Sábado, Dezembro 21, 2024

A Santidade da Igreja

  

I. A SANTIDADE ENQUANTO REALIZADA NA IGREJA. 

1. A Igreja, que não se acha sem pecadores, se acha, contudo, sem pecado.

2. Tudo quanto de verdadeira santidade há no mundo se refere à Igreja de Pedro.

II. A SANTIDADE ENQUANTO TENDENCIAL NOS PODERES HIERÁRQUICOS.

1. A santidade instrumental dos poderes de Ordem.

2. A santidade ministerial dos poderes de Jurisdição.

III. A SANTIDADE COMO NOTA E PROPRIEDADE DA IGREJA.

1. Natureza e definição da santidade da Igreja.

2. O Mistério da santidade da Igreja.

3. O Milagre da santidade da Igreja.

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“A alma, disse Santo Tomás, é princípio e causa do corpo vivo de três maneiras: 1º é o princípio do qual parte seu movimento; 2º é o porquê de sua existência, isto é, seu fim; 3º é a forma substancial dos corpos aos quais dá sua vida”[1].

Pode-se considerar a alma criada da Igreja enquanto que informa ao corpo e lhe comunica uma vida superior a dos reinos deste mundo: neste caso se referirá a alma da Igreja, como o faremos mais adiante, a propriedade e a nota da unidade católica da Igreja.

Pode-se igualmente considerar a alma criada da Igreja enquanto que é o porquê da existência do corpo, isto é, enquanto que obriga ao corpo a estender-se e a espiritualizar-se, e enquanto que ela mesma se vê obrigada a abrir-se cada vez mais, como alma criada que é da Igreja, ao influxo e à atração do Espírito Santo que é a Alma incriada da Igreja. Podemos, portanto, ver quais são as relações da santidade com a alma considerada, como a qual, neste mundo, é a causa final da Igreja.

Trataremos este tema em três seções: da santidade enquanto que se acha realizada na Igreja (santidade formal ou terminal) (I); da santidade enquanto tendencial nos poderes sacramentais e jurisdicionais (santidade virtual ou instrumental) (II); da santidade enquanto propriedade e nota da Igreja (III).

 

I. A SANTIDADE ENQUANTO REALIZADA NA IGREJA.

 

Dois axiomas nos fazem compreender a santidade da Igreja: 1º A Igreja se acha sem pecado, enquanto não sem pecadores; este primeiro axioma separa a Igreja dos pecados dos que a ela pertencem visível ou corporalmente; 2º Toda a santidade, a verdadeira santidade, do mundo se acha relacionada com a Igreja de Pedro: por este axioma fica unida à Igreja a santidade dos que pertencem a ela invisível ou espiritualmente.

1. A IGREJA, QUE NÃO SE ACHA SEM PECADORES, SE ACHA, CONTUDO, SEM PECADO.

A Igreja divide em nós o bem e o mal. Retém o bem e abandona o mal. Suas fronteiras passam através de nossos corações. O mal ao que nos referimos é especialmente o do pecado mortal, que nos faz perder a caridade; mas também o é o do pecado venial, que contraria em nós a irradiação da caridade.

A Igreja não se acha livre de pecadores. – 1. A Igreja é o Reino do Filho do homem do qual somente ao fim dos tempos serão lançados os que causam escândalos e cometem a iniquidade (Mt., XIII, 41-43); a rede que guarda em si até o fim dos tempos peixes bons e maus (Mt., XIII, 47-50). Não lança de seu seio aos pecadores além que em casos extremos: “Se teu irmão tiver pecado contra ti, vai e repreende-o entre ti e ele somente; se te ouvir, terás ganho teu irmão. Se não te escutar, toma contigo uma ou duas pessoas, a fim de que toda a questão se resolva pela decisão de duas ou três testemunhas. Se recusa ouvi-los, dize-o à Igreja. E se recusar ouvir também a Igreja, seja ele para ti como um pagão e um publicano” (Mt., XVIII, 15-17; cfr. I Cor., V, 1-5). Pode em alguns lugares entibiar-se em seu primeiro amor como em Éfeso (Apoc., II, 4), não contar, como sucedia em Sardes, com mais que alguns poucos fiéis que não tivessem manchado suas vestes (Apoc., III, 4), deixar-se levar da tibieza, como em Laodicéia (Apoc., III, 15). Sempre será verdade que há pecadores na Igreja[2].

2.  Os pecadores são membros de Cristo e de sua Igreja, mas não da mesma maneira que os justos. Podem pertencer à Igreja da que também formam parte os justos, mas não poderiam por si só constituir a Igreja. A noção de membros de Cristo e de sua Igreja, se aplica, por conseguinte, aos justos e aos pecadores, não de uma maneira igual, unívoca, mas de maneira diferente, análoga.

3. Os pecadores são membros da Igreja, como temos visto antes, por dois elementos: 1º pelos valores espirituais que seguem subsistindo ainda neles: caráter sacramental, fé e esperança teologal, reconhecimento da hierarquia, etc.; 2º pela caridade que reside, de uma maneira direta, imediata, salvífica, somente nos justos mas que segue chegando-se a eles por seu influxo de uma maneira indireta tão somente, de uma maneira extensiva, não salvífica. Quando levam a seus filhos para que recebam o Batismo, ou os movem a comungar com frequência, quando aceitam as novas definições que sugere o Espírito Santo a sua Igreja, quando por suas esmolas tomam parte na expansão missionária da Igreja, etc, não fazem mais que obedecer aos impulsos da caridade coletiva da Igreja. São como levados pela caridade coletiva da Igreja, levados após as suas pegadas e de sua concepção de vida, mesmo depois de haver perdido pessoalmente o dom do amor. Ficam associados ao destino dos justos da mesma maneira que um membro paralítico participa nos movimentos e passos da pessoa humana.

Pode, por conseguinte, um cristão pecar mortalmente, aniquilar em seu ser o amor, e seguir, não obstante, pertencendo à Igreja, de uma maneira visível ainda quando não salvífica, ao menos enquanto não caia no cisma, isto é, enquanto não se revele contra a caridade cultual, sacramental, orientada, enquanto que, presente nos justos de maneira direta e indiretamente nos pecadores, forma a unidade de toda a Igreja.

4. A caridade cultual, sacramental, orientada, se acha ordenada, da mesma forma nos justos que nos pecadores, a habitação plena do Espírito Santo. No caso dos justos, nos quais se encontra  diretamente e por si mesma, a caridade se acha ordenada a habitação do Espírito Santo, habitação que pode ser alimentada e intensificada continuamente. No dos pecadores, nos quais se encontra tão somente de maneira indireta e por seu influxo, a caridade se acha ordenada a uma habitação que pede para ser recobrada e possuída de novo.

5. A Igreja segue vivendo nos seus filhos que já não possuem a graça. Luta neles contra o mal que os rói; se esforça por retê-los em seu seio, por vivificá-los constantemente ao ritmo de seu amor. Os conserva como se conserva um tesouro do qual não se depreende alguém além de quando obrigado a isso. E não é que queira carregar um peso morto. Tão somente espera que à força de paciência, de mansidão, de perdão, o pecador que não se há separado totalmente dela, voltará para viver em plenitude; que a rama adormecida, graças à pouca seiva que nela restava, não será cortada nem jogado ao fogo eterno, mas que terá tempo de voltar a florescer.

E, contudo, a Igreja se vê livre de pecado. – 1. “Cristo amou à Igreja e se entregou por ela para santificá-la, purificando-a mediante a lavagem da água pela palavra a fim de apresentá-la a si mesmo gloriosa, sem mancha ou ruga ou coisa semelhante, mas santa e irrepreensível” (Eph., V, 25-27). Este texto se refere diretamente à Igreja presente, tal qual nasce do Batismo, cuja graça – juntamente com a graça da Eucaristia e dos demais sacramentos – tem como finalidade incorporá-la a Cristo sua Cabeça, que sofre por ela, que por ela morre e ressuscita, e conceder-lhe desta maneira o dom de sofrer com Ele, de morrer com Ele, de ressuscitar com Ele.

