INTRODUÇÃO
Atualmente é comum vermos protestantes querendo usar os padres da Igreja para provarem suas doutrinas. Um caso destes, são calvinistas que tentam através dos padres provar a sua doutrina da predestinação. Tudo isto se torna muito interessante a medida que os calvinistas atuais parecem querer ser mais calvinistas que o próprio Calvino e tentam achar uma conciliação entre os padres da Igreja e a doutrina calvinista, coisa que o próprio Calvino tinha como incompatíveis, e inclusive criticava duramente os padres da Igreja por isto.
CALVINO CRITICA OS PADRES DA IGREJA
Em suas Institutas Calvino fala como os padres aceitavam o livre arbítrio humano, com o titulo:
“Os pais da igreja mostram geralmente menos clareza, mas uma tendência a aceitar a liberdade da vontade. O que é o livre-arbítrio?” (2.2.4, pp. 258-261)
Calvino começa o texto com a seguinte declaração:
“Todos os escritores eclesiásticos reconheceram que tanto a solidez da razão no homem está gravemente ferida pelo pecado, quanto a vontade tem sido muito escravizada por maus desejos, ainda muitos deles chegaram a abordagem muito próxima dos filósofos. Alguns dos escritores mais antigos parecem-me exaltar as forças humanas a partir de um temor de que um reconhecimento distinto de sua impotência pudessem expô-los às zombarias dos filósofos com quem eles estavam disputando, e também forneciam a carne, já muito declinada do bem, um novo pretexto para a preguiça. Portanto, para evitar ensinar qualquer coisa que a maioria da humanidade pudesse considerar um absurda, eles fizeram com que seu estudo, em alguma medida, reconciliasse a doutrina da Escritura com os dogmas da filosofia, ao mesmo tempo, tornando-se seu cuidado especial para não fornecer qualquer ocasião para preguiça.”
A primeira parte também reflete o entendimento ortodoxo da condição caída da humanidade e do nosso continuo livre arbítrio e a capacidade de raciocinar. No entanto, Calvino criticou esta compreensão da condição humana alegando que os pais da igreja primitiva ao afirmar a razão humana chegaram “muito próxima dos filósofos”. Ele acreditava que os primeiros pais tomaram esta posição, a fim de evitar “as zombarias dos filósofos”. Então, ele alegou que os pais afirmavam o livre-arbítrio humano “para não dar ocasião para preguiça”. Ele escreveu:
“Certamente você ver por estas declarações que eles creditaram ao homem mais zelo pela virtude do que ele merecia, porque eles achavam que eles não poderiam despertar nossa indolência inata, ao menos eles argumentaram que nós pecamos por isso sozinhos.”
A rala opinião de Calvino sobre os pais gregos se mostra clara e limpa na seguinte frase:
“Além disso, mesmo que os gregos, acima do resto, e entre eles especialmente Crisóstomo, exaltam a capacidade da vontade humana, mas todos os antigos, salvo Agostinho, de algum modo diferem, vacilam, ou falam confusamente sobre este assunto, que quase nada pode ser determinado derivado de seus escritos.” (Institutas Livro II, Capítulo II)
A frase acima é pura dinamite. Primeiro, Calvino estava ciente da crença dos primeiros pais (“todos os antigos”) sobre o livre arbítrio. Segundo, que ele acreditava que os padres da Igreja falavam “confusamente”, o que significa que para ele, não houve consenso patrístico no livre-arbítrio. Terceiro, nada de valor pode ser aprendido com os pais da igreja primitiva sobre esta matéria. Quarto, a única exceção entre os pais da igreja primitiva é, segundo ele, santo Agostinho.
Todas estas teses são muito interessantes, mas como qualquer conjunto de teses, precisam ser apoiadas em provas e argumentos. É decepcionante, portanto, ao descobrir que Calvino desdenha de fornecer qualquer elemento de prova. Por isso, nós não iremos listar exatamente as opiniões dos escritores individuais; mas nós escolheremos aleatoriamente de um ou outro, como a explicação do argumento parece exigir.
UMA RESPOSTA A CALVINO
Se Calvino não vai “listar mais exatamente as opiniões dos escritores individuais”, então eu vou. As citações seguintes são apresentadas para mostrar a amplitude e a profundidade de afirmação do livre-arbítrio humano da Igreja primitiva.
