Sexta-feira, Junho 6, 2025

A intercessão dos santos no século III

Para justificar o seu cisma, Lutero alegava que a Igreja Primitiva (fundada pelos Apóstolos) havia sido “corrompida” em algum período da História. Ele e seus correligionários, por sua vez, teriam o dever de levar a luz da verdadeira doutrina para aqueles que estavam cegos sob o domínio de um Magistério mentiroso. Com o passar dos anos, o protestantismo (movimento criado por Lutero) chegou a um consenso: a doutrina apostólica foi corrompida durante o Império de Constantino I, no século IV. Uma das tantas doutrinas inventadas após a “corrupção” da Igreja seria a “idolátrica” devoção aos santos.

No entanto, os defensores de tal pensamento possuem uma grande adversária: seu nome é História. Já no século III (um século antes da conversão e reinado de Constantino), “se acumulam as evidências da crença no poder da intercessão dos santos” [1], diz o historiador protestante J. N. D. Kelly. E isto não é apenas em um lugar específico, mas em todo o mundo cristão. Vejamos os relatos históricos que dementem a famosa “teoria Constantino”:

 

A.  EM ROMA:

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Nas Catacumbas de São Sebastião em Roma, há várias inscrições que invocam São Pedro e São Paulo. Todos os historiadores são unânimes em afirmar que elas são “pré-constantinianas”, sendo colocadas na segunda metade do século III [2].   Sendo do período pré-constantiniano, tais inscrições evidenciam que com Constantino ou sem Constantino, a Igreja Católica manteve sempre a mesma doutrina, acreditando fielmente na intercessão dos santos. Entre as tantas inscrições, destacam-se:

“Paule ed Petre petite pro Victore”

“Paule Petre pro Erate rogate” 

“Petre et Paule subvenite Prim[itivo] peccatori” 

“[Petre et] Paul[e] in [mente nos h]abete in ora[tion]ibus vestris”

 

B.   NO EGITO:

Durante a Idade Média, os cristãos, católicos e ortodoxos, cantaram inúmeras canções e hinos dedicados à Virgem Maria, todos eles presentes na Liturgia da Igreja. Um deles, conhecido como “Sub Tuum Praesidium”, era famosíssimo, tendo sido tocado inclusive por gênios da música como Mozart. Não se sabia, no entanto, a origem deste hino, embora se conservasse alguns escritos medievais contendo este mesmo texto. Entretanto, em 1927, foi encontrado no meio da liturgia de natal de uma Igreja Copta no Egito, um fragmento de papiro que continha essa oração. Prestigiosos papirologistas como Edgar Lobel [3] e estudiosos do Cristianismo egípcio antigo como G. Giamberini [4], colocaram que o texto foi escrito entre 250 e 280 da Era Cristã, evidenciando que este hino já era utilizado na liturgia desde a Era Pré-Nicênica. Medindo 18 x 94cm,foi adquirido pela Biblioteca John Ryland, de Manchester, na Inglaterra. O texto grego, dizia:

“Ὑπὸ τὴν σὴν εὐσπλαγχνίαν,καταφεύγομεν, Θεοτόκε.

Τὰς ἡμῶν ἱκεσίας,μὴ παρίδῃς ἐν περιστάσει,

ἀλλ᾽ ἐκ κινδύνων λύτρωσαι ἡμᾶς,μόνη Ἁγνή,

 μόνη εὐλογημένη.”

Que traduzido, fica:

“Sob vossa proteção,
Nós tomamos refúgio, ó Mãe de Deus:
não desprezeis as nossas súplicas em tempo de angústia:
mas livra-nos dos perigos,
Ó única casta e bendita.”

Evidenciou-se não apenas a origem histórica deste hino mariano, mas também do próprio culto e intercessão de Maria e dos santos. Este manuscrito do século III está na Universidade de Manchester na Inglaterra, universidade de origem protestante, portanto, acima de suspeitas,  e pode visitado na Biblioteca Online desta Universidade [5]. O texto presente no papiro (que é um famoso hino católico) também está presente nas liturgias do mundo inteiro através várias versões, sendo uma prova clara da devoção aos santos na Liturgia da Igreja (já que foi encontrada entre a liturgia de uma igreja copta).

