Sexta-feira, Novembro 15, 2024

A liberdade religiosa, entre ruptura e continuidade

 Os estudos da Fraternidade São Vicente Ferrer sobre a liberdade religiosa foram aprovados pela hierarquia católica (Cardeal Ratzinger e S. João Paulo II) 

 

Publicação em Sedes Sapientiae n° 121

 

O cinquentenário da abertura do Vaticano II e as discussões entre a Fraternidade São Pio X e a Santa Sé trazem de volta ao primeiro plano da atualidade teológica as questões de continuidade doutrinal. Pensamos que era oportuno neste contexto trazer ao conhecimento dos leitores da  Sedes Sapientiae dois textos publicados, respectivamente em Janeiro e Junho de 1988, numa publicação hoje desaparecida, o Bulletin du Cices. O primeiro artigo, intitulado: “A liberdade religiosa: contradição ou continuidade?”, explica as razões e as modalidades da mudança de posição sobre esta questão da Fraternidade São Vicente Ferrer, no inverno de 1987-1988. O segundo, intitulado: “Sobre a liberdade religiosa. Dezesseis respostas do padre L.-M. De Blignière”, apresenta de forma sintética o estado da questão. Todas as notas que enriquecem estes textos foram acrescentadas pela redação, sobretudo afim de mostrar como o Catecismo da Igreja católica fez progredir a questão.

 

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A liberdade religiosa: contradição ou continuidade?

A declaração de Vaticano II sobre a liberdade religiosa, intitulada Dignitatis humanae  e promulgada no dia 7 de Dezembro de 1965, é um documento de menos autoridade que as grandes constituições dogmáticas do concílio: Lumen Gentium e Dei Verbum. Mas ela apareceu como o centro de uma controvérsia apaixonada. No espírito de alguns experts e de uma parte da maioria conciliar, Dignitatis humanae devia marcar uma ruptura com relação ao ensino anterior. Pretendia-se apagar a lembrança do Syllabus de Pio IX (8 de Dezembro de 1864).

Durante o seu desenvolvimento, a declaração rapidamente se tornou um problema. Uma ruptura com o magistério anterior era desejada como uma libertação por alguns, temida como uma rejeição por outros. Esta ruptura aconteceu? Não na substância, afirmam os teólogos da linha conciliar mais conservadora. Sim, sustentam os mais avançados progressistas (para se alegrar) e uma grade parte de tradicionalistas (para o deplorar).

 

I – NA PERSPECTIVA DA CONTRADIÇÃO

 

A tese da ruptura

 

Depois dos estudos aparecidos em 1976 num boletim tradicionalista[1], aderi a esta posição: há uma contradição formal entre certas proposições da Dignitatis humanae e o ensino da Quanta cura, a encíclica de Pio IX que acompanhava o Syllabus. É preciso dizer que, se observarmos a justaposição material das proposições, sem estudar cuidadosamente a significação que seus autores dão às palavras empregadas, tem realmente como se enganar. Visto que a atitude de muitos pastores e de uma grande multidão de teólogos acredita na idéia de uma vontade de ruptura.

 

Consequências teológicas e práticas desta posição

 

Constatava que esta contradição introduzia uma desconsideração do magistério católico, que devia absolutamente ser resolvida sob pena de ver perecer a credibilidade da Igreja. Se ela enganou-se sobre este ponto, nada proibiria de pensar que ela se enganaria hoje no domínio, por exemplo, da ética sexual. Aliás é o que teólogos como Curran não hesitaram em afirmar. Pensava também que a consequência lógica de uma tal ruptura era uma forma de vacância da autoridade na Igreja (que não era o sedevacantismo). Deduzia com isso que era muito urgente fazer voltar sobre este ponto os detentores da sucessão apostólica, para que eles reencontrem sua autoridade para o bem da Igreja.

Com um grupo de teólogos e de universitários de diversos países, desenvolvemos (em 1981-1983) uma tese trazendo um ponto de vista geral dos equívocos ou dos pontos frágeis de alguns textos magisteriais, e um anexo sobre o ponto preciso da liberdade religiosa[2]. Este trabalho recebeu a aprovação do Mons. de Castro-Mayer e foi enviada a um bom número de bispos, em 1983-1985. Ela foi entregue também à Santa sé. Soube que ela foi julgada como séria nas esferas oficiais, e penso que ela contribuiu por sua vez a orientar o debate no aspecto doutrinal da crise. Digamos que ela foi uma etapa útil, tendo em conta o nosso ponto de partida.

 

Investigação e confrontação

 

Os contatos que tivemos nesta ocasião com os bispos deram-nos uma idéia mais exata da situação do episcopado, diante da crise eclesial. Eles mostraram-nos também a necessidade de concentrar os esforços sobre um ponto restrito e preciso, permitindo circunscrever as discussões. É assim que, graças a comunicação com teólogos romanos, decidimos começar a trabalhar uma tese exaustiva consagrada unicamente à liberdade religiosa.

Uma grande investigação dos Padre da Igreja, os concílios, os papas, ocupou-nos durante longos meses (1986-1987). Os materiais acumulados não foram de qualquer maneira inteiramente explorados. Antes de os tirar proveito, o estudo da origem e do contexto de Quanta cura, assim como a leitura das Atas do Vaticano II[3] reservaram-nos com efeito uma surpresa… de grande importância. É o que explicamos num pequeno estudo que acaba de aparecer[4].