Inácio de Antioquia (110 d.C), um dos Padres Apostólicos, afirmou o livre-arbítrio humano:
“Visto, então, que todas as coisas têm um fim, é-nos colocada diante de nós a vida, fruto da nossa observância [aos preceitos de Deus], e a morte, como resultado da desobediência; todos – conforme a escolha que fizer – encontrarão seu próprio lugar, permitindo escapar da morte e optar pela vida. Observo que duas características diferentes são encontradas nos homens: a verdadeira moeda e a espúria. O verdadeiro fiel é o tipo verdadeiro de moeda, cunhada pelo próprio Deus. O infiel, por sua vez, é uma moeda falsa, ilegal, espúria, falsificada, cunhada não por Deus, mas pelo diabo. Não estou querendo dizer que existem duas naturezas humanas diferentes; existe apenas uma única humanidade que, às vezes, pertence a Deus, e outras vezes, ao diabo. Se alguém é verdadeiramente religioso, será também homem de Deus; mas, se não for religioso, será homem do diabo, não por sua natureza, mas por sua própria escolha.” (Epístola Aos Magnésios Versão Longa – Capítulo V)
A Epístola a Diogneto, considerado parte do corpus dos padres apostólicos, afirmou o livre-arbítrio humano:
“Ao contrário, enviou-o com clemência e mansidão, como um rei que envia seu filho. Deus o enviou, e o enviou como homem para os homens; enviou-o para nos salvar, para persuadir, e não para compelir, pois em Deus não há violência.” (Mathetes – Epistola a Diogneto 7, 3)
Clemente de Roma (90-100 d.C) tem sido citado em apoio ao livre-arbítrio (ver Reconhecimentos 9, 30). No entanto, sérias dúvidas têm sido levantadas sobre a autenticidade dos Reconhecimentos (Patrologia de Quasten Vol. I, p. 61-62).
Justino Martir (100-165 d.C), um aposlogista que foi educado na filosofia clássica antes de sua conversão, escreveu:
“De fato, do mesmo modo como no princípio nos fez do não ser, assim também cremos que àqueles que escolheram o que lhe é grato, concederá a incorruptibilidade e a convivência com ele, como prêmio dessa mesma escolha. Com efeito, ser criados no princípio não foi mérito nosso; mas agora ele nos persuade e nos conduz à fé para que sigamos o que lhe é grato, por livre escolha, através das potências racionais, com que ele mesmo nos presenteou.” (Apologia I, 10).
Atenágoras (Século II), outro apologista antigo, escreveu:
“Do mesmo modo, porém, que os homens têm livre-arbítrio podem optar pela virtude e pela maldade – pois se não estivesse em seu poder a maldade e a virtude, não honraríeis os bons nem castigaríeis os maus, quando uns se mostram diligentes e outros desleais naquilo que lhes confiais -, assim tam bém os anjos.”(Petição em Favor dos Cristãos – XXIV).
Irineu de Lion (195 d.C), considerado o maior teólogo do segundo século, do mesmo modo afirmou que a capacidade do homem para a fé era baseada em seu livre-arbítrio:
“Agora todas essas expressões demonstram que o homem está em seu próprio poder no que diz respeito à fé” (Contra as Heresias 4.37.2).
Cipriano de Cartago (c. 200 / 210-258), o filho espiritual de Tertuliano e um dos Padres latinos, afirmou o livre-arbítrio humano. O seu Tratado 52 é intitulado “A liberdade de crer ou de não crer é colocado em livre escolha.”; Ele deu três passagens das Escrituras em apoio desse ensinamento: Deuteronômio 13, 19 , Isaías 1, 19, e Lucas 17, 21.
Santo Atanásio de Alexandria (296-373 d.C) era conhecido por sua defesa da natureza divina de Cristo. Na sua obra sobre a vida de Santo Antonio §20 ele escreveu que a virtude humana depende da existência do livre-arbítrio humano:
“Portanto virtude precisou em nossas mãos de vontade prórpia, uma vez que está em nós e é formada de nós.” (Vida de Santo Antônio).
Orígenes de Alexandria (185-254 d.C) em sua obra De Principiis Prefácio §5 fez esta observação sobre a opinião geral da Igreja:
“Isto também está claramente definido no ensinamento da Igreja, que toda alma racional é possuidora de livre-arbítrio e vontade.”
Assim como significativo é o fato de que a negação do livre arbítrio humano foi rejeitada como um ensinamento errôneo. O oposto do livre-arbítrio é “vontade com limitações de necessidade”, esta Vicente de Lerins (d. Antes 450) em seu Commonitório observa como herética, porque faz o pecado ser irresistível.