 

C.   EM ALEXANDRIA

Entre o fim do século II e início do século III, o bispo de Alexandria, Clemente, já pregava a intercessão dos santos em suas homilias:  “Deste modo, ele [o verdadeiro cristão] está sempre puro para oração. Ele também reza na sociedade dos anjos, como sendo já da classe dos anjos, e ele nunca está fora da sagrada proteção deles; e pensou que rezava sozinho, [mas] ele tem o coro dos santos permanecendo com ele [em oração].” (São Clemente de Alexandria, Miscellanies 7:12).

Por volta de 235, Orígenes, o maior teólogo do seu século, ratificou que a crença na intercessão dos santos já era bem crida em sua região: “Agora, súplicas, ações de graças e intercessões podem ser oferecidas para as pessoas sem impropriedade. Dois deles, ou seja intercessão e ação de graças, podem ser oferecido não só para os santos, mas para pessoas sozinhas, em geral, ao passo que a súplica deve ser oferecida somente aos santos, [pois] se for encontrado um Paulo ou um Pedro, podem beneficiar-nos e fazer-nos dignos para atingir autoridade para o perdão dos pecados.” (Orígenes de Alexandria, Tratado Sobre a Oração, 14,6; PG 11,464).

Perceba que Orígenes distingue no texto os homens vivos (a quem pode ser dirigido intercessões e ações de graça), dos santos falecidos (como Pedro e Paulo, a quem pode ser dirigido as súplicas). Após ensinar que a súplica deve ser oferecida aos santos somente, Orígenes justifica que devemos encontrar um santo intercessor (como Pedro e Paulo) para que ele possa nos beneficiar e nos fazer dignos de obter o perdão dos pecados: Eis uma prova clara do que hoje chamamos de invocação dos santos.

Ele também escreveu sobre os anjos:  “Deste modo, ele [o verdadeiro cristão] está sempre puro para oração. Ele também reza na sociedade dos anjos, como sendo já da classe dos anjos, e ele nunca está fora da sagrada proteção deles; e pensou que rezava sozinho, [mas] ele tem o coro dos santos permanecendo com ele [em oração].” (Orígenes de Alexandria, Tratado Sobre a Oração, 11, 1-4).

Há, no entanto, algumas passagens controversas deste Padre sobre o tema. As explicamos no post “Orígenes de Alexandria e a intercessão dos santos no século III”[6].

 

D.  EM CARTAGO

A respeito da intercessão dos santos, o bispo de Cartago, São Cipriano, exortava seus fiéis para que, ao morrer, não cessassem de orar pelos outros que continuariam na Terra:

“Lembremo-nos uns aos outros em concórdia e unanimidade. Que em ambos os lados [isto é, o lado da vida e da morte] sempre oremos uns pelos outros. Vamos aliviar o fardo e as aflições por amor recíproco, que se um de nós, com a rapidez da condescendência divina, for primeiro, o nosso amor possa continuar na presença do Senhor, e as nossas orações por nossos irmãos e irmãs não cessam com a presença da misericórdia do Pai.” (São Cipriano de Cartago, Epístola 56:5).

 

E.   EM ISRAEL

A Basílica da Anunciação em Nazaré nos revela importantes traços de devoção mariana ainda no século III. De acordo com as palavras do famoso mariologista Michael O’Caroll, membro da Pontifícia Academia Mariana: “Investigações em Nazaré indicam que no local da atual igreja da Anunciação onde a Basílica do século XII tinha estado, houve uma igreja bizantina datada do século V. Há vestígios de um lugar de culto anterior, à maneira de uma sinagoga, que não pode ser posterior ao século III em origem, e partes de criptas muito mais cedo ainda. Essas criptas subterrâneas, que aparentemente eram usadas para o culto, são datadas entre 90 dC e meados do século III, sagrado para um nome de mulher começou com a letra M. Um peregrino ligou isso com “XE Mapía”, adapato do Evangelho de São Lucas.” (Michael O’Caroll, Theotokos: A Theological Encyclopedia of the Blessed Virgin Mary, página 49).

