Segunda-feira, Novembro 18, 2024

A Revelação Divina – Perspectivas da Constituição Conciliar “Dei Verbum”

A Revelação Divina

Perspectivas da Constituição Conciliar “Dei Verbum”

 

Pelo Pe. Dom Cirilo Folch Gomes, O.S.B., Professor de Dogmática na Escola Teológica da Congregação Beneditina Brasileira, Rio de Janeiro

Na Constituição Dogmática Dei Verbum o Concilio Vaticano II consagrou perspectivas teológicas que situam o tema fundamental da Revelação divina sob nova luz. Embora sem contar pronunciamentos dogmáticos[1] assinala um verdadeiro progresso no campo doutrinário enquanto empresta a força da autoridade conciliar a uma série de conquistas amadurecidas na teologia moderna. Nossa intenção, neste artigo, será não a de fazer uma exegese completa do documento, mas a de realçar os aspectos que nos parecem de maior importância. Sobre a história do texto não nos estenderemos, remetendo o leitor às minuciosas crônicas que já tem sido publicadas.[2]

O documento consta de seus capítulos. Considera primeiro a natureza da Revelação (c. I), depois as condições de sua transmissão desde o tempo dos Apóstolos (c. II), em seguida várias questões relativas à Sagrada Escritura: sua inspiração divina e as normas de sua interpretação (c.III), o Antigo Testamento (c.IV),o Novo Testamento (c.V), e a importância da Escritura na vida da Igreja (c. VI).

A Natureza da Revelação

“Aprouve a Deus, em Sua bondade e sabedoria, revelar-se a si mesmo e tornar conhecido esse mistério de Sua vontade, que é o de levar os homens ao consórcio da divina natureza, ao acesso até ao Pai, por meio de Cristo, Verbo Encarnado, no Espirito Santo. Por essa revelação, o Deus invisível, levado pela abundância de Sua caridade, fala aos homens como a amigos, com eles conversa, a fim de convida-los e traze-los a comunhão consigo. A economia dessa revelação se realiza mediante obras e palavras… obras que corroboram o que está nas palavras… palavras que desvendam o mistério das obras. Em Cristo resplandece o sentido de todas as revelações, pois ele não é apenas o Mediador mas também a Plenitude mesma da revelação.

Há, sem dúvida, um perene testemunho de Deus em todas as coisas da ordem criada, mas dele se distingue a Automanifestação que desde o inicio da história humana Deus realizou em vista de franquear aos homens a via de uma felicidade superior”.

Estas palavras, retiradas com certa liberdade dos primeiros parágrafos do capitulo I, resumem a doutrina da natureza da Revelação. Retomam um assunto já exposto na Constituição Dogmática “Sobre a fé católica”, do Concilio Vaticano I (1869-1870), onde vemos ensinada a gratuidade e sobrenaturalidade da Revelação, seu duplo objeto – que é o mistério de Deus e o de Seus desígnios — bem como sua necessidade (suposta a elevação do homem à ordem sobrenatural).[3] São referências que devemos ter presentes, mesmo quando não estão mencionadas expressamente pela Dei Verbum.[4] Assim, para sabermos o real significado da expressão “Deus invisível”, temos de recordar o que o Vaticano I expos sobre “os mistérios arcanos de Deus… que por sua natureza excedem de tal modo a capacidade do intelecto criado, a ponto de permanecerem como que encobertos para nós, mesmo depois da revelação e da fé, enquanto peregrinamos nesta vida”.[5]

Há, porém, um progresso com relação ao Vaticano I, e que é uma apresentação mais unitária do Plano de Deus, na qual percebemos melhor a íntima relação da “Mensagem” com a “Graça”. O Vaticano I dizia que a Elevação do homem ao fim sobrenatural exigia a Mensagem reveladora, o que não era ainda a formulação mais feliz possível, pois não evitava a impressão de certo “ensinamento” entre a Revelação — concebida apenas na categoria de um “ensinamento” — e a História da salvação. Agora, o Vaticano II, ao associar sempre as “palavras” e as “ações” em seu conceito da Revelação[6], sugere uma visão mais profunda, na qual ela aparece como o convite efetivo da Elevação sobrenatural, como a Palavra eficaz que diz e as coisas são feitas. Assim como a “Fiat” primordial originou as naturezas dos seres e estabeleceu para sempre as leis de sua evolução proporcionada, a Palavra da divina Automanifestação é o introduzir efetivo do gênero humano numa estrada nova de possibilidades que, realizadas, o levarão ao consórcio com a vida e a felicidade do próprio Deus. Não se trata, pois, apenas de umensinamento ditado por Deus, mas de uma iniciação dos homens no conhecimento e na participação vivencial da divina intimidade, algo que por si mesmo tende a terminar-se na plena Automanifestação da Trindade, que é a visão beatifica. Por isso, potencia dos homens para uma vocação superior, repercutindo neles como uma energia de graça, oferecida ao seu livre consentimento. A oferta do dom da fé aparece, assim, como algo de absolutamente inseparável dessa Palavra, como a expressão de sua eficácia criadora, dotada de sua mesma universal extensão.[7] São aspectos que, sem dúvida, a Teologia há muito soube integrar[8], mas que adquirem nova projeção numa síntese do Magistério eclesiástico. E até aí vai, segundo nos parece, o alcance dos textos da Dei Verbum, onde se diz que a Revelação se faz não só por palavras, mas também por intervenções de Deus, nas quais está como que encarnado o sentido das palavras.[9]

No fundo, o protótipo de todo esse regime da Revelação, considerado como um convite efetivo de Ascensão, isto é, como um convite pascal de Deus, é o Cristo, a Palavra intradivina feita carne, que passa um dia deste mundo ao Pai, a Ele retornando no cumprimento de sua missão.[10] Se é verdade que em Cristo, como diz Santo Tomás, está realizado o “sumo modo” (Caetano acrescentaria: o sumo modo possível) de entrega da vida divina ao mundo exterior a Deus, pois nele uma natureza criada e atraída a comunhão com uma personalidade divina an­tes mesmo de subsistir, entendemos que nele estejam exemplarizados todos os outros mistérios da Economia sobrenatural, como o do “teandrismo” da Igreja segundo lembrou a Lumen Gentium[11]e o mistério da Revelação — como diz agora a Dei Verbum.[12] E’, aliás, a grande tese de São Paulo, quando ensina que Cristo é o misterioso Desígnio de Deus, para o qual Ele quis convergir tudo a mais.[13]

Dentro dessa perspectiva que associa, assim intimamente, a Palavra divina ao mistério da elevação e a oferta do dom da fé, aparece ela muito mais do que uma Pregação externa, e com isso situamos melhor, na universalidade do plano da salvação — coextensivo a todos as tempos e a todos as homens — o acontecimento, em si limitado, da Pregação profética. Passamos a ver esta última como a exteriorização culminante, realizada pelos instrumentos de Deus, de uma Pregação que é an­tes de tudo uma ação direta de Deus em cada homem, uma iluminação do Verbo oferecida “a todo homem que vem a este mundo”.[14] Projetamos em nova luz o caráter essencialmente mi­nisterial e por isso mesmo relativo — apesar de sua imensa importância — de todo o Profetismo, de todo o Kérigma, de todo o Magistério, bem como a razão por que não sejam estes, por sua vez, coextensivos a todos os tempos e a todos as homens.[15]

Há umcondicionamento, sem dúvida, da fé à pregação: “a fé vem pelo ouvido e o ouvido vem pela palavra de Cristo”.[16] Mas não é um condicionamento de estrita necessidade porque, como também ensina a Sagrada Escritura, “Deus quer que todos os homens se salvem e cheguem ao conhecimento da verdade”[17], o que significa que a todos concede meios suficientes de salvação e, portanto, um apelo ao menos interno a que vislumbrem (de algum modo) a Meta sobrenatural para onde deverão endereçar seus passos.[18] Tudo isso é conhecido na Teologia, e não de hoje, mas se torna organicamente sintetizado a partir da perspectiva, sugerida pela Del Verbum, de uma Revelação que é essencialmente a mensagem da Graça, tão antiga e tão extensa quanto a comunicação da graça.[19]

