Pe. Sertillanges foi teólogo e filósofo tomista. Autor da famosíssima obra “A Vida Intelectual”. Também foi chefe de redação da Revue Thomiste. Lido e recomendado nos ambientes tradicionais da Igreja.
Os sentimentos da Igreja em relação ao passado religioso do mundo, não pode deixar de aplicar-se – na proporção devida – ao presente. Passado, presente e futuro, são diversidades temporais que trazem consigo conseqüências parciais, mas a unidade da Igreja traz também consigo as suas, e não é possível sacrificar algumas mais do que as outras.
Como o fim do passado é de derramar-se mediante o presente no porvir, o passado que resiste ao progresso, embora anteriormente tivesse sido bom, muda-se em mau por efeito de sua resistência; e o que era mau se muda a pior. As antigas religiões que conseguiram sobreviver ao cristianismo, agravaram, portanto sua malícia no que tinham de mau e de bom, no que fez que as que denominávamos preparações e antecipações se convertessem hoje em dia em resistências.
O dever dessas religiões antigas, enquanto tinham de desvios era endireitar-se, e enquanto eram preparações, chegar a seu fim; resumindo: abdicar, pois uma vez chegado o perfeito, realizar-se no o que era a única possibilidade nobre que podia ter o provisório, e por força maior o acessório, principalmente quando se achava tão profundamente adulterado.
“A luz do mundo” devia expulsar as trevas, e chegar com sua claridade sem mácula que se se desvanece a autora e as demais claridades dispersas, valores que foram o encanto do amanhecer, mas são no lugar um opróbrio para o meio-dia que com isso fica retardado.
Mas não foi aceitado tal sacrifício, nem sequer o é ainda. Por causas históricas muito complicadas, como as questões de raça, de distância material, de costumes seculares, de ignorância enraizada ou de orgulho exclusivista, de paixões sem domar ou de boa vontade mas transviada, as religiões dissidentes se perpetuaram do mesmo modo que se perpetuam as civilizações dissidentes.
É algo curioso constatar como estes dois casos se esclarecem reciprocamente. Os notáveis progressos destas últimas épocas – contemporâneos, observemos bem, do cristianismo, e que no mapa coincidem claramente com seus próprios territórios – a quão poucos homens foram de proveito! Se descartamos a nossas terras cristãs, quão limitada é a mancha saudável de azeite difundida pelo mundo com o nome de civilização!
Pode ser compreendido, mas não aprovado. O diletantismo e o relativismo, os que quiseram ver nisso tão só interessantes variedades, sofreram em todos os tempos as condenações da Igreja. A variedade é preciosa quando manifesta com maior riqueza a natureza, desenvolvendo seus aspectos diversos; mas a variedade que consiste em produzir, ao invés de homens normais, monstros ou abortos, nada tem que brindar ao filantropo, Jacobo Callot se diverte com eles e Velázques lhes aplica com aquela sua admirável serenidade, seu frio pessimismo, mas o homem que ao invés de pintar, obra, comporia, se tivesse poder para isso e converteria a sua estatura normal para Antonio o Inglês e para Infante de Vallecas.
Se há de curar o que é anormal ou patológico. Se é voluntário, é preciso reprová-lo. Se é aprovado por alguns, que seria em matéria de religião a tendência de dilentatismo ou do indiferentismo, urge o dever de denunciar o erro, filho de uma covardia.
Nossa Igreja não deixa de fazê-lo. Diante das religiões que encontrou já estabelecidas e a perseguiram, do mesmo modo que das que se obstinam em viver, isoladas ou agressivas, a seu lado – verdades parciais mescladas com erros grosseiros, com práticas perversas ou com tendências perniciosas hoje, do mesmo modo que na época de seu nascimento, a Igreja, que por virtude de Cristo e do Deus que Cristo lhe dá, é verdade integral em seus elementos, quando não em seus desenvolvimentos, prática fecunda e santidade ativa na ordem individual e na social, sustenta de forma contínua, sempre e em todas as partes a sublime intransigência que é o dever da verdade frente ao erro, do bem frente ao mal e do melhor, quando sua hora é chegada, frente ao imperfeito que resiste.
