Quinta-feira, Novembro 14, 2024

As coisas criadas tem uma autonomia legítima

Na quarta-feira, 2 de Abril de 1986, na audiência geral na Praça São Pedro às 11:00. O Santo Padre retorna sua reflexão sobre o mistério da criação, baseando seus comentário no ensinamento da Constituição Patoral “A Igreja e o Mundo Moderno” do Concílio Vaticano II.

 

1. Na catequese anterior nós entendíamos a finalidade da Criação pelo ponto de vista da dimensão “transcendental”. A Criação também demanda uma reflexão do ponto de vista da dimensão imanente.hoje isto é particularmente necessário por causa do progresso da ciência e da tecnologia, que introduziram importantes mudanças na mentalidade de muitas pessoas do nosso tempo.De fato, “muitos dos nossos contemporâneos”, lemos na Constituição Pastoral Gaudium et Spes do Concílio Vaticano Segundo sobre a Igreja no Mundo Moderno, “Parecem temer que a íntima ligação entre a atividade humana e a religião constitua um obstáculo para a autonomia dos homens, das sociedades ou das ciências” (Gaudium et Spes, 36).

O Concílio enfrentou esse problema, que possui uma conexão próxima com a verdade de fé no que concerne a criação e na sua finalidade, dando uma clara e convincente explicação. Vamos ouvi-la.

 

2. “Se por autonomia das realidades terrenas se entende que as coisas criadas e as próprias sociedades têm leis e valores próprios, que o homem irá gradualmente descobrindo, utilizando e organizando, é perfeitamente legítimo exigir tal autonomia. Para além de ser uma exigência dos homens do nosso tempo, trata-se de algo inteiramente de acordo com a vontade do Criador. Pois, em virtude do próprio facto da criação, todas as coisas possuem consistência, verdade, bondade e leis próprias, que o homem deve respeitar, reconhecendo os métodos peculiares de cada ciência e arte. Por esta razão, a investigação metódica em todos os campos do saber, quando levada a cabo de um modo verdadeiramente científico e segundo as normas morais, nunca será realmente oposta à fé, já que as realidades profanas e as da fé têm origem no mesmo Deus (6). Antes, quem se esforça com humildade e constância por perscrutar os segredos da natureza, é, mesmo quando disso não tem consciência, como que conduzido pela mão de Deus, o qual sustenta as coisas e as faz ser o que são. Seja permitido, por isso, deplorar certas atitudes de espírito que não faltaram entre os mesmos cristãos, por não reconhecerem suficientemente a legítima autonomia da ciência e que, pelas disputas e controvérsias a que deram origem, levaram muitos espíritos a pensar que a fé e a ciência eram incompatíveis (7).”

“Se, porém, com as palavras «autonomia das realidades temporais» se entende que as criaturas não dependem de Deus e que o homem pode usar delas sem as ordenar ao Criador, ninguém que acredite em Deus deixa de ver a falsidade de tais assertos. Pois, sem o Criador, a criatura não subsiste. De resto, todos os crentes, de qualquer religião, sempre souberam ouvir a sua voz e manifestação na linguagem das criaturas. Antes, se se esquece Deus, a própria criatura se obscurece.” (G.S., 36).

 

3. Estas são as palavras do Concílio. Elas constituem o desenvolvimento do ensinamento oferecido pela fé sobre a questão da criação, e provêm uma iluminação na comparação entre as verdades da fé e a mentalidade dos contemporâneos, fortemente influenciada pelo desenvolvimento das ciências naturais e pelo progresso tecnológico.

Vamos fazer um esforço no sentido de uma síntese orgânica dos principais conceitos contidos no paragrafo 36 da Constituição Gaudium et Spes.

A) A partir da doutrina do Concílio Vaticano Segundo a verdade da criação não é somente uma verdade de fé baseada na Revelação do Velho e do Novo Testamento. É também a verdade comum de todos os crentes “de qualquer religião”, dito isto, todos “que reconheçam a voz e a revelação do Criador na linguagem da criatura”.