A Revelação começou, por isso, no Paraiso: “desde o inicio” — diz o texto.[20] O pecado original poderia tê-la encerrado, afastando para sempre a face do Senhor, porque significava uma recusa do homem ao Deus que o chamava, mas Deus, em Sua misericórdia, quis manter o primeiro apelo, transformando a mensagem de graça em mensagem de Redenção, a qual, desde a promessa do Genesis[21], se tornou a grande esperança humana, talvez exteriormente transmitida, aqui e ali, de geração em geração, mas de qualquer modo a esperança que acenava interiormente para todos esses milhares de corações que, em qualquer época e em qualquer lugar, “procuram a salvação”.[22]

A partir dos Patriarcas e Profetas, mais tarde, começará a crescer a explicitação do conteúdo noético desse universal convite da graça, exteriorizando-se e corporificando-se, cada vez mais, essa graça que um dia se manifestará encarnada em toda a sua pujança de “caminho, verdade e vida” para as homens. Há no documento um admirável paragrafo sobre Cristo como plenitude da Revelação.[23] Ele não é sóo Mediador da Revelação, mas a sua plenitude; não apenas anuncia, mas e a Salvação. Com ele (e com a missão do Espírito, que lhe se­gue) a Revelação se completa, não só porque, como “Verbo feito came”, é alguém que “fala palavras de Deus”[24], mas porque — (transcendendo-se mais uma vez o aspecto puramente noético da Revelação) — ele “consuma a obra da salvação”.[25] Com sua vinda — e depois com todo o seu itinerário pascal de retorno ao Pai na natureza assumida — o Cristo constitui a perfeita prolação da Palavra eficaz de elevação e redenção com aqual Deus convidou, desde o inicio, o gênero humano. Em Cris­to o convite aparece completo, tanto sob o aspecto em que é mensagem inteligível quanto sob o aspecto em queéoferta de graça, pois Cristo deixou aos homens a plenitude do Espi­rito Santo.

Ao dom de toda essa Revelação, a resposta humana é a “obediência da fé”, um “obséquio pleno do intelecto e da vontade”, diz o texto[26], citando o Vaticano I, mas acrescentando que se trata de uma auto-entrega da totalidade do homem ao Deus que se revela. Toma-se, pois, a fé num sentido amplo como o da linguagem bíblica[27] que abrange a esperança e ao menos um começo de caridade. Volta-se, porém, logo a seguir ao sentido formal da fé como assentimento da inteligência, aludindo-se a ação dos dons do Espírito Santo, que realiza a “compreensão” progressiva e mais profunda da Revelação. Pena que o Concilio não se tenha estendido um pouco mais sobre o significado dessa “compreensão”, desenvolvendo, contra as tenta-ceies de agnosticismo de certa teologia moderna, aquilo que o Vaticano I qualificou de inteligência analógica “frutuosíssima”.[28]

A Transmissão da Revelação Divina

Este tema é, como se sabe, de particular importância no diálogo ecumênico. O Protestantismo, de um modo geral, sustenta que a Bíblia é a única fonte da Revelação, cuja interpretação se rege apenas por uma norma decisiva: a iluminação interior do Espirito Santo em cada fiel; donde, o clássico principio do “livre exame”.[29] Já a Igreja Católica professa a existência, ao lado da Escritura, de outra fonte: a pregação apostólica oral, que não só acompanhou a redação da Escritura como a precedeu durante algumas dezenas de anos na infância da Igreja: por que haveria de ter passado sem ter deixado outro vestígio que não a Escritura? se na natureza nada se perde, muito menos na obra da graça de Pentecostes pela qual se edificou a Igreja; com que direito haveríamos de dizer que ficaram irremediavelmente perdidos, anulados ou esquecidos aqueles ensinamentos de todo um século, que não puderam, é claro, ter a extensão apenas do que ficou escrito em algumas páginas? Além disto, a Igreja Católica professa a existência de um Magistério eclesiástico credenciado para a interpretação autêntica das fontes, graças a uma assistência especial do Espirito Santo, mas de outro gênero que a iluminação inerente a todo e verdadeiro ato de fé. Estes dois pontos: tradição apostólica e magistério eclesiástico, estão definidos desde o Concilio de Trento.[30]

Ora, vejamos como o tema está desenvolvido na Constituição Dei Verbum. Ela começa por assinalar um princípio de meridiana evidência e de importância basilar:

“As verdades que Deus revelou para a salvação de todos os povos, Ele benignamente providenciou a fim de que permanecessem íntegras e fossem transmitidas a todas as gerações”.[31]

É mais uma aplicação do fecundo conceito de Revelação como Lição divina e como divino Gesto neste mundo. Ou, por outras palavras, é lembrar que a Igreja fundada por Cristo e sujeito receptor imediato da plenitude da Revelação é uma instituição de Deus e não algo de apoiado apenas nas falíveis garantias humanas. Ora, se essa Igreja foi instituída coma uma sociedade ornada de uma estruturação visível e hierárquica, entre cujas funções uma é de ensinar, então se requer que esse magistério seja um critério tangível da infalível transmissão das verdades recebidas de Deus: alcançamos, por uma via de conveniências a-priori, as palavras de Cristo prometendo aos Apóstolos (e seus sucessores até a consumação dos séculos) uma assistência divina.[32]

Antes, porém, de nos determos na função do Magistério eclesiástico através dos séculos, temos a questão das duas fontes da Revelação: Escritura e tradição apostólicas orais. Aeste respeito é sabido que vinha sendo reavivado nos últimos decênios uma controvérsia entre as teólogos católicos, já esboçada em tempos passados como, por exemplo, por ocasião do Concilio de Trento. Em oposição à sentença frequentemente encontradiça nos Manuais de Teologia fundamental (como se fora a expressão mesma do ensinamento do Tridentino) que sustenta serem Escritura e Tradição duas fontes complementares quanto ao número de verdades reveladas, vários teólogos vinham defendendo uma tese diversa. Negavam, em primeiro lugar, que a sentença precedente tivesse sido realmente definida por Trento, e achavam que a complementaridade da Tradição fosse mais de ordem “qualitativa” ou “formal” do que “quantitativa” ou “material”: a pregação dos Apóstolos, transmitida fora das Escrituras à memória da Igreja, visou entregar-lhe antes de tudo “o sentido” do texto sagrado, a “luz” onde as divinas verdades, consignadas todas no texto, aparecem em sua plena objetividade aos olhos da Igreja.[33]

Em favor desta segunda tese parecem militar várias razões. Inicialmente, o fato de que todos as dogmas ensinados pela Igreja o tem sido com apoio na Escritura, como se ali estivessem ao menos na profundidade dos textos. Depois, é fato de que parece ter sido a tese pacificamente abraçada por nomes eminentes da tradição teológica patrística e escolástica.[34] Enfim, uma razão teórica, a da dignidade da Sagrada Escritura: se o Espirito Santo quis suscitar um livro, durante a transmissão da Revelação, e até mesmo inspirá-lo ao ser redigido, será necessário julgá-lo mais que uma coletânea de escritos ocasionais e sim um monumento útil para a orientação da Igreja através dos tempos, contendo, pois, ao menos a total substância da Mensagem.[35]

Esta tese da “suficiência material” da Sagrada Escritura não há de ser confundida, evidentemente, com a da “sola Scriptura“, dos autores protestantes, porque não se dispensa de considerar o papel da Tradição oral apostólica como o de um complemento objetivo (embora não quantitativo) da palavra bíblica. E porque também não prescinde do Magistério pós-apostólico como condição dirimente de interpretação do Depósito. Geralmente falando, a tese poderia ser melhor designada como a da “insuficiência material limitada’ da Escritura, porquanto não exclui o reconhecimento de algumas poucas verdades veiculadas apenas pela Tradição oral, como por exemplo o catálogo completo dos livros inspirados[36], verdades porém que se restringem periferia do conteúdo revelado.

