Segunda-feira, Novembro 18, 2024

Acerca da verdade contida na Sagrada Escritura

ACERCA DA VERDADE CONTIDA NA SAGRADA ESCRITURA

(Uma “quaestio” de Santo Tomás citada pela Const. “Dei Verbum”)

 

GONZALO ARANDA PEREZ

 

Algumas tentativas recentes de explicar a natureza da inspiração bíblica abandonaram o recurso, já clássico desde finais do século passado, ao tratado De Prophetia de Sto. Tomás [1]. Outras dessas tentativas quiseram seguir aproveitando a luz que pode oferecer o De Prophetia, mas ao mesmo tempo quiseram deixar consignado de que o Doutor Angélico, ao não incluir em seu tratado o tema da inspiração bíblica, somente nos oferece uma noção muito ampla de “inspiração” aplicável analogicamente ao que hoje entendemos sob os termos de inspiração bíblica [2]. A atenção de Santo Tomás nestas questões está centrada, segundo esses autores, no aspecto de “revelação” que incide principalmente no âmbito cognitivo do homem; o interesse pelo aspecto dinâmico que impele e rege algum tipo de atividade humana – “inspiração” – fica muito em segundo lugar para o Angélico [3].

Com esta aplicação do tratado tomista ao tema da inspiração bíblica se vem a afirmar, no lugar, a impossibilidade de sua aplicação. De fato, segundo P. Benoit, o juízo especulativo-prático e o juízo prático, que integram o carisma da inspiração bíblica, ficam fora da abordagem de Sto. Tomás nas questões De Prophetia centradas no juízo especulativo, elemento constituinte do carisma de “revelação” [4]. O aspecto especulativo, teórico ou cognoscitivo do juízo especulativo-prático do que fala P. Benoit parece, certamente, diferir bastante do juízo meramente especulativo pelo qual conhece o profeta, já que o juízo especulativo-prático vai dirigido e mediatizado, em última instância, pela execução concreta da obra que depende do juízo prático, e não pela verdade em si mesma, objeto do juízo puramente especulativo [5].

Desde estes pontos de vista, o recurso às questões de Prophetia de Sto. Tomás para explicar a natureza do carisma da inspiração bíblica, está perdendo relevo ou se pôs à prova ou desapareceu por completo em alguns autores [6]. Outros, contudo, seguem mantendo este recurso como um caminho de fecundas consequências [7].

É neste contexto de reflexão teológica onde, forçosamente, chama-se a atenção do leitor da Constituição dogmática Dei Verbum do Concílio Vaticano II, a nota número 5 do capítulo III no n. 11. Este capítulo trata de Sacrae Scripturae divina inspiratione et de eius interpretatione, e a nota a que aludimos inclui, pela primeira vez em um documento do Magistério [8], uma referência explícito às questões de Prophetia do Doutor Angélico, concretamente ao De Veritate q. 12, a. 2, c, c. Surpreendidos, em certo modo, por esta cita, queremos tentar nestas páginas descobrir o significado que encerra na ordem do tema da natureza da inspiração bíblica, segundo a mente do Concílio.

Não pretendemos fazer agora uma abordagem sistemática do grau de possibilidade de aplicação do De Prophetia à inspiração [9]. Unicamente queremos constatar como em uma questão difícil apresentada na aula conciliar, aponta-se um texto do De Prophetia, junto a outros testemunhos da Tradição e do Magistério, como fonte luminosa para esclarecer e compreender a questão. Queremos, em suma, avivar a luz que nos proporciona o Aquinate naquelas afirmações feitas pelo Concílio, para investigar mais profundamente o carisma da inspiração bíblica. Para isso será preciso examinar a história da introdução desta nota na Dei Verbum, e ver depois seu significado no contexto da questão teológica a fundo.

1. Breve história do nº. 11 da “Dei Verbum

Em julho de 1964, os padres conciliares receberam um novo texto do esquema da constituição De divina revelatione. Este texto era fruto do trabalho de uma Subcomissão doutrinal [10], que reelaborou o esquema da Comissão mista, com as observações feitas a este pelos bispos, que tinha sido enviado a eles em 30 de abril de 1963.

O novo texto havia modificado consideravelmente o parágrafo no que se insere a nota nº. 5 [11]. A redação anterior: (Scripturam)… divinitus inspiratam ab omni prorsus errore immunem esse consequitur [4: PIUS XII, Litt. Encycl. Divino afflante Spiritu, EB 539]; substitui agora: (Scripturae libri)… veritatem sine ullo errore docere profitendi sunt [5: LEO XIII, Providentissimus, EB 124; PIUS XII, Divino afflante, EB 539]. Embora nem a relatio de singulis numeris, nem a relatio generalis são muito explícitas na explicação da mudança realizada [12], enquanto pode se notar a abordagem positiva da segunda redação. Nela ficou mais explícito o conceito de inspiração [13], e já não se fala unicamente de inerrância, mas de veracidade [14]. Mas, em que sentido se deve entender veritatem sine ullo errore docere? Que classe de verdade se quer significar? A verdade, sem limitação alguma? Ao introduzir o termo veritatem os redatores do cap. III haviam aberto a porta a uma nova avalanche de observações e precisões que tentaram aclarar o alcance desse termo.

Queremos fazer notar também um aspecto que, recolhido do Magistério anterior, mantém-se ao longo de suas sucessivas redações até a aprovação definitiva do esquema: é o contexto no que se insere a afirmação da inerrância e da verdade contida na Sda. Escritura. Este contexto vem expresso nas partículas cum erro… inde… Com a primeira se introduz a afirmação do fato da inspiração; com a segunda, a afirmação da inerrância e a verdade bíblicas que, desta maneira, aparecem como uma consequência necessária da inspiração. Assim, as observações quanto à inerrância apontam também de algum modo a natureza e características da inspiração. A natureza da inspiração vai se precisando – assim ocorreu, por certo, ao longo da história da reflexão teológica – na medida que se apresentam novas questões e se compreende mais profundamente a inerrância, já que em absoluto, ambos temas se unem intimamente como causa-efeito.