B) Esta verdade, plenamente manifesta na Revelação, é, entretanto, acessível a razão humana. Isto pode ser deduzido pela interpretação geral do texto do Concílio e em particular por esta frase: “Sem o Criador, a criatura não subsiste…se esquece de Deus, a própria criatura se obscurece.”. Esta expressão (pelo menos indiretamente) indica que um mundo criado é postulado a partir de uma Razão Ultima, uma Primeira Causa. Pela virtude de sua própria natureza, seres contingentes, para existir, requerem um suporte do Absoluto (o Ser Necessário), que Existe per se (Ser Subsistente). O mundo passageiro e contingente “não pode existir sem o Criador”.

C) Em relação a verdade, entendida dessa maneira, sobre a criação, o Concílio torna fundamental a distinção entre “legítimo” e    “ilegítimo”da autonomia das coisas terrenas. Sua autonomia seria ilegítima (isto é, sem conformidade com a verdade revelada) se proclamar a independência das coisas criadas de Deus o Criador, e sustentar que “as coisas criadas não dependem de Deus, e o homem pode fazer uso sem se referir ao seu Criador”. Esta maneira de entender e se comportar nega a e rejeita a verdade sobre a criação; em muitos casos, quando não no próprio princípio, essa posição é mantida precisamente em nome da “autonomia” do mundo, do homem no mundo, e da ação e conhecimento humano.

Entretanto, tem que se admitir imediatamente que no contexto de “autonomia” entendido dessa maneira, é o homem que é de fato privado de sua autonomia em relação ao mundo,e no final aquele se encontra submetido a este. É uma sujeição que todos nós temos que retornar.

D) A “autonomia das realidades temporais” entendida desse jeito é – de acordo com o texto citado da Constituição Gaudim et Spes– não é somente ilegítimo, mas também inútil. De fato, as coisas possuem autonomia propriamente pela “vontade do Criador”, e está enraizado na sua própria natureza, relativa à finalidade da criação (em sua dimensão imanente). “Pois, em virtude do próprio facto da criação, todas as coisas possuem consistência, verdade, bondade e leis próprias”.Se por essa afirmação se referir a todas as criaturas do mundo visível, se refere eminentemente ao homem. De fato o homem, por extensão, busca “descobrir, explorar e ordenar” de maneira consistente como as leis e os sentidos do cosmos, não só participando criativamente na legitima autonomia das coisas criadas, mas cumprindo corretamente a autonomia que lhes é própria. Assim o individuo encontra a finalidade imanente da criação, e indiretamente com o Criador: “Antes, quem se esforça com humildade e constância por perscrutar os segredos da natureza, é, mesmo quando disso não tem consciência, como que conduzido pela mão de Deus, o qual sustenta as coisas e as faz ser o que são.”(GS 36).

 

4. Alguém pode reconhecer que o problema da “autonomia legitima das coisas terrenas” está também ligado com o problema muito sentido atualmente da “ecologia”, isto é, a preocupação e a preservação do ecossistema.

A destruição ecológica, que sempre pressupõe uma forma de egoísmo oposto ao bem estar da comunidade, surge de um uso arbitrário – e em ultima análise nocivo – da criatura, a qual a lei e a ordem natural são violadas pela ignorância ou desconsideradas em sua finalidade imanente no seu trabalho da criação. Este modo de se comportar deriva da falsa interpretação da autonomia das coisas terrenas. Quando o homem usa as coisas “sem a referência ao Criador”, para referir novamente as palavras da Constituição Conciliar, ele provoca dano incalculável a si próprio. A solução do problema da ameaça ecológica está relacionada diretamente com o princípio da “legitimidade da autonomia das coisas terrenas” – em ultima analise, com a verdade sobre a criação e sobre o Criador do mundo.

L’Osservatore Romano April 7, 1986 
Reprinted with permission.

 

PARA CITAR


Audiência geral do Papa João Paulo II, 7 de abril de 1986. <http://www.apologistascatolicos.com.br/index.php/concilio-vaticano-ii/gaudium-et-spes/777-as-coisas-criadas-tem-uma-autonomia-legitima> Tradução: Rodrigo Bastos Mello.

 

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