ocidente pode ver-se a Relação de Mons. Máximo Hermaniuk, sobre o capítulo III do esquema emendado De oecumenismo (1964), p. 11. Citamo-las mais adiante, ao comentar o nº. 14 c.

[29] Concílio Vaticano I, Constituição “de fide catholica”, c. 3; DENZINGER, Enchiridion Symbolorum, nº 1794. Para exposição mais demorada e documentada, remetemos para o nosso livro Psicologia y Pedagogia de la Fe, 2º ed., Madrid, Fax, 1963, c. 5.

[30] DENZINGER, EnchridionSymbolorum, nº 2305.

[31] Ibid.

[32] S. AGOSTINHO, In Ps. 32, Enarrat. II, 29; ML 36, 299; JOÃO XXIII, Ad Petri cathedram (29 de Junho de 1959); 51 (1959) 515.

[33] “In Ecclesiae autem membris reapseii soli annumerandi sunt, qui regerationis lavacrum receprunt veram que fidem profitentur”: AAS 35 (1943) 201-202. O sublinhado é nosso.

[34] DENZINGER, Enchridion symbolorum, nº 696.

[35] Cfr. Modi I, p. 25, nº. 28,

[36] Cfr. Conc. Lateranense IV (1215), Constitutio IV: Mansi 22, 900; Conc. Lugdunense II (1274), Professio fidei Michaelis Palaeologi: Mansi24, 71 E; Conc. Florentinum, Sess. IV (1439), Definitio Laetenturcaeli: Mansi 31, 1026 E.

[37]In Ps. 144, nº 1; Corpus Christianorum 40, 2088: ML 37, 1869.

[38][38] Cfr. Modi I, p. 30, nº 51.

[39] Ibid., p. 29, nº 47, responsio.

[40] CH JOURNET, L’ Eglise Du Verbe Incarné, I, La Hiérarchie Apostolique, 2ª edit. 1955, p. 652; cfr. L BILLOT, De Ecclesia Christi, Romae 1921, p. 339.

[41] O nome de Igrejas, atribuído às confissões cristãs separadas, não é raro nos documentos eclesiásticos; v. gr., no Concílio Lateranense IV (1215), Constitutio IV: MANSI, SS. Concil., 22, 990; Concilio Lugdunense II (1274), Profesio fidei Mich. Palaeologi: MANSI, SS. Concil. 24, 71 E; Concílio Florentino, Sessão VI (1439), Definição Laetentur caeli: Mansi, Ss. Concil. 31, 1026 E.

[42] A frase do esquema prévio, Spiritu Sancto afflante, foi mudada por sugestão do Sumo Pontífice, em afflante Spiritus Sancti gratia. Antes, tinham-no pedido, sem resultado, sete Padres, por crerem que as primeiras palavras se referem, commumente, à inspiração bíblica. Cfr. Modi I, 36, nº 3.

[43] De motione oecumenica (20 de Dezembro de 1949): AAS 41 (1950) 142.

[44] Vejam-se mais adiante as suas palavras, no comentário ao artigo 11º.

[45] “Ecclesiae tuae, quaesumus, Domine, unitatis et pacis propitius dona concede, quae sub oblatis muneribus mystice designantur”.

[46] Cf. Modi I, p. 38, nº 16.

[47] Cfr. Modi I, p. 39, nº 17.

[48] Cfr. Tiag. 1, 4; Rom. 12, 1-2.

[49] Cfr. II Cor. 4, 10; Filip.

[50] Cfr. Ef. 5, 27.

[51] É a expressão dum espírito reto, amplo e caritativo.

[52] Cfr. PIO IX, Epist. Tuas Libenter (21 de Dezembro de 1863); DENZINGER, Enchiridion Symbolorum, nº 1683; Concílio Vaticano I, Const. De Fide catholica, c. 3; DENZINGER, Ench. Symbolorum, nº 1792.

[53] Artigos 37º-40º

[54] AAS 15 (1923) 324.

[55] NONI Y MANNI, Cómo llegué a ser católico. Tradução da própria conversão e histórica, narrada pelo autor P. J. SVENSON, Wie ich katholisch wurde, em “Stimmen der Zeit”, Munchen. A tradução espanhola, publicada em Bilbau, Edit. El Mensajero.

[56] AAS 56 (1964) 906.

[57] S. CIPRIAANO: “Esse martyr non potest, qui in Ecclesia non est; ad regunum pervenire non poterit qui cam quae renatura est derelinquit”. De unitate Ecclesiae 14; ML 4, 526, Sobre o catolicismo dos mártires escreveram amplamente SUÁREZ, Defensio fidei catholicae, lib. I, c. 20: Opera 24, 99-102; BENTO XIV, De servorum Dei beatificatione…, 3, c. 19-20; P, ALLARD, Martyre: Dict. Apologétique de la foi catholique 3, 337-342.

[58] L’Osservatore Romano, 10-11 de Janeiro de 1927.

[59] Cfr. Instruc. S. Officii, De motione oecumenica: AAS 42 (1950) 147.

 

FONTE


DECRETO DO ECUMENISMO DO CONCÍLIO VATICANO II – Texto e comentário teológico e pastoral. Livraria Apostolado da Imprensa, 1966.

 

PARA CITAR


NICOLAU, Pe. Miguel. Comentário teológico e pastoral ao Decreto sobre o Ecumenismo (parte 2)Disponível em: <http://www.apologistascatolicos.com.br/index.php/concilio-vaticano-ii/ecumenismo/712-comentario-teologico-e-pastoral-sobre-o-decreto-do-ecumenismo-parte-2 >. Desde: 04/08/2014.

 

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