O esquema reelaborado foi discutido amplamente no terceiro período do Concílio durante as congregações 91 a 95, de 30 de setembro ao dia 6 de outubro de 1964 [15]. Enquanto ao ponto que aqui estamos lidando, os Padres manifestaram o desejo de “que as consequências da divina inspiração se expressem em forma positiva, ao invés de negativa: se deveria dizer que em virtude desta (inspiração) a Escritura goza de verdade, em vez de inerrância. Tal verdade, pois, deveria ser diretamente referia a aquilo que se relaciona com a salvação, para pôr assim em evidência que os livros sagrados intencionalmente não contém nada profano, e por este motivo seu conteúdo coincide com o objeto da infalibilidade do Magistério eclesiástico” [16]. Com estas contribuições dos padres conciliares, foram feitas emendas oportunas durante os dias 20-21 de outubro. O texto emendado foi discutido e aprovado pela comissão doutrinal nos dias 10-11 de novembro e distribuído aos padres no dia 20 de novembro de 1964 em um fascículo que incluía o texto emendado e as relações pertinentes [17].

O texto emendado – ou melhor denuo emendatus – apresenta variações interessantes na redação do parágrafo que inclui a nota nº. 5; não na nota, que se conserva idêntica à correspondente do texto anterior. Agora figura a seguinte redação: “inde… (Scripturae libri) veritatem salutarem inconcusse et fideliter, integre et sine errore docere profitendi sunt” [18]. Segundo a relatio ao nº. 11 [19], a Comissão introduziu a palavra salutarem para satisfazer o desejo de muitos padres que pedem que o objeto da inerrância seja circunscrito com claridade. Mas com a inserção de salutarem se poderia entender, ao parecer, que o âmbito da inerrância bíblica se limita às verdades que Deus revela em ordem à salvação e aos feitos salvíficos que se contém na Escritura. Também cabe ver na expressão outro sentido mais correto: que todas as verdades e fatos que encontramos na Sagrada Escritura tem como objeto a salvação, e, todas elas, portanto, entram no âmbito da inerrância [20]. O texto, neste posto, apresentava-se a esta dupla interpretação, e a causa das reservas que se apresentaram a nova fórmula, acabou, como veremos em seguida, substituindo-a por outra.

As expressões inconcusse et fideliter, integradas vinham a expressar positivamente o efeito da inspiração: a inerrância [21]. Trata-se de formas adverbiais que mostram como os livros da Sagrada Escritura ensinam essa veritas salutares. Interessa notar, finalmente, que nesta nova redação de outubro de 1964 se introduziu, a continuação da passagem que estudamos, a citação de II Tim 3, 16-17 que manifesta, em primeiro termo, a finalidade santificadora da Escritura divinitus inspirata.

Quase um ano transcorreu até que pôde se levar a votação o esquema tal qual o haviam recebido os padres em novembro de 1964 [22]. O cap. III foi votado no dia 21 de setembro de 1965. A votação ao nº. 11 deu como resultado 56 non placet; e os placet iuxta modum ao cap. III foram 324, dos quais uns 200 recaíam sobre a expressão veritatem salutarem [23]. No dia 29 iniciou a Comissão doutrinal o juízo sobre as novas emendas ao esquema realizadas por uma Comissão técnica tendo em vista dos modos [24]. Mas até o dia 19 de outubro não concluiu seu trabalho. Esta tardança se deveu à dificuldade que encerrava a atenção aos modos sobre três pontos fundamentais do esquema, entre eles a questão da inerrância e concretamente a expressão veritatem salutarem [25]. Foi neste espaço de tempo, e como fruto das reflexões da Comissão doutrina, quando se modificou notavelmente o texto: a) se mudou o veritatem salutarem, por veritatem, quam Deus nostrae salutis causa litteris sacris consignare voluit…” b) se ampliou a nota nº. 5 introduzindo, entre outras, a referências às questões do De Prophetia de Santo Tomás, concretamente ao De Veritate, q. 12, a. 2 c.

O significado destas mudanças podemos apreciá-lo à luz do ocorrido nas deliberações da Comissão doutrinal [26], e da expensio modorum apresentada ao final pela dita Comissão [27]. Embora 184 padres solicitavam a supressão do termo salutarem, nem a Comissão técnica, nem em seguida a Comissão doutrina se inclinaram por suprimir a palavra em questão. Contudo, para aclarar seu sentido se ampliava a nota 5, remetendo a S. Agostinho, a Santo Tomás, ao Concílio de Trento e a outros lugares da Providentissimus [28]. Ao mesmo tempo, numas provas da expensio modorum, justificava-se a permanência do veritatem salutarem dizendo que com ela se queria expressar em que sentido era verdade tudo o que se afirmava na Escritura [29].

Enviadas ao Santo Padre as provas da expensio modorum no dia 14 de outubro, três dias mais tarde, o Secretário de Estado mandava uma carta por indicação do Papa ao presidente da Comissão doutrina na qual se convidava, entre outras coisas, a suprimir a expressão veritatem salutarem [30]. No dia 19, reunida de novo a Comissão e presente o Cardeal Bea, votou-se por três vezes se a fórmula se suprimiria ou não, sem que pudesse chegar ao número de votos requeridos para adotar uma solução. Finalmente se optou por votar a mudança da expressão veritatem salutarem por veritatem, quam Deus nostrae salutis causa litteris Sacris consignari voluit; que obteve a maioria suficiente [31]. Desta forma, evitou-se a palavra salutaris, permanecendo intacta a nota nº. 5 que ia dirigida para explicar seu verdadeiro sentido. A expensio modorum da razão da mudança realizada: ut autem omnis abusos in interpretatione praecaveatur… [32]; e a Relatio o justifica dizendo “quia multi Patres id postulaverunt et quia haec formula non satis in Concilii Aula disputata videbatur” [33]. Isso nos indica que o sentido das duas expressões é idêntico, ao invés, enquanto, a segunda fórmula evita os mal entendidos aos que podia se apresentar a primeira; e nos indica também que as referências da nota 5 seguem sendo válidas para penetrar o verdadeiro conteúdo do texto definitivo.