Não temais – ou não espereis, segundo o espírito que os anime – que nossa Igreja adote jamais essa atitude de tolerar dogmaticamente as religiões tais como são, fazendo cumprimentos a suas verdades e concessões a seus erros. Não é isto próprio dela.
A Igreja diz o que há. Reivindica seus direitos. Tendo o dever de guiar à humanidade, pois continua a missão do Filho do Homem através dos tempos, oferece a todos seu ofício mediador. Nunca se impõe, mas reprova as negativas e classifica os grupos. Não pode aceitar que se diga: a salvação está aqui ou está ali, como se não fosse nela.
Falsos Messias – dirá ela – reconheça ao Messias! Eu sou a que leva a tocha ardente; é ainda, a própria cera da vela vivente que se chamou a si mesmo Luz do mundo.
Eu sou o edifício, não feito por mão de homem, no qual se encontra a porta das ovelhas, aquela pela qual devem passar para ir aos divinos pastos todas as ovelhas humanas.
Eu sou o caminho, a verdade e a vida, pois continuo a Aquele que o é, ao Deus que levo comigo.
Fora de minha verdade, há verdades, mas não tais que se sustentam sozinhas.
Fora de minha lei, há leis, mas não as há plenamente autônomas.
Fora de meus desígnios, há destinos que começam mas não os há que acabem, nem direções que possam chegar a sua finalidade.
FORA DA IGREJA, NÃO HÁ SALVAÇÃO: eis aqui o que prontamente diz a Igreja.
Mas esta, segundo ela mesma, não é mais que uma verdade parcial. É preciso acabá-la.
Do mesmo modo que temos dito que a Igreja nascente se opôs às religiões antigas e não obstante estas lhe haviam sido úteis; assim também temos de dizer que a Igreja vivente e permanente se opõe às religiões dissidentes e, contudo, por obra de Deus e de seu Cristo, sua amplitude as envolve todas e se serve delas.
O que para a partida valia, é valido também para o caminho. O ser responde a suas origens.
À maneira, pois, que a Igreja em sua universalidade, que é total por obra de Deus e seu Cristo, contém a civilização toda inteira, à maneira que contém a mesma natureza que é Reino de Deus, que está submetida aos eleitos, como os eleitos a Cristo, como Cristo a Deus, assim a Igreja compreende as religiões dissidentes no que têm de bom e de útil e as absorve em sua unidade.
A subordinação, pelo o que está relacionado à civilização geral, consiste em que sendo a vida humana uma unidade e propondo-se a religião conduzir ao homem seu destino último e verdadeiro, tudo o que trabalha para o homem trabalha também para a religião. A Igreja pode dizer, com mais direito que o antigo poeta: Homem sou (posto que é uma sociedade humano-divina) e nada humano considero estranho a mim. O que ela oferece, ou seja a graça, se baseia no que nos é proporcionado pela Providência:a natureza, e no que nós com nosso esforço acrescentamos: a civilização. Todo o esforço civilizador, que é o mesmo que o trabalho da natureza, está, pois, justamente englobado no movimento religioso que nos impulsiona até o fim humano.
Ao aplicar esta doutrina às religiões dissidentes, temos de proceder a fortiori, ou pelo contrário, diminuir o rigor dela, segundo o aspecto sob o qual se as considere.
Há diminuição, enquanto as religiões dissidentes, tomada em sua integridade, não são semelhantes ao cristianismo como é a civilização geral, cujos valores se oferecem tais quais são e sem redução alguma à utilização cristã. Mas há um a fortiori em outro sentido, porque as religiões dissidentes no que têm de bom, refletem e representam a nossa; e porque elas podem, consequentemente, na medida em que a representam e sempre acidentalmente substituí-la em seu ofício, e isto na ordem propriamente religiosa, coisa que não pode fazer por si mesmo o trabalho civilizador. Se teve, pois, a Igreja a visão bastante compreensiva para reconhecer a verdade e o bem nas religiões que foram anteriores a elas, não vai negá-lo as que lhe estão próximas e são, em sua maior parte, a continuação histórica daquelas.