Ora, porque partilhavam estes modos de ver, numerosos bispos protestaram, no Concilio, contra o primeiro dos esquemas trazidos A aula conciliar sobre “as duas fontes da Revelação”, em 1962, e foi por esta razão que o Papa Joao XXIII ordenou uma reelaboração do texto por nova Comissão, onde estivessem representados todos os pontos de vista.[37] Através das respostas dadas, a partir de então, às sugestões dos conciliares das duas tendências, manifestava-se o propósito de fazer abstração do problema no texto da Constituição.[38] Em atenção, porém, a um desejo expresso do Sumo Pontífice, foi ele abordado, mas em termos tão moderados que permanece ainda aberto As duas teses católicas:

“Não é da Escritura apenas que a Igreja consegue sua certeza a respeito de tudo que foi revelado. Por isso ambas (Escritura e Tradição) devem ser recebidas e veneradas com igual sentimento de piedade e reverencia”.[39]

Pode-se, pois, entender de modo diverso essa complementação da Tradição oral apostólica, mas tem ela de ser afirmada no nível mesmo da Revelação[40], como já o dissera o Concílio de Trento e como a própria Sagrada Escritura o diz com bastante clareza:

“Assim, irmãos, ficai firmes e conservai as tradições que de nós aprendestes, seja por palavras, seja por carta nossa”.[41]

Quer-nos parecer, todavia, que a Constituição poderia ter sido mais clara no determinar a diferença de sentidos em que as vezes toma a palavra “Tradição”. O leitor desprevenido não sei se perceberá que no texto uma coisa é a “Tradição” enquanto significa a transmissão — feita por Cristo ou pelos Apóstolo —  da totalidade do Depósito, de modo oral ou escrito[42]; outra coisa é a “Tradição” enquanto a transmissão feita pelos Apóstolos de modo oral e contradistinto da Escritura[43]; outra coisa é a transmissão feita posteriormente na vida da Igreja através do Magistério (com diversos graus de assistência divina) ou através da vivencia dos fiéis.[44] Ora, são as confusões nesse campo uma das principais dificuldades para o diálogo ecumênico.[45] Os protestantes, não raro, julgam que simplesmente iden­tificamos o conceito de “Tradição apostólica” (2o sentido) com o de “Tradição magisterial da Igreja” (3o sentido). Pensam en­tão que atribuímos ao Magistério (ou ao “senso dos fiéis”) a prerrogativa de ser a Palavra reveladora de Deus (quando na verdade só o consideramos “palavra da Igreja”, divinamente as­sistida, sem dúvida, e portanto infalível, mas infalível no testemunhar, no interpretar a Palavra reveladora recebida, uma vez por todas, na era apostólica). Daí o temor de que a Igreja Ca­tólica venha a proclamar “novos” dogmas, que sejam, objetiva­mente, acréscimos à Revelação já concluída com o Cristo Jesus e com a morte dos Apóstolos, suas testemunhas privilegiadas.[46]

É sabido que o capítulo II da Constituição Dei Verbum foi objeto de uma redação cuidadosa e esteve alerta a esse proble­ma, mas podemos perguntar-nos se conseguiu ser suficientemen­te claro nos parágrafos sobre a “Tradição”. A nosso ver não deixa ainda bastante nítidos os limites entre o conceito de “Tra­dição” enquanto ela se situa no nível da Revelação objetiva e enquanto se situa no nível do conhecimento subjetivo das ver­dades reveladas: só neste segundo caso se pode dizer que ela “progride na Igreja”.[47] Trata-se, contudo, de defeito no modo de redigir, que se torna compensado pela leitura do conjunto do capítulo, em cujos últimos parágrafos vem afirmada de mo­do inequívoco a dependência do Magistério eclesiástico com re­lação A Palavra de Deus, (que lhe compete apenas “transmitir”) — e essa Palavra é, segundo a totalidade do contexto, a que encontrou sua plenitude na revelação de Cristo.

De grande importância para o diálogo ecumênico é o ângulo básico em que todo o capítulo II considera a questão das fontes da Revelação. Ele atribui tanto à Escritura como à Pre­gação apostólica um lugar relativo e subordinado diante daquilo que é designado como verdadeiramente a “fonte” da Revelação: o Evangelho de Jesus. O Concílio de Trento já fizera essa mes­ma colocação, num texto que, sob este prisma, poderia ter sido bem mais explorado na teologia e na pastoral.[48] A fonte onde haurimos toda a Revelação, a realidade primordial, o “Absolu­to” em matéria de Revelação, éaquilo que foi prometido pelos Profetas e que depois os Apóstolos proclamaram: o “Evangelho” de Jesus. Por esta expressão entende-se o ensinamento de sua boca e, mais, todo o gesto de sua vida, pelo qual ele Eis a realidade A qual convém propriamente o nome de “fonte da verdade salutífera e da disci­plina moral”.[49]

A Escritura e a Tradição surgem, assim, perfeitamente fo­calizadas em seu lugar, que é mais o de dois canais do que de duas fontes, através dos quais os homens recebem a Pa­lavra de Deus. Portanto, não os absolutizemos, não os consi­deremos independentemente do Acontecimento polar da Econo­mia divina, que foi a presença e a atuação de Cristo na Histó­ria; não os consideremos fora do quadro eclesial onde Cristo (e o Espírito de Cristo) os suscitou. O Cristianismo não é somente uma Mensagem ou Epístola de Deus à humanidade, cujo compêndio possa estar, portanto, exaustivamente encerrado num Livro. É a religião de uma Palavra que se fez carne antes de se fazer Mensagem ou Livro; que se tornou fermento atuan­te na História antes de lhe entregar a posse de sua Mensagem — e isso pode significar que tenha criado condicionamentos es­peciais para sua transmissão e interpretação. No diálogo, pois, com os protestantes haveremos de fazer-lhe ver como em seuempenho em distinguir tão adequadamente entre a Palavra de Deus (que eles identificam simplesmente com a Palavra bíblica) e a Igreja (a “aluna” da Escritura, coma diria Barth) estão no fundo omitindo de considerar milagre de um influxo im­presso pelo Cristo nessa Igreja, que ele fundou para ser não só a “aluna” da Palavra bíblica; mas seu “habitat” nativo — porque sede do mesmo Espírito que também impregna a Letra. Estão no fundo, conceituando de um modo puramente “associacionista” a Igreja, como se ela fosse somente um conjunto de fiéis — isto é, de vozes humanas e falíveis — e não o “sacramento”; o “mistério”, o lugar onde Cristo continua operando através de seu Espírito.[50] No ponto de vista católico; a Escritura não pode ser adequadamente distinta da Igreja. Ela é um elemento de sua constituição.[51] Deus a quis como uma cristalização, como uma nova “encarnação” de Sua Palavra, que surgisse; na infância daIgreja para nela se perpetuar como um elemento inamissível. Fora da Igreja, a Escritura é letra morta, letra. sem o Espírito. Só se torna Palavra do Deus vivo no momento em que se torna iluminada pelo Espírito que Cristo entregou como o Hóspede de sua Igreja: Desde então, passa a ser Mestra da Igreja, porque voz doEspírito, voz de Cristo, voz do Esposo, voz à qual a Igreja deve seu existir e por isso a norma de seu evoluir. É a doutrina que está subjacente ao no 10 da Constituição, com     qual se encerra o capítulo II: Tradição, Escritura e Magistério intimamente entrelaçados en­quanto fecundados pelo Espírito Santo, que visa realizar, por estes instrumentos, Seu desígnio do “Povo .de Deus”.

A Sagrada Escritura

Os quatro capítulos seguintes tratam em particular da Sagrada Escritura. Inicialmente, da inspiração divina e da consequente inerrância, ou melhor, verdade, de todos os livros canônicos.

Sobre a inspiração retomam-se os termos da conhecida definição do Vaticano I: os livros sagrados foram estritos sob inspiração do Espírito Santo; por isso a Igreja afirma que Deus é seu Autor. [52] Citam-se alguns dos clássicos lugaresbíblicos onde se apoia essa afirmação tradicional[53] cujo. sentido é o de postular mais que uma assistência divina preservativa de erros ou uma simples “aprovação subsequente” do Espírito Santo — ou da Igreja — dada a obras em si puramente humanas.

