Sábado, Dezembro 21, 2024

AS SEMENTES DO VERBO E OS POETAS PAGÃOS

C. Alcaraz, 10.11.22
 
A afirmação de que as religiões não-cristãs, também chamadas pagãs, contêm "sementes do Verbo" é objeto de viva repreensão por parte de tradicionalistas. Afirmação semelhante encontra-se, porém, no Padre apologeta Justino, mártir que recebe o culto da Igreja desde tempos remotos.
O santo faz duas afirmações sobre as ditas sementes (lógoi spermatikoí, rationes seminales): i) estão presentes nos poetas pagãos (pagãos gregos, no caso); e ii) são ingênitas a toda a humanidade. Nosso propósito, porém, é abordar apenas a primeira proposição, procurando demonstrar que não se distorce a afirmação, relativa à poesia, transpondo-a ao contexto religioso.

POESIA GREGA ANTIGA

A poesia grega podia ser épica, trágica, cômica, lírica e circunstancial. 

Na primeira categoria encontramos os dois assentos fundamentais do mundo grego: a Ilíada e a Odisseia, de Homero. Os textos narram eventos sucedidos num passado que, embora próximo, é mítico, com a ação desenrolando-se em torno ao rapto de Helena, grega, por Páris, príncipe de Troia, com envolvimento direto dos deuses. Esses textos eram comumente recitados publicamente por rapsodos, não lidos. Os épicos gregos eram compunham a base cultural comum entre as diversas populações helênicas, que não tinham unidade política na Era Arcaica ou Clássica.

A tragédia, possivelmente anterior à comédia, nasce em Atenas e conta com diversos nomes de relevo cultural eterno, dentre os quais Sófocles (autor de Édipo Rei, peça favorita de Aristóteles) e Eurípides. A sensibilidade trágica dos gregos era um tanto diferente da nossa, pois o desenlace dos enredos da tragédia não consiste em reconciliações, em resolver os problemas surgidos no decurso da peça: ao contrário, uma falta às vezes inconsciente suscita mortes e destruição. O efeito sobre o público é de pena e temor. As narrações também costumam representar os deuses como interventores em assuntos humanos (e, com frequência, como demasiadamente humanos, sendo movidos por sentimentos baixos).

A comédia trata de assuntos mais leves e com um humor que soa bastante "contemporâneo", repleto de insinuações e piadas escatológicas.

A lírica trata de assuntos amorosos e não se prestava à representação teatral, mas apenas à récita.

A poesia circunstancial é aquela que trata de efemérides, ocasiões passageiras e breves, ataques pessoais, zombaria etc.

RELAÇÕES ENTRE POESIA E RELIGIÃO

O primeiro vagido das civilizações muitas vezes é a poesia de caráter religioso (incluo, aqui, a mitologia na religião). Tal fato explica-se porque o ritmo, a métrica e outros recursos sonoros próprios da poesia facilitam sua memorização, algo fundamental em épocas nas quais a escrita ou não era conhecida, ou não era amplamente difundida. Vemos que assim sucedeu a babilônios, com a Epopeia de Gilgamés; a indianos, com os Vedas e o Mahabharata; e também a gregos, com Homero.

A poesia prestava-se à transmissão de conhecimentos a respeito dos deuses, dos rituais adequados e dos homens de outras eras.

Analisemos os gêneros épico e trágico, os mais afins à questão posta.

Os épicos gregos (bem como os poemas de Hesíodo, a Teogonia e Os trabalhos e os dias) prestavam-se à referida função de maneira tão evidente que os próprios gregos o reconheciam: como disse Heródoto, o "pai da História", foi Homero quem ensinou os gregos a respeito de seus deuses. Os épicos gregos descrevem longa e repetidamente os rituais de sacrifício dos heróis homéricos, quase que os inculcando no interlocutor – afinal, a piedade homérica consistia em cumprir adequadamente os ritos prescritos.

A Teogonia e Os trabalhos e os dias, ambos poemas de Hesíodo, também serviam como fonte de conhecimento a respeito da religião para os antigos gregos, embora não sejam propriamente épicos (são poemas didáticos, mas escritos em estilo épico). Neles, o autor explica ao ouvinte, em suma, como surgiram os deuses, o mundo, o homem e qual a razão da atual condição humana – discurso que, por força, associamos à religião, pois é na religião que o homem busca resposta a tais questões.

A poesia trágica, posterior a Homero e Hesíodo, retrata narrações mitológicas menos abrangentes, muitas vezes ampliando episódios dos épicos, mas também descrevendo os percalços na relação entre o homem, o destino e as divindades. A função didática (e, por que não, medicinal) do gênero trágico é apontada por Aristóteles na sua Poética. O prazer estético, somado aos já referidos sentimentos de pena e temor, tinha o propósito de edificar a plateia, inclusive no que toca aos deuses.