Mas na verdade e no bem das religiões dissidentes, a Igreja não reconhece unicamente a verdade e o bem; ela se reconhece, reconhecendo ao homem e a Deus, cuja síntese é sua definição, cuja obra comum é seu trabalho próprio.
O que de bom há nas religiões dissidentes, não lhes pertence; pertence à humanidade, cujos instintos teria sugerido, pertence a Deus que sempre e por tudo deixou filtrar raios de sua luz; pertence, portanto, a verdadeira religião que traz consigo de parte de Deus e por a mediação de Cristo, a verdadeira e completa fórmula do homem, a verdadeira e perfeita lei do homem, os bons e eficazes meios do homem.
Nossa Igreja católica, ao abraçar com sua alma todas as almas filhas de Deus onde quer que residam, abraça também, com seu corpo, a título de dependências extrínsecas dele, todas as fórmulas religiosas que lhe são elas mesmas opostas, mas também servidoras, ainda que parcialmente e pelo meio que acabamos de indicar.
Dizíamos que as religiões dissidentes eram diabólicas, mas isso não é obstáculo para que acessoriamente e como per accidens sejam providenciais. Elas não dão a graça, mas podem ocasioná-la, guardá-la ou ajudá-la a crescer, com auxílios exteriores que Deus, hóspede de todo coração que não lhe rechaça, saberá fazer eficazes. Seu nome próprio é o de abrigos de ocasião, da mesma maneira que temos denominado à Sinagoga domicílio autêntico provisório.
Mais lhe vale ao chinês de coração nobre e inconscientemente cristão seu Confucio que nada, seu pagode que a rua, seus ritos que o sopro sem consistência da vida interior, suas associações bem ou mal organizadas que um individualismo esgotante. Mais vale ao maometano seu Alá, ao índio seu Indra ou seu Deus de fogo e ainda ao romano suas “aves sagrados” que a M. Homais sua grosseira risada.
Todas as religiões e todas as igrejas, quaisquer que sejam, merecem este louvor, ao sofrer os mesmos ultrajes. Elas resistem e servem. Elas negam sua adesão e, apesar disso, favorecem a adesão das almas ao Deus desconhecido que age nelas, ao qual as vezes se entregam ignorando-o, porque Cristo, irmão de todos, ainda dos que o ignoram, está diante de sua porta fechada e toma por um sim a ausência de um não culpável, que envolve um consentimento ao cumprimento do dever.
Cristo, embora desconhecido e exteriormente ultrajado, apesar de tudo se faz presente. Habita no deserto e bendiz a cidade. Está em Benares, na Meca e em Roma; aqui, como em sua casa; ali, como no estrangeiro. Ele fala no Vaticano, mas o som muezim, voz impotente em si mesma, pode pronunciar palavras que por obras de Cristo serão eficazes. Não lhe desanimam as desfeitas se não são culpáveis. Nem sequer as perseguições lhe obrigam a fugir da alma do perseguidor. Ele dá seu sangue aos que, sem reconhecê-lo como próprio, derramam o sangue de seus heróicos filhos. Dá vida aos que lhe dão morte. Recebe misteriosamente aos que lhe blasfemam, mas somente com os lábios. Promete sua vida eterna ao que lhe nega, se não o faz de coração.
Tudo perdoa, tudo crê, tudo espera, porque Ele é Caridade. Ele disse: PERDOAI-OS, PORQUE NÃO SABEM O QUE FAZEM.
FONTE
SERTILLANGES, Antonin-Gilbert. La Iglesia, Libro terceiro, cap. II, pp. 102-108, ano 1946.
PARA CITAR
SERTILLANGES, Antonin-Gilbert. ATITUDE DA IGREJA EM RELAÇÃO ÀS RELIGIÕES CONTEMPORÂNEAS DELA <http://www.apologistascatolicos.com.br/index.php/concilio-vaticano-ii/religioes/788-atitude-da-igreja-em-relacao-as-religioes-contemporaneas-dela> Desde 21/05/2015