O fato, porém, de Deus ser dito Autor da Bíblia não exclui que também os homens possam ser ditos “verdadeiros autores”[54]: “Deus se utilizou de homens sem lhes tirar ouso das próprias capacidades e faculdades”, enunciado este que resume o que se pode ler nas encíclicas “Spiritus Paraclitus”, de  Bento XV, e “Divino Afflante Spiritu” de Pio XII[55], frequentes vezes citadas nesses capítulos juntamente com a “Providentissimus”, de Leão XIII, e que até agora constituíram os grandes baluartes domovimento Bíblico Moderno. Essa doutrina exclui que a inspiração tenha consistido num “ditado”, quer de palavras, quer de imagens, ou mesmo queesteja comprometida em todo e qualquer “conceito” utilizado pelos hagiógrafos em suas afirmações.[56] Daí resulta que podemos encontrar, a serviço das afirmações divinas, todo um universo cultural de representações, que é de origem puramente humana, e que não há de cair sob a inerrância bíblica. Estamos diante desse aspecto da divina “con­descendência”, de que fala o no 13 da Constituição, e que imita a Encarnação do Verbo pessoal na fraqueza da nossa natureza humana.

O documento não propõe, além disso, nenhuma teoria para elucidar a Colaboração do Autordivino e dos autores humanos. É mais sóbrio do que a encíclica Providentissimus que a este respeito assume e desenvolve a teoria de Santo Tomás sobre a “profecia” dentro da categoria da instrumentalidade.[57] Segundo Leão XIII, a assistência do Espírito Santo levou os escritores a “conceberem exatamente” (“rectemente conciperent”) o que deviam redigir, asserção que, para alguns autores, opõe dificuldade à doutrina de um “sentido pleno” nas Escrituras, capaz de ser ignorado do autor humano e conhecido apenas de Deus.[58] Adiante veremos que, a Constituição, em­bora nada digaexpressamente sobre esse “sentido pleno”, também não lhe estabelece nenhuma dificuldade preliminar, antes parece supô-lo.

Da inspiração decorre a inerrância de todo o conteúdo que Deus “quis consignar em vista de nossa salvação”.[59] Temos aqui uma formulação da inerrância em termos menos absolu­tos do que os encontrados nos esquemas preparatórios.[60] É verdade absolutamente isenta de erro a que interessa nossa sal­vação. Não se nega, pois, que possam existir deficiências e até erros no domínio de observações da ciência natural ou de notícias históricas.[61] [Nota do Site: Nesse domínio recusamos a interpretação do autor e indicamos ao leitor o seguinte estudo, mais recente e seguro sobre o tema da inerrância da Bíblia: Acerca da verdade contida na Sagrada Escritura – Gonzalo Aranda Perez]. Isso não significa limitar a inerrância bí­blica apenas aos dados de índole religiosa ou moral — teoria preconizada no século passado por vários autores, mas rejeita­da pelo magistério eclesiástico.[62] (Teoria, aliás, que não resol­ve todas as dificuldades, porque mesmo na ordem moral existem na Bíblia asserções deficientes ou superadas pelo Evangelho, co­mo por exemplo os Salmos de maldição).

A inerrância se restringe, assim, não só a temas religiosos ou morais, mas aquilo que nas afirmações bíblicas diz respeito à salvação humana sobrenatural. Já Santo Agostinho dizia: “O Espírito de Deus, que falou pelos escritores sagrados, não quis instruir os homens no que não interessava a sua salvação”.[63] Santo Tomás várias vezes ensinou que a Escritura costuma fa­lar “segundo as aparências sensíveis”.[64] Leão XIII escreveu mes­mo que este princípio pode ser aplicado inclusive no domínio dos temas históricos.[65] É verdade que aqui é preciso ter grande cautela, pois quando alguns autores pretenderam fazer uma aplicação genérica do princípio das “aparências” no cam­po das narrativas históricas da Bíblia, o Papa Bento XV ad­vertiu contra esse abuso fácil de ser feito à doutrina de Leão XIII.[66] E a razão éque a revelação judeu-cristã está intima­mente ligada à história, ela éuma “História Sagrada”, de mo­do que uma “des-historicização” simplesmente a esvazia.

No esquema anterior ao texto definitivo da Dei Verbum lia-se que a Escritura ensina, sem erros, “a verdade salutar”. No texto definitivo lemos: “a verdade que Deus quis consignar por causa de nossa salvação”. A modificação é mais de linguagem do que de sentido, tendo sido feita para serem evita­dos possíveis desvios deinterpretação, mas mantém o conceito restritivo de inerrância, de que falamos[67], cujo significado pre­ciso é o indicado na citação de Santo Tomás, acrescentada em nota, onde o Santo Doutor inquire “se a profecia diz respei­to às conclusões do saber (humano)”. É o seguinte o teor dessa magnífica citação:

“Respondo dizendo que em tudo aquilo que existe em função de um fim, a determinação da matéria se faz segundo a exigência do fim, con­forme diz o Filósofo (II Phys.). Ora, o dom da profecia é concedido para a utilidade da Igreja, conforme ensina o Apóstolo (2 Cor 12). Lo­go, tudo aquilo cujo conhecimento pode ser útil à salvação é matéria de profecia, sejam coisas passadas ou futuras, eternas, necessárias ou contingentes. Tudo aquilo, porém, que não pode pertencer à salvação éestranho à profecia…, por isso, as palavras de João 16,13: “Quando vier o Espírito da verdade, Ele vos ensinará toda a verdade”, a glosa acres­centou: “necessária à salvação”. Ora, necessário à salvação é o que é necessário à instrução da fé ou à informação dos costumes. Mas mui­tas coisas que são demonstradas na ciência podem ser úteis a isso; como, por exemplo, a incorruptibilidade do intelecto, ou aquilo que, con­siderado nas criaturas, induz à admiração da divina sabedoria e do divi­no poder; eis por que também são mencionados na Sagrada Escritura”.[68]

Quanto à interpretação da Sagrada Escritura, a Constitui­ção pouco se estende.[69] Não menciona expressamente senão o sentido literal intencionado pelos hagiógrafos, que recomenda se­ja atentamente investigado. Se a Palavra de Deus quis expri­mir-se “através de homens e de modo humano”, devemos pro­curar entendê-la dentro desses condicionamentos de conceituação e de linguagem humana que ela utilizou. Para isso será da maior importância o conhecimento dos vários gêneros literários, bem como das circunstâncias concretas (“Sitz im Leben”) em que os textos foram redigidos.[70]

Não está dito, porém, que a função da exegese seja ape­nas a de conhecer o que os hagiógrafos quiseram manifestar: ela deve procurar conhecer “o que Deus nos quis transmitir”, “o que a Deus aprouve manifestar mediante as palavras dos hagiógrafos”.

Com estas palavras, a Constituição não pode deixar de abrir a perspectiva do chamado “sentido pleno”, embora conste pelo relatório da Comissão teológica que não haja o propósito de ensinar formalmente a existência desse sentido.[71] Há teólogos e exegetas que o negam, julgando-o incompatível com a doutri­na da instrumentalidade da inspiração, instrumentalidade essa que, exercendo-se em toda a extensão dos Livros sagrados, não nos permitiria abstrair da participação dos autores humanos se­quer um conceito.[72] A maioria dos modernos autores, ao contrário, diz que o fato mesmo do hagiógrafo ser instrumento nos força a admitir que sua obra atinge efeitos superiores ao al­cance de sua cooperação, conforme as palavras de Santo Tomas: Por isso que a mente do profeta é instrumento deficiente, até mesmo os verdadeiros profetas não conhecem tudo o que, me­diante suas visões, suas palavras ou seus gestos, está na in­tenção do Espírito Santo”.[73] Também a doutrina de Pio XII, expressa na Divino Afflante Spiritu[74] e principalmente na bula Munificentissimus Deus[75] supõe, a existência objetiva de um “sen­tido pleno”, distinto de qualquer alegorização subjetiva.

O parágrafo sobre a exegese termina lembrando que éso­bretudo na perspectiva do Espírito Santo, Autor principal da Bíblia, que se deixa captar o sentido de seus textos. O que significa que devem ser lidos dentro do panorama global da Revelação, com os olhos da tradição viva da Igreja e das analo­gias da fé, competindo em última instância ao Magistério da Igreja o julgamento sobre os resultados da exegese.