Outra modificação realizada no exame dos modos, foi a mudança do termo inconcusse por firmiter e a supressão de integre. Deixou-se, do contrário o verbo docere, ao que alguns pediam reparos, explicando que esta palavra “agit de illis quae proprie asseruntur” [34].

 

2. Significado do texto e da nota nº. 5, em ordem à inspiração e a inerrância da Sagrada Escritura

 

Como temos observado ao recorrer a história da introdução e formação da nota nº. 5 do cap. III da Dei Verbum, a referências às questões de Prophetia tem como objeto indicar o sentido exato da expressão veritas salutaris, ou de seu equivalente, veritas, quam Deus nostrae salutis causa Litteris Sacris consignari voluit. Então, que luz nos oferece Santo Tomás neste lugar para o tema da inerrância, e, em consequência, da inspiração bíblica? Ao começo destas páginas assinalávamos o direto ou indireto abandono das questões de prophetia por parte de alguns teólogos para explicar a inspiração bíblica. Queremos voltar sobre o tema a partir da ótica da Constituição Dei Verbum.

Inspiração e inerrância

Antes de tudo convém se dar conta de que a expressão veritas salutaris, ou seu equivalente, não significa, de nenhuma maneira, reduzir a inerrância às coisas de fé e costumes. O argumento fundamental que aparece na expensio modorum, para apoiar esta afirmação, é que toda a Sagrada Escritura está igualmente inspirada, toda ela é palavra de Deus e portanto não cabe distinguir graus de veracidade entre seus conteúdos [35]. Ou dito de outra forma, a anotação quam Deus nostrae salutis causa consignare voluit expressa o fim da inspiração, e não a limitação da verdade inspirada que gozaria da prerrogativa de inerrância [36]. Daqui se deduz que todo o conteúdo da Sagrada Escritura responde a uma finalidade: a salvação do gênero humano. Neste sentido se utilizou a expressão veritas salutaris.

Mas a reflexão que queremos fazer não acaba aqui. À redação do esquema de 1963, que botava unicamente veritatem sem adjetivação alguma, muitos padres se  opuseram porque desejavam que se circunscrevesse com claridade o âmbito da inerrância [37]. As objeções levantadas mais tarde pelo termo salutaris frisam que este pode se mal interpretar no sentido a uma redução do alcance da inerrância e portanto da inspiração. A Comissão se justifica afirmando rotundamente que não é isto o que quer se dizer. Podemos, pois, perguntar-nos: O que é realmente o que ali se diz? Como qualifica o adjetivo salutaris ao termo veritas? A resposta foi dada, em parte, pela fórmula do texto definitivo veritatem, quam Deus nostrae salutis causa… consignari voluit. Trata-se de uma oração de relação com sentido atributivo, ou explicativo, não determinativo ou restritivo. Isto é, esta proposição relativa explica as peculiaridades da verdade que Deus quis nos dar a conhecer na Sagrada Escritura; mas não determina que verdade é a que goza da inerrância no conjunto da verdade que Deus quis nos dar a conhecer, como se houvesse alguma afirmação na Sagrada Escritura que não tivesse ordenada à salvação. Toda a verdade estipulada na Escritura é inspirada e goza, portanto, da prerrogativa da inerrância.

Põe-se também de destaque com a fórmula aceitada pela Comissão, que a verdade da S. E. é a verdade que nos conduz à salvação. Ou seja, que todo o conteúdo e todas as afirmações da Sagrada Escritura tem uma e a mesma finalidade no plano divino: causa salutis nostrae. Não é que sejam verdade enquanto que são causa de nossa salvação, mas que, sendo verdade, Deus quis consignar para nossa salvação. A salvação é a finalidade da ação de Deus na realização da Sagrada Escritura, e nesta nos manifesta a verdade que Ele quer a ordem dessa salvação [38].

Pensamos que com estas considerações fica suficientemente clara a distinção, a nosso parecer importante entre a finalidade da Sagrada Escritura por um lado, e o fundamento da inerrância por outro. A finalidade da Sagrada Escritura é nossa salvação; o fundamento da inerrância é que Deus é Autor da Sagração Escritura [39], isto é, o fato da inspiração. Certamente que a finalidade salvadora é o que move a Deus a conceder ao hagiógrafo o carisma da inspiração, e que toda a atividade do autor sagrado se ordena, portanto, consciente ou inconscientemente, a essa finalidade. Neste sentido, o fim salvífico é essencial ao carisma inspirativo. Mas, ao mesmo tempo, o carisma da inspiração não fica explicando vendo unicamente sua finalidade, mas que, precisamente em ordem a tal fim, goza de umas características tão peculiares que pode e deve se dizer que Deus é o Autor principal de toda a Sagrada Escritura. A prerrogativa da inerrância se deriva do carisma da inspiração e da natureza própria de tal carisma. A verdade que todas as afirmações da Sagrada Escritura não se deriva diretamente da finalidade salvífica, mas que fundando-se e respondendo à própria natureza da verdade, serve à finalidade querida por Deus. O Dr. Muñoz Iglesias o expressava com grande acerto ao escrever que o ponto de partida para medir a extensão da inerrância “há de ser sempre o conceito de inspiração e nunca a finalidade da Escritura; a inerrância não está condicionada ao fim para o qual Deus insira, mas que é metafisicamente exigida pelo fato de que em virtude da inspiração seja o próprio Deus o que fala” [40].

Estrutura e significado da nota nº. 5

Afirmamos, pois, por uma parte, que o carisma da inspiração está essencialmente ordenado a nossa salvação. Afirmação que, como temos visto ressalta no texto da Dei Verbum. Por outra parte, queremos também deixar muito claro que a inerrância da Sagrada Escritura se deriva do próprio fato da inspiração, enquanto que Deus é o Autor da Escritura; e que portanto a inerrância não pode se entender de forma limitada [41].