No século V, foi construída a primeira Basílica da Anunciação, no lugar onde a tradição dizia que o evento havia ocorrido. Antes disso, porém, elementos arquitetônicos e decorações supõem a construção de um edifício público, que os arqueólogos identificam com uma igreja-sinagoga que data entre 90 d.C. até a segunda metade do século III. Entre estes restos arquitetônicos os arqueólogos encontraram vários grafites. Arranhados na base de uma coluna apareceram os caracteres gregos XE MAPIA (leia: Ch (ar) e Maria). Traduzido como: “Ave Maria”. Recordando a saudação do anjo à Virgem, esta inscrição é a mais antiga de sua espécie conhecida por nós. Foi escrito, com toda certeza, no período pré-nicênico. Outros graffitis, todos jelously conservados no museu adjacente, confirmam a natureza mariana do santuário. Um em armênio lê “menina bonita” (referido-se à Maria) e outro no grego lê “no local santo de M(aria) que eu escrevi”. Analisemos este primeiro e este último e contemplemos a beleza da fé católica:

a. A inscrição “Ave Maria” (Xe Mapía):

Resultado de imagem para XE MAPIA

Entre as inscrições pré-nicênicas presentes na Catedral, destaca-se  a inscrição grega “Xe Mapía” (“Ave Maria”), datada, como mostra O’Caroll, do século III. Ela se trata de uma famosa adaptação que o catolicismo fez da saudação angélica “Ave, Cheia de Graça”. Aqui, no entanto, o próprio nome de Maria é utilizado como vocativo à Maria, sendo, sem dúvidas, um prelúdio da oração ocidental “Ave Maria”.

b. O lugar sagrado de “M”

 “Sob o lugar sagrado de M[aria?]

Eu escrevi lá os [nomes]

A imagem que eu adornei

Dela…”

Esta inscrição, encontrada na Gruta da Anunciação em Jerusalém, datada por volta do século III, e é talvez a mais difícil de decifrar porque as letras estão desgastadas. Porém, do pouco que ainda podemos traduzir, ela novamente indica pelo menos uma crença na veneração dos santos que partiram, porque reflete a crença em um lugar santo onde a imagem de uma mulher é venerada. E dado que o nome começa com “M”, e estamos nos referindo ao lugar onde os cristãos acreditavam ter ocorrido a Anunciação, é provável que a mulher seja a Virgem Maria.

Não está claro quais nomes foram escritos sob a imagem de Santa Maria. Mas o fato de que uma lista de nomes foi escrita sob o lugar sagrado da imagem de Santa Maria sugere que aqui também haviam súplicas direcionadas à Theotokos em nome dos cristãos na terra, assim como nas Catacumbas de São Sebastião em Roma. 

 

OBJEÇÕES PROTESTANTES

Os protestantes citam dois textos de Padres pré-nicênicos para basear sua doutrina. Um é de Tertuliano, onde o Padre escreve que os santos estão “separados do conhecimento deste mundo” (cf. Tertuliano, Apologia, 47), o outro é de Santo Irineu (que morreu ainda no fim do século II), onde este Santo critica as “invocações angelicais” gnósticas (cf. Irineu, Contra as Heresias, 2, 32,5). 

Acerca da primeira passagem…  A linguagem de que os santos estão “separados do conhecimento deste mundo” não significa que os santos não sabem de literalmente nada o que acontece na Terra, mas estão separados apenas do que se refere às “coisas deste mundo” (coisas mundanas) que são totalmente irrelevantes a eles. Prova disso é que essa mesma linguagem está presente nos escritos do próprio São Tomás de Aquino (cf. Summa Theologicae, II-II, 83, 11), o que não nos leva a interpretar que este Padre fosse partidário da ideia de que os santos não sabem de absolutamente nada do que acontece com os homens. A passagem, é, portanto, irrelevante quanto ao tema.

De Cartago no mesmo período, no entanto, temos o já citado testemunho de São Cipriano, favorável a intercessão dos santos. Além dele, São Gregório Nazianzeno  narrou que pouco antes do Imperador Constantino tomar o poder, isto é, ainda na época da perseguição por parte de Dioclesiano, a mártir Santa Justina orou para que a Virgem Santíssima preservasse sua virgindade: “Invocando esses e ainda outros modelos e rogando a Virgem Maria para ajudar uma virgem em perigo, ela se refugia em um regime de jejum e dorme no chão.” (São Gregório Nazianzeno, Oratio 24, 11: SC 282, 60-64).