O Antigo e o Novo Testamento

O capítulo IV versa sobre os Livros do Antigo Testamen­to. Recorda, de início, o quadro da História da salvação em que se situam. O significado da escolha do povo de Israel foi pre­parar a salvação universal, e dessa vocação teve conhecimento cada vez mais profundo através da mensagem dos profetas. Eco­nomia provisória, portanto, mas cujo registro nos Livros Sagra­dos conserva o perene valor de “palavra de Deus”. Encontram-se neles, sem dúvida, “coisas imperfeitas e transitórias”, mas permanecem para os cristãos o documento da pedagogia divina preparatória do Cristo e do Reino Messiânico. De par com as profecias e figuras contem ensinamentos sublimes sobre Deus e a salvação, além de tesouros admiráveis de preces. Sua plena significação só aparece A luz do Evangelho, para cujo enten­dimento, por sua vez, contribuem.

O capitulo V, dedicado ao Novo Testamento, exalta sua excelência e em particular a dos Evangelhos. Sendo Cristo o Ver­boEncarnado, que agiu e falou entre nós, cheio de graça e verdade, os Livros inspirados que foram escritos em seu teste­munho devem ser considerados, de maneira eminente, palavra salvífica de Deus. Isto vale em primeiro lugar para o “quadriforme Evangelho” — segundo Mt, Mc, Lc e Jo — do qual se dirá que éo “fundamento da fé” (enquanto condição de ple­no conhecimento de seu conteúdo).

Aborda-se, a seguir, a questão da historicidade dos Evan­gelhos. Alvejaram-se aqui certas ilações ou insinuações prove­nientes do chamado “método da história das formas” e que poderiam estar ameaçando a exegese católica. Como é sabido, trata-se de um método especial de crítica que, após enuclear e classificar as diferentes unidades ou tipos literários discerníveis nos Evangelhos (paradigmas, palavras, narratos, etc.), procura estabelecer sua conexão de origem com a vida concreta e a psi­cologia da comunidade primitiva (“Sitz im Leben), onde preexis­tiram como tradições orais. Daí muitas vezes uma tendência não apenas a exagerar o “mosaico” dos Evangelhos como, princi­palmente, a atribuir um poder amplificador, mito-criador, à co­munidade e o empenho em “desmitologizar” chega então facilmente a “des-historicizar”, ou à conclusão de um hiato intransponí­vel entre o Jesus histórico e o do testemunho de seus fiéis.

Em 1964, a Pontifícia Comissão Bíblica publicou a Instrução Sancta Mater Ecclesia[76], alertando contra esses erros e pe­rigos, provenientes não do uso do método em si, mas de pre­conceitos racionalistas que forçosamente relegam os milagres à categoria de “mitos”, e que muitas vezes se aliam a uma falsa concepção da fé, segundo a qual não importa a verdade histó­rica. Ao mesmo tempo reconhecia a Instrução a utilidade de um sadio emprego do método, isto é, a consideração de que os evan­gelistas dependem de uma pregação apostólica que os precedeu — Sob a forma não de puras narrações, mas também de outros modos de dizer, em função das necessidades concretas dos ou­vintes (catequeses, testemunhos, hinos, doxologias, preces) — e de que, ao procederem à redação dos Evangelhos, organiza­ram seu material dentro de propósitos determinados de servi­ço às igrejas.

Várias expressões dessa Instrução encontramos retomadas pe­la Dei Verbum, no no 19. A historicidade dos Evangelhos não pode ser posta em questão[77], mas isto não significa que seu gênero literário seja, simplesmente falando, o “gênero histórico”, porquanto eles foram redigidos sob a luz da compreensão mais plena que os Apóstolos tiveram em Pentecostes, de tudo o que o Senhor fizera e dissera; e porque os hagiógrafos “escolhe­ram” certas coisas, “sintetizaram” outras, ou as explanaram “com vistas à situação das igrejas”, ou ainda as “proclamaram” (“for­mam praeconii retinentes”). Sempre, porém, transmitindo “verda­des autênticas a respeito de Jesus (“vera et sincera de Iesu”), pois esta foi sua expressa intenção.

Escritura e Vida

O capitulo VI considera a Sagrada Escritura na vida da Igreja. A primeira afirmação é que a Igreja, da mesma forma como venera o Corpo do Senhor, venera as Escrituras divinas. Não são também expressão humanizada e tangível da Palavra de Deus? E a Palavra não é a pessoa mesma do Filho de Deus? Eis por que, no fundo, uma é a “mesa” na qual a Igreja serve a seus filhos, sob duas formas, o “pão da vida”.

Esta ideia já tinha sido recordada em várias passagens da Constituição conciliar sobre a Liturgia. Para muitos cristãos mo­dernos pode parecer uma comparação estranha e ousada. Na verdade é tradicional e tem um valor que é mais do que o de piedosa alegoria — embora, como qualquer comparação, tenha seus limites (a Revelação divina só constitui verdadeiramente uma “Encarnação” do Verbo no Cristo Jesus, que está substan­cialmente presente na Eucaristia; em todas as outras manifesta­ções, a Revelação, rigorosamente falando, é uma comunicação do Verbo menos plenária, uma comunicação da “força” do Ver­bo divino, que não lhes dá, porém, sua divina subsistência: don­de, seria gravíssimo erro querer equiparar simplesmente, mesmo para eleitos práticas de culto, a Bíblia à Eucaristia, a audição da Palavra de Deus à participação sacramental na Eucaristia).

No Evangelho de São João, capítulo 6, o famoso discurso de Jesus em Carfanaum podemos dizer que fornece um fundamento bíblico imediato para essa comparação, pois ali o “pão do céu” é a Palavra assimilada inicialmente no ato de fé e depois na Comunhão da carne e do sangue do Senhor. Santo Inácio de Antioquia escrevia pouco mais tarde: “Eu me refugio no Evangelho como no Cristo corporalmente presente”.[78] “Logos ensarkos” e “Logos embiblos”, disseram algumas vezes os Padres e ainda a “Imitação de Cristo”, na Idade Media, falava da “duas Mesas”, a do Alimento e a da Luz.

Na base o que está em jogo, mais uma vez, é o fato de ser a Revelação cristã uma irrupção de Deus na História não só por sua Mensagem, mas também por sua Ação. E se aquela encontra na Vida da Igreja (enquanto se prolonga pelos séculos distribuindo à humanidade os dons da Redenção), sua culminante manifestação na Escritura, esta se exprime nos Sacra­mentos e, de modo particular, na Eucaristia, prolongamento da Presença e da Açãodo Senhor.

Juntamente com a Tradição, a Escritura é a suprema regra da fé”[79], e cabe-lhe, de modo especial, o título de “palavra de Deus”[80], porque é seu canal “inspirado”. Nela ressoa, pois, a “voz do Espírito Santo”, nela vem carinhosamente dia­logar com seus filhos “o Pai que está nos céus” (“Pater occurrit”). Aplicam-se-lhe, por isso, os adjetivos que os Apóstolos atribuíram de modo absoluto, à Palavra de Deus: “viva eficaz”; “poderosa para santificar”.[81]

Devendo ser franqueado seu acesso à totalidade dos fiéis, o Concílio deseja multipliquem-se as “versões adequadas e corretas, principalmentedos textos primitivos dos livros sagrados”[82] e até — a critério da autoridade eclesiástica —  em edições comuns com os irmãos separados.

Os exegetas e estudiosos são encorajados a um estudo bíblico profundo e comum (“collatis sedulo viribus”) a fim de proporcionarem ao máximo número de pastores a faculdade de distribuírem frutuosamente a Palavra ao Povo de Deus.[83]

Sejam esses estudos “como que aalma”, da Teologia, bem corno da pregação, da catequese e de, toda instrução cristã (re­tiros, conferencias espirituais, etc.), principalmente da homilia litúrgica.

Recomenda-se, assim, aos clérigos, sobretudo aos sacerdotes e outros que, como diáconos e catequistas, se consagram ao ministério da palavra, a “leitura assídua” e o “minucioso estudo” dessa palavra .que pregariam em vãose não a escutassem pessoalmente no interior de si mesmos. Exortam-se, igualmente os demais fiéis, especialmente os Religiosos, a que vão aos próprios textos sagrados; seja mediante a participação da Liturgia, seja mediante a leitura pessoal e a frequência a cursos apro­priados, seja enfim pela oração. Referindo-se a esta, a Constituição evoca aquele hábito que na espiritualidade monástica se chama a “lectio divina”, a leitura meditativa que—conduz ora­ção, ou antes que já éfeita como uma oração, e na qual o fiel procura encontrar com a inteligência e com toda a alma, a mensagem que a  Palavra de Deus dirige à sua pessoa em particular: “com Ele falamos quando rezamos, a Ele escutamos quando lemos”, diz o, texto. Dialogo, pois, conversação com Deus, e assim, eminente modo de orar. Supõe-se nisto, com toda a Tradição, existir na profundidade da Escritura (pelo fato de que é a Palavra divina dirigida a todos os homens) um sentido “espiritual” que não é só o das figuras e tipos a respeito do Povo de Deus em seu conjunto, mas esse de uma mensagem moral especifica para cada fiel.