Cabe então nos perguntarmos, que relação existe entre a finalidade da Escritura – nossa salvação – e a inerrância, a verdade que a Bíblia nos ensina sem mistura de erro? Poderia se pensar que são duas questões totalmente desconexas; mas vemos que no texto da constituição conciliar não só aparecem unidas, mas implicando-se mutuamente [42]. Compete agora à reflexão teológica, orientada pela nota de pé da página introduzida pela Comissão, explicar e esclarecer esta relação.

Nas primeiras redações do nº. 11 da Dei Verbum, a nota fazia referência a uma passagem da Providentissimus e a outra da Divino Afflante [43]. Em ambos lugares se ensina com clareza a prerrogativa da inerrância da Sagrada Escritura. Leão XIII, realça que para resolver as dificuldades nunca se deve limitar o conceito de inspiração, nem admitir que o autor sagrado tenha cometido erro. Na continuação assinala o Pontífice que a limitação do carisma inspirativo às coisas de fé e costumes, provém de pensar, equivocadamente, que “quando se trada da verdade das sentenças, não é preciso buscar principalmente o que Deus disse, mas ao invés examinar o fim para o qual disse” [44]. Os livros da Sagrada Escritura, conclui, excluem com necessidade metafísica qualquer erro, por ser Deus o autor de tais livros. Pio XII, no lugar citado, recolhe este mesmo ensinamento de Leão XIII; mas antes aponta como o Papa Leão XIII propunha, diante das dificuldades provenientes dos avanços das ciências naturais, a solução de considerar a verdade da realidade tal como aparece aos sentidos, e como Deus não quis ensinar a íntima constituição das coisas, pois isso não aproveita para a nossa salvação. Neste contexto Leão XIII insere a citação de S. Agostinho que aparece agora na nota da Dei Verbum.

As referências que se acrescentaram na nota para explicar com mais claridade o alcance do adjetivo salutares são duas citações de Sto. Agostinho. A questão de Prophetia de Santo Tomás, o decreto do Concílio de Trento e três novas passagens da Providentissimus. As citações de S. Agostinho já estavam recolhidas na Providentissimus, e as novas passagens que se aduzem desta encíclica são precisamente aquelas nas quais Leão XIII cita a Sto. Agostinho [45].  A primeira destas passagens (EB 121) estabelece a não contradição entre a fé e a ciência, apoiando-se para isso em que Deus não quis nos revelar aquilo que não aproveita para nossa salvação. É a este propósito, quando Leão XIII cita o De Genesi ad litteram do bispo de Hipona. E no mesmo sentido fica recolhido o pensamento de Leão XIII e de Sto. Agostinho na Divino Afflante. A outra passagem da Providentissimus citada na nota da Dei Verbum (EB 126-127), estabelece que, falando Deus pelos autores sagrados, estes não puderem escrever nada alheio à verdade. E confirma a afirmação com o testemunho de S. Agostinho na Epist 82,3 (PL 33, 277): nullum eorum auctorem scribendo errasse aliquid firmissime credam. Podemos dizer, portanto, que com a inserção destas referências na nota não se acrescentou nada novo, pois o ensinamento que contém ou estava já estava refletido na referência ao Divino Afflante (EB 539), ou estava contida nas primeiras referências à mesma encíclica Providentissimus (EB 124). Embora, certamente, com estes acréscimos a nota expressa melhor o iter e o verdadeiro sentido do ensinamento do Magistério anterior.

Algo distinto ocorre nas referências a Santo Tomás e ao decreto do Concílio de Trento. A afirmação do Tridentino – Evangelium… fontem omnis et salutares veritatis et morum disciplinae… contineri in livris scriptis… – não tem uma relação direta nem com a inspiração nem com a inerrância da Sagrada Escritura. Unicamente estabelece – a partir da perspectiva própria do Concílio – [46] que toda verdade salvadora procede da pregação de Cristo e dos apóstolos; e que esta verdade se acha contida na Sagrada Escritura. Neste o sentido que se fará explícito no texto da Dei Verbum ao substituir, como já vimos, a expressão veritatem salutarem por veritatem, quam Deus nostrae salutis causa consignari voluit.

Ao se recolher esta passagem do decreto de Trento na nota que estamos estudando da Dei Verbum, fica, poderíamos dizer, legitimada a expressão veritas salutares e, ao mesmo tempo se insinua que a certeza da Igreja acerca da verdade salvadora não brota unicamente da Sagrada Escritura [47]. Fica, pois, esclarecido com esta referência ao decreto de Trento que a verdade contida na Sagrada Escritura é uma verdade salvadora.

É na referência à questão de Prophetia de Santo Tomás onde, a nosso juízo, não só ficou indicado o verdadeiro sentido da expressão do texto conciliar – o que ocorria já nas restantes referências -; mas que assinalou um caminho luminoso de reflexão e explicação teológica acerca da inerrância da Sagrada Escritura, e, como fundamento dela, acerca do carisma da inspiração [48].

A abordagem de Santo Tomás

Chama a atenção antes de tudo que, no lugar do Aquinate citado pela Dei Verbum, aparece introduzido o texto do De Gen. Ad litt. Que já recolhiam a Providentissimus, a Divino Afflante e a própria nota nº. 5 do cap. III da Dei Verbum. Podemos pensar que isso seja a causa de que se recolha a q. 12 do De Veritate nesta nota do Vati. II. Mas não por isto podemos excluir que o sentido em que a Dei Verbum entende o texto de Sto. Agostinho é o mesmo sentido em que o recolhe e interpreta Santo Tomás. Por isso, convém nos determos em examinar acerca do pensamento de Santo Tomás no De Veritate q. 12 a. 2 c.

Neste artigo Santo Tomás se propõe se a profecia pode versar sobre conclusões que o homem pode conhecer com a luz natural de sua razão. É uma questão importante no tratado De Prophetia [49], já que está em jogo o próprio objeto da revelação e o assentimento que se deve prestar à revelação profética quando por ela se ensina verdades de ordem natural. A nota da Dei Verbum cita concretamente o corpus do artigo, onde Santo Tomás dá a resposta à questão apresentada. Podemos dividir o corpus deste artigo em duas partes. Uma, na qual se dá uma resposta geral com os argumentos que a fundamentam. Outra, na qual se faz distinção detalhada do que pode constituir objeto da profecia, porque cai de uma ou outra forma, sob a razão de eorum quae procul sunt. Isto ocorre com aquelas coisas que excedem o conhecimento de alguns homens, mas não o conhecimento humano enquanto tal [50]. Assim pode concluir o respondeo perfeitamente dizendo possunt subesse prophetiae conclusiones demonstratae in scientiis. Interessa-nos especialmente examinar a primeira parte do respondeo, pois nela se inclui a citação de Sto. Agostinho, e se faz além disso menção explícita da Sagrada Escritura.