Acerca da segunda passagem… O patrologista beneditino do século XVI, René Massuet (que foi o responsável pela edição dos trabalhos deste Padre) respondeu essa questão em nota. De acordo com ele, nesta passagem Irineu não se refere à invocação dos anjos em geral, mas à invocação dos “Aeon”, que eram criaturas mágicas que os gnósticos chamavam de “anjos” e a quem Irineu considera espíritos imundos, demônios. Essa interpretação está muito mais de acordo com a heresia cuja obra trata: o gnosticismo.

Entre a lista protestante de supostos “Padres” contrários à intercessão dos santos, encontramos ainda o nome do conselheiro do Imperador Constantino, que o guiava em sua política religiosa e que era o tutor de seu próprio filho: Lactâncio! Este autor criticou verdadeiramente aqueles que faziam “orações aos mortos, ou adoram a Terra, ou oferecem suas almas à espíritos imundos” (As Institutas Divinas 2:18). Os “mortos” que a passagem se refere, no entanto, são à homens que, com o passar do tempo, passaram a ser considerados deidades por várias pessoas, e então foram adorados (deuses pagãos). É por isso que o título deste capítulo é “A Paciência e a vingança de Deus, a adoração de demônios e religiões falsas”. Tratavam-se de orações dirigidas à mortos que estavam sendo adorados como verdadeiros deuses. Essa é a crítica de Lactâncio, e não às orações aos mártires da Igreja. Resta-nos ainda, no entanto, uma pergunta: se o testemunho do guia religioso do suposto “paganizador” da Igreja Católica é válido na argumentação protestante, porque os testemunhos dos demais contemporâneos de Constantino não o são? Novamente, percebemos que as acusações protestantes tornam-se insustentáveis diante de uma perspectiva lógica ou histórica.

 

CONCLUSÃO

Apesar de tantas provas de que o culto aos santos não se iniciou com Constantino, há quem mantêm essa suposição. A História, no entanto, a prova insustentável e mostra não só práticas dos primeiros cristãos, mas a veracidade da Doutrina Católica.

 

FONTES

[1] J.N.D. Kelly, Early Christian Doctrines, revised edition (San Francisco: Harper, c. 1979), p. 490

[2] Cf. BARNES, Timothy David, Early Christian Hagiography and Roman History”, página 28.

[3]  O’CAROLL, Michael, “Theotokos: a Theological Encyclopedia of the Blessed Virgin Mary”, p. 336.

[4] ibidem.

[5] Para visitar o site, clique aqui: https://goo.gl/Hw1bp1

[6] Para ler o artigo, acesse: http://www.apologistascatolicos.com.br/index.php/patristica/estudos-patristicos/971-origenes-de-alexandria-e-a-intercessao-dos-santos-no-seculo-iii

3 COMENTÁRIOS

  1. Essa tradução sobre os trechos de Orígenes levanta questões sobre sua fidelidade ao texto original.

    A tradução mencionada afirma:

    “Agora, súplicas, ações de graças e intercessões podem ser oferecidas para as pessoas sem impropriedade. Dois deles, ou seja intercessão e ação de graças, podem ser oferecido não só para os santos, mas para pessoas sozinhas, em geral, ao passo que a súplica deve ser oferecida somente aos santos, \[pois] se for encontrado um Paulo ou um Pedro, podem beneficiar-nos e fazer-nos dignos para atingir autoridade para o perdão dos pecados.”

    Essa tradução sugere que Orígenes defendia a prática de dirigir súplicas diretamente aos santos, como Pedro e Paulo. No entanto, ao examinarmos traduções acadêmicas confiáveis do texto original grego, observamos nuances importantes que alteram essa interpretação.

    Tradução Acadêmica de Referência:

    Na tradução de John J. O’Meara, publicada na coleção *Ancient Christian Writers* (vol. 19), o trecho correspondente é apresentado da seguinte forma:([Academia][1])

    “Orações, ações de graças e intercessões podem ser oferecidas pelas pessoas sem impropriedade. Duas delas, ou seja, intercessões e ações de graças, podem ser oferecidas não apenas por santos, mas por pessoas em geral; ao passo que a súplica deve ser oferecida apenas pelos santos, pois, se encontrarmos um Paulo ou um Pedro, eles podem beneficiar-nos e tornar-nos dignos de alcançar autoridade para o perdão dos pecados.”