Durante todas essas pesquisas, tínhamos evidentemente conhecimento dos argumentos dos adeptos da continuidade entre a tradição e Dignitatis humanae. No entanto, sua argumentação nos parecia forçada. Tínhamos a impressão que ela procedia de um desejo de justificar à todo custo o concílio. Só indo nós mesmo ver o detalhe dos textos e dos comentadores que descobrimos que ela tinha um fundamento sério. Digo somente: um fundamento, pois, continuo convencido que a formulação desta argumentação era defeituosa. Devo no entanto observar uma exceção: os trabalhos do Rev. Brian Harrison. Parece-me que ele foi o primeiro a ter compreendido bem as dificuldades dos teólogos tradicionalistas. Penso que sua tese, que tem o grande mérito de refutar corajosamente alguns pontos de vista de um dos padres da declaração, J.-C. Murray, é um trabalho que faz progredir a reflexão nesta questão embaraçosa[5]. Pois, é preciso sublinhar o quanto este problema é complexo.

 

Confusão

 

A questão da liberdade civil dos cultos e de seu fundamento está com efeito no centro dos difíceis problemas teológicos, filosóficos, jurídicos e históricos. O concílio, em razão de sua perspectiva pastoral particular, pôs à luz um só ponto, muito restrito, neste labirinto de direitos e deveres, que envolvem a pessoa, a comunidade civil, o poder estatal, a Igreja e Deus. Aliás, o texto de Dignitatis humanae é incontestavelmente desconcertante para um não-especialista em direito público. O texto tenta recuperar as categorias dos juristas modernos para passar um ensino de ética natural. Não é ilegítimo. Mas isto pede um trabalho de precisão nas definições que é raramente feito. Daí uma confusão inextricável.

Perguntai ao acaso a um católico de cultura média. Perguntai-lhe o que é “a liberdade religiosa segundo Vaticano II”. Normalmente ele responderá: isto significa que temos o direito de fazer o que se quer em matéria religiosa. No espírito da maior parte dos fiéis, “liberdade religiosa” é um conceito confuso, à meio caminho entre o indiferentismo doutrinal (todas as religiões são validas), e a liberdade moral do erro (tem-se o direito positivo de acreditar e de fazer tudo o que se quer). Ora, o Vaticano II afasta explicitamente estas duas acepções. Mas quem o diz claramente? A confusão está aumentada pela conjunção desta idéia média de “liberdade religiosa” com um falso ecumenismo muito espalhado na mentalidade eclesial desde o concílio.

 

II – CONTRA-PESQUISA: HÁ CONTINUIDADE

 

O que diz Dignitatis humanae

 

O que diz a declaração conciliar, é exatamente isto: dentro dos limites de uma ordem pública justa, fundada sobre a moral objetiva, a pessoa humana tem, com relação ao Estado, um direito a não ser forçado ou impedido de agir em matéria religiosa. Portanto trata-se de um direito negativo sobre a ausência de coação, não sobre o conteúdo eventualmente errôneo da religião. E este direito tem raiz na própria natureza da pessoa, anterior ao Estado que não tem jurisdição direta sobre sua relação com Deus.

Isso é tudo. É isto que o concílio afirmou “com autoridade”[6] e demanda admissão. Eu penso agora que é admissível. O estalo se produziu (para os irmãos que trabalhavam esta questão e para mim) ao descobrir um filósofo clássico do direito natural, Taparelli d’Azeglio, que sustentava claramente que o Estado entregue às suas luzes naturais não tem nem o direito nem o dever de impedir os cultos que não perturbam o estado pacífico da sociedade. O secretário oficial do esquema, Mons. De Smedt, afirma claramente que o ponto de vista da declaração é somente este: as relações pessoa-Estado na ordem natural. Esta constatação terminou de nos esclarecer.

Esta doutrina tem, aliás, raízes bem mais antigas, visto que vê-se um Jean Torquemada escrever em 1449 em sua Somme sur l’Église: “o poder secular, enquanto tal, não conhece nada da felicidade celeste e do que dispõem os homens para obtê-la” (L. I, c. 90).

 

O que diz o magistério anterior

 

Quanto às condenações feitas pelos papas do século XIX, especialmente por Pio IX, elas visam uma liberdade civil ilimitada, ligada aliás inextricavelmente a uma liberdade moral. É isto que estabelecemos no nosso estudo. Lamennais e os naturalistas do século XIX perdiam de vista ou negavam o papel mediador do Estado na ordem da moral natural, quando este papel é claramente ensinado por são Paulo (Rm, 13). Se o homem é uma pessoa a quem se deve, sempre que possível, deixar livre de se determinar, ele não é menos também essencialmente um ser social. A liberdade civil não pode, portanto, se conceber independentemente de (ou anteriormente à) ordem social: ela é um componente.

Também o direito à liberdade civil comporta limites que fazem parte de sua definição[7]: estes limites são os que compõem a conivência de todos na verdadeira justiça, os direitos de cada um e a moralidade pública. Tudo isto não é somente de ordem material e alarga a competência do poder civil muito mais do que queriam os naturalistas.

Aliás, a paz pública destes naturalistas que exclui por principio toda referência à verdadeira religião era praticamente incompatível com a proteção da liberdade da Igreja, visto que tudo o que era da ordem espiritual era excluído da proteção das leis. Uma primeira sondagem nos arquivos secretos do Vaticano acabou de nos convencer que o ponto de vista dos naturalistas condenados por Pio IX é essencialmente diferente do que ensina Dignitatis humanae.