[1] Cf. a declaração do Secretario Geral do Concilio sabre a qualificação teológica da Constituição: “Segundo o costume conciliar e a finalidade pastoral do presente Concilio, este Santo Sínodo define como verdade de fé apenas aquilo que expressamente declarar como definido em matéria de fé e moral. Tudo o mais que o Concilio propõe, sendo doutrina do Magistério Supremo da Igreja, deve ser acatado e aceito por todos e cada um dos fiéis segundo a mente do mesmo Concilio, que transparece quer da matéria versada, quer do modo como é expressa, se¬gundo as normas da interpretação teológica”, REB 25 (1965), 489.

[2] O 1o. esquema, que se chamou “De fontibus revelationis“, foi discutido na 1a. Sessão do Concilio (1962). A maioria dos conciliares o rejeitou num sufrágio que, não tendo atingido dois terços, foi pessoalmente corroborado pelo Papa Joao XXIII (dia 21-11-1962), o qual ordenou que fosse refundido por uma Comissão mista, composta da Teológica e do Secretariado para a União dos cristãos. Surgiu assim, durante o período intersecional, um 2° esquema, que foi enviado aos Bispos (maio de 1963) a fim de o examinarem e enviarem suas impressões à Comissão. Cerca de 300 Bispos, que se manifestaram, louvaram algum progresso, mas mantiveram em geral fortes criticas. Em marco de 1964, foi constituída uma Subcomissão especial para rever o esquema, a qual elaborou um 3o. ensaio. Em outubro seguinte (3a. Sessão conciliar) foi este discutido na aula de São Pedro, sendo substancialmente aprovado, mas com a proposição de várias modificações. Assimiladas estas ao esquema, resultou em um 4o. texto, que foi votado por partes (20-22/9/1965), recebendo ainda sugestões em numerosos “placet iuxta modum“, de sorte que foi preciso proceder-se a um 5o. texto, o qual foi votado (20-22/10) e solenemente promulgado a 18-11-65. Cf. M. Zerwick, S.J., “De S. Scriptura in Constitutione dogmatica Dei Verbum“, em Verbum Domini 44 (1966), 17-42. Para maiores detalhes veja-se, por exemplo, Fr. Boaventura Kloppenburg, O.F.M., Concilio Vaticano II, vol.IIe vol. IV, Petrópolis, 1962-1965; idem, “A IV e Última Sessão do Vaticano II”, REB (1965), p. 446.

[3] Cf. Denzinger-Rahner, n. 1785-1820.

[4] Menções expressas nos números 5 e 6 da Dei Verbum (DV), sobre a fé, o mistério da salvação e a relativamente necessária revelação de certas verdades da ordem natural. Veja-se o que diz o Proêmio.

[5] Dz. 1796.

[6] DV 2, 4, T. 14, 17, 18, 19.

[7] Conceituando a Revelação como “locução de Deus feita de modo magisterial”, os Manuais de Teologia fundamental frequentemente acentuavam apenas o aspecto de divina “Lição”, que é a Revelação, esquecendo-se que ela é também o Gesto que deflagra a História sagrada. Daí certo extrinsecismo, depois, na concepção da fé e dos sacramentos, da vida da caridade e da recompensa celeste, etc. Da Revelação como “encontro” entre Deus e a homem tratou, em vários estudos recentes, R. Latourelle, S.J., dos quais conheço os estudos publicados em Gregorianum (1962), 39-55; 492-510 e (1963), 225-263.

[8] Note-se que não nos referimos a integração “quoad se“, postulada a-priori pela simplicidade da ação divina, mas à que vem postulada pela lógica inerente a seus elementos manifestativos, enquanto considerados “quoad nos“.

[9] Pensamos que assim se devem interpretar as varias referências da Constituição às “palavras” e as “ações”, não se tratando apenas de declarar que estas últimas eram ensinamentos dramatizados ou propostos à maneira de exemplos: cf. R. Laurentin, L’enjeu du Concile: Bilan de la première session, Paris 1963, p. 29 ss. A interpretação deste autor, entretanto, não coincide perfeitamente com a nossa.

[10] Cf. Is 55,10 no sentido que lhe acomoda a Liturgia.

[11] LG, 8.

[12] DV, 2, 4, 13, 17.

[13] Rom 16,25; 1 Cor 2,7; Ef 5,32; Col 1,26 s; Ef 1,9; 3$; etc.

[14] Jo 1,9. Cf. S. Tomás: “A Revelação se faz por meio de certa luz interior e inteligível, que eleva a mente para que esta perceba aquilo que, por sua luz natural, o intelecto não pode atingir”: Contra Gentes III, cap. 135.

[15] “A Lumen Gentium, em sua apresentação da Igreja como um “Sacramento”, e em todo a seu admirável capitulo sobre “o mistério da igreja”, põe em relevo esse caráter ministerial e relativo dos elementos visíveis da Economia divina.”

[16] Rom 10,17.

[17] 1 Tim 2,4; Mt 28,18; Lc 9,56; 10,10; Jo 3,16s; etc.

[18] Cf. Santo Tomás, C. G. III, cap. 153: “O movimento pelo qual a graça nos dirige ao fim último é voluntário, não violento… ora, para ser voluntário, precisa ser conhecido; logo, é necessário que a graça nos proporcione um conhecimento do fim último para que nos possamos endereçar para ele”

[19] Contra o jansenismo, a sentença da teologia católica foi sempre a de que a vontade salvífica universal de Deus se traduz concretamente na oferta de graças, pelo menos suficientes, de salvação, a todos os homens.  Já antes, S. Tomás: “O efeito dessa vontade e a própria ordenação da natureza para o fim salutar e a oferta de todas as coisas, tanto naturais como gratuitas, que promovem na direção do fim”: In Sent. 1, d 46, q 1, a 1. É a mesma doutrina que está mais ou menos explícita nos grandes textos do Vaticano II sobre a ordenação de todos os homens ao Povo de Deus: LG, 16; Ad Gentes, 3; Nostra Aetate, 2; etc.

[20] DV, 3.

[21] Gen 3,15: DV, 3.

[22] DV, 3.

[23] Propondo Cristo como consumador da Revelação, a Comissão teológica achou não precisar afirmar explicitamente que com a morte do último Apóstolo “a Revelação se encerrou”, como alguns conciliares haviam solicitado: cf. B. Kloppenburg, “A IV e Última…”, p. 445

[24] Jo 3,34.

[25] DV, 4,17.

[26] DV, 5.

[27] “Linguagem bíblica e personalista”, disse o Relator. Cf. a propósito o artigo de P. Grelot, “La Constitution sur la Revelation”, Etudes (1966), p. 236.

[28] Dz 1796.

