Sábado, Dezembro 21, 2024

A penitência pública na Igreja antiga


Desde o século IV, o poder de perdoar todos os pecados, incluindo os graves, é atestado por textos e afirmações cada vez mais frequentes e sancionada pelo magistério solene[1]. Uma avaliação precisa é feita da forma concreta em que o sacramento da penitência se apresenta até o século VII, a penitência pública, chamada também de penitência canônica por estar regida pelos cânones dos primeiros concílios (como os sínodos de Ancira [314], Neocesarea [entre os anos 314 e 325], Niceia [325], Antioquia [341], Gangra, no oriente, e pelos sínodos africanos, espanhóis e franceses na Igreja ocidental), pelos decretos papais (Sirício, Inocêncio I, Leão I, Félix II, Hormisdas, Gregório I) e também pelas epístolas penitenciais (com o tempo adquiriam autoridade canônica), que foram compostas por Gregório o Taumaturgo († 270), Pedro de Alexandria († 311), São Basílio[2], São Gregório de Nissa.

a) Descrição da penitência pública: a penitência pública requeria essencialmente um duplo ato da hierarquia eclesiástica: a excomunhão da Igreja e a reconciliação com ela. Se a penitência pública se define como a que se fazia “na ordem dos penitentes” (P. Galtier), há de se ter presente que esta ordem poderia ter diversos graus. Para que se possa falar de penitência pública, não é necessário que o pecador de fato (durante um tempo determinado ou de um modo determinado) tenha sido da ordem dos penitentes; a própria exclusão da Eucaristia foi já considerada uma inserção na ordem dos penitentes (São Cipriano, Orígenes). O modo de praticá-la podia variar notavelmente; sem embargo, em todas as partes os penitentes tinham um lugar (ordo) separado daqueles que podiam receber a Eucaristia, e recebiam especiais imposições das mãos. Não estavam somente sujeitos à penitência pública os chamados três “pecados capitais”, mas os pecados “graves e mortais”[3] em geral. Enquanto os outros pecados (“leves” e “menores”) se perdoavam por meio da penitência quotidiana (orações, jejuns, caridade). A penitência pública, contudo, podia ser aceita espontaneamente por tais faltas menores. O conceito de pecado grave carece todavia de precisão. Não importava que os pecados fossem públicos ou ocultos. A admissão à penitência era um favor que devia ser pedido; originariamente, estava aberta também para os clérigos[4], mas desde o século IV a prática universal excluía os clérigos superiores da penitência pública [5] e os castigava com a deposição e a degradação (considerada equivalente à penitência pública), admitindo-os logo à comunhão laical. Algo semelhante valia para os leigos “conversos”, que em vez da penitência escolhiam a vida religiosa, retirando-se aos mosteiros ou também permanecendo no mundo. Eram admitidos também à penitência os pecadores moribundos, mas em um primeiro período estava vigente a prática (não universal, segundo o que parece) de negar a paz ou  a comunhão a quem havia pedido a penitência só em perigo de morte [6]; depois do concílio de Niceia[7] se seguiu uma prática mais benigna, que dava a penitência e a comunhão[8]. A penitência pública constava de três partes: 1) A imposição da penitência depois da confissão[9] do réu e da correção por parte do bispo. 2) A ação penitencial, cujo ato principal era a exomológesis, que em São Cipriano significa, às vezes, toda penitência pública, mas rigorosamente implicava em uma confissão expressada nos próprios atos do penitente[10], e que devia repetir-se com frequência; assim se explica o caso do gnóstico Cerdão, que, admitido à penitência pública, às vezes fez a exomológesis e às vezes a omitiu. Ademais, a exomológesis compreendia toda disciplina da vida penitencial (jejuns, obras de expiação, etc.). 3) A absolvição de penitência dada pelo bispo e pelo clero mediante a imposição das mãos[11], unida à celebração do sacrifício eucarístico, com resultado eficaz para a salvação eterna, e que restituía a paz com a Igreja, comunidade de salvação.

O que diferencia principalmente a penitência pública da prática atual é sua impossível reiteração[12]. Aqueles que pretendem receber mais frequentemente a penitência cometem abuso, luxuriantur in Christo, “porque, assim como há um só batismo, do mesmo modo há uma só penitência”[13]. Os reincidentes não são admitidos à penitência eclesiástica; eles são aconselhados, no entanto, que se encomendem à misericórdia divina por meio de obras penitenciais[14]. Ademais, aquele que havia feito uma vez a penitência pública permanecia, mesmo depois de receber a reconciliação, era sujeito a uma disciplina pós-penitencial nada leve: desde o século IV, este era excluído do estado clerical, da milícia, dos cargos públicos, do uso do matrimônio[15].

b) Penitência pública e penitência privada. Se tem discutido se, junto à penitência pública, existiu também na Igreja antiga uma penitência sacramental “privada”. A resposta afirmativa, dada já por Morino e por Petavio, tem sido defendida agora por A. d’Alés, S. Harent e P. Galtier. Estes encontraram tal penitência privada na reconciliação pública dos hereges e daqueles que, por várias razões disciplinares, tinham sido excomungados sem obrigação de submeterem-se à penitência canônica; como também, na comunhão dada aos moribundos e na remissão dos pecados “médios” (graves, mas não capitais). Segundo P. Batiffol e J. Tixeront, a passagem da penitência pública à privada se foi delineando desde cerca do ano 400; K. Adam, primeiramente, havia procurado demonstrar que a introdução da forma privada se devia precisamente a santo Agostinho; mais tarde ele disse que havia existido sempre uma penitência eclesiástica sem excomunhão.