 

Trevas e luzes

 

É necessário precisar agora o seguinte: o ensino central da declaração, bem compreendido no sentido mesmo em que foi promulgado, constitui um autêntico desenvolvimento homogêneo da doutrina e deve ser recebido como tal. No entanto, um católico tem o direito de estimar como muito frágeis alguns dos considerandos que apóiam a argumentação.  Ele tem também direito de considerar estranho e lamentável o silêncio do texto sobre pontos importantes e de constatar que a interpretação geralmente recebida é suficientemente próxima do pensamento de Lamennais sobre a incompetência moral e religiosa absoluta do Estado. Ele pode também pensar que a declaração, ao menos na sua forma atual, não era muito oportuna. Acrescento que os danos inegáveis que resultam dos equívocos ou dos silêncios de Dignitatis humanae tornam urgente uma clarificação do texto pela Santa Sé[8]. Esta declaração poderia oportunamente acompanhar-se da reparação dos pontos difíceis ou duvidosos de alguns outros textos conciliares, nomeadamente sobre o ecumenismo[9]. Pessoalmente, tendo à crer que o concílio só poderá verdadeiramente ser “recebido” por todos os católicos com esse preço.

A descoberta que não há contradição entre Dignitatis humanae e o magistério anterior implica já para nós muitas consequências. Primeiro, o fato que a Igreja, apesar da crise terrível que a obscurece, não é viúva de sua autoridade. Em seguida, um sentimento de alívio ao constatar que a Igreja não se contradisse num ensino desta importância. E, apesar dos medos para o futuro que é muito incerto, uma esperança. Esta, que isto torna mais cômodo ao magistério as indispensáveis clarificações e mais fácil a todos os católicos preocupados com a unidade o reagrupamento na verdade.

É preciso para isto, rezar a Santa Virgem, Mãe da Igreja, para que o magistério intervenha antes que o câncer neomodernista roa todo o cérebro teológico da Igreja. Parece-me, aliás, que desde alguns anos uma parte do sagrado colégio e do episcopado, e João Paulo II mesmo, começam a melhor tomar medida do mal. Mas as medidas práticas tardam consideravelmente…

Neste contexto, a missão do cardeal Gagnon constitui certamente um sinal de esperança que é preciso levar na oração. Creio que esta missão (mesmo se, infelizmente, fracassava) marca uma mudança na crise[10]. A Santa Sé pensa com efeito acordar o uso dos livros litúrgicos de 1962 a toda uma categoria de padres da Igreja latina[11]. Ora, a missa tridentina, com sua beleza litúrgica, seu valor pedagógico e sua poderosa adoração, veicula um patrimônio doutrinal de uma tal riqueza que ela é ponto de referência necessário em toda recuperação.

De fato, creio que este rito é finalmente muito pastoral. Ele responde à expectativa das almas modernas desorientadas num universo materialista e espiritualmente vazio. É por isso que é absolutamente excluído para nós abandonar este rito litúrgico que alimenta admiravelmente a fé no sacrifício propiciatório de Cristo. Seu progresso é um elemento necessário (mesmo sendo insuficiente) da expansão missionária que deve trazer os espíritos desorientados ao Reino de Jesus por Maria. Mas, com certeza, a solução da crise não pode prescindir das questões doutrinais, pois, a inteligibilidade da fé está no centro da vida do Corpo místico.

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Sobre a liberdade religiosa

Dezesseis respostas do padre L.-M. De Blignières

 

Dois artigos, publicados no Cices em dezembro e em janeiro, tratavam do ensino de Vaticano II e do ensino tradicional da Igreja sobre a liberdade religiosa. Expunham o porquê e como estes ensinos não se contradizem mas se completam. Estes artigos provocaram muitas reações de aprovação e algumas discussões ou contra-ataques mais ou menos adequados e respeitosos. Precisemos primeiro que a tese completa do Pe. Harrison[12] será previsivelmente disponível em françês no final do verão. Por sua parte, o Pe. De Blignière responde aqui às principais dificuldades que foram opostas, tanto a seu artigo quanto a de outros trabalhos publicados pela Prieuré Saint-Thomas d’Aquin. Ele dá nestas dezesseis respostas uma versão voluntariamente simplificada dos comentários aprofundados já publicados ou à publicar nos diversos números e suplementos de Sedes Sapientiae, revista de estudo teológico editada sob sua direção da Prieuré Sant-Thomas[13].

 

1.      Qual é o objetivo do debate?

 

É a declaração Dignitatis humanae do concilio Vaticano II que ensina: “A pessoa humana tem o direito à liberdade religiosa” (DH 2, 1). Neste mesmo lugar, declara em que consiste este direito, ela afirma que este direito está fundado na dignidade da pessoa humana e precisa que deve ser reconhecido como direito civil na ordem jurídica da sociedade. Tal é o ensino essencial da declaração: é isto que, segundo as explicações do relator do esquema, está apresentado “com autoridade”[14] à adesão dos fiéis. As outras partes de Dignitatis humanae expõem as razões de oportunidade da declaração, desenvolvem a natureza do fundamento, os limites do direito, etc. Elas não são também rigorosamente normativas e podem como tais comportar “elementos contingentes” mais ou menos discutíveis.

 

2.      Qual é o ponto preciso da controvérsia?

 

Afirma-se que o ensino essencial da declaração era inaceitável no olhar da doutrina anterior do magistério católico e, precisamente, as condenações trazidas pelos soberanos pontífices no século XIX contra “a liberdade de consciência”.