[29] Entre os teólogos protestantes recentes encontramos não raro uma atenuação do principio da “Sola Scriptura”, que talvez exprima a mente, na verdade, dos primeiros Reformadores. Não nos referimos só ao fato de que reconhecem a necessidade de ser a Escritura lida dentro das Igrejas e com a ausculta de toda a série multissecular da “Tradição”: desprezar a Tradição seria como “desonrar pai e mãe” (Barth); ainda assim, contudo, sendo a Tradição uma autoridade humana e não celeste, haveria de ser mensurada finalmente conforme o conhecimento que cada um tivesse da Escritura, sob a luz do Espirito Santo. A atenuação, porém, mais importante, de que falávamos, consiste na tornada de consciência de que o valor decisivo da Escritura não é propriamente o de ser ela a Palavra de Deus escrita, mas simplesmente a Palavra de Deus (cf. o artigo “Tradition”, de G. Ebeling, na enciclopédia protestante Die Religion in Geschichte und Gegenwart, 4a. ed., t. VI, cadernos 31-36 (1962), col. 966 984: “Quand les Reformateurs parlent de la Sola Scriptura, l’accent ne se place pas sur la Schriftlichkeit…”, citado por J. Dupont, O.S.B., “Ecriture et Tradition”, Nouvelle Revue Theologigue (1963), 337-356; 449-468: ver p. 342. Daí certa abertura para a perspectiva de uma “Tradição primitiva” que, sendo também Palavra de Deus, viesse a constituir princípio normativo da fé, se eventualmente pudesse ser comprovada. A dificuldade quanto à doutrina católica se deslocaria então para o terreno do modo como comprovar uma “Tradição apostólica”. O maior dos equívocos protestantes consiste em supor que para os católicos a Igreja — enquanto “coetus hominum fidelium” — esteja acima da Palavra de Deus ou ao menos no mesmo nível que essa Palavra, isto é, que o próprio Senhor. No fundo pensam que erigimos o “Magistério” eclesiástico ou as veneráveis “tradições humanas” em fontes da Palavra de Deus, quando na verdade situamos essas entidades no plano apenas de intérpretes da Palavra, a qual professamos estar na Pregação apostólica e na Bíblia.

[30] Dz 783.

[31] DV, 7.

[32] Mt 28,20; Jo 14,16s. 26; Mc 16,16; Lc 10,16; etc.

[33] Defendendo este modo de ver escreveram, por exemplo: Y. M.-J.Congar, La Tradition et les traditions. Essai historique. Essai theologigue. 2 vols., Paris 1960-63; H. Holstein, La Tradition dons l’Eglise, Paris 1960; J. R. Geiselmann, Die Heilige Schrift und die Tradition. Zu den neueren Kontroversen fiber das Verhaeltnis der Heiligen Schrift zu den nichtgeschriebenen Traditionen, Friburgo/Br. 1962. Sustentando, ao contrário, a sentença da insuficiência material da Escritura, como sendo a doutrina de Trento, escreveram H. Lennerz, em Gregorianum (1959), 38-53; 624-635; (1961), 517-522; J. Beumer, em Scholastik (1959), 249-258; (1960), 342-362; (1962), 222-226; etc.

[34] Veja-se Y. Congar, La Tradition . ..Essai historique, principalmente páginas 139-150. Veja-se também P. de Vooght, O.S.B., “Le rapport ecriture-tradition d’apres saint Thomas d’Aquin et les theologiens du XIlle siècle”, em Istina (1962), 499-510: Santo Tomás mantem rigorosamente que todos os artigos da fé salutar estão consignados na Escritura; admite que, só pela tradição, se conhecem certos ritos e usos, até mesmo elementos essenciais dos sacramentos (formas), mas não são pontos indispensáveis à salvação.

[35] Cf. P. Rusc h, “De non definienda illimitata insufficientia materiali Scripturae”, em Zeitschrift fur katholische Theologie (1964), 1-15.

[36] Cf. DV, 8: “Pela mesma Tradição torna-se conhecido à Igreja o cânon completo dos livros sagrados”. Nem todos os autores achariam, porém, que o cânon deva ser dito uma verdade conhecida pela Revelação, podendo ser considerado simplesmente o objeto de uma declaração infalível do magistério eclesiástico: cf. B. Brinkmann, SJ., “Insoiation und Kanonizitat der Heitigen Schrift in ihrem Verhaeltnis zur Kirche”, em SchoIastik (1958), 208-233.

[37] C. supra, nota 2.

[38] Veja-se, por exemplo, a justificativa dada pela Comissão à frase do n° 8, onde se diz estar a pregação apostólica “speciali modo” expressa nos livros inspirados: “Ad praecavendam quaestionem de sufficientia materiali S. Scripturae, et insimul ad affirmandam praecellentiam ipsius, utpote quae non tantum verbum Dei contineat, sed sit verbum Dei, dicitur simpliciter quod praedicatio apostolica in libris inspiratis special’ modo exprimitur”: Cf. M. Zerwick, art. cit., p. 21

[39] DV, 9. Sobre a intervenção do Papa Paulo V1, mediante carta dirigida a Comissão Teológica no dia 18-10-65, pode-se ler a noticia da Revista Eclesiástica Brasileira (1966), 383-385.

[40] Cf. ainda DV, 10: “A Sagrada Tradição e a S. Escritura constituem um só depósito da palavra de Deus”.

[41] 2 Tess 2,15, citada na DV, 8, bem como Jud 3. Outros textos: 2 Tess 3,6; 2 Tim 2,2; Mt 28,19s; Mc 16,15s; Jo 14,16-26; At 1,8; 10,39-42.

[42] DV, 7; 8: “Unde Apostoli, tradentes… fideles monent ut teneant traditiones quas sive per sermonem sive per epistulam didicerint”. “Quod vero ab Apostolis traditum est, ea omnia complecitur quae ad Populi Dei vitam… conferunt”

[43] DV, 9 e 10.

[44] DV, 9: “Haec quae est ab Apostolis traditio… proficit… turn ex contemplatione et studio credentium… turn ex intima spiritualium rerum quam experiuntur inteltigentia, turn ex praeconio eorum qui cumepiscopatus successione charisma veritatis certum acceperunt”. Assim, mais adiante, não saberíamos dizer que “Tradição” seja essa pela qual “integer Sacrorum Librorum canon Ecclesiae innotescit”: cf. supra, nota 36. Sobre os vários sentidos do conceito de “Tradição”, ver Charles Journet, “Dépôt divinement révélé et Magistère divinement assisté”, em Nova et Vetera (1950), 294-301; idem, Message révélé, Friburgo 1964: ver a diferença entre o “magistério declarativo” — ao qual é prometida uma assistência absoluta e infalível, e o “magistério canônico”, ao qual não é prometida senão uma assistência prudencial, cujas luzes vão diminuindo à medida que se faz a aproximação do mundo da mobilidade e da contingência: pp. 63-67.

[45] Cf. supra, nota 29.

[46] Escreve,, por exemplo, Pierre Maury, em Positions protestantes (coletânea “Protestantisme français”, Paris 1945, p. 417): “Depuis la promulgation de l’infaillibilité pontificale au Concile du Vatican notamment, il nous semble que le principe, en soi légitime, de l’interprétation du texte sacré de l’Eglise … est appliqué de telle façon que l’autorité de la Bible em matière de foi est totalement soumise à l’autorité de l’Eglise. L’interprétation devient l’explicitation, et l’explicitation aboutit concrètement à des adjonctions, voire à des altérations essentielles du contenu de la Révélation scripturaire. C’est Rome qui parte’ en dernière instance, et non pas la Bible”. Colho a citação em J. Dupont, O.S.B., “Ecriture et Tradition”, Nouv. Rev. Théol. (1964), p. 339. Em outros autores, entre os quais Karl Barth, encontramos as mesmas afirmações, passim. Agora, entretanto, com a era do Concílio, as perspectivas es­tão mudando.

[47] DV, 8.

[48] Dz 783. Dom Jacques Dupont, O.S.B., mostra excelentemente a importância dêsse texto no diálogo ecumênico, em seu artigo, “Ecriture et Tradition”, NRT (1964), 337-356; 449-468: “Au lieu de juxtaposer deux réalités que les Réformateurs opposaient l’une à l’autre, le Concile les situe par repport à une troisième: l’Evangile, dont on ne veut que sauvegarder la pureté” (p. 345).

[49] DV, 7; cf. também 9.

[50] Veja a este respeito, Y, M-J Congar; O.P. “Sainte Ecriture et Sainte Eglise”, Rév. Sc. Phil. Théol. (1960), 81-8a: “On ne peut unir organiquement à l’Ecriture qu’une Eglise qui soit mystère sacramentel, Corps du Christ, Epouse, Temple du Saint-Esprit; si l’Eglise n’est plus que “collection fidelium”, elle est bien proche d’être toute humaine, faillible, et de n’exister comme Eglise de Dieu que par sa soumission à action de sa Parole” (p. 86).

[51] Este tema é desenvolvido por Karl Rahner, S.J., com sua habitual originalidade, em Ueber die Schriftinspiration, Herder 1958, cf.também Missão e Graça, tr., Vozes 1965; 3o vol., p. 176.s.