Em contrapartida, foi negada a existência da penitência privada por Fr. X. Funk, E. Vacandard, E. Göller, E. Amann e, com investigações particularmente cuidadosas, B. Poschmann, cuja argumentação encontra adesões cada vez mais numerosas. Segundo este último autor, a penitência privada não tinha sido introduzida antes do século VII. Sua primeira prova segura se encontra no cânon 11 do III concílio de Toledo (ano 589), que condenava esta forma de penitência como “presunção execrável”[16]. Os Padres atestaram de modo expresso que para o batizado há somente duas espécies de penitência: a cotidiana privada (oração, caridade, etc.), para os pecados menores, e a canônica, para os pecados mortais[17]. Os “remédios de correção” de que fala santo Agostinho[18] não são outra coisa senão exortações à penitência; não está provado por nenhum argumento que devem entender-se como uma absolvição privada[19]. Segundo foi colocado claramente pelas investigações recentes de K. Rahner, também, segundo Orígenes e a Didascalia apostolorum, unicamente na penitência pública com excomunhão se pode reconhecer um verdadeiro sacramento particular. Fora dela há atos de hierarquia eclesiástica realizados com vista à remissão dos pecados, mas não podem chamar-se de sacramentais no sentido atual da palavra. Para poder afirmar a existência de uma penitência sacramental privada, haveria que demonstrar que na Igreja antiga existiu um meio ordinário de remissão dos pecados graves (ao menos ocultos) em um processo exclusivamente interno (“no foro da consciência”) e reiterativo, como existe, com efeito, desde o século VII. Seria preciso, além disso, demonstrar que tal processo, se existia, tinha valor sacramental; não é possível ver uma absolvição verdadeira (e, em consequência, uma penitência privada) em qualquer oração sacerdotal que implore a remissão dos pecados, nem em qualquer correção dos pecados.

Parece, portanto, que a prática da penitência privada foi introduzida no século VII, começando por algumas províncias da Espanha e da França. Pode se dizer que foi preparada pela penitência dos “conversos”, que haviam propagado o costume de fazer uma penitência secreta, aceita por devoção. Se impunha então uma mudança da forma devido às múltiplas dificuldades da penitência canônica (adiamento da penitência até o momento da morte, por temor às consequências jurídicas; comunhões sacrílegas; situação penosa dos reincidentes; tendência a substituir a penitência pela vida monástica ou “conversão”, considerada como um segundo batismo). Parece que há de buscar-se uma causa próxima da mudança na atividade dos missionários irlandeses e escoceses, os quais, sob orientação de São Columbano, propagaram também no continente os usos da Igreja celta.

c) Avaliação dogmática da penitência pública.

1) A Igreja antiga conheceu e praticou a penitência como meio sacramental da remissão dos pecados para os batizados. No que se refere ao modo externo da administração, se a prática da Igreja antiga difere grandemente do uso moderno, se encontram nela, porém, os mesmos elementos essenciais. Também na Igreja antiga, para obter a remissão dos pecados no sacramento da penitência, concorriam, por parte do pecador, a contrição, a satisfação e a confissão; por parte da Igreja, o poder das chaves, a absolvição. A contrição, no sentido de verdadeira conversão, era indispensável para admitir o recebimento da penitência. A confissão dos pecados era absolutamente necessária; assim aparece confirmada também a declaração do concílio tridentino, segundo o qual a confissão secreta somente ao sacerdote estava já em vigor na Igreja desde o princípio, já que a confissão, que é o começo de toda penitência, era também então secreta por si mesma. A satisfação tinha tamanha primazia em toda prática penitencial, que dava a sensação de que nela consistia toda a penitência. A absolvição sacramental foi ensinada na forma de reconciliação. É verdade que na Igreja antiga não se via com claridade que relação tinham entre si o efeito da reconciliação e o da penitência subjetiva. Os testemunhos sobre a prática penitencial da Igreja antiga mostram, ainda, como a penitência eclesiástica (sacramental) era requerida para todos os “crimes”, mesmo quando em cada uma das Igrejas e nos diferentes períodos não existia um critério fixo para determinar que delitos deviam ser considerados crimes. Em todos os pontos de vista, a prática penitencial vigente na Igreja antiga, corresponde, portanto, ao que o concílio de Trento requereu para constituir a essência do sacramento da penitência; não é, portanto, necessário supor na Igreja antiga alguma penitência sacramental privada, cuja existência, para os primeiros seis séculos, não é sustentada pelo testemunho das fontes.