Santo Tomás parte de um princípio que recolhe do II Physicorum: in omnibus quae sunt propter finem, matéria determinatur secundum exigentiam finis. E passa rapidamente a aplicar este princípio ao carisma profético: “Omnia illa quorum cognitio potest esse utilis ad salutem est materia prophetiae (…) Illa vero quae ad salutem pertinere non possunt, sunt extranea a materia prophetiae; unde Augustinus dicit (… )quod quamvis auctores nostri sciverint cuius figurae sit caelum; tamen per eos dicere noluit nisi quod prodest saluti…” [Ntd: “Todos os conhecimentos que podem ser úteis à salvação são da matéria da profecia (…) ao contrário, aquelas coisas que não podem ser relacionadas a salvação não tem relação com o assunto da profecia. Por isso Agostinho diz (…) mesmo que os nossos autores tenham escrito sobre como é o céu, no entanto, [o Espírito] não quis dizer através deles, nada além do que é propício para a salvação”] Santo Tomás aduz como autoridade para a resposta a questão este texto  de Sto. Agostinho que se refere explícita e inequivocamente a Sagrada Escritura [51], e não a profecia em sentido stricto. Isso nos está indicando que o Aquinate vê incluída a Sagrada Escritura no âmbito da revelação e conhecimento profético. E contudo se realça mais esta inclusão quando, a continuação, no mesmo respondeo, argumenta que muitas coisas demonstradas pelas ciências naturais podem ser úteis para a salvação e, portanto, se faz menção delas na Sagrada Escritura [52]. A Escritura, pois, é considerada aqui como profecia que pode versar e versa de fato sobre conclusões naturais. Neste sentido – enquanto a Escritura fica incluída na profecia – é legítimo, como faz a nota nº. 5 do cap. III da Dei Verbum, remeter às questões de profecia para clarificar as peculiaridades da Sagrada Escritura, concretamente a inerrância e a inspiração [53].

Mas voltamos ao tema concreto que, na Dei Verbum provoca a referência explícita a este lugar do Aquinate. Tratava-se de determinar sem equívocos a relação existente entre a finalidade da Escritura – nossa salvação – e a verdade que a mesma Escritura nos transmite sem mescla de erro.

Um aspecto desta relação verdade-salvação é, segundo víamos antes ao examinar o texto conciliar, que tudo o que contém da Sagrada Escritura tem como fim, no projeto de Deus Autor, nossa salvação. Nada do que lemos nos livros sagrados é alheio ao tema da salvação, mas que pelo contrário, ordena-se a ele e é útil, de uma ou outra maneira, para conduzir-nos à vida eterna. A doutrina de Santo Tomás no lugar citado nos ajuda a entender de que maneira tudo o que diz a Sagrada Escritura conecta com a salvação. O porquê é necessário para a salvação, o porquê é útil. As coisas de ordem natural, demonstráveis pelas ciências humanas, Deus quis consigná-los na Sagrada Escritura porque nos conduz à admiração da sabedoria e o poder divinos; e neste sentido servem ad instructionem fidei vel informationem morum. Notemos, de passagem, a importância destas afirmações em ordem à exegese. Esta, se quer ser fiel ao texto sagrado que se propõe explicar, deverá ter como objetivo primário a instrução e a edificação dos fiéis, sem ficar meramente em questões científicas de um ou outro tipo. Não sempre, nem em todas as afirmações da Bíblia aparecerá com claridade e a primeira vista seu significado salvífico; mas será precisamente em descobri-lo onde se situa a autêntica tarefa exegética.

Sentido do termo “veritas

Outro aspecto da relação verdade-salvação (que não aparece com tanta clareza no texto conciliar – talvez por se dar como claro -, mas que podemos deduzir da referência a Santo Tomás), é o sentido do termo verdade quando se aplica à Sagrada Escritura. E é aqui, precisamente, onde queremos pôr a acentuação com estas páginas, porque pensamos que também neste ponto se poderia mal entender a expressão veritas salutares, ou seu equivalente estipulado no texto da Dei Verbum: veritatem, quam Deus nostrae salutis causa consignari voluit.  Com efeito, como indicávamos ao começar nosso trabalho, algumas explicações recentes da natureza da inspiração bíblica consideram que as afirmações que encontramos na Sagrada Escritura estão influenciadas de tal modo pelo fim que se propõe o autor [54], que a verdade de tais afirmações fica esclarecida, mediada pelo fim. A verdade dependeria do fim proposto não só no sentido de que para conseguir tal fim se introduzam estas ou aquelas verdades, e não outras; mas no sentido de que a realização do fim determina sua verdade: são verdadeiras todas as afirmações da Escritura enquanto que todas elas se ordenam ao fim proposto, à salvação; mas não poderia se dizer que todas elas sejam verdade em si mesmas independente de sua ordenação ao fim. Dito com os termos usuais com os quais se levantou o problema, o carisma da inspiração divina leva consigo um juízo prático pelo qual se pretende uma finalidade concreta – a salvação – e um juízo especulativo-prático pelo qual se determina a adequação das afirmações com o fim proposto [55].

