Desde os primeiros séculos do cristianismo, a Igreja desenvolveu uma prática litúrgica e teológica consistente em relação à oração pelos mortos. Essa tradição não surgiu de forma isolada, mas está amplamente documentada em diversos concílios regionais e locais do cristianismo primitivo, os quais desempenharam papel crucial na definição de doutrinas e na padronização da vida eclesial. Neste artigo, examinaremos como essa prática foi afirmada por várias igrejas locais — africana, espanhola, francesa, alemã, italiana e grega — por meio de decretos conciliares que tratam do jejum, da Eucaristia e das intercessões pelos fiéis falecidos.
1. A Igreja Africana e os Concílios de Cartago
A tradição africana, especialmente representada pelos concílios de Cartago, teve grande influência na estruturação do pensamento e da prática cristã no Ocidente. No Terceiro Concílio de Cartago, cânon 41, encontra-se a seguinte norma:
“Que os homens que jejuam devem oferecer sacrifícios a Deus. Que os Sacramentos do Altar não devem ser celebrados senão por aqueles que estiverem em jejum, exceto no aniversário da celebração da Ceia do Senhor. E se a comemoração de alguns falecidos — bispos ou outros — ocorrer à tarde, que se faça apenas com orações, caso os oficiantes já tenham tomado café da manhã.” (III Concílio de Cartago, cânon 41)
Esse texto revela duas preocupações principais: a dignidade do jejum na celebração e a oração pelos mortos em ocasiões litúrgicas. O Quarto Concílio de Cartago, cânon 79, reforça essa visão, indicando que a intercessão pelos falecidos era prática comum e normatizada.
2. A Igreja Espanhola e o Primeiro Concílio de Braga
Na Península Ibérica, o Primeiro Concílio de Braga (século VI) também aborda questões relacionadas à oração pelos mortos. No cânon 34, estabelece-se que não se devem oferecer orações em favor daqueles que cometeram suicídio, o que denota uma consciência teológica sobre a responsabilidade moral individual mesmo após a morte.
Já o cânon 39 determina que as ofertas feitas nas celebrações devem ser destinadas aos clérigos para que estes intercedam pelos falecidos, confirmando tanto a prática da oração quanto a ligação entre a Eucaristia e a caridade.
3. A Tradição Francesa: Chalon-sur-Saône e Arles
Na Gália, a Igreja Francesa reforça a tradição de interceder pelas almas dos mortos. O Concílio de Chalon-sur-Saône, em De consecratione, distinção 1, cânon Visum est, declara:
“Além disso, foi constatado que, em todos os ritos solenes das missas celebradas na Igreja, o Senhor é suplicado em favor das almas dos falecidos no momento apropriado.”
O Segundo Concílio de Arles, cânon 14, ecoa essa doutrina, reiterando que a oração litúrgica pela alma dos falecidos era vista como uma obrigação pastoral e comunitária.
4. A Igreja Alemã: O Concílio de Worms
A Igreja Alemã, por sua vez, manifesta esse mesmo entendimento no Concílio de Worms, cânon 10, onde se determina que até mesmo aqueles que morreram de maneira trágica ou violenta, como por enforcamento, devem ser incluídos nas orações e sacrifícios litúrgicos. Isso demonstra uma visão mais inclusiva da misericórdia divina e da esperança da salvação.
5. A Igreja Italiana: O Sexto Concílio de Roma
Na Igreja Italiana, o Sexto Concílio de Roma, celebrado em 502 sob o pontificado do Papa Símaco, é explícito em afirmar que privar os defuntos das orações litúrgicas é um verdadeiro sacrilégio. Tal linguagem reflete a importância atribuída a essas intercessões dentro da teologia romana da época.
6. A Igreja Grega e os Concílios Orientais
A Igreja Grega, rica em tradição mística e litúrgica, também sustenta vigorosamente a prática da oração pelos mortos. No Concílio sob Martinho de Braga, cânon 69, tal prática é confirmada com clareza.
Tão forte era a crença da intercessão dos vivos pelos mortos que curiosamente, o Concílio de Trullo ou Concílio QuiniSexto, no cânon 83, relata um episódio de zelo excessivo, no qual alguns fiéis gregos tentavam forçar a Sagrada Eucaristia na boca de pessoas recém-falecidas que não haviam tido tempo de recebê-la.
“Ninguém pode dar a Eucaristia aos corpos dos mortos, pois está escrito: “Tomai e comei”. Mas os corpos dos mortos não podem “tomar” nem “comer”.“
O cânon condena tal prática como indevida, ainda que nasça de uma piedade sincera.
CONCLUSÃO
A oração pelos mortos, associada ao sacrifício eucarístico e à prática do jejum, é uma tradição amplamente atestada nos primeiros séculos do cristianismo. Longe de ser um costume marginal, trata-se de uma norma presente em diversas regiões e culturas eclesiásticas — da África ao Oriente, da Gália à Península Ibérica.
Os concílios primitivos demonstram que essa prática era entendida não apenas como uma expressão de caridade, mas também como um dever litúrgico e sacramental. A intercessão pelos mortos revela a crença da Igreja na comunhão dos santos e na eficácia da oração em favor daqueles que já partiram. Em tempos modernos, o resgate dessa tradição pode aprofundar a consciência da unidade da Igreja — militante, padecente e triunfante — diante do mistério da vida eterna.