Bem sabe o Apóstolo que há pecadores na Igreja, já que se vê obrigado sem cessar a admoestar aos que engendrou para Cristo; mas, todavia, a seus olhos a Igreja é santa e imaculada. O que quer dizer que os pecadores pertencem à Igreja, não por seu pecado, mas pelos valores de santidade que em si levam e que seguem vinculando-os ainda à Igreja.

2. Esta mesma revelação da pureza da Igreja se acha em substância, ainda quando não se veja nomeada a Igreja, na Epístola primeira de São João. O Apóstolo, depois de haver escrito que Cristo se manifestou para apagar nossos pecados, e depois de afirmar que não há pecado em Cristo, acrescenta que “qualquer que mora nEle não peca. Qualquer que peca, nem o viu nem o conheceu” (III, 6). “Quem comete o pecado é do diabo, já que o diabo é pecador desde o princípio. E para destruir as obras do diabo foi-nos mostrado o Filho de Deus. Quem nasce de Deus não comete pecado, já que sua descendência mora nele; não pode pecar, nascido como é de Deus” (III, 8-9). “Sabemos que quem nasceu de Deus não peca, mas que o Gerado de Deus o guarda e não tem império sobre ele o Maligno” (V, 18). E em sua terceira Epístola: “Caríssimo, não imites o mal mas o bem. Quem faz o bem é de Deus. Quem pelo contrário faz o mal não viu a Deus” (Vers., 11).

E, contudo, não ignora São João que os cristãos pecam: “Se nós dizemos que não pecamos, mentimos, e não mora a verdade conosco” (I Jo., I, 8). Todas as supostas contradições desaparecem uma vez que se compreende que os membros da Igreja pecam certamente mas que com isso atraiçoam à Igreja; que, por conseguinte, não se vê a Igreja livre de pecadores, mas sim livre de pecado.

A Igreja se inquieta pelo pecado. – Dizer que a Igreja se vê livre de pecado, equivale a dizer que jamais consente no pecado; que seus filhos pecam, não obedecendo-a mas traindo-a; que quanto mais pecam, mais se separam dela, e menos pertencem-lhe.

O que não quer dizer, contudo, de maneira alguma que não se inquiete a Igreja pelo pecado. Semelhante paz constituirá seu privilégio na glória; mas não poderá constituí-lo na graça. A Igreja tem por missão ir buscar a seus filhos que se encontram viciados no seio do pecado, de lutar sem cessar para fazer que retrocedam da mesma forma neles que no mundo os limites do pecado, de reparar as ruínas do pecado por meio da penitência, do arrependimento e da satisfação.

A Igreja se acha rodeada por toda a parte do pecado. O que não quer dizer que seja o pecado a matéria de que ela está constituída, mas o adversário com o qual haverá de combater até o fim do tempo. No coração da Igreja estão em alerta um temor, uma dor, uma preocupação constante pelo pecado.

A Igreja, embora não peque, se arrepende e se converte. – Não há dúvida que a Igreja há de humilhar-se, já que é a Igreja de quem se humilhou ante o Pai (Jo., V, 19; XIV, 28), ante os homens (Jo., XIII, 14), ante a morte (Phil., II, 8). Então, pode-se dizer que ela tem que arrepender-se, que tem que converter-se e fazer penitência?

O Salvador que se via livre de pecado, podia, contudo, expiar pelo mundo; não podia arrepender-se, nem, propriamente falando, fazer penitência. Mas a Igreja encerra em seu seio pecadores que por essa mesma razão não lhe pertencem mais que de uma maneira parcial, pecadores aos quais a ação divina trata de liberar de seus pecados através do arrependimento e da penitência, a fim de que lhe pertençam de uma maneira mais total. Para eles não constitui um pecado que chorem seus pecados. Na realidade constitui uma grandeza, nascida, é verdade, de uma miséria da qual se viu sempre isento Jesus; grandeza, no entanto, do Reino de Deus. Também os começos da penitência e o que se chama de contrição imperfeita, contrição na qual não se acham a fé, a esperança e o temor impregnados ainda da caridade, não são pecados; são antes visitas do Espírito Santo, visitas pelas quais o fiel, privado ainda da caridade, começa a participar mais intimamente da santidade da Igreja. Nestes seus filhos pecadores, que, por sua instigação renunciam ao pecado, é a Igreja pessoalmente a que se arrepende e faz penitência.

2. Como é possível que a Igreja faça penitência se não peca? Não corresponde porventura ao mesmo que pecou, o arrepender-se?

Sim são os mesmos seres reais, os mesmos sujeitos concretos, os que pecam e fazem penitência; mas agindo sucessivamente por atos e disposições contrárias, e desempenhando papeis diferentes. São os mesmos homens batizados que pertencem ao mesmo tempo, ainda que parcialmente, a duas cidades contrárias, os que ora pecam enquanto dependem da cidade do diabo, ora fazem penitência enquanto são atraídos pela cidade de Deus. Pecam enquanto são descendência do diabo e lhe servem de instrumentos: “Quem comete o pecado, pertence ao diabo” (I Jo., III, 8; cfr. Jo VIII, 44), e nesta medida se esforçam por destruir a Igreja em si mesmos e no mundo. E fazem penitência pelos seus pecados, enquanto são da descendência de Deus e instrumentos de Cristo, e nesta medida lutam por edificar a Igreja tanto em si mesmos como no mundo. Pecando traem a Cristo e a sua Igreja; fazem penitência em nome de Cristo e da Igreja. Daqui que seja necessário afirmar que a Igreja, ainda que não peque, faz, contudo, penitência; mas pelos pecados que não cometeu, pelos pecados que lhes proibia que cometessem, pelos pecados que não cometeu seus filhos se não que opondo-se a seus desejos, cessando parcialmente e nesta mesma medida de ser seus filhos.

Assim, pois, a Igreja como pessoa toma sobre si a responsabilidade da penitência. Não fica com a responsabilidade do pecado. Se assemelhasse à pecadora do Evangelho, não o é além que no momento em que esta derrama seu perfume sobre os pés de Jesus. São seus membros, leigos, clérigos, sacerdotes, Bispos, Papas, quem desobedecendo-lhe ficam com a responsabilidade do pecado; não a Igreja como pessoa.

3. Se cai em uma grande ilusão contra a que parecem achar-se sem defesa os Protestantes, ilusão que os fascina em seus Congressos ecumênicos, quando se convida à Igreja como pessoa a reconhecer e proclamar seus pecados. Esquece-se que a Igreja como pessoa é a Esposa de Cristo, que “ele adquiriu para si, por meio de seu sangue” (Act., XX, 28), à que purificou para que aparecesse em sua presença “totalmente resplandecente, sem mancha, nem ruga, nem coisa semelhante, mas santa e imaculada” (Eph., V, 27), que é a “Casa de Deus, coluna e suporte da verdade” (I Tim., III, 15). Quando a humildade põe em perigo a magnanimidade, é que deixou de ser já uma virtude.

4. Quando dócil a Cristo, põe a Igreja em nossos lábios o Pater, quando nos faz dizer ao Pai dos céus: “Perdoai-nos nossas dívidas” (Mt., VI, 12), não há dúvida de que oramos cada dia e imploramos perdão em seu nome; mas pelas faltas que temos cometido em nosso próprio nome, não em seu nome. Ninguém melhor que Santo Agostinho compreendeu esta verdade: “Naqueles que caminham pelos caminhos da verdade dizem: “Perdoai-nos nossas dívidas, já que a oração e a confissão são do agrado do Senhor; não o são por outro lado os pecados pelos quais oramos e nos confessamos”[3].

A Igreja pede para não pecar jamais. – A Igreja como tal pede a cada dia para não pecar, não ceder na fé, não cair na avareza, na impureza, no orgulho, na desesperação, no ódio, pede para perseverar até o fim no amor. Sabe muito bem que essa oração que faz em seu favor é sempre escutada. Mas sabe também que cada um de seus filhos pode cair, que o mal exerce sobre cada um deles uma fascinação constante e terrível as vezes, que grupos inteiros, Igrejas particulares inteiras, podem afundar-se nas provas (Apoc., II, 4-5). Esta oração que dirige a Igreja a Deus para não pecar e perseverar até o fim, oração que dirige com a segurança de ser sempre escutada, a dirige também em favor de cada um de seus filhos, mas neste caso com o temor de não ser escutada suficientemente, suplicando insistentemente que seja preservado cada um deles do mal, que não se perca nenhum deles (cfr. Jo., XVII, 12-15).