    Essa tradução indica que Orígenes está discutindo sobre orações feitas pelos santos em favor dos vivos, e não orações dirigidas aos santos. Ele distingue entre diferentes formas de oração e sugere que certas súplicas são mais apropriadas quando feitas pelos santos, devido à sua proximidade com Deus.

    Contexto Teológico de Orígenes

    Orígenes enfatizava que a oração deveria ser dirigida exclusivamente a Deus Pai. Em “Tratado sobre a Oração”, capítulo 15, ele afirma:

    “Não se deve orar a nenhum ser gerado, nem mesmo a Cristo, mas apenas ao Deus e Pai de todos.”

    Essa posição reflete sua teologia subordinacionista, na qual o Pai ocupa o lugar supremo na hierarquia divina. Portanto, é improvável que Orígenes tenha defendido a prática de invocar santos em oração.

    Concluindo, a tradução apresentada no site de vocês parece interpretar o texto de Orígenes de forma a sugerir uma prática que não é respaldada pelo contexto mais amplo de seus escritos. Orígenes reconhecia que os santos intercedem por nós, mas não promovia a prática de orar diretamente a eles. Sua ênfase estava na oração dirigida a Deus Pai, com Jesus Cristo como intercessor.

    FONTES:
    https://www.earlychurchtexts.com/public/origen_on_prayer.htm?utm_source=chatgpt.com
    https://www.earlychurchtexts.com/public/origen_on_prayer.htm?utm_source=chatgpt.com

    • Olá, Alexandre. Ainda que existam dúvidas e divergências sobre a tradução exata desta passagem — se o termo mais adequado seria “pelos” ou “aos” —, é importante destacar que, independentemente disso, a teologia de Orígenes é perfeitamente compatível com a ideia de súplicas direcionadas aos santos. Podemos inclusive citar traduções protestantes que mantêm o mesmo sentido da tradução apresentada aqui. Portanto, não adianta nos prender a debates terminológicos, mas sim buscar compreender o pensamento completo de Orígenes.

      Você citou corretamente um trecho onde ele diz:

      “Não se deve orar a nenhum ser gerado, nem mesmo a Cristo, mas apenas ao Deus e Pai de todos.”

      Esse trecho precisa ser interpretado à luz da própria teologia de Orígenes — e não de forma isolada ou com o intuito de afirmar que ele rejeitava qualquer tipo de oração ou súplica aos santos. No Tratado sobre a Oração, Orígenes dedica um espaço considerável à classificação dos diversos tipos de prece encontrados nas Escrituras. No capítulo 12, baseando-se em 1Tm 2,1, ele escreve:

      Penso que ‘súplica’ é a forma de oração que alguém em necessidade oferece com rogo por sua realização; ‘oração’, aquela que se eleva com um sentido mais alto, buscando as coisas celestiais com atribuição de glória; ‘intercessão’, o apelo feito a Deus por alguém que possui certa confiança mais plena; e a ‘ação de graças’, o reconhecimento do orante ao receber bênçãos de Deus.” (Tratado sobre a Oração, 12,2)

      Ou seja, Orígenes distingue cuidadosamente entre diferentes formas de oração, sendo que a “oração” propriamente dita (no sentido de adoração e elevação ao divino) é reservada exclusivamente a Deus Pai — o que é coerente com a tradição cristã que distingue latria (adoração) de dulia e hiperdulia (veneração e honra aos santos e à Virgem Maria, respectivamente).