Para que esta objeção seja aceitável, deve ser estabelecida com certeza plena de que estamos lidando com uma contradição real. Insistamos sobre dois pontos. É preciso uma plena certeza. Com o ensino central de Dignitatis humanae, estamos, com efeito, diante de uma “doutrina do magistério supremo da Igreja” (notificação do Secretario geral do concilio, 16 de Novembro de 1964). Diante desta autoridade sobrenatural, uma dúvida ou mesmo uma simples probabilidade não é suficiente. Em caso de obscuridade na leitura de um texto normativo do magistério, normalmente aplica-se o credo ut intelligam (crer para compreender).

É preciso que a contradição seja real ou “formal”: quer dizer que haja verdadeiramente contradição entre duas doutrinas. Uma contradição “material”, a oposição termo-a-termo de duas propostas, uma afirmando aparentemente o que a outra nega, não é suficiente. É preciso ainda assegurar-se que os termos são aplicados no mesmo sentido nos dois casos, e que com a mesma relação há afirmação de uma parte, e negação de outra.

Para clarificar o debate, convém, portanto, examinar o conteúdo do direito à liberdade religiosa e ver em que ponto de vista é afirmado pela Dignitatis humanae. Vejamos, portanto, em que sentido Dignitatis humanae fala de direito.

 

3.      O direito à liberdade religiosa é um direito do erro?

 

Não. Geralmente confunde-se “direito do erro” e “direito de pessoas que estão no erro”. Na verdade, o erro ou o mal não têm nenhum direito, eles não são sujeitos de direitos. São as pessoas que podem ser sujeitos de direitos. As pessoas que estão no erro religioso podem ter direitos e, de fato, elas têm: este da propriedade privada, aqueles de não serem impedidos de educar os seus filhos segundo as suas convicções, etc. O Vaticano II não afirma nenhum “direito dos falsos cultos”, mas um direito à imunidade de coação em matéria religiosa, que concerne também aqueles que aderem a um falso culto[15].

 

4.      O direito à liberdade religiosa é um direito de agir mal?

 

Não. Com efeito, é preciso cuidadosamente distinguir o direito de agir do direito de não ser impedido de agir que ensina Vaticano II.

O direito afirmativo – ou direito de agir – significa a faculdade moral de fazer um ato. “Tenho o direito de fazer tal ato” = “é moralmente lícito para mim fazer este ato.” Para um direito afirmativo, o objeto do direito, isto é, o ato, deve ser moralmente bom. Dignitatis humanae não reconhece nenhum direito afirmativo às pessoas com relação ao erro religioso.

O direito negativo – ou direito de não ser impedido de agir – designa uma faculdade moral de exigir a ausência de coação dos poderes humanos num certo domínio. “Tenho o direito (negativo) de agir segundo meu juízo pessoal em tal domínio” = “Posso exigir em justiça que o poder civil não me impeça.” O objeto do direito negativo, não é o ato (eventualmente mau) que posso fazer: é a não intervenção do poder civil no domínio em que gozo deste direito. É uma autonomia relativa deste tipo que protege o domínio privado ou familiar. É este direito negativo que ensina Dignitatis humanae para o domínio religioso, nos limites convenientes (estes de uma ordem pública justa). A declaração fala sempre de imunidade de coação, de direito “a não ser impedido” e não de direito de agir.

 

5.      O direito à liberdade religiosa implica o indiferentismo individual?

 

Este indiferentismo está excluído porque trata-se somente de um direito negativo, com relação ao poder civil, e não de um direito afirmativo com relação a Deus, à verdade e ao bem. “Todos os homens têm o dever de buscar a verdade, sobretudo no que diz respeito a Deus e à sua Igreja e, uma vez conhecida, de a abraçar e guardar.” (D H 1, 2). A autonomia relativa, intrinsecamente limitada pelas exigências da ordem social, que é reconhecida ao homem em matéria religiosa, é-lhe concedida para que ele cumpra seus deveres. Se ele utilizar esta liberdade física para se desviar da verdade e do bem, ele abusa de seu direito.

 

6.      Este direito implica o indiferentismo do Estado, ou sua incompetência religiosa absoluta?

 

Não. O dever do Estado de não impedir o exercício dos falsos cultos na medida em que isto não perturbe a ordem pública justa não é contrário ao seu dever objetivo de reconhecer a verdadeira religião e a Igreja católica, de ajudar esta na sua missão enquanto for politicamente possível, de protegê-la contra os que a atacam, de prestar um culto público a Deus e a Cristo. Estes deveres não são negados pela Dignitatis humanae. São mesmo implicitamente mencionados, lá onde está a questão do “dever moral… das sociedades para com a verdadeira religião e da única Igreja de Cristo” (DH 1, 3). A realeza social de Cristo não é incompatível com uma certa liberdade civil deixada aos não católicos[16].

 

7.      Este direito implica uma ausência de jurisdição religiosa do Estado?

 

Sim. O concílio ensina que o poder civil não tem, por si mesmo, o direito de impedir através da coação os atos religiosos errôneos que não ameaçam a ordem publica justa, quer dizer, que não perturbam a paz e a moralidade pública e não violam os direitos dos outros (DH 7). Porque a sua finalidade própria e próxima é o bem comum temporal, ele não tem jurisdição direta sobre os atos que ordenam a pessoa ao bem comum espiritual, a Deus.

No entanto, esta ausência de jurisdição não significa uma incompetência absoluta. O Estado não pode com efeito ser agnóstico, indiferentista ou ateu, mas deve pelo contrário reconhecer a verdadeira religião e colaborar, no seu lugar e segundo seu papel, à extensão do reino de Cristo.