Em que sentido pede para ser purificada. – Como temos  de compreender esta petição da Igreja de ser purificada? Ou pede em favor de seus filhos, e se trata então de purificação em sentido próprio, de purificação dos pecados; ou pede por si mesma, para subir cada dia a um amor mais puro, mais intenso, mais profundamente arraigado em seus membros. A contrição imperfeita não é de maneira alguma um pecado, mas a Igreja se purifica quando passam seus membros à contrição perfeita; se purifica igualmente quando passa da caridade dos principiantes à dos proficientes, e desta a dos perfeitos.

Como identifica o historiador a Igreja. – Os historiadores que se movem, por vocação, no campo das ciências positivas, empíricas, não alcançam à Igreja além de que o exterior.  Compreendem nela, sem ter em conta que é Esposa e o Corpo de Cristo e que não é deste mundo seu reino, aos cristãos com todas as suas atividades, tanto as boas quanto as más. Representam no mesmo quadro e na mesma tela os escândalos de um Alexandre VI e a dignidade pontifical de que se achava revestido, as grandezas dos santos, e os crimes dos cristãos que mancharam e ensanguentaram o mundo.

Dos historiadores, inclusive dos não-cristãos, se pode exigir que tomem a consciência do caráter descritivo antes de tudo e limitado de seu ponto de vista, e que se dignem a considerar à Igreja, em determinados momentos, não como meros historiadores, mas como homens, dirigindo a Ela esse olhar que, sem alcançar ainda a penetração do olhar da fé, possa reconhecer e valorizar os supremos valores humanos.  E então, em seu conjunto e em seu impulso fundamental, a Igreja lhes mostrará, não somente em seus membros fiéis, mas mesmo nos membros pecadores cujas traições condena, como uma realidade santa e benfeitora para a humanidade.

O que não obsta que somente a fé nos permita captar à Igreja em sua realidade total. Nenhum católico afirmará jamais que os pecadores pertencem à Igreja por razão de seus pecados. Encontram-se na Igreja pelo o que há de santos neles. Mas, se se encontram na Igreja com seus pecados, chegam a introduzir nela seus pecados? Eis aqui todo o problema.

Como define o teólogo a Igreja? – Parecem abrir-se aqui dois caminhos, dos quais, contudo, um é antes um beco sem saída.

Se se está de acordo em definir à Igreja, não pelo que a faz precisamente ser a Igreja, mas incluindo nela os pecados de seus membros, será preciso afirmar: 1º que não é totalmente pura, totalmente santa, mas que se acha manchada de corrupção  e de pecado; 2º que, por conseguinte, se incorpora, se encarna e se faz visível como tal Igreja, não somente pelo que há de puro e de santo no ser e na conduta exterior de seus membros, mas também por e inclusive no que é impuro e manchado em seu ser e em sua conduta exterior; 3º que pela mesma razão suas fronteiras próprias, seus limites precisos e verdadeiros, se vêem desta maneira dilatados não somente pelas virtudes de seus membros, mas mesmo por seus pecados, com tal que não se trate de pecados, como o cisma e a heresia, que lhes privariam de sua qualidade de membros da Igreja; 4º finalmente que se é verdade que o Cristo individual é Cabeça e a Igreja, com os pecados de seus membros o Corpo, seria necessário afirmar, logicamente, que o Cristo total, isto é, a Cabeça e o Corpo, peca em seus membros pecadores. Esta seria a tese da Igreja santa nos justos e manchada nos pecadores, em uma palavra, de uma Igreja santa submetida ao pecado.

Mas se, pelo contrário, definimos a Igreja pelo que a faz precisamente ser a Igreja, o Corpo de Cristo, será preciso afirmar: 1º que, ainda que compreenda muitos pecadores, é toda pura e santa, sem mescla de mancha ou de pecado; 2º que se encarna e se faz visível, não somente, como é natural, por e no ser e na conduta exterior de seus filhos justos, mas também por e no que, em seus membros pecadores, fica ainda puro e santo, isto é, por e em tudo o que, apesar do pecado, brota neles de um dom celeste: por uma parte os caráteres sacramentais, por outra parte a fé divina, o temor da justiça divina, a esperança teologal, o pesar de seus pecados, ainda quando se vejam privados todos estes movimentos do fogo do amor; 3º que suas fronteiras próprias, precisas e verdadeiras não identificam mais que o que é puro e bom em seus membros, sejam estes justos ou pecadores, tomando em si tudo o que é santo, inclusive em seus membros pecadores, deixando fora de ditas fronteiras tudo o que é impuro, assim se ache em seus membros justos; são nossa conduta e nossa própria vida, nosso coração, o campo no qual se enfrentam a Igreja e o mundo, Cristo e Belial, a luz e as trevas; 4º que o Cristo total, Cabeça e Corpo, é santo em todos seus membros, tanto os pecadores que os justos, trazendo para si toda a santidade, inclusive a de seus membros pecadores, rechaçando de si toda impureza, mesmo de seus membros justos. Tal é a tese da Igreja Imaculada.

Verdade é que homens cheios do céu puderam gritar aos maus cristãos que mancharam a Igreja. Cremos, contudo, que sua intenção não era tanto o defender a tese teológica da Igreja manchada pela corrupção de seus membros, como fazer compreender aos cristãos que pertencem de direito totalmente à Igreja (o que é verdade), que o mundo a terá por responsável das faltas cometidas por aqueles (o que é também verdade, embora constitua uma injustiça), e que neste sentido pelo fato de pecar a desonram. Longe de escandalizar este paradoxo, pelo contrário, nos comove, quando tem como finalidade recordar aos cristãos pecadores as exigências de sua vocação.

A Igreja é imaculada. – Os que sustentam que a Igreja está maculada recorrem a uma maneira de pensar platônica. Distinguem por uma parte o cristianismo ideal e por outra o cristianismo histórico; a Igreja ideal por uma parte, isto é, a Igreja tal qual se encontra no pensamento de Deus (tal qual chegará a ser na eternidade), e a Igreja histórica por outra parte. Somente a primeira é uma Igreja sem mancha nem ruga; a segunda não é mais que um conglomerado. Leva em si a Cristo e a Belial.

Os que defendem que a Igreja é imaculada insistem em sua semelhança com Cristo. Não somente o Cristo ideal, dizem eles, o que se acha no pensamento de Deus, se vê livre de pecado; também o está o Cristo da história, e nos encontramos com isto no próprio mistério da Encarnação. De maneira semelhante, não é a Igreja ideal a única que se acha sem mancha nem ruga; também o está a Igreja da história e este é precisamente o mistério da Igreja, Esposa e Corpo de Cristo já deste mundo, templo do Espírito Santo[4], cristoconforme e teófora. Contém, é verdade, muitos pecadores, mas, mesmo neles, é santa; dentro de seu coração leva a Cristo que luta com Belial.

Um passo adiante em Eclesiologia. – Era tendência normal na Eclesiologia a de tratar de salvaguardar acima de tudo a santidade da Igreja, e separar para isso da Igreja o maior número de pecadores por medo que a manchassem. Os pecadores estavam na Igreja, mas não eram da Igreja. Não formavam em sentido verdadeiro e próprio seu Corpo; não eram membros seus além de que em um sentido impróprio e equívoco; se preferia, no lugar de compará-los com membros, compará-los com tumores malignos. Em uma palavra, se esgotava o vínculo que une os pecadores à Igreja. Logicamente se desemboca no erro de Quesnel, segundo o qual os pecadores não podem ser membros de Cristo nem ter a Cristo por Cabeça.

Modernamente impera, por outro lado, a tendência a salvaguardar a pertença dos pecadores à Igreja. São considerados como verdadeiros membros da Igreja, como membros em sentido próprio. Mas ao não distinguir ao pecador de seu pecado, pelo fato de reabitá-lo na Igreja, se introduziu nela o pecado. A santidade da Igreja, mesclada com numerosos pecados mortais e veniais, se converte em uma santidade somente relativa. “A Igreja é santa como é rica Amberes ou sábia Lovaina”.