Seguindo estas explicações da natureza da inspiração bíblica teríamos que concluir que o influxo inspirativo divino iluminaria, portanto, o juízo prático e o juízo especulativo-prático; não iluminaria o juízo puramente especulativo do hagiógrafo que julga da verdade das afirmações em si mesmas, ou seja, da adaequatio rei et intellectus [56]. Portanto, não poderíamos dizer que em virtude do carisma da inspiração, fique garantida a verdade das afirmações, enquanto esta verdade é julgada pelo juízo puramente especulativo, mas que unicamente fica garantida, e transmitida sem erro, a verdade enquanto conhecida pelo juízo prático e especulativo-prático, isto é, enquanto tal afirmação serve para conseguir o fim que o autor se propôs [57]. Assim, na Sagrada Escritura não temos que buscar tanto a verdade em si mesma – adequatio intellectus et rei -, objeto do intelecto especulativo, quanto o fim que o autor se propôs com suas afirmações – a adequação do entendimento com o fim que se propôs, ou, em definitivo, a adequação do entendimento consigo mesmo [58] -, prescindindo de se se dá ou não uma adequação entre as afirmações e a realidade [59].

Mas, pode se apoiar esta abordagem no nº. 11 da Dei Verbum? Evidentemente que não; é no lugar, pensamos que estaria em contradição com o que o Concílio quis dizer. Tampouco se pode apoiar na doutrina do Aquinate e assim veríamos então, como tal abordagem se distanciava, com toda lógica, das questões de Prophetia [60]. A Dei  Verbum como vimos, nos orienta, contudo, até estas questões como uma referência explícita na nota que estamos considerando. E é que na doutrina tomista acerca da verdade, fundamental às questões de Prophetia, e mais concretamente no respondeo citado pelo Concílio, podemos encontrar os princípios iluminadores da relação que existe entre o fim da Sagrada Escritura – nossa salvação – e seu conteúdo – a verdade que Deus quis deixar por escrito -.

Então, o princípio do qual parte Santo Tomás – in omnibus quae sunt propter finem, matéria determinatur secundum exigentiam finis -, mostra-nos como se realizou a relação entre o conteúdo e o fim da Sagrada Escritura. O conteúdo está determinado segundo a exigência do fim. Isto é, a verdade registrada na Sagrada Escritura depende do fim salvífico proposto. Mas em que consiste esta dependência? Qual é o alcance do termo determinatur? Para esclarecê-lo termo que recorrer, como nos indica Santo Tomás no próprio respondeo, à Expositio in II Physicorum [62].

Nesta passagem citada do II Physic., o Aquinate, seguindo a Aristóteles, aborda a questão da necessidade nas coisas naturais [62]. Concretamente se pergunta se nas coisas naturais a necessidade se dá pelo fim ou pela matéria [63]. A resposta é que a necessidade está na matéria, mas a razão da necessidade no fim [64]. Isto é, que o fim, uma vez estabelecido livremente – o fim não é necessário -, exige necessariamente uma matéria determinada, para a consequência de tal fim. Neste sentido a ratio necessitatis ponitur ad finem. Mas, ao mesmo tempo, a matéria, uma vez ordenada ao fim, conserva a exigência de necessidade que brota de seu próprio ser. E neste sentido se diz que id quod necessarium est, ponitur ex parte materiae. Assim, podemos concluir que, certamente, in omnibus quae sunt propter finem, matéria determinatur secundum exigentiam finis; mas isso não priva à matéria, já determinada, da necessidade que lhe corresponde em virtude de seu próprio ser. A determinação se refere à escolha desta ou outra matéria, necessária para a realização do fim, mas não determina o modo de ser da matéria escolhida, mas que esse modo de ser segue sendo necessário em virtude da própria matéria.

Aplicando estes princípios à Sagrada Escritura temos que seu conteúdo – a verdade registrada – está determinado  por seu fim salvífico (ou, dito com palavras do Aquinate, pela utilidade da Igreja). O fim, proposto livremente pelo autor exige que seja precisamente esse e não outro o conteúdo da Sagrada Escritura, que seja essa veritas salutares e não outra a que contém a Bíblia. Mas, ao mesmo tempo, esse conteúdo, essa veritas, mantém sua própria natureza de veritas com a mesma necessidade que exige o fato de que seja necessária para a salvação. Portanto, a adequação do conteúdo ao fim, da verdade registrada por escrito à salvação – objeto, digamos, do juízo especulativo-prático – não priva a esse conteúdo, a essa verdade, da exigência de uma adequação intelectos et rei – objeto do juízo puramente especulativo -. Mas, ao contrário: as afirmações registradas serão adequadas para conseguir o fim proposto enquanto conservem a natureza própria de verdade adaequatio intellectus et rei [65].

Excluir do carisma da divina inspiração a iluminação do juízo especulativo que julga da verdade das afirmações em si mesmas, supõe privar a este carisma de um elemento essencial, e, como consequência, mal entender o conceito de veracidade – ou de inerrância – da Sagrada Escritura, já que, em tal caso, se haveria desvirtuado o próprio conceito de verdade o reduzindo a mero uso ocasional, a mera utilidade, a mera força de alocução. Mas, por outra parte, tampouco se pode pensar em um influxo divino no intelecto do hagiógrafo unicamente em ordem do juízo especulativo para que se dê a adequação das afirmações à realidade. Neste caso esqueceríamos outro elemento essencial ao carisma da inspiração: o fim que o autor se propõe e que determina, necessariamente, a verdade registrada, isto é, esqueceríamos precisamente a ratio necessitatis em algo que tem sua razão de ser propter finem. O mesmo conceito de verdade ficaria desvirtuado em tal hipótese, pois lhe privaria da reflexão que leva ao hagiógrafo a julgar das razões para registrar por escrito estas afirmações e não outras. Privaria-se à verdade da Sagrada Escritura de sua força de alocução [66]. Todo o conteúdo da Sagrada Escritura, seja pertencente do sobrenatural, cognoscível unicamente por revelação, seja de ordem natural e demonstrável pela luz da razão, entra de cheio no âmbito da verdade que Deus quis deixar para nossa salvação. Tudo participa do conceito de verdade e tudo coopera, ao mesmo tempo, à utilidade da Igreja, para nos levar a Deus.