[52] Dz 1787.

[53] Jo 20, 31; 2 Tim 3,16; 2 Ped 1, 19-21; 3, 15-15.

[54] DV, 11.

[55] Cf. Ench. Bibl. (EB), 448 e 556 s.

[56] Desde, é claro, que não se trate formalissimamente do sujeito epredicado das afirmações, pois a verdade destas desapareceria se desaparecesse o valor das noções sobre as quais repousa.

[57] Summa Theol. II-II, pp. 171-174.

[58] Por isso, o “sentido pleno” só pode ser conhecido à luz de nova revelação na Nova Economia.

[59] DV, 11.

[60] No 1o esquema, elaborado pela Comissão teológica preparatória, liamos: “Ex hac divinae inspirationis extensione ad omnia, directe et necessario sequitur immunitas absoluta ab errore totius S. Scripturae”. Acrescentava em seguida as seguintes palavras das Enciclicas “Providentissimus” e “Divino Afflante Spiritu”: “Antiqua enim et constanti Ecclesiae fide edocemur nefas omnino esse concedere sacrum ipsum erras­se scriptorem, cum divina Inspiratio per se ipsam tam necessario excludat et respuat errorem omnem im qualibet re, religiosa vel profana, quam necessarium est Deum, summam Veritatem, nullius omnino errons auctorem esse”. (Note-se, porém, que essas Encíclicas continham, além disto, sugestões restritivas como a aceitação de uma linguagem de “aparências”, e dos gêneros literários; por isto mesmo poderão permanecer citadas em nota no texto definitivo da “Dei Verbum”). Nos esquemas posteriores houve mudança de registro. No 2o: “… inde totam Scripturam divinitus inspiratam ab omiti prorsus errore immunem esse consequitur”. Mais ain­da no 3°: “…inde Scripturae libri integri cum omnibus suis partibus veritatem sine ullo errore docere profitendi sunt”: fala-se não apenas de imunidade de erro, mas, positivamente, da verdade contida nas Escri­turas. Numa 4a formulação: “Inde Scripturae libri integri… veritatent salutarem inconcusse et fideliter, integre et sine errore docere profitendi sont”. (Sobre a diferença entre esta fórmula e a definitiva, veja-se o que dizemos adiante). Cf. M. Zerwick, art. cit., p. 30; P. Grelot, “La Constitution sur la Révélation”, Etudes, 1966, an., p. 107.

[61] Cf., a propósito, a intervenção do Cardeal Fr. Koenig, Arcebispo de Viena, durante a 3a Sessão conciliar: em B. Kloppenburg, Con­cilio Vaticano II, vol. IV, p. 108 s.

[62] Cf. J. Triquet, “Lenormant (François)”, no Dict. Bible Supplé­ment, col. 354-359; Y. Laurent, “Le caractère historique de Gen. II-III, dans l’exégèse française au tournant du XIXe siècle”, em Ephem. Theol. Lovan. (1947), 36-39.

[63] De Genesi ad litteram 2, 920 (PL 34, 270s).

[64] S. Theol., I’ q. 70, a. I. ad 3.

[65] Encicl. Providentissimus, EB, 123.

[66] Encicl. Spiritus Paraclittis,1B, 456; cf. Robert-Feuillet, Introduction la Bible, Desclée, 1959, I, p. 65.

[67]A explicação dada pela Comissão teológica à expressão “veritas salutaris” foi a seguinte: “Voce salutaris nullemodo suggeritur Sacram Scripturam non esse integraliter irtspiratam et verbum Dei… Haec expressio nullam intendit materialem limitationem veritatis Scripturae, sed indicat eius specificationem formalem, cuiusratio habeatur in diiudicando quo sensu quae in Scriptura assnmuntur sont vera”. Atendendo à so­licitação dos opositores da expressão, o Papa Paulo VI escreveu à Comissão uma carta pedindo que fosse reconsiderada a conveniência de ser omitida do texto, principalmente por não ser ainda doutrina co­mum. A Comissão, entretanto, preferiu retê-la, modificando apenas seu teor verbal para evitar abusos de interpretação e considerar a sugestão do Sumo Pontífice. Cf. P. Grelot, “La Constitution…”Etudes’ (1966), p. 239; Rev. Ed. Bras. (1966), 383-386: “Três intervenções…”.

[68] De Veritate, q. 12, a. 2. A restrição, portanto, da inerrância não se dá quanto ao campo material dos dados bíblicos, mas quanto à deter­minação de um ponto de vista: enquanto dizem respeito à salvação, to­dos os dados contêm a verdade. Ainda assim, convém não esquecer o caráter progressivo da Revelação, silenciado nesse texto da “Dei Ver­bum”, mas presente em outros: cf. I. de la Potterie, S.J., “La vérité de la Sainte Ecriture et l’histoire du salut d’après la Constitution dog­matique Dei Verbum”, Nouv. Rev. Théol. (1966), 156, nota 17.

[69] DV, 12

[70] O primeiro documento que advertiu, “ex professo”, sobre a ne­cessidade do conhecimento dos vários gêneros literários (poesia, narrato histórico, texto legal, etc.) foi a encíclica Divino Afflante Spiritu, de Pio XII (EB 555-562), cujos termos recorrem na Constituição Dei Ver­bum. A única novidade é aqui o reconhecimento de que podem existir “textos que são de vários modos históricos” (compare-se, porém, com os documentos de Pio XII e ver-se-á que não é uma novidade absoluta: ver, por ex., EB 558 e 618). Que quer dizer esta expressão? Que uma coisa é, por exemplo, a “história primordial” (“Urgeschichte”) que preen­che o intervalo desde a Criação do mundo até Abraão, sem citação de fontes; outra coisa é a “história religiosa”, que, negligenciando as causas segundas, atribui os eventos diretamente á Providência divina; outra, a “epopeia religioso-nacional”; outra o “romance-histórico”, etc. Cf. M. Zerwick, art. cit., 34 s.

[71] Cf. B. Kloppenburg, “A IV e Última, ..”, REB 1965, p. 446.

[72] Assim, por exemplo, G. Courtade, “Les Ecritures ont-elles un sens plénier?” Rech. Sc. Rel. (1950), 481-499; C. Spicq, O.P., “L’Ecriture et S. Thomas”, Bulletin Thomiste, 1947-1953, t VIII, pp. 220-221.”

[73] Summa, II-11, q. 173, a. 4. Cf. as observações de M. Labour-dett e, O.P., “Théologie morale”, na Rev. Thom. (1950), 414-421.

[74] EB, 553: o Papa fala de “um sentido espiritual, intencionado e ordenado por Deus”: cf. M. Braun, O.P., “Le sens plénier et les encycliques”, Rev. Thom. (1951), 294-304. Não todos concordam, entretanto, que esse “sentido espiritual” seja outra coisa que o “sentido tí­pico”, nestas palavras de Pio XII.

[75] Cf. J. Coppens, “Les divers sens des saintes Ecritures”; Nouv. Rev. Théol. (1952), 3-21.

[76] O texto encontra-se na REB 1964, pp. 483-487 e, no original latino, em Bíblica, 63.

[77] Bem diz M. Zerwick: “Si revera ageretur de evangeliorum histo-ricitate simpliciler, ipsa religio christiana in summo esset periculo. Rerum condicio autem valde dissimilis est, si solummodo agitur de genere historicitatis quod lifterario generi Evangeliorum ex ipsorum testimonio videtur adscribendum esse” (art. cit., p. 38).

 

[78] Ad Philad., c. 5 (PG 5, 699-702).

[79] DV, 21

[80] DV 9, 21, 24.

[81] Heb 14,12; At 20,32; cf. 1Tess 2, 13: DV, 21.

[82] DV, 22

[83] DV, 23

 

FONTE: Revista Eclesiástica Brasileira, vol. XXVI, ano 1966, págs 816-837.

 

PARA CITAR


FOLCH, Dom Cirilo. A Revelação Divina  – Perspectivas da Constituição Conciliar “Dei Verbum” – Disponível em: < http://www.apologistascatolicos.com.br/index.php/concilio-vaticano-ii/revelacao/696-a-revelacao-divina-perspectivas-da-constituicao-conciliar-qdei-verbumq >. Desde: 12/06/2014.

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