É necessário dar em nossos dias o passo decisivo. Os justos da mesma forma que os pecadores se encontram na Igreja, tão somente por aquilo que, em seu ser, em sua maneira de conduzir-se, em seu coração, é santo: isto é, com exclusão do pecado. A Igreja é totalmente santa nos justos e nos pecadores: no caso destes últimos com uma santidade imperfeita, cheia de grilhões; no caso dos justos, com uma santidade perfeita, livre. Os justos e os pecadores são em sentido próprio e verdadeiro seus membros; uns pelo mais importante de seu ser, de uma maneira salvífica; outros pela parte menor de seu ser, de uma maneira não salvífica. “Cristo a partir do céu olha sempre com particular afeto a sua Esposa imaculada, intemeratam Sponsam, desterrada neste mundo”[5].

2. TUDO QUANTO DE VERDADEIRA SANTIDADE HÁ NO MUNDO SE REFERE À IGREJA DE PEDRO.

O primeiro axioma, ao separar a Igreja de Cristo dos pecados de seus membros, enterra o mal-entendido que impede de ver sua santidade. O segundo axioma, ao referir à Igreja de Cristo a santidade de todos aqueles que pertencem a ela de uma maneira espiritual, pelo desejo, enterra o mal-entendido que impede de ver tudo quanto de santidade autêntica há no mundo, seja nas religiões pré-cristãs, seja no Judaísmo ou nas formações dissidentes dá, de longe ou de perto, um testemunho, não contra, mas em favor desta Igreja da qual fez Cristo seu Corpo e sua Esposa, desta Igreja que confiou a Pedro.

As duas zonas da Igreja, acabada uma delas, inicia a outra. – É doutrina da Igreja católica que fora de seu imediato influxo, há, pelo que a santidade se refere, não nada, mas nada que não conduza até ela. Os que não são ainda membros corporais da Igreja se verão privados seja da plenitude das graças sacramentais, seja da orientação jurisdicional; e por isso jamais será perfeita sua santidade. Contudo, podem pertencer à Igreja de uma maneira inicial, espiritual, pelo desejo da caridade teologal. Esta santidade imperfeita é autêntica, e profunda não poucas vezes. E se vê ordenada, por si mesma, e ainda sem dar-se conta disso, à santidade plena da Igreja, da mesma maneira que se ordena o caule a sua flor e a flor ao fruto. Tendo verdadeiramente sua fonte no próprio Cristo, tende até a perfeição de seu Corpo místico, perfeição que não é possível além de onde é plena a Hierarquia e é reconhecido o Primado. Por isso dá um testemunho em favor da plenitude deste Corpo místico, a maneira que dão as coisas do exílio testemunho das coisas da Pátria. O testemunho dos santos das Igrejas ortodoxas, ou das Igrejas protestantes, ou do Judaísmo, ou do Islã, ou da Índia, no caso de que seja autêntico sua santidade, não debilitaria o resplendor da santidade da Igreja Católica a não ser que essa ensinasse que não há vida sobrenatural e santidade autêntica além que naqueles que são seus membros de maneira visível e corporal, e que pelo contrário não existe vida sobrenatural nem santidade nos que lhe pertencem de maneira invisível e espiritual, sem sabê-lo, pela própria tendência da graça que de Cristo recebeu. A verdade é que nos ensina o contrário.

Os verdadeiros bens dos dissidentes são bens da Igreja. – Os bens sobrenaturais que se encontram nos dissidentes ou nos não-batizados, são pelo mesmo fato, imperfeitos: podem formar a Igreja em seu estado inicial, embaraçado, não em seu estado acabado e pleno. Mas a Igreja em seu estado inicial já é a Igreja; os bens dos dissidentes ou dos não-batizados são seus bens, bens que contribuem a constituí-la; tudo quanto possa haver de autêntico na experiência ortodoxa, luterana, anglicana, pertence à Igreja católica; mas o que falta a esta experiência a que tantos grilhões se opõem, isto é, sua própria plenitude, isso é o que falta precisamente à Igreja. Nesta perspectiva não se pode dizer que os dissidentes ou os não-batizados se encontrem em posse de verdadeiros bens sobrenaturais que faltam ainda à Igreja. “O catolicismo não é um partido religioso, é a religião, a única religião verdadeira, e se goza sem inveja de nenhum gênero de todo bem, inclusive dos bens que florescem fora de suas fronteiras além que na aparência; na realidade lhe pertencem de maneira invisível. Não pertence porventura tudo a nós que somos de Cristo?”[6].

 

II. A SANTIDADE ENQUANTO TENDENCIAL NOS PODERES HIERÁRQUICOS.

 

As grandezas da hierarquia se acham ao serviço dos bens de santidade. Daqui que devam ser ao mesmo tempo santas. Não com uma santidade formal, terminal; mas sim com uma santidade tendencial, ministerial ou instrumental. São santas não diretamente, como algo próprio; mas indiretamente, por relação à santidade, da mesma maneira que se diz de uma região, ou de alguns alimentos que são saudáveis porque favorecem à saúde[7].

Os poderes hierárquicos se subdividem em poderes de ordem e poderes de jurisdição.

1. A SANTIDADE INSTRUMENTAL DOS PODERES DE ORDEM.

O poder de ordem, que é um dos três poderes sacramentais, permite aqueles que são seus depositários agir como puros instrumentos, como meros canais que transmitem às almas que se encontram dispostas a recebe-la uma graça que provém de Deus e da Cruz de Cristo.

Pode que as pessoas que se encontram em posse do poder de ordem, não possuam a santidade, o que dará lugar na prática a uma quantidade sem número de dificuldades. Mas o poder da ordem em si, poder que é um puro instrumento nas mãos de Deus, não se verá com isso nem manchado nem debilitado. A propósito de João I, 33: “Aquele sobre quem vires descer e morar o Espírito, esse é quem batiza no Espírito Santo”, escreve Santo Agostinho: “Batiza Pedro, Ele é quem batiza; batiza Paulo, Ele igualmente é quem batiza; e ainda quando o faças Judas, Ele será quem batiza”[8].

Quando se diz que os sacramentos agem ex opere operato, pode se entender isto por razão do ministro e dar a entender com isso que as disposições pessoais do ministro não influem para nada em seu efeito. E pode se entender, de maneira mais profunda desta vez, daqueles que se aproximam a recebe-los e dar a entender com isso que os sacramentos transmitem a graça de Cristo, não independente de nossas disposições, mas em dependência delas, não à medida destas, mas acima delas, ainda quando em proporção a elas, de maneira que quem vem com dois receba quatro, e quem vem com três, seis. “a qualquer que tiver lhe será dado…” (Lc., VIII, 18).

2. A SANTIDADE MINISTERIAL DOS PODERES DE JURISDIÇÃO.

O poder de ordem é estritamente instrumental, o poder de jurisdição tão somente ministerial. – Os poderes de jurisdição se acham destinados não a comunicar a graça às almas, como penetrando nelas, mas a propô-las a partir do exterior as diretrizes especulativas ou práticas que deverão as almas aceitar e interiorizar.

Somente é possível a Deus forçar em certo sentido as portas da alma, para derramar nela a graça, e, como temos já dito, as criaturas não podem ser utilizadas por ele mais que a título de puros instrumentos para fins que as superam absolutamente.

Mas, pelo contrário, propor a partir do exterior às inteligências uma mensagem especulativa ou prática, ainda quando seja de origem divina, é algo que aparece mais ao alcance dos homens, algo no qual podem eles tomar uma parte maior de iniciativa. Os depositários do poder de jurisdição agirão, por conseguinte, mais como causas segundas do que como meros transmissores. E a este título serão princípio de iniciativas e de responsabilidades.

Necessidade de uma assistência dos poderes de jurisdição. – Desconto de semelhante privilégio deixado aos homens será que na mesma medida em que cresce a importância de seu papel, ameaçará entrar no governo da Igreja a falibilidade.  Daqui a necessidade  para que os fiéis sejam dirigidos e não levados por mal caminho por seus pastores de uma providência particular, de um socorro profético, de uma assistência. Com efeito, esta assistência foi prometida aos Apóstolos e a seus sucessores: “Ide e ensinai a todas as nações… Ensinando-as a pôr em prática o que vos ensinei. Eis que estarei convosco até o fim dos tempos” (Mt, fim).