Conclusão

A nota nº. 5 do cap. III da Const. Dei Verbum, fazendo referência às questões de Prophetia de Santo Tomás, orientou-nos a compreender o texto conciliar – veritatem, quam Deus nostrae salutis causa… consignari voluit -, à luz da doutrina tomista. Segundo esta doutrina, todo o conteúdo da Sagrada Escritura está determinada por um único fim: instructionem fidei seu informationem morum, em definitivo, a salvação. Então, seguindo igualmente a Santo Tomás, vemos que o fim, se bem determina o conteúdo, a verdade manifestada na Escritura, não diminui, contudo, o caráter próprio de verdade que dito conteúdo tem em si mesmo. Isto supõe que o influxo divino no carisma da inspiração bíblica eleva o entendimento do hagiógrafo para conceber retamente, isto é com adequação tanto a realidade expressada em suas afirmações, como ao fim que de antemão se propôs.

Em algumas explicações recentes da natureza do carisma da inspiração unicamente se considerou como necessária a elevação do intelecto do hagiógrafo para julgar a adequação de suas afirmações em ordem ao fim, fazendo consistir nisto o conceito de verdade bíblica. Com bastante acerto se chamou a este juízo especulativo-prático. Exclui-se, portanto, do carisma inspirativo o ato do juízo que conota a adequação do entendimento e a realidade, denominado juízo especulativo.  Este fica reservado para a noção de revelação que se verifica no carisma profético. Daqui que algumas destas abordagens recentes se afastam da consideração das questões de Prophetia.

Mas não é essa, a nosso juízo, a mente de Santo Tomás, nem da Const. Dei Verbum. Santo Tomás na q. 12 a. 2 c. do De Veritate inclui a Sagrada Escritura no carisma da profecia e exige, portanto, para o hagiógrafo a iluminação divina no juízo especulativo. A Const. Dei Verbum, para esclarecer em um momento difícil o tema da veracidade da Escritura, remete a essa mesma passagem do De Veritate. Logo temos que pensar que nesta linha aponta a verdadeira solução do problema.

Não foi nossa intenção ao escrever estas páginas esclarecer todos os aspectos da relação que existe entre o carisma de profecia, tal como o expõe Santo Tomás, e o carisma da inspiração bíblica, nem determinar, em concreto, os conceitos de revelação e inspiração. Parece-nos uma questão fartamente difícil. Unicamente queremos constatar a legitimidade de recorrer ao de Prophetia para aprofundar na natureza da inspiração bíblica, e como este recurso é fecundo para compreender melhor a iluminação divina do juízo do hagiógrafo e o conceito de verdade quando se aplica à Sagrada Escritura.

 

NOTAS

[1]. Aqui a grandes rasgos os passos recorridos na aplicação do De Prophetia à inspiração bíblica. Ed. Card. ZIGLIARA em Propaedeutica ad Sacram Theologiam, 3 ed., Roma 1890, distingue entre a inspiração divina, inspiratio cum iudicio sed sine acceptione, e a revelação propriamente dita, inspiratio cum acceptione et cum iudicio. O Padre LAGRANGE aplicava a revelação propriamente dita aos profetas e a inspiração aos hagiógrafos, assinalando que esta graça não implica a acceptio cognitorum (Cfr. RevBi 5 (1896) 199-220; 499-500). Ch PESCH, seguindo esta distinção denominou revelatio stricte ditcta à primeira e revelatio late dicta à segunda, mas dá um passo além ao afirmar que a revelatio, enquanto rerum scribendarum notitia, não entra por si no carisma da inspiração, mas que pressupõe ao mesmo. Considera o carisma de inspiração, seguindo a LEVESQUE (Cfr. RevBi 6 (1897) 320 ss), como ordenado à pôr por escrito os livros sagrados. No que se refere ao intelecto, o carisma da inspiração, disse Pesch, consistit in iudicio practico vel in serie iudiciorum practicorum de libro scribendo (Ch. PESCH, De inspiratione Sacrae Scripturae, 1906, n. 410, 419). Desta forma Pesch deixa a salvo o caráter igualmente inspirado de todos os livros da Sda. Escritura, já contenham revelatio stricte dicta ou late dicta. Seguindo a orientação de Lagrange, mas com maior claridade, I. M. VOSTE, em seu livro De divina inspiratione et veritate Sacrae Scripturae, 2 ed. Roma 1932, define a revelação ou visão profética pela acceptio cognitorum, e a inspiração bíblica pelo iudicium de acceptis. Mas este iudicium, precisa VOSTÉ, de modo algum pode se reduzir a um juízo meramente prático iluminado pela inspiração divina, mas que consiste em um juízo especulativo exigido pela própria verdade divina manifestada nos livros sagrados. Este juízo especulativo constitui o elemento formal e específico da inspiração: “… inspirationis formale ac specificum absque dubio est illuminatio iudicii speculativi de ipsa veritate scribendorum vel credendorum” (I. M. VOSTÉ, Ibidem, p. 60). O Cardeal Bea precisará algo mais tarde que, enquanto o escritor sagrado não receba sobrenaturalmente a aceptio rerum – revelatio -, contudo, todos os juízos especulativos – iudicia theoretica – refletidos na Sda. Escritura adquirem certeza de verdade divina pela lumen que Deus infunde na inspiração. Esta lumen divina ilumina também o juízo prático “ad actum scribendi”; mas o juízo especulativo não dependerá do prático, porque em tal caso os juízos especulativos seguiriam sendo juízos meramente humanos, enquanto confirmados implicitamente por Deus através do juízo prático do hagiógrafo, e não teriam, portanto, “illam indolem divinam qua fit ut a nobis divina credenda sint” (A. BEA, De Scripturae Sacrae Inspiratione, 2 ed. Roma 1935, p. 53). Desta forma o modo de conhecimento profético per solum lumen ad iudicandum, se aplicava perfeitamente ao carisma da inspiração bíblica, e os livros sagrados se consideravam revelatio Dei lato sensu. Contudo, tal distinção de revelação em stricte e late não aparece se encontrar em Santo Tomás, e se foi impondo a tese defendida pelo Padre Benoit de distinguir entre revelação – entendida como motio divina e incluindo um iudicium praticum ad actum scribendi que condiciona o iudicium speculativum, resultando assim o juízo denominado especulativo-prático-. Consequentemente, a inspiração assim considerada, inclusive em seu caráter de juízo especulativo-prático, não encaixa na abordagem das questões de Prophetia.