 

8.      Por que a doutrina tradicional não fala de direito, mas de tolerância, para os não católicos?

 

A doutrina tradicional coloca-se no ponto de vista da ordem total, incluindo ao mesmo tempo a ordem natural e a Revelação. Ela supõe uma sociedade católica, tendo recebido a Revelação, e uma autoridade pública católica. De fato, é a Revelação que funda em última instância a distinção entre verdadeira e falsas religiões, e uma autoridade que não recebeu a Revelação não tem o direito de proibir o que se opõe diretamente a Revelação e não perturba em nada a ordem social. Do ponto de vista natural, não se fala, portanto, de tolerância dos falsos cultos, mas de direito à liberdade em matéria religiosa. Ora, Dignitatis humanae fala para todas as sociedades, cuja maioria é infelizmente pluralista ou não católica. Ela deve, portanto, colocar-se neste ponto de vista, e evitar um termo que causaria confusão.

 

9.      O direito à liberdade religiosa é equivalente a um “direito a ser tolerado”?

 

Pode-se distinguir dois sentidos do termo “tolerar”. No sentido estrito, aplica-se ao que o Estado tem, não somente o poder físico, mas também o direito de impedir. Neste caso, só se tolera por razões extrínsecas à pessoa tolerada. Mas, num sentido mais largo, o poder “tolera” o que poderia fisicamente ser impedido, mas que não tem o direito de reprimir, por exemplo, os erros e as faltas cometidas no domínio privado ou familiar. O Estado cometeria uma injustiça “em razão do autor, quando impõe leis que ultra­passam o poder que lhe foi cometido”[17], se ele se interferisse nestes domínios.

Neste sentido; pode-se dizer que o Estado tem aqui um dever de tolerância que corresponde a qualquer coisa intrínseca à pessoa tolerada. O direito (negativo) à liberdade religiosa é deste tipo: é um “direito a ser tolerado”. O fato que a tolerância é então devida em virtude de uma exigência da natureza das pessoas não se opõe ao que diz Leão XIII: a saber que, “tendo em conta o bem comum, e somente por este motivo, a lei dos homens pode e deve mesmo tolerar o mal” (encíclica Libertas). Pois, as exigências da natureza e da dignidade da pessoa humana pertencem ao bem comum (cf. Pio XII, 15 de Julho de 1950).

 

10.      Em que consiste o fundamento do direito à liberdade religiosa?

 

O fundamento de um direito, é sua razão de ser, sua justificação. O que justifica deixar aos seres humanos, uma certa esfera de autonomia na sociedade em matéria religiosa? No seu ensino essencial, a declaração responde dizendo somente: é a dignidade da pessoa humana. Nos argumentos, a declaração tenta clarificar o aspecto geral desta dignidade (DH 2, 2) e o aspecto propriamente religioso (DH 3). Este é um dos pontos mais delicados do texto.

O aspecto geral. É valido para a atividade humana como tal. “Os homens são pessoas, quer dizer, são dotados de razão e de livre vontade” (DH 2). Por natureza, são capazes, de se mover por si mesmos para atingir o seu fim. “O grau supremo da dignidade nos homens, é que eles sejam maduros, não pelos outros, mas que eles se movam por si mesmos até atingir ao bem[18].” Portanto, o bem comum da sociedade, exige deixar uma certa área de autonomia no agir das pessoas, dentro da qual as pessoas se moverão sob sua própria responsabilidade: “Dissemos que não é justo que o indivíduo ou a família sejam absorvidos pelo Estado, mas é justo, pelo contrário, que aquele e esta tenham a faculdade de proceder com liberdade, contando que não atentem contra o bem geral, e não prejudiquem ninguém..” (Leão XIII, Rerum novarum). Esta esfera razoável de ação livre que é moral conceder deve ser protegida. “A proteção da liberdade pessoal é o fim de todo regulamento jurídico deste nome” (Pio XII, 8 de Janeiro de 1947).

O aspecto propriamente religioso. A dignidade do homem, é especialmente o fato de que, por sua ordenação a Deus, ultrapassa e transcende a ordem temporal. “O homem não se ordena, em si mesmo, totalmente e com tudo o que lhe pertence, à comunidade política […]. Mas o todo que é o homem, com tudo o que pode e tem, deve ordenar-se para Deus [19].” O poder civil, ainda que não possa estar indiferente em direito, não tem, por si mesmo, a tarefa da salvação eterna dos homens. “A Igreja católica tem consciência que o seu divino fundador transmitiu-lhe o domínio da religião, a direção religiosa e moral dos homens em todas as dimensões, independentemente do poder do Estado” (Pio XII, 7 de Setembro de 1955). Portanto, o Estado só intervirá aqui sob o aspecto do bem comum temporal que é seu próprio fim, protegendo a ordem pública justa, de um lado, e associando-se ao culto público que a sociedade deve prestar a Deus, por outro lado.

 

11.      O direito à liberdade religiosa é algo absoluto, ilimitado?

 

Não. É um direito negativo (cf. questão 4), quer dizer, o direito a uma imunidade de coação, com relação ao Estado, numa esfera determinada. Os limites são essenciais deste tipo de direito. Aqueles que indica a Dignitatis humanae correspondem a esta parte do bem comum natural que o poder civil tem o dever de proteger com sanções e que é designado pelo nome de ordem publica justa[20]. Mas se ao considerar que o Estado ponha ainda outros atos com relação a este bem (por exemplo a promoção positiva), vê-se que estes deveres religiosos não se limitam nesta repressão dos abusos da liberdade religiosa. Eles comportam obrigações positivas perante o culto público da verdadeira religião e igualmente o acolhimento do que o magistério católico declara no que diz respeito a lei natural.