Graus nesta assistência. – A assistência outorgada ao poder declarativo é absoluta, e neste sentido totalmente santa. Sobre isto não há dificuldade alguma.

A assistência que recebe o poder canônico é prudencial. É infalível para as medidas de ordem geral: e neste sentido, estas medidas, sem que tenham que ser necessariamente as mais prudentes entre todas as possíveis serão, contudo, sempre prudentes e santas, não poderão desviar aos fiéis.

A assistência é falível para as medidas de ordem particular e de ordem “orgânica”: de maneira que em seu conjunto estas medidas serão prudentes, boas, santas; mas as vezes poderão ser errôneas, nefastas e desviar aos que as seguem. Este é o mistério que se aborda.

Por que é falível a assistência no setor das diretrizes particulares e orgânicas? – Não poderia ter Cristo preservado o poder canônico de todo erro e de toda injustiça mesmo neste ponto? Qual é a causa de que permita que possam equivocar-se aqueles que falam seu nome? É Seu segredo. A nós nos corresponde, no lugar explica-lo, atestá-lo.

A problemas deste estilo a única coisa que se pode responder é que Deus não permitiria que pudesse imperar o mal no mundo contra sua obra redentora, se não fosse bastante poderoso para tirar dele grandes bens. Que bens são estes? São bens que ficam ocultos, e que tão somente imperfeitamente mostram-se.

Se dirá, por exemplo, que ao dar Deus no governo de sua Igreja uma participação tão grande à responsabilidade de seus servos, honra neles de uma maneira sublime a condição humana; que permitindo que se equivoquem as vezes ao entrar em contato com as realidades concretas, inconstantes, convida-os para que se aproveitem da experiência, a seguir os passos da história para ensinar as coisas que se encontram acima da história; os move a “existir com o povo”, para usar de indulgência com os que pecam, já que também eles se acham rodeados de debilidade (Hebr., V, 2), a meditar em sua miséria, a duvidar de si mesmos, a suplicar humildemente para alcançar as luzes do céu.

Poderá igualmente se dizer que os maiores erros dos homens da Igreja foram ocasião, com a ajuda da graça, do martírio de uma Joana d’Arc ou da união transformadora de um João da Cruz.

Falando de Justos que haviam sido expulsos da comunidade cristã, escrevia Santo Agostinho: “Se suportam na maior paciência esta ofensa e esta injustiça pela paz da Igreja, sem fomentar nenhuma das novidades do cisma ou da heresia, ensinarão aos homens com qual grande amor e com qual sublime caridade é preciso servir a Deus. Defendem até a morte e sustentam com seu testemunho a fé que sabem que é ensinada pela a Igreja católica. E o Pai que vê no oculto, os coroa também no oculto. Semelhante raça de homens é rara, mas não faltam exemplos; e inclusive são mais abundantes do que se possa crer”[9].

A atitude cristã frente às possíveis falhas do poder canônico. – 1. Poderia suceder que as diretrizes jurisdicionais em matéria sujeita a erro fossem justas no que ordenam mas imorais na intenção de quem as impõe: os cálculos da ambição podem fazer promulgar uma lei justa. Neste caso dizemos que sob o aspecto que as faz imortais, constituem um pecado dos homens da Igreja e se acham fora da Igreja, já que esta se acha por sua mesma essência livre de pecado; e que sob o aspecto que são justas, deverão ser obedecidas.

2. Mas podem achar-se estas diretrizes intrinsecamente desviadas, se impõem um erro (os decretos contra Galileu declaram como contrário à Bíblia o Heliocentrismo), um pecado, uma pena injusta (Joana d’Arc fez responsável de sua morte ao bispo de Beauvais).

Enquanto subsista a dúvida, a presunção se acha em favor da autoridade jurisdicional. Para quebrá-la seriam necessárias razões excepcionalmente graves.

Mas se chegar a ser evidente que as prescrições particulares da mensagem falível da Igreja nos impõem um erro ou um pecado, ou uma pena injusta, se veriam anuladas já de antemão pela prescrição superior de sua mensagem infalível expressamente recordada detalhadamente e que sempre se pressupõe, segundo a qual não se poderia nenhum caso contradizer a uma lei natural ou a uma lei evangélica certas. Apelar, como fez Joana d’Arc, ao tribunal de Deus contra decisões desta natureza, decidir “obedecer a Deus antes que aos homens”, não será de maneira alguma opor Deus à Igreja, mas que pelo contrário será antes opor a vontade da Igreja infalível, vontade que não é outra coisa que a vontade de Deus, ao erro evidente, rechaçado de antemão, de seus tribunais inferiores e de seus ministros. Quando “não tenha já nenhum dos Superiores, dizia São João da Cruz, que se atreva a advertir-lhes ou a contradizer-lhes quando erram… tenham-se então à Ordem por perdida e por relaxada”[10].

Neste sentido, tendo em conta que contém de antemão a reprovação e a desautorização do erro e da injustiça uma vez que aparecem estas como tais, a mensagem da Igreja em seu conjunto é santa.

Como se acham desautorizados pelas instâncias canônicas superiores, já de antemão, as falhas das instâncias canônicas inferiores. – 1. Os poderes falíveis da Igreja não podem jamais desviar-me impondo o pecar apesar de mim: para que eu peque, é preciso que eu o queira.

Podem, é verdade, induzir-me a erro. O erro pode ser especulativo se me foi dito que devo crer no Geocentrismo sob pena de opor-me à inerrância da Escritura. Pode ser prática: a tortura que declara Nicolau I como algo contrário ao direito seja natural, seja evangélico, é tolerada por Inocêncio IV nos tribunais da Inquisição; pode fazer que bispos declarem justa uma guerra que não o é, e injusta uma resistência que seja justa, etc.

2. Uma vez que aparece a falha das diretrizes jurisdicionais falíveis, estas diretrizes ficam invalidadas, desautorizadas e anuladas já de antemão. Se além disso prescrevem algo que é pecaminoso, ou que se cometa uma injustiça, ficamos na obrigação de não obedecer. Se me privam de uma vantagem a qual posso renunciar sem pecado, de maneira por outro lado que esta obediência, ao preço de um sacrifício suportável, permita-me evitar seja o escândalo seja outros males mais graves, será preciso que escolha obedecer.

Mas contanto que permaneça oculta esta falha das diretrizes jurisdicionais falíveis, estas diretrizes dependem embora de maneira provisória e condicional da mensagem jurisdicional da Igreja. Ainda não aparecem como algo escandaloso. É tão somente o humano que ainda não foi evangelizado. Constituem no Novo Testamento como uma carga pesada, como uma réplica atenuada daqueles erros, daquelas iniqüidades, que não apareciam como tais no Antigo Testamento, e que pela mesma razão permitia Deus que seja imputada a Israel. Uma vez que fique revelada sua falha pelo progresso da verdade e da caridade, ficarão repudiadas. Por mais numerosos que sejam estas falhas, sempre serão algo parcial e precário no Novo Testamento, e na Igreja permanecem constantemente ativos os princípios que podem reduzi-las e expulsá-las algum dia.

A Igreja se acha livre de mancha e ruga. – A mensagem dos poderes jurisdicionais é o instrumento, não o conteúdo da santidade da Igreja. A santidade pertence a este instrumento não como algo próprio, mas tendencialmente, pela referência à santidade própria da Igreja. Esta santidade tendencial, ministerial, é algo puro e sem mescla, no plano das verdades definidas e das leis universais. No plano das diretrizes particulares ou orgânicas, o erro e a injustiça, ainda sendo como são possíveis, se acham desautorizados já de antemão, logo que se mostram como tais, de maneira que não chegam a alterar a santidade da Igreja.

Não poderá achar-se mancha nem pecado na Igreja considerada como sujeito de santidade, isto é na Igreja que crê e ama, composta de clérigos e leigos, de justos e pecadores, e que é a comunidade humana nascida dos poderes sacramentais e dos poderes jurisdicionais, unificada pela caridade cultual, sacramental, orientada, e na que mora em plenitude o Espírito Santo.