“Quem, antes de Simão Mago, duramente castigado pela reprimenda apostólica – e de quem provém a antiga enxurrada de torpezas que, por sucessão ininterrupta e oculta, tenha chegado até Prisciliano – se atreveu a dizer que Deus criador é o autor do mal, ou seja, de nossos delitos, de nossas impiedades, de nossos vícios? Este afirma que Deus, com suas próprias mãos, cria a natureza estruturada de maneira que, por movimento espontâneo e sob o impulso de uma vontade necessitada, não pode mais, não quer mais que pecar. Agitada e incendiada pelas fúrias de todos os vícios, se vê arrastada com ânsia inesgotável aos abismos de toda sorte de crimes. Exemplos como estes existem e não acabam mais, mas deixemo-los para sermos breves. Demonstram a todos com evidência que a atitude normal e comum de qualquer heresia é gozar-se nas novidades profanas e sentir repulsa pelos dogmas da antiguidade, até o ponto de naufragar na fé por causa de discussões de uma falsa ciência. Ao contrário, é próprio dos católicos guardar o depósito transmitido pelos Santos Padres, condenar as novidades profanas e, como muitas vezes repetiu o Apóstolo, descarregar o anátema sobre quem tem a audácia de anunciar algo diferente do que foi recebido.” (Comonitório capítulo XXIV)
Uma condenação semelhante pode ser encontrada em Metódio (311 d.C) na obra O Banquete das Dez Virgens:
“Agora aqueles que decidem que o homem não é dotado de livre-arbítrio e afirmam que ele é regido pelas necessidades inevitáveis do destino, e os seus comandos não escritos, são culpados de impiedade para com o próprio Deus, fazendo-o ser a causa e o autor dos males humanos.” (O Banquete das Dez Virgens – Capítulo 16).
João Crisóstomo, famoso por sua pregação e patriarca de Constantinopla, igualmente condenou a negação do livre arbítrio humano, em sua terceira homilia sobre a Timóteo:
“Tendo assim alargado sobre o amor de Deus que, não contente com misericórdia com um blasfemo e perseguidor, conferiu-lhe outras bênçãos em abundância, ele tem se guardado contra esse erro dos descrentes que tira o livre arbítrio, acrescentando que, ‘com fé e o amor que há em Cristo Jesus.’ ” (Homilia Sobre Timóteo III)
Outra testemunha significativa para o livre arbítrio é Cirilo de Jerusalém (310-386 d.C), Patriarca de Jerusalém, no século IV. Em suas famosas leituras catequéticas, Cirilo repetidamente afirma o humano livre-arbítrio (Leituras 2.1-2 e 4.18, 21)
Da mesma forma, Gregório de Nissa (. 330-c 395), em suas leituras catequéticas, ensinou:
“Para Ele que fez o homem para a participação de Sua própria peculiar bondade, e incorporou nele os instintos de tudo o que era excelente, a fim de que seu desejo pudesse ser transportado por um movimento correspondente em cada caso a sua vontade, nunca teria privado o daquele mais excelente e precioso de todos os bens; Quero dizer o dom implícito em ser seu próprio mestre, e ter uma vontade livre.” (O Grande Catecismo – Leitura V)
João Damasceno (675-745 d.C), Um Padre da Igreja do oitavo século, escreveu a coisa mais próxima de uma teologia sistemática na Igreja primitiva, a Exposição da Fé Católica. Nela, ele explicou que Deus fez o homem um ser racional dotado de livre-arbítrio e, como resultado da queda, o livre-arbítrio do homem foi corrompido (Livro 3 Capítulo 14).
São João Climaco (579-649), um Padre do Deserto do século VII, em seu clássico espiritual, A Escada da Ascensão Divina, escreveu:
“Dos seres racionais criados por Ele e honrados com a dignidade do livre-arbítrio, alguns são Seus amigos, os outros são Seus verdadeiros servos, alguns são sem valor, alguns estão completamente afastados de Deus, e outros, embora criaturas fracas, são Seus adversários” (Degrau 1.1).
Uma pesquisa com os primeiros escritos cristãos mostram o seguinte: (1) a doutrina do livre-arbítrio humano foi ensinada pelos Padres Apostólicos (Inácio de Antioquia e na Carta a Diogneto), (2) que foi afirmado pelos apologistas (Justino Mártir e Atenágoras), (3), foi ensinado pelos principais Padres da Igreja, como Irineu de Lion, Atanásio, o Grande, e Gregório Magno, (4) que foi ensinado pelo Padres latinos (Cipriano de Cartago), (5), foi ensinado por Padres sírios (João Damasceno), (6), foi ensinada pelos Padres do Deserto (João da Escada), e (7), foi afirmado pelo Patriarca de Jerusalém Cirílo em suas leituras catequéticas. É inexplicável, para não mencionar indesculpável, Calvino ter recusado a participar deste amplo consenso patrístico. Calvino em contraste dependia exclusivamente em um pai igreja mais tardio, Agostinho de Hipona. Além disso, o ensinamento de Agostinho não concorda com ele, além do mais suas explicações sobre livre-arbítrio humano foram escritas em resposta à heresia pelagiana e não para apresentar uma posição equilibrada.