Interessante notar que a tragédia grega faz uma possível aparição na própria Escritura. São Paulo, ao descrever a visão que teve do Senhor Ressuscitado ruma a Damasco, usa de expressão muito semelhante àquela encontrada nas Bacantes, de Eurípides: enquanto o Apóstolo relata que Jesus lhe disse "duro te é recalcitrar contra o aguilhão"; nas Bacantes, Dioniso diz a Penteu que "antes oferecesse sacrifícios ao deus, em vez de recalcitrar contra seu aguilhão". Aqui, o grego recomenda a piedade, contrapondo-a à soberba humana: uma lição que não é em absoluto alheia a nossa fé.

Forçoso lembrar, ainda, que a poesia grega, além de falar sobre os deuses (um discurso, portanto, teológico, no sentido literal deste termo), era cultivada especialmente em contextos religiosos, como os festivais dedicados a Atena ou Apolo.

CRÍTICA FILOSÓFICA DA POESIA

O tema é extenso, mas convém trazer alguns apontamentos breves sobre a relação entre estas duas grandes obras do gênio grego: a poesia e a filosofia.

A representação tradicional dos deuses olímpicos foi objeto de crítica acerba ao menos desde Xenófanes, a quem não agradavam as representações antropomórficas do divino: Deus, para ele, seria pensamento puro, irrepresentável por meio de esculturas ou pinturas, capaz de mover o mundo sem precisar mover-se a si mesmo.
Platão é famoso por seus ataques a Homero, especialmente pela forma como representa os deuses, idealizando que a República ideal coibiria o discurso degradante a respeito das divindades encontrado nos épicos e demais poetas (e aqui observo que dogmas cristãos, com a Encarnação e a Morte de Deus na cruz, parecem-me enquadrar-se naquilo que Platão entendia como discurso degradante). Ainda assim, não exclui a leitura alegórica dos poetas, desde que empreendida por pessoas já capazes de não se deixar levar pelo sentido literal do texto.

Aristóteles é menos duro em relação aos poetas antigos, fazendo duas afirmações interessantes a respeito deles: i) aquele que ama os mitos está próximo da filosofia; e ii) embora os relatos feitos pelos poetas não pareçam plausíveis, eles nos foram entregues pelos antigos, merecendo por isso respeito, mas não crédito; ainda, apesar disso, são as únicas informações que temos a respeito dos deuses que cultuamos.

Os exegetas levaram a sério os problemas postos pelos filósofos, o que iniciou uma tradição de interpretação alegórica dos épicos – especialmente em Alexandria, onde, talvez não por coincidência, viveu Fílon, pioneiro judeu na interpretação alegorista da Torá e influente sobre os Padres da Igreja.

DEMAIS TRADIÇÕES POÉTICAS

Como já referido, outros povos desenvolveram uma poética com função similiar à dos gregos: transmitir conhecimento sobre deuses e homens, com nítida função religiosa.

Os primeiros textos sânscritos que conhecemos, por exemplo, são os Vedas, coleções de poemas religiosos indianos com instruções rituais, louvores e gérmens de especulação a respeito do mundo. O Mahabharata, poema épico indiano de 200.000 versos, é em algo similar à Ilíada, narrando combates e contatos entre homens e deuses.

Parece-nos arbitrário limitar a presença das sementes do Verbo à tradição poética grega, pois a afirmação de que estas estão presentes nos poetas, embora feita num contexto em que se entende referida aos gregos, tem um escopo universalista (a afirmação da sequência refere justamente a universalidade do gênero humano).

CONCLUSÃO

Para grande número de povos, poesia e religião eram fenômenos indissociáveis um do outro – embora não necessariamente se confundissem. De qualquer forma, a poesia, seja pelo seu enorme poder de agir sobre o espírito humano, seja por ser meio eficaz para a transmissão de informação, historicamente se prestou a exercer funções religiosas em diversas sociedades (Virgílio era considerado um poderoso mágico mesmo na Europa medieval cristã!). Não é por acaso vates, em latim, significa tanto a poeta como a profeta; ou que aoidós, em grego, seja tanto o poeta quanto o encantador. Apartar poesia de religião é um aspecto – que penso errôneo – do pensamento moderno, mas ausente nas culturas tradicionais ao redor do mundo. Assim, afirmar a presença de sementes do Verbo na poesia pagã é, por via oblíqua,  afirmá-la também na religião pagã, de modo que a afirmação conciliar é conforme ao pensamento do insigne mártir.

São Justino, rogai por nós!

Por C. Alcaraz, 10.11.22

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