 

12.      O critério de intervenção assim reconhecido pelo Estado não é aquele dos naturalistas condenados no século XIX?

  

Não. A “paz publica”, quer dizer, a tranquilidade da ordem social segundo os naturalistas, e a ordem pública justa do Vaticano II são formalmente diferentes. Num caso, determina-se esta ordem social negando explicitamente que a Revelação possa ter a influência que for na organização da sociedade. No outro caso, não se nega esta influência que desempenha um duplo nível:

 

            – no conhecimento certo, fácil e sem mistura de erro da lei natural. Pensemos nas consequências do aborto, a eutanásia, as manipulações genéticas, a pornografia, o divorcio, etc.[21]

            – na encarnação dos princípios propriamente cristãos nas sociedades que receberam a Revelação. A legislação, os institutos facilitarão a missão divina da Igreja. Algumas determinações da lei natural serão feitas conforme a Revelação (por exemplo, o descanso dominical ou a proibição da poligamia que não é contrária ao direito natural primário)[22].

           

Se a Igreja o julga oportuno, ela pode pedir o reconhecimento de imunidades particulares (por exemplo a isenção do serviço militar para os clérigos).

 

13.      A liberdade de consciência condenada pelos soberanos pontífices não é, portanto, idêntica ao direito à liberdade religiosa?

  

Os naturalistas condenados, reclamam uma liberdade de consciência que resulta do indiferentismo individual (cf. Gregorio XVI, Mirari vos) ou este do Estado (cf. Pio IX, Quanta cura). O Vaticano II exclui um e outro (cf. questões 5 e 6). Os católicos liberais, por sua vez, não distinguem claramente o direito afirmativo do direito negativo (cf. questão 4). Isto é manifestado, por exemplo, na maneira como Montalembert define a liberdade religiosa nos seus discursos de Malines. Como Lamennais, ele reclama, aliás, universalmente a separação da Igreja e do Estado, sendo este, proclamado “soberanamente incompetente em matéria religiosa”. Os consultores do Santo Ofício que prepararam Quanta cura censuraram-lhe por considerar “como a melhor condição da sociedade esta onde o catolicismo não é reconhecido como religião do Estado”.

Preparando a condenação da proposta: “A liberdade de consciência e dos cultos é um direito próprio a cada homem…”, eles a declararam inaceitáveis porque ela obrigaria o Estado a permitir o divórcio e a poligamia, pelo fato de que a incompetência religiosa absoluta do poder civil o obrigaria a admitir estas práticas dos protestantes e muçulmanos. Está claro que, mesmo considerada como um simples direito negativo, esta “liberdade de consciência” tem limites muito diferentes do direito à liberdade religiosa de Dignitatis humanae. Sendo os limites intrínsecos a um direito negativo (cf. questão 11), o direito à liberdade religiosa e a liberdade de consciência são formalmente distintos[23]. (Nós desenvolvemos mais longamente este ponto na resposta aos padres Belmont e Lucien, pp. 10 à 20[24].)

 

14.      O direito à liberdade religiosa concede uma imunidade perante à Igreja?

  

Não. Dignitatis humanae fala de uma imunidade de coerção “com relação a todo poder humano”. Mas o poder coativo da Igreja nos fiéis não é de modo algum rejeitado, pois, os direitos da autoridade eclesiástica foram expressamente reservados segundo as explicações do relator[25]. Aliás, o subtítulo da declaração fala de um direito “à liberdade social e civil em matéria religiosa”.

 

15.      Como explicar, segundo a doutrina da Dignitatis humanae, a prática da Igreja e dos Estados nos séculos da cristandade? 

 

Pode-se sumariamente indicar que os prejuízos à verdadeira religião poderiam ser reprimidos em dois sentidos:

 

            – na linha do poder próprio do Estado,”na medida em que tendo suposto um estado de sociedade cristã, elas a perturbavam e lhe infligiam com grandes danos, mesmo quanto à sua paz, a sua felicidade externa, mantinha a sua conservação”. Muitos autores sublinham que a maioria dos heresiarcas perturbavam a paz e a moralidade públicas. Ora, o Vaticano II ordena estes dois elementos da ordem social entre aqueles que o poder público deve proteger com sanções.

            – “em razão de uma concessão do poder eclesiástico, por uma reclamação tácita ou expressa deste último pedindo o socorro do braço secular”.

 

Estas duas citações são de Suarez (De legibus, L. III. Ch. XI, n° 10) que acrescenta: “Todas as leis civis que concernem matérias espirituais, ou não são leis, ou então, sustentam sua força a partir do poder superior” quer dizer, (a Igreja). O Vaticano II não fala somente de direitos naturais do homem perante o poder próprio do Estado e “não trata todos os direitos que é preciso reconhecer à Igreja”, segundo as declarações do relator (AS, IV, I, 195 e IV, V, 102).

 

16.      Como explicar a prática da Santa Sé desde o Concílio, que parece favorável ao não confessionalismo do Estado?

  

Por si mesma, “a doutrina da liberdade religiosa não contradiz o conceito histórico do Estado dito confessional […]. Ela não impede que a religião católica seja reconhecida pelo direito humano público como a religião comum dos cidadãos de uma determinada região, ou que a religião católica seja estabelecida pelo direito público como religião do Estado”. Tais são as palavras do relator oficial do texto (AS III, VIII, 463).