Segundo o Comonitório de Vicente de Lenris, a negação de Calvino ao livre-arbítrio humano não pode ser considerada parte da fé católica. Ao contrário da afirmação do livre-arbítrio humano, é que pode ser encontrado nos Padres Apostólicos e os Apologistas que viveram no século II, Calvino não fez nenhum apelo aos Padres Ante-Nicenos; assim ele falha em razão da antiguidade.
Mesmo que se pudesse admitir que Santo Agostinho cria na predestinação calvinista seria um caso isolado e único, pois os testemunhos patristicos sobre livre arbítrio podem ser encontrado em todo o mundo antigo: Gália, Itália, Ásia Menor, África do Norte, Síria, para não mencionar o grande vê de Constantinopla, Alexandria, Antioquia e Jerusalém. Assim, o argumento de Calvino também falha em razão da onipresença da crença no livre arbítrio em todos os lugares. Na melhor das hipóteses ele poderia ser apenas considerado como uma opinião pessoal, mas não o ensino católico e universal da Igreja.
Degradação dos pais da igreja por Calvino, não era um improviso ou no calor do momento uma hipérbole. Calvino quis dizer o que ele escreveu. Por uma questão óbvia, ele repetiu este ponto novamente no capítulo 2.2.9 (pp. 266-267).
“Talvez eu pareça ter trazido um grande prejuízo em cima de mim quando eu confesso que todos os escritores eclesiásticos, exceto Agostinho falaram de maneira tão ambígua ou diversamente sobre este assunto que nada certo pode ser adquirido a partir de seus escritos….. Mas eu não quis dizer nada mais do que eu queria de forma simples e sincera para aconselhar a piedade popular;. para que se fossem depender de opiniões daqueles homens nesta matéria, eles sempre tropeçariam na incerteza ao mesmo tempo esses autores ensinam que o homem, despojado dos poderes da livre vontade, se refugia na graça. em outro momento eles fornecem, ou parecem fornecer, ele com sua própria armadura. ” (Institutas 2.2.9)
A recusa de Calvino a fornecer evidência de apoio a sua afirmação, é angustiante. O que temos aqui não é erudição, mas o dogmatismo.
A dependência quase exclusiva de Calvino sobre Agostinho de Hipona é alheio ao método teológico dos primeiros cristãos como descrito no Comonitório de São Vicente de Lenris: “O que tem sido crido em todos os lugares, sempre, e por todos” “ubique quod, quod semper, quod ab omnibus.” (Comonitório – Capítulo 2.6).
CONCLUSÃO
Mas algumas perguntas difíceis precisam ser feitas sobre o método teológico de Calvino. Primeiro, foi Calvino mais sábio do que a série de todos os primeiros Padres da Igreja? Será que os discípulos dos Apóstolos e seus sucessores deixaram a bola cair? Ou seja, em vez de guardar cuidadosamente o depósito Apostólico, eles descuidadamente deixaram-no ser modificado para seguir suas próprias idéias pessoais ou para agradar suas congregações? Essa doutrina correta desapareceu e foi substituída por uma heresia? A resposta a estas perguntas é: Não. A história mostra que, na sua luta com os problemas e questões levantadas pelos filósofos gregos e várias heresias, eles procuraram ser fieis a Sagrada Tradição. Além disso, a história mostra os primeiros cristãos dispostos a morrer pela fé, em vez de recorrer a um compromisso com a heresia. Quanto mais se toma o tempo para ler e aprender o que os pais da igreja acreditavam e ensinavam, mais confiança tem-se que o Espírito Santo, de fato, fazer jus à promessa de Cristo para ensinar e liderar a Igreja em toda a verdade.
As Institutas 2.2.4 e 2.2.9 fornecem enormes insights sobre método teológico de Calvino. Lá nós achamos que, apesar de sua familiaridade com os pais da igreja primitiva e sua disposição em citá-los, Calvino estava, de fato, muito longe do método patrístico. Ele não tinha nenhum interesse em aprender o consenso patrístico em questões específicas. Para um cristão ortodoxo esta atitude é alarmante. Mas ainda mais chocante foi destruir o consenso dos pais da igreja, alegando que seus ensinamentos eram confusos e contraditórios. Ele não dá nenhuma evidência de apoio a sua alegação. Não podemos lhe inferir deficiência intelectual, mas obstinação arrogante.
PARA CITAR
ARAKAI, Robert. Calvino critica os padres da Igreja por serem contra sua doutrina. Disponível em: <http://www.apologistascatolicos.com.br/index.php/patristica/controversias/799-calvino-critica-os-pais-da-igreja-por-serem-contra-sua-doutrina-da-predestinacao> Desde: 24/06/2015. Traduzido por Rafael Rodrigues.