 

III. A SANTIDADE COMO NOTA E PROPRIEDADE DA IGREJA

 

Falaremos em primeiro lugar da natureza da santidade da Igreja (1); do mistério desta santidade (2); do milagre que representa dita santidade (3).

1. NATUREZA E DEFINIÇÃO DA SANTIDADE DA IGREJA.

A santidade passa de Cristo à Virgem, à Igreja e aos fiéis. – Cristo é santo. Enquanto Deus é essencialmente santo, é a santidade personificada, e neste sentido só Ele é santo com o Espírito Santo na glória de Deus Pai: Tu solus sanctus. Enquanto homem, é santo em primeiro lugar pela união pessoal de sua natureza humana com o Verbo, santidade esta que é incomunicável; e em segundo lugar porque possui como em sua fonte e em toda sua plenitude a graça e a verdade que comunica aos homens.

A Virgem que é saudada pelo anjo como a cheia de graça, e na que se confessa toda a santidade da Igreja, é chamada a Santíssima.

A Igreja é santa: “Esposos, amai a vossas mulheres como amou Cristo a sua Igreja; e se entregou por ela para santificá-la, tendo-a purificado com o lavar da água e por meio da palavra, para apresentá-la a si mesmo como Igreja gloriosa, sem mancha nem ruga nem coisa semelhante, mas santa e imaculada”. (Eph., V, 25-27).

Os primeiros cristãos são chamados santos pelo Apóstolo: “Paulo… a todos os muito amados de Deus, santos por vocação, que estão em Roma” (Rom., I, 7), “Todos os santos os saúda, e muito em especial os da Casa do Imperador” (Phil., IV, 22; cfr. Act., IX, 32; XXVI, 10)[11].

A santidade é caridade. – “Deus é caridade (ágape); e quem permanece na caridade em Deus permanece e Deus nele” (1 Jo., IV, 16). Deus santifica o mundo chegando-se a ele pelo amor: “De tal maneira Deus amou ao mundo que entregou a seu Unigênito a fim de que todo o que nEle crê não pereça mas que consiga a vida eterna” (Jo., III, 16). O Evangelho nos indicou o nome supremo da santidade; é o de caridade, ágape, amor. O nome santo (sanctus, sancire = o que está prescrito), em grego hagios (da raiz hag = puro­) é tomado pelos teólogos como conotando a idéia de pureza por um lado, e por outro a de firmeza, solidez, consagração[12]. Então, esta firmeza, esta pureza, como bem o sabemos a partir do Evangelho, não são mais que derivações, conseqüências do amor de Deus para conosco em primeiro lugar, e da resposta nossa de amor a Deus como conseqüência, já que “o sol do: Ele os ama, se reflete na lua do: “Eles amam-Lhe, e sempre no fim das contas se trata da mesma luz”. Depois de haver recordado a definição da santidade dada por Dionísio: isenção de toda impureza e perfeição da pureza, acrescenta Bento XIV: “Mas, quem não vê que semelhante santidade requer as virtudes teologais da fé, esperança e caridade, pelas quais ficamos imediatamente unidos a Deus?[13]. Dizer da Igreja que sua santidade consiste primordialmente na caridade enquanto cultual, sacramental e orientada, equivale em primeiro lugar a excluir dela todas as impurezas do corpo e da alma contrárias ao amor; e a incluir por outra parte nela todas as consagrações e as santificações sem as quais não seria a caridade nem cultual, nem sacramental, nem orientada.

Como se pode identificar e reconhecer a santidade da Igreja? – Não é possível identificar a Igreja a cegas. A identificamos fundando-nos na Revelação. Por uma parte odeia o pecado mesmo em seus próprios membros; e como que por outra parte atrai até si toda a santidade do mundo.

A esta mesma Revelação e à Teologia será preciso perguntar como pode conhecer a santidade da Igreja. É necessária para isso a fé? Pode captar algo neste sentido a razão? O que percebe a mera observação empiria? A estas perguntas se responderá:

1º A Revelação nos afirma a existência do mistério da santidade da Igreja. Não nos é possível conhecer de maneira perfeita esta santidade além de através da fé sobrenatural. “A graça e a santidade são realidades que se acham acima da natureza”[14].

2º A existência do milagre da Igreja ao exaltar extraordinariamente os valores humanos que faz seus e incorpora a si, cai por si sob a visão metafísica da inteligência natural, que persiste em todo homem, ainda quando se veja as vezes como velada ou oculta. Ainda no caso de que não alcance proclamar o milagre, esta visão poderá pelo menos discernir a excepcional qualidade moral dos valores humanos que se acham sob o influxo da Igreja; esta é por exemplo a razão de que tenham tão extraordinariamente a atenção de um Henri Bergson os místicos católicos.

3º O mistério e a santidade da Igreja são algo que de por si escapa ao mero olhar empírico, olhar que se preocupa tão somente da casca das coisas, e é incapaz de valorar sua profundidade: Da mesma maneira que um cubo, visto sob determinado ângulo, se reduz a uma simples superfície.

2. O MISTÉRIO DA SANTIDADE DA IGREJA.

A santidade da Igreja é superior à de cada um de seus filhos.- 1. A santidade da Igreja difere da santidade de cada um de seus próprios filhos não somente como podem diferir em mais ou menos, mas qualitativamente: se pode dizer que acrescenta à soma daquelas uma ordem semelhante ao que acrescenta a sinfonia às vozes múltiplas dos instrumentos. Em outros termos, a Igreja é santa, não como um mero agregado, mas mesmo enquanto forma um todo pessoal; sua santidade, ainda que exista em seus diversos filhos e não fora deles, é, contudo, a santidade de um todo pessoal[15].

2. Em seu menor grau, a santidade da Igreja ficará constituída pela fé, pela esperança, os arrependimentos, os santos desejos, os atos generosos, em uma palavra por toda virtude autêntica mesmo dos mais míseros de seus filhos ainda quando sejam pecadores em outros momentos. Mas a santidade da Igreja fica constituída antes de tudo pela santidade dos justos aos quais se unem os pecadores, e muito em especial pela santidade dos verdadeiros amigos de Deus, e dos grandes santos, conhecidos ou ocultos.

3. A estes elementos individuais se une um elemento ordenador e unificador. O sopro de Pentecostes que enviou Cristo, segue animando à Igreja, conferindo-lhe uma santidade cuja amplitude e continuidade superam a de cada um de seus membros; de tal maneira que quanto mais santos sejam, mais se sentem, e como tais se proclamam, como quem são na Igreja. não mestres, mas discípulos: “Sua humildade, suas insuficiências não poucas vezes, algo de imperfeito, de comprovante o que neles se dá e que se acha como dirigido até outro, faze-lhes ver com claridade: são santos pelo meio em que vivem, por Cristo de quem tudo lhes chega e que segue vivendo na Igreja, de maneira que sua santidade, antes de lhes ser própria a cada um, é algo comum por sua raiz. Por isso desta santidade por sua mesma essência, testemunho, não de si mesma, mas da santidade católica da Igreja”[16].

Toda a santidade da Igreja é evangélica – Nos santos se acha o Evangelho como em estado puro. O sangue derramado pelo amor a Jesus não se interrompe, começando pelos primeiros mártires cristãos, prosseguindo mais tarde pelos do Japão ou os do Canadá, pelos da Indochina ou Uganda, e a que em nossos dias se derrama por aqui ou por lá.

Leia-se as orações da Liturgia, as regras dos fundadores das Ordens religiosa, os avisos dos grandes mestres do Espírito: todos estão como esmagados no Espírito do Evangelho. Os santos mais pessoais de todo tempo e lugar se sentem por sua vez como movidos por um poder mais poderoso que cada um deles, por um poder que os vincula de maneira maravilhosa entre si.

Haviam sido necessárias muitas flores, disse Santo Ambrósio, para compor o perfume de que nos fala o Evangelho; em nossos dias somente a Igreja, na qual faz brotar o Espírito inúmeras flores, pode derramar semelhante perfume aos pés do Senhor: “Com efeito nenhum santo pode amar tão intensamente como ela, já que é ela a que ama em todos os santos”[17].