Eis a doutrina. A prática concordatária da Santa Sé é, no entanto, desde o concilio, desfavorável ao confessionalismo formal do Estado[26]. Trata-se de um juízo de prudência política que não tem evidentemente nada de infalível. Pode-se lamentar, sobretudo no clima geral de indiferentismo, onde isto é interpretado no sentido de que o Estado não tem deveres especiais diante da verdade religiosa.

Com efeito, é preciso não esquecer que o dever indireto do poder civil diante da ordem sobrenatural realça a lei divina. A sociedade deve tê-la em conta nas suas leis humanas. Mas a inscrição deste dever nas constituições é uma disposição positiva cuja realização pode ser julgada (com ou sem razão) impossível, ou inoportuna mesmo diante dos interesses da religião católica.

 

Conclusão

 

O ensino essencial de Dignitatis humanae não parece, portanto, afetado pelas dificuldades e objeções que foram levantadas à propósito dos nossos estudos. Mas estas críticas contribuíram para clarificar os limites da declaração. Não se trata de querer “reabilitá-la” num espírito de obediência mal compreendida, cegando-se sobre os seus defeitos. Trata-se de ver em que se situam realmente estas deficiências, afim de permitir que sejam restabelecidas para o bem da inteligência da fé.

A supressão de todas as ambiguidades do texto, uma clarificação do fundamento do direito, e sobretudo uma reafirmação explícita dos direitos do Cristo-Rei nas sociedades parecem verdadeiramente necessárias e urgentes na nossa época de laicismo e de confusão intelectual. Uma declaração autêntica da autoridade sobre todos estes pontos contribuiriam oportunamente a reunir os fiéis na unidade da verdade.

 

Pe. Louis-Marie de Blignières



[1] Trata-se de um estudo de Michel Martin publicado no n° 157 de 15 de Maio de  1976 do Courrier de Rome.

[2] Lettre à quelques évêques, Société Saint-Thomas-d’Aquin, janvier 1983.

[3] Acta Synodalia Sacrosancti Concilii Oeucumenici Vaticani II [ em seguida: AS].

[4]  O direito à liberdade religiosa e à liberdade de consciência, Suplemenément ao 22° de Sedes Sapientiae, hiver 1958.

[5] Cf. B.-W. Harrison,  Le développement de la doctrine catholique sur la liberté religieuse. Un précédent pour un changement vis-à-vis de la contraception ?, Chéméré-le-Roi/ Bouère, Société Saint-Thomas-d’Aquin/DMM, 1988.

[6] « Deve estar claro que a argumentação não está proposta com autoridade (autoritativa)”, Mons. De Smedt, AS IV, 735.

[7] Este direito sendo um direito civil negativo, quer dizer uma imunidade de coação com relação à autoridade temporal, tem intrínseco a ele de receber os limites necessários pelo bem comum que esta autoridade tem tarefa de promover. É assim que o direito à inviolabilidade da esfera privada é limitado pelo direito da autoridade temporal à velar pela segurança pública e aos direitos dos outros: há, portanto, possibilidade de o suspender em certos casos (por exemplo se uma busca é necessária). No caso de um direito positivo como o direito do inocente à vida, não há nenhum limite intrínseco.

[8] Esta clarificação recebeu um feliz começo no Catecismo da Igreja católica, n° 2104-2109, que citamos no artigo seguinte.

[9] Depois da publicação deste artigo, um bom numero de textos magisteriais, especialmente a declaração da Congregação para a doutrina da fé Dominus Jesus, de 6 de Agosto de 2000, trouxeram importantes clarificações oportunas. É lamentável que eles sejam minimizados por alguns tradicionalistas e geralmente muito astutos na pregação e pastoral comum, como no ensino de faculdades católicas.

[10] Trata-se de uma visita à Fraternidade Sacerdotal São Pio X, efetuada durante o outono de 1987 em nome da Santa Sé pelo cardeal Édouard Gagnon. A reconciliação desejada fracassou, pelo fato da denunciação pelo Mons. Marcel Lefebvre do Protocolo de acordo que ele tinha assinado no dia 5 de Maio de 1988 e das sagrações episcopais conferidas sem mandato apostólico e contra a ordem do Santo Padre no dia 30 de Junho de 1988. No entanto, as relações retomadas no verão de 2000 entre a Fraternidade Sacerdotal São Pio X e a Santa Sé não cessaram desde então.

[11] Isto será realizado, por todos os padres de rito latino que o desejam, no dia 7 de Julho de 2007 pelo motu proprio Summorum Pontificum de Bento XVI, precisado pela instrução Universae Ecclesiae do dia 30 de Abril de 2011. O motu proprio Ecclesia Dei  do dia 2 de Julho de 1988 concedia já este uso, mas de maneira mais restritiva.

[12] Cf. nota 5. O artigo de B.-W. Harrison, « Vatican II et la liberté religieuse: contradiction ou continuité? », in Sedes Sapientiae, n° 31, pp. 15-40, é a exposição em resumo deste trabalho.

[13] Introdução original do artigo no Bulletin du Cices.

[14] Cf. nota 6.