2) Na prática e na doutrina penitencial se encontram não poucas dificuldades e imperfeições; mas não podem ser justamente avaliadas se não é considerado todo o estado da explicação teológica que se tinha até então. Na história da doutrina penitencial se vê claramente como o conceito de sacramento não estava então bem definido. Não há de se espantar, pois, com a valorização excessiva das obras pessoais que deviam “merecer o perdão”. Esta exaltação do opus operantes não está desvinculada das tendências de ascetismo e de monarquismo (cf. as controvérsias pelagiana e semipelagiana; santo Agostinho, como polemista antipelagiano, afirmou também com mais firmeza a importância da reconciliação eclesiástica). Mesmo quando a distinção entre  o reato de culpa e reato de pena não era de todo ignorada[20], não era, porém, aplicada à teologia penitencial; por isso se cria facilmente, então, que só se havia obtido o “perdão” de Deus quando todas as penas se haviam sido inteiramente perdoadas; com isto, se explica como a reconciliação dada pela Igreja era considerada em certo modo hipotética. Assim também a justificação se concebia não tanto como ato instantâneo (em virtude da qual se remove imediata e totalmente o reato da culpa), mas como um modo de perdão sucessivo. Também os Padres pensavam que a graça faz do homem amigo de Deus, e que ela é, enquanto dom, algo permanente. Mas não acentuavam tanto o fato de que a graça é uma qualidade positiva inerente à alma com a qual é removida instantânea e necessariamente estado de pecado. A remissão dos pecados era para eles uma espécie de processo de cura, não só no sentido psicológico de destruição das tendências pecaminosas, mas também no sentido da remissão da culpa diante de Deus.

Enfim, já que a reconciliação, como diz o próprio nome, era propriamente entendida como a readmissão na comunidade da Igreja, sua eficácia se reconhece tanto mais claramente quanto mais profunda é a doutrina da Igreja, como corpo de Cristo, na qual é dada a caridade, o Espírito e pelo Espírito, a remissão do pecado pela parte de Deus (São Paulo, São Cipriano, Santo Agostinho). Na administração do sacramento da penitência aparece também certa maior participação de toda a comunidade, que com sua intercessão ajuda a obra penitencial do salvador; pouco a pouco, contudo, se viu mais explicitamente quais eram os sujeitos próprios do poder das chaves.

FONTE:

MAYER, A. Historia y teologia de la penitencia. Barcelona: Editorial Herder, 1961. p 36-44.

Notas:


[1] Cf. o cânon 13 do concílio de Niceia: “A todo aquele que está em perigo de morte, e pedir para receber a Eucaristia, dar-lhe-á o bispo”; Dz 57.

[2] Epístola 188 s, 217.

[3] Santo Agostinho, Sermão 278,12; PL 38, 1273.

[4] Cf. São Cipriano, epístola 64,1 = epístola 59; PL 3, 1014.

[5] Nota-se pela razão dada por santo Agostinho, Contra epist. Parm., 2, 13; PL 43, 70.

[6] São Cipriano, epístola 55,23; ed. Hartel, CSEL, 3, 2, p. 641 = epístola 52; PL 3, 789 ss, e os cânones 64 e 70 do concílio de Elvira, em Mansi II, 16 ss.

[7] Cânon 13; Dz 57.

[8] Cf. as Epistolae Innocentii I ad Exuperium, Dz 95, e de Celestino I aos bispos da Gália, Dz 111.

[9] “Em segredo dos seus conhecidos”, cf. São Leão Magno, epístola 168, 2; Dz 145.

[10] “A disciplina do homem que se tem de prosternar e humilhar” (Tertuliano, De paenit., 9, 3).

[11] São Cipriano, epístola 16,2.

[12] Cf. Hermas, no Pastor; Mand. IV, 3, 6; Tertuliano, De paenit. 7,10; Orígenes, In Lev. homil.. 15, 2; Santo Agostinho, epístola 153,7.

[13] Santo Ambrósio, De paenit. II, 10; PL 16, 520.

[14] Santo Agostinho, epístola 153, 3, 7.

[15] Cf. São Sirício, I Epist. Ad Himerium, en Mansi III, 657.     

[16] Mansi IX, 995.

[17] Cf. Santo Agostinho, De symb. ad catechum., 7, 15; 8, 16;  Sermão 351, 2-4; 352, 2; epístola 265, 7.

[18] De fide et operibus 26, 48.

[19] Cf. B. Poschmann, Sancti Aurelii Augustini textos selecti de paenitentia, em “Florilegium patristicum”, fasc. XXXVIII, Bonn 1938, p. 75, nota 2.

[20] Cf. São Cipriano, epístola 55,29.

 

PARA CITAR


MAYER, A. A penitência pública na Igreja antiga. Disponível em: <http://apologistascatolicos.com.br/index.php/patristica/estudos-patristicos/839-a-penitencia-publica-na-igreja-antiga>. Desde: 12/12/2015. Tradução: Lucas Oliveira.

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