Mais santa que cada um de seus membros, a Igreja não é outra coisa que Jesus que segue vivendo em cada um de seus membros uma vida que começou em si mesmo e que jamais há de acabar[18]. A Igreja é “o Evangelho que prossegue entre nós”.

3. O MILAGRE DA SANTIDADE DA IGREJA

A santidade de Cristo fica maravilhosamente manifestada na ordem física e na ordem moral. – A santidade misteriosa de Cristo se manifestou ao exterior por sua vida no meio dos homens de duas maneiras:

1º Sua própria vida, sua mensagem de se conduzir; sua atitude, o conjunto da mensagem evangélica da qual seguimos vivendo desde dois mil anos, representam aos homens, um milagre de santidade, um milagre moral.

2º Ademais em determinadas circunstâncias esta santidade de Cristo brotou bruscamente ao exterior por meio de milagres físicos. Pense-se nos milagres que atestaram sua missão, por exemplo, Mt., IX, 6: “Ora, para que saibais que o Filho do Homem tem na terra o poder de perdoar os pecados: Levanta-te – disse ele ao paralítico -, toma a tua maca e volta para tua casa.”. Recordem-se os milagres de sua glorificação progressiva: a transfiguração (Mt., XVII, 2-5), ressurreição (Rom., I, 4; Act.,II, 27), ascensão (Mc., XVI, 19). Estes últimos milagres são os primeiros que ficaram gravados na memória de seus discípulos (II Petr., I, 16-18; Act., II, 24; III, 15; X, 40; XVII, 31-32; I Cor., XV, 1-28, etc.).

A santidade da Igreja fica igualmente manifestada ao mesmo tempo tanto na ordem física como na ordem moral. – Também a santidade misteriosa e oculta da Igreja se manifesta ao exterior:

1º Não lhe faltam milagres físicos; brotam em torno dos mais santos de seus filhos; se mostram como uma resposta à prece comum nos lugares de peregrinação em que mais fervente é aquela. Finalmente a santidade interior da Igreja brotará ao exterior no milagre da ressurreição dos mortos e da glorificação dos eleitos;

2º Além disso, a santidade da Igreja fica testemunhada ao exterior com toda a evidência pelo milagre moral permanente que constitui a transcendência de seu proceder em relação de todas as formações humanas. Depois da vida de Cristo, também a vida da Igreja constitui em seu conjunto um verdadeiro milagre: “A própria Igreja, nos diz o Concílio Vaticano, constitui por si mesma, devido a sua admirável propagação, a sua eminente santidade, e a sua inesgotável fecundidade em toda classe de bens…, um perpétuo motivo de credibilidade de um testemunho irrefragável de sua origem divina”[19].

Três sinais da santidade da Igreja. – Três sinais entre outros muitos, três linhas de força, nos fazem visível a Igreja como santa: 1º sua constância em confessar as grandezas de Deus; 2º sua sede por unir-se a Ele no mais além; 3º seu zelo em dá-lo aos homens.

1º Com efeito, que é a Igreja? Antes de tudo uma voz que não deixa de proclamar no mundo as grandezas de Deus. A encontramos ali onde sabemos por uma parte que “Deus mora em uma luz inacessível” (1 Tim., VI, 16), mas por outra parte sabemos igualmente que se acha tão perto de nós “que nEle temos a vida, o movimento e o ser” (Act., XVII, 28); ali onde se sabe por uma parte que Deus é infinitamente bom e poderoso, e por outra parte que o mal supera em horror o quanto dele podemos conceber; que antes de constituir o mal um problema que levanta o homem a Deus, é um problema que Deus levanta ao homem (Jo., X, 2 e XXXVIII, 1 ss.); que não podemos descer ao ponto de descobrir a profundidade do mal além de que elevando-nos no descobrimento do mistério de Deus; ali onde se sabe que Deus amou de maneira louca aos homens até o ponto de manifestar-lhes todos seus segredos:: sua paternidade que os satisfez desde o começo; seu Unigênito que se aniquilou para salvá-los de uma catástrofe; seu Espírito Santo, que lhes faz dom das graças redentoras e funda no meio deles a Igreja, na que morarão as três Pessoas divinas (Jo., XIV, 23); ali onde esta convicção resiste ao fluxo dos erros humanos, as mais sutis e terríveis tentações, ali onde fica submetida a toda prova esta convicção diante da morte que se aproxima lentamente,assinada as vezes quando é preciso pela efusão do sangue, e onde são conduzidos os que confessam a fé por um sopro que vem da Cruz e se dirige até a Parusia, já que a Igreja leva em si a fé de cada um de seus filhos.

2º O que mais é a Igreja? Antes de tudo um desejo de unir-se a Deus.

Nos encontramos com ela ali onde suspiram todos pelo dia em que Deus manifestará seu rosto e o será tudo em todos (1 Cor., XV, 28), em que voltará Cristo a restabelecer todas as coisas (Act., III, 21; Apoc., XXI, 5), para destruir a morte, para ressuscitar a humanidade (I Cor., XV, 42 e 55), para instaurar os novos céus e a nova terra na qual morará a justiça (II Petr., III, 13); ali onde se sabe que as dores deste mundo são as de um parto que nos faz nascer à liberdade e à glória dos filhos de Deus (Rom., VIII, 21-22); onde se considera a dor que neste mundo nos aflige como algo que não pode se comparar com a glória futura (Rom., VIII, 18); onde se roga cada dia para que chegue o reino de Deus, a ressurreição dos mortos, a vida do século futuro; onde se sabe que não fica constituído o juízo definitivo pela história mas que no lugar será o último juízo quem julgará a história; ali onde se considera a vida como uma preparação à morte, e esta como uma porta que se abre subitamente sobre a santidade de Deus: “Assim estamos confiando, persuadidos de que enquanto moramos neste corpo estamos ausentes do Senhor, porque caminhamos na fé e não na visão; mas confiamos e queremos antes sair deste corpo e nos acharmos presentes com o Senhor” (II Cor., V, 6-8); onde se sabe que não vale ao homem absolutamente nada ganhar todo o mundo, se depois perde sua alma (Mc., VIII, 36), que as moradas do tempo presente são moradas banimento; ali onde, contudo, se defende que este banimento é visitado pela presença mística de Deus, que o tempo de posse das pessoas divinas na caridade da visão fica preparado por um tempo de posse na noite do amor; que ao entardecer da vida seremos julgados pelo amor; que agem sabiamente aqueles que vendem tudo para ficar com o amor; e que começamos a valer algo na mesma medida em que começamos a sentir seu contágio; ali onde nos apertamos todos em torno de um Cristo “que veio a lançar seu fogo na terra” (Luc., XII, 49); onde se sabe que Deus que deu aos homens a presença corporal de seu Filho único, amou-os o bastante para deixar-lhes esta presença corporal velada sob as aparências de pão e de vinho, e que as graças de contato que Cristo nos atraiu, seguem chegando-se a nós por meio dos sacramentos; onde todas as gerações proclamam bem-aventurada à Mãe Virgem de Jesus e suplicam-lhe que interceda em favor da miséria humana, como o fez antes em Caná; ali onde se tem pânico do pecado e o considera como o único verdadeiro mal; onde se estimam as palavras do Evangelho sobre a porta estreita, sobre a renúncia, a cruz, a pobreza, a castidade, a obediência.