      Nesse mesmo tratado, Orígenes afirma claramente que os anjos podem receber súplicas, especialmente quando os fiéis os têm em mente em seus momentos de oração:

      “Na própria ocasião da oração, portanto, ao serem lembrados pelo suplicante de suas necessidades, [os anjos] as suprem, pois têm essa capacidade em virtude da missão que lhes foi confiada.” (Tratado sobre a Oração, 11,1-4)

      Já no tratado contra Celso, ele reforça que os anjos intercedem mesmo sem serem diretamente invocados, pois acompanham os fiéis em suas orações:

      “ Pois eles sabem quem é digno da aprovação divina e não apenas estão bem dispostos a eles, mas cooperam com eles em seus esforços para agradar a Deus: buscam Seu favor em seu favor; com suas orações, juntam suas próprias orações e intercessões por eles. Podemos, de fato, dizer com ousadia que os homens que aspiram por coisas melhores têm, quando oram a Deus , dezenas de milhares de poderes sagrados ao seu lado. Estes, mesmo quando não solicitados, rezam com eles, trazem socorro à nossa raça mortal e, se assim posso dizer, pegam em armas ao lado dela” (Tratado sobre a Oração, 11,4)

      Portanto, é incorreto afirmar que Orígenes rejeitava qualquer tipo de oração ou súplica dirigida a anjos ou santos. O que ele claramente distingue — como os Padres da Igreja em geral — é o tipo de oração que pertence somente a Deus (adoração) e aquelas que são formas de petição ou intercessão, cabíveis aos santos, anjos e mesmo aos homens justos.

      Então a tradução da passagem em debate está sim em conformidade com a teologia de Orígenes. Suas afirmações sobre “não orar a nenhum ser gerado” devem ser compreendidas no contexto de sua distinção entre os tipos de oração, e não como uma rejeição à súplica ou à intercessão dos santos.

      • Olá! Vou tentar responder com base no próprio pensamento de Orígenes, analisando seus textos com cuidado.

        Primeiramente, sobre a citação de “Tratado sobre a Oração” 14,6: sei que ela costuma ser interpretada como um apoio à ideia de súplicas dirigidas aos santos. No entanto, quando lemos o texto com atenção e consideramos o original grego, percebemos que Orígenes está tratando dos diferentes tipos de oração (intercessão, súplica e ação de graças) e sobre quem pode ser o objeto de cada uma. Ele sugere que intercessões e ações de graças podem ser feitas por qualquer pessoa, enquanto súplicas devem ser feitas pelos santos, como Pedro ou Paulo — por causa da autoridade espiritual que eles têm, especialmente no que diz respeito ao perdão dos pecados.

        Isso, no entanto, não significa que ele está dizendo que devemos orar diretamente a Pedro ou Paulo. O foco está em reconhecer que, diante de Deus, eles podem interceder por nós, mas a oração propriamente dita continua sendo dirigida a Deus.

        Esse ponto fica mais claro no capítulo 15 do mesmo tratado, onde Orígenes é direto:

        “Não se deve orar a nenhum ser gerado, nem mesmo a Cristo, mas apenas ao Deus e Pai de todos.”

        Essa frase pode parecer dura, mas está profundamente ligada à teologia subordinacionista de Orígenes — ou seja, para ele, o Pai está em um nível supremo na hierarquia divina. Por isso, até mesmo as orações a Cristo são interpretadas por ele como orações que, no fundo, são endereçadas ao Pai.

        Sobre a intercessão dos anjos e santos: sim, Orígenes reconhece que eles oram por nós. Mas isso não significa que ele incentivava que orássemos diretamente a eles. No “Contra Celso” (5.4-5), ele até alerta contra a invocação imprópria dos anjos, mostrando que essa prática precisa ser bem compreendida — e não há ali nenhuma recomendação de que os fiéis devem se dirigir a eles em oração.

        Além disso, no capítulo 12 do tratado, Orígenes classifica os tipos de oração e mostra claramente que só a adoração (oração no sentido mais elevado) deve ser oferecida a Deus. Isso nos ajuda a entender que ele fazia distinções rigorosas entre veneração e adoração, e que “oração”, no sentido pleno, é devida apenas a Deus Pai.

        Por isso, embora ele reconheça o papel intercessor dos santos e anjos, não há base sólida em seus escritos para afirmar que ele endossava a prática de oração direta a eles. Isso é bem diferente do que foi desenvolvido séculos depois na tradição cristã.

        Então, a frase “não se deve orar a nenhum ser gerado” não está fora de contexto — ela é um reflexo direto da teologia de Orígenes. Claro que ele via os santos como cooperadores na obra de Deus e reconhecia seu valor, mas a oração, no sentido próprio, para ele, era exclusivamente dirigida a Deus.

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