[15] Esta interpretação foi plenamente confirmada em 1992 pelo Catecismo da Igreja católica, n° 2108: “O direito à liberdade religiosa não significa nem a permissão moral de aderir ao erro (cf. Leão XIII, enc. Libertas praestantissimum), nem um suposto direito ao erro (cf. Pio XII, discurso do dia 6 de Dezembro de 1953), mas um direito natural da pessoa humana à liberdade civil, quer dizer, à imunidade de coação externa nos justos limites, em matéria religiosa, da parte do poder político. […]”

[16] Esta interpretação foi igualmente confirmada pelo Catecismo da Igreja católica, n° 2105: “O dever de prestar a Deus um culto autêntico diz respeito ao homem individual e socialmente. Esta é “a doutrina católica tradicional sobre o dever moral dos homens e das sociedades em relação à verdadeira religião e à única Igreja de Cristo” (DH 1). Evangelizando sem cessar os homens, a Igreja trabalha para que estes possam “penetrar com espírito cristão as mentalidades e os costumes, as leis e as estruturas da comunidade em que vivem” (AA 10). O dever social dos cristãos é respeitar e despertar em cada homem o amor da verdade e do bem. Exige que levem a conhecer o culto da única religião verdadeira, que subsiste na Igreja católica e apostólica (cf. DH 1). Os cristãos são chamados a ser a luz do mundo (cf. AA 13). Assim, a Igreja manifesta a realeza de Cristo sobre toda a criação e particularmente sobre as sociedades humanas (cf. Leao XII, enc. Immortale Dei; Pio XI, enc. Quas primas).”

[17] Saint Thomas, Somme de Théologie [dans la suite : ST], I II, q. 96, a. 4.

[18] Saint Thomas, Commentaire de l’épître aux Romains, ch. 2, leçon 3.

[19] Saint Thomas, ST, I II, q. 21, a. 4, ad 3.

[20] O Catecismo da Igreja católica confirmou esta interpretação no n° 2109. Afirma explicitamente, de um lado, que os limites são intrínsecos ou inerentes ao direito a não coerção em matéria religiosa, por outro lado, que é o bem comum que determina os justos limites deste direito. “O direito à liberdade religiosa não pode ser em si mesmo nem ilimitado (cf. Pio VI, bula Quod aliquantum), nem limitado somente por uma “ordem publica” concebida de maneira positiva ou naturalista (cf. Pio IX, enc. Quanta cura). […] Os “justos limites” que lhe são inerentes [ao direito à liberdade religiosa] devem ser determinados por cada situação social pela prudência politica, segundo as exigências do bem comum, e ratificadas pela autoridade civil segundo as “regras jurídicas conformes à ordem moral objetiva” (DH).”

[21] Cf. DH 14 : “Pois, por vontade de Cristo, a Igreja Católica é mestra da verdade, e tem por encargo dar a conhecer e ensinar autenticamente a Verdade que é Cristo, e ao mesmo tempo declara e confirma, com a sua autoridade, os princípios de ordem moral que dimanam da natureza humana.”; e Bento XVI, discurso aos participantes da 13a assembleia geral da Academia pontifical da vida, 24 de Fevereiro de 2007: “Nesta situação, é oportuno lembrar que toda ordem jurídica, tanto no plano interno como internacional, tira em última análise sua legitimidade de seu enraizamento na lei natural, na mensagem ética inscrita no ser humano. A lei natural é, definitivamente, a única proteção válida contra o abuso do poder ou as armadilhas da manipulação ideológica” (La Documentation catholique [DC], n° 2378, p. 335).

[22] Cf. Jean-Paul II, Discours au parlement européen de Strasbourg, 11 octobre 1988, n. 7: “[Os crentes] consideram que a obediência a Deus é a fonte da verdadeira liberdade, que nunca é liberdade arbitraria e sem objetivo, mas liberdade para a verdade e o bem, estas duas grandezas situam-se sempre além da capacidade dos homens de se apropriarem completamente delas. No plano ético, esta atitude fundamental traduz-se pela aceitação de princípios e de normas de comportamento impondo-se à razão ou resultando da autoridade da Palavra de Deus, cujo homem, individualmente ou coletivamente, não pode dispor à sua maneira, ao grau dos mundos ou de seus interesses mutantes” (DC, n° 1971, p. 1044, sublinhado por nôs).

[23] O Catecismo da Igreja católica, no n° 2109, retornando a dois textos dos Papas do século XIX, confirmou esta diferença fundamental da doutrina de DH com esta dos naturalistas: “O direito à liberdade religiosa não pode ser nem ilimitado (cf. Pio IX, bula Quod aliquantum), nem limitado somente por uma “ordem pública” concebida de maneira positiva ou naturalista (cf. Pio IX, enc. Quanta cura). […]”

[24] Remarques sur la brochure des abbés Belmont et Lucien, Sedes Sapientiae, supplément au n° 24, mai 1988.

[25] Cf. AS IV, V, 150 et IV, VI, 754, resposta ao modus 4.

[26] Cf. no entanto a Concordata entre a Santa Sé e a Colômbia, 1973, art. 1: “O Estado, tendo em conta o sentimento católico da nação colombiana, considera a Religião Católica, Apostólica e Romana como elemento do bem comum e do desenvolvimento integral da comunidade nacional.”

 

FONTE


Père Louis-Marie de Blignières. La liberté religieuse, entre rupture et continuité. Sedes Sapientiae n° 121.

 

 
PARA CITAR


Padre Louis-Marie de Blignières. A liberdade religiosa, entre ruptura e continuidade. <http://www.apologistascatolicos.com.br/index.php/concilio-vaticano-ii/liberdade-religiosa/791-a-liberdade-religiosa-entre-ruptura-e-continuidade> Desde 2/05/2015. Tradutor: Faustino Sassoma Muhongo.
 

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