3º O que é finalmente a Igreja? Antes de tudo um movimento para dar Deus aos homens. A encontramos ali onde a espera da Parusia e a iminência da eternidade nos revelam o preço inestimável do tempo presente, do movimento da história, do nascimento, do trabalho, da morte dos homens; onde se crê que a colheita constituirá por toda a eternidade o que foi no tempo a semente; onde o zelo do céu formará um desejo veemente de converter a terra; ali onde os homens, sabendo que o amor deu sua vida por eles, tratam por sua vez de dá-la por seus irmãos (I Jo., III, 16), tratam de dar seus bens (17), de carregar com sua carga (Gal., VI, 2), de não mentir (Col., III, 9); onde se perpetua a missão evangélica inaugurada pelo Salvador e seus Apóstolos; onde para imitar a aniquilação do Filho de Deus convertido em semelhante a nós, abandonam sua pátria os missionários e fazem seus os costumes das populações estrangeiras, para levar-lhes a água da vida em um vaso que possam elas reconhecer como seu próprio; onde se abraça algum a sorte dos galeotes como Vicente de Paulo, ou dos loucos como João de Deus, ou dos selvagens como os jesuítas que evangelizaram Nova França, ou dos leprosos como o Padre Damião, para dar desta maneira por toda a parte testemunho do amor de Deus que está em Cristo Jesus; onde se veste e alimenta aos pobres, ficam hospitalizados os estranhos, e visitados os enfermos e prisioneiros (Mt., XXV, 37-40); ali onde se recebe aos pequenos em nome de Jesus (Mt., XVIII, 5); onde se segue chegando a eles a benção do Salvador (Luc., XVIII, 16-17) por meio do Batismo, e onde se sabe que escandalizá-los é o que é de mais horrível (Mt., XVIII, 6); ali onde é objeto de ódio o pecado e fica reabilitado o pecador, onde se pensa que é preciso detestar o erro e amar aquele que erra; onde a obediência nada tem a ver com a baixeza e o mandar com o orgulho, onde é juntada a magnanimidade de serem portadores do tesouro de Deus e a humildade de levá-los em vasos tão frágeis (II Cor3., IV, 7); a simplicidade da pomba e a prudência da serpente (Mt., X, 16), o temor profundo do inferno e a confiança amorosa em Jesus que veio preservar-nos dele, o sentido do que falta aos não-cristãos e das graças que se pode promover a eles; ali onde se reconhece a santidade do matrimônio e a da virgindade (I Cor., VIII); onde um reino que não é deste mundo e que se acha além das atividades culturais pode, contudo, preenchê-las de sua luz.

Não julgar a Igreja pelo o que não é. – “Os católicos não são o catolicismo. As faltas, as torpezas, as carências e os sonhos dos católicos não comprometem ao Catolicismo. Ao Catolicismo não lhe corresponde prestar um pretexto às faltas dos católicos. Não consiste a melhor Apologética tratar de justificar aos católicos quando agem mal, mas pelo contrário em insistir nestas faltas, fazendo ver que não tocam em nada a substância do Catolicismo, e que não fazem mais do que pôr a plena luz a virtude de uma religião que resplandece e vive apesar disso. A Igreja é um mistério, tem sua cabeça oculta no céu, sua visibilidade não a manifesta mais do que de uma maneira sumamente inadequada; se buscais o que a representa sem traí-la, contempla ao Papa e ao Episcopado que nos ensinam nas coisas de fé e costumes, contempla a seus santos no céu e na terra; não vos fixeis em nós os pecadores. Ou antes ver como cura nossas chagas a Igreja, e nos conduz mancando até a vida eterna… a grande glória Igreja se constitui pelo fato de que seja santa com membros pecadores”[20]

A santidade da Igreja foi profetizada. – A permanência da santidade da Igreja ao longo dos séculos até o fim do mundo, foi já profetizada. Além do milagre que em si mesma constitui, representa o cumprimento de uma previsão que enche todo o Antigo Testamento.

Em geral se poderá dizer: Jesus anuncia uma nova era espiritual para a humanidade: “Chega a hora, e nos encontramos nela, em que os verdadeiros adoradores adorarão a Deus em espírito e em verdade; porque estes são os que o Pai quer. Deus é Espírito, e necessário é que aqueles que lhe adorem o façam em espírito e verdade” (Jo., IV, 23-24). Esta adoração se acha centrada no sacrifício cruento da Cruz: “Quando eu for elevado sobre a terra, atrairei até a mim todos os homens. Queria indicar com isso de que morte iria morrer.” (Jo., XII, 32-33), sacrifício cuja virtude nos é comunicada pelo sacrifício incruento da Ceia: “Este é meu Corpo entregue por vós; fazei isto em Memória de Mim” (Luc., XXII, 19). Os verdadeiros adoradores haverão de nascer do Batismo: “na verdade, na verdade te digo que aquele que não nascer da água e do Espírito, não pode entrar no Reino de Deus” (Jo., III, 5); haverão de alimentar-se do próprio Salvador: “Quem come a minha carne e bebe meu sangue mora em Mim e Eu nele” (Jo., VI, 56). Serão dóceis para aqueles que venham ensinar-lhes da parte do Salvador: “Em verdade, em verdade vos digo, quem recebe aquele que eu envio, a Mim me recebe, e quem me recebe a Mim, recebe Aquele que me enviou” (Jo., XIII, 20), e a oração do Salvador se une a eles: “Não te peço tão somente por eles, mas também por aqueles que crerão em Mim por haver escutado sua palavra” (Jo., XVII, 20).

Quem não haverá de reconhecer o cumprimento desta profecia na caridade cultual, sacramental e orientada da Igreja? E é verdade que nem toda a caridade autêntica do mundo é de maneira explícita cultual, sacramental e orientada; mas sabemos que o é de uma maneira implícita, e que semelhante à nebulosa que se centra em seu núcleo, se organiza para formar em torno à Igreja em ato acabado, a Igreja em ato começado e não totalmente livre de trevas ainda.

Havia sido predito além disso que a pregação da fé se veria acompanhada de milagres (Mc., XVI, 17-18), e mesmo quando seja verdade que estes são mais necessários e freqüentes em determinadas épocas, não cessam de acompanhar, contudo, o passo da Igreja.

  



[1] Comentário ao De Anima de Aristóteles, livro II, lecc. 7, edic. Pirotta, nº 318.

[2] É uma verdade definida pelo Magistério que o pecador batizado pode ser ainda cristão, isto é membro da Igreja: “Se alguém disser… que quem tem a fé sem a caridade não é um cristão, que seja anátema”. Conc. Trid., Sess., VI, can. 28, Denz., 838.

[3]Enarr. in Ps. CXVIII, Sermo 3, nº 2.

[4] E não hospital, como dizia Lutero!

[5] Encíclica MysticiCorporis, Colección de Enciclicas, Publicaciones de la Junta Técnica de Acción Católica, 5ª edicción, Madrid, 1955, p. 713.

[6] JACQUES MARITAIN, Religion et culture, Paris, 1930, p. 65.

[7] S. TH., III, qu. 60, a. 1.

[8]In Joan. Evang., tratado 6, nº. 8.

[9] De vera religione, VI, 11.

[10] Testemunho do Padre Eliseo de los Mártires.

[11] Cfr. BENEDICTO XIV, De serv. Dei beatif. Et de beat, Canon., libro I, cap. 37, nº 7.

[12] S. TH., II-II, qu. 81, a. 8; ALEJANDRO M. HORVATH, O. P., Heiliglceit und Sunde im Lichte der thomistischen Theologie, Friburgo (Suiza), St.-Paul, 1943; veja-se principalmente os índices, pp. 128 e seg.

[13] Op. cit., livro III, cap. 11, nº 3.

[14] BENEDICTO XIV, op. cit., livro I, cap. 28, n. 14.

[15] “A multidão fora dos indivíduos é uma realidade inexistente; mas a multidão nos indivíduos é uma realidade existente”. S. THOMAS, De potentia, qu. 3, a. 16, ad 16.

[16] ÉMILE MERSCH, S. J., La théologie du corpa mystique, Paris, 1944, t. II, p. 229.

[17] Expositio in Lucam, VII, 46-57; P. L. t. XV, col. 1674.

[18] Cfr., J.-P DE CAUSSADE, L’abandon à la divine Providence, 1928, t. I, p. 34.

[19] Sess. III, Constit. De fide catholica, cap. 3, Denz., nº 1.794.

[20] JACQUES MARITAIN, Religion et culture, Paris, 1930, p. 60.

 

FONTE


JOURNET, Charles. Teologia de la Iglesia, Ediciones Descle de Brouwer, ano 1962, pp. 255-286. Edição francesa: Le traité de L’Eglise, ano 1957.

 

PARA CITAR


JOURNET, Charles. A Santidade da Igreja. Disponível em: <http://www.apologistascatolicos.com.br/index.php/concilio-vaticano-ii/814-a-santidade-da-igreja> Desde 20/08/2015.

 

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