Já com esta orientação podemos citar como mais representativos do abandono de Sto. Tomás, os objetivos de K. RAHNER, Uber die Schriftinspiration, Freiburg im Breisgau 1958 (Cfr. A. M. ARTOLA, Juicios críticos em torno a la inspiración bíblica del P. Rahner, Lumen 13 (1964) 384-408); e de A. SCHOKEL, La Palabra inspirada. La Biblia a la luz de la ciência del linguaje, Barcelona, 1966.

[2]. A. IBÁÑEZ ARANA, Las cuestiones “de prophetia” em Sto. Tomás y la inspiración bíblica. ScripVict (1954) 256-312.

[3]. Desta forma, a inspiração escriturística pode se iluminar pela analogia com a inspiração profética – entendida mais como a atividade oral do profeta que como revelação – da qual fala Sto. Tomás, e com a inspiração para as ações concretas. Cfr. P. BENOIT, Les analogies de l’inspiration, Sac Pag 1 (1969) 86-98; Revelation et inspiration, RevBi 70 (1963) 370.

[4]. Cfr. P. BENOIT, Revelation et inspiration, RevBi 70 (1963) 367.

[5]. Ibidem, p. 361-363. Este tipo de juízo especulativo-prático tem um caráter “especulativo”, de apreensão da verdade, menos “especulativo” que o juízo especulativo de ação proposto por A. DESROCHES, Jugement pratique et jugement speculatif chez l’Écrivain inspire, Ottawa, 1958, pp. 121-123; 133-134. Há uma notável diferença entre ambas concepções. Para Desroches, o objeto do juízo especulativo de ação é a verdade enquanto tal, considerada, além disso, como conveniente para ser posta por escrito, como ordenada ao fim proposto. Para Benoit, o objeto do juízo especulativo-prático não é a verdade como tal, mas a verdade qualificada em si mesma pelo fim prático que o hagiógrafo se propôs a escrever a obra, e dependente de tal fim: “Des assertions, des appréciations qu’um auteur formule au cours de son travail, se ressentent forcément de l’orientation profonde qu’il donne à celui-ci, du but qu’il cherche à atteindre, du mode d’expression qu’il emploie, bref de son ‘genre littéraire’… C’est cela que veut dire, em termes techniques, la qualification de son jugement spéculatif de verité par son jugement pratique” (Ibidem, 360)

[6]. Além dos autores aos que nos referimos na nota 1, há que apontar alguns manuais recentes, tal como o Manual Biblico I editado por “Casa de la Biblia”, Madrid 1966. Neste manual se considera como provável o influxo divino no juízo teórico do hagiógrafo (p. 53). E unicamente toma posse do tratado de Prophetia de Sto. Tomás para excluir o influxo divino da tarefa de recolhida de materiais por parte do hagiógrafo, que se identifica com a acceptio rerum. Aponta-se, ao mesmo tempo, que “Santo Tomás coloca a essência da inspiração na iluminação enquanto ao juízo” (p. 52), e que “não há diferença essencial entre o profeta (enquanto este comunica o recebido como instrumento vivo, físico e imediato da locução divina), e o hagiógrafo, então recebe os dois idênticos influxos em suas faculdades” (p. 67). Na voz Inspiración da “Enciclopedia de la Biblia” (vol. IV, Barcelona 1963, col. 190-197), o P. Garcia Cordero recorre à distinção entre a acceptio rerum (equivalente a revelação), e o juízo (tanto especulativo e prático) para explicar a natureza do carisma da inspiração bíblica, mas surpreende que nem sequer aluda ao tratado de Prophetia de Sto. Tomás. Pe. Grelot em seu livro La palavra de Dios, Barcelona 1968, seguindo as conclusões de P. Benoit, considera a inspiração como um carisma funcional, cuja “função essencial consiste em conservar autenticamente a palavra de Deus no âmbito da tradição viva… que não leva consigo a iluminação profética, enquanto se lhe pode outorgar, sob uma forma discreta, o que Sto. Tomás chama… instinctus propheticus” (p. 107). Sob este instinctus, os hagiógrafos “puseram por escrito os dados tradicionais sob a garantia de Deus. Era impossível que o fizessem sem que uma iluminação carismática envolvesse seus juízos especulativos, já condicionados pelo fim prático que se haviam fixado” (Ibidem). Vemos como, efetivamente, as conclusões emitidas por Sto. Tomás são “adaptadas” a uma perspectiva distinta, como disse Grelot (p. 106). Mas uma perspectiva na qual, de fato, o modo de conhecimento profético analisado por Sto. Tomás fica excluído do carisma da inspiração. “Nem nos sábios do A.T, nem nos doutores cristãos o carisma funcional assegura ipso facto tal grau de conhecimento sobrenatural, que os juízos pronunciados por eles no exercício de suas funções possam ser assimilados à profecia ou ao testemunho apostólico, tal deve de ser o caso dos escritores sagrados…” (p. 107) O que para Grelot constitui a especificidade do carisma escriturístico é o conjunto dos juízos práticos pelos quais “orienta o autor conscientemente sua atividade intelectual até uma obra que, de uma maneira ou de outra, dará testemunho da palavra de Deus” (p. 108).

 

Para a visualização das notas restantes remetemos o leitor ao material digitalizado, que está em espanhol, visto que seu conteúdo é de um tamanho demasiado – embora de leitura indispensável – para uma publicação em site:

http://dspace.unav.es/dspace/bitstream/10171/12915/1/ST_IX-2_01.pdf

 

PARA CITAR


ARANDA, Gonzalo. Acerca da verdade contida na Sagrada Escritura – Uma “quaestio” de Santo Tomás citada pela Const. “Dei Verbum” Disponível em: < http://www.apologistascatolicos.com.br/index.php/concilio-vaticano-ii/revelacao/695-acerca-da-verdade-contida-na-sagrada-escritura >. Desde: 12/06/2014. Tradução: Nelson M. Sarmento.

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