Sábado, Novembro 16, 2024

A História da Tradição na Igreja Antiga

INTRODUÇÃO


              Da história da Tradição na Igreja antiga são individualizáveis três fases: gênese da Tradição, consciência protocristã da Tradição, reflexão da Tradição e sobre a sua relação com a Sagrada Escritura.

 

I. GÊNESE DA TRADIÇÃO


             No AT a transmissão de pai para filho do conhecimento da aliança de Deus estabelecida entre ele e Israel em Abraão (Gn 17,2-14; 26,3-4; Ex 19,3-6; 20,1-7; Dt 7,7-9) e da divina promessa da nova aliança (Jr 31,31-33; Ez 36,26) no futuro Messias (“consagrado com a unção”), portador da salvação para todos os povos (Sl 88,4-5.25.27-29; Is 7,14; 42,1.3-4.6; 49,6; 52,10; 66,18-22), e a conseqüente expectativa da nova aliança (Sl 43,2; 77,3-7; 144,4-7) eram, de fato, a Tradição: a Tradição, verdadeiramente, da aliança. No Messias que veio, Jesus Cristo (Cristo: “consagrado com a unção”) realizou-se a nova aliança em At 13,23-39. Paulo insiste, no seu discurso aos hebreus de Antioquia da Psídia, sobre o desembocar da antiga aliança na nova.

 

            “Ide, pois, e ensinai a todas as nações; batizai-as em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Ensinai-as a observar (τηρειν, “conservar”) tudo o que vos prescrevi. Eis que estou convosco todos os dias até o fim do mundo” (Mt 28,19-20; cf. Mc 16,15-16; Lc 24,47). Estamos diante do último e solene ato de realização de Jesus Cristo antes de sua ascensão ao céu (Mc 16,15-16 e 19): ele confia aos seus discípulos, e igualmente à Igreja por ele fundada sobre Pedro (Mt 16,18-19) e sobre eles (Jo 20,23), a evangelização do mundo; e daquele momento em diante os discípulos tornam-se apóstolos do Mestre. Naquele envio colhem-se duas claras coordenadas: espaço (a universalidade dos povos) e tempo (do momento do envio até o fim do mundo). E existe uma realidade que unifica as duas coordenadas: Cristo assegura a sua constante presença aos apóstolos (cf. Jo 14,18-19) e aos seus sucessores (implícitos, estes últimos, nas palavras “até o fim do mundo”) e lhes ordena conservar (τηρειν) tudo aquilo que lhes prescreveu (ενετειλαμην). Cristo confia o próprio ensinamento aos seus enviados, e, por meio deles e dos seus sucessores, transmite a todo mundo e até o fim do mundo a sua mensagem: a nova aliança realizada em si mesmo, isto é, a própria universal missão salvífica (cf. Is 42,6; 49,6). Naquele momento começava logo o caminho da Tradição na Igreja, e esta última, a partir do início da sua vida, sob o sopro pentecostal do Espírito (At 2,1-40), foi dela a depositária. Exatamente as duas coordenadas espaço e tempo foram as raízes daqueles que serão os dois pontos essenciais da Tradição: a universalidade (espaço) e a antiguidade (tempo), a qual por fim, tendo as suas raízes nos apóstolos, será mais precisamente a apostolicidade. Exatamente a universalidade e apostolicidade da Tradição serão, logo, os dois parâmetros de verificação da ortodoxia das várias doutrinas e, eventualmente, da recusa das mesmas como heterodoxas em razão da sua particularidade (contra a universalidade) e da sua novidade (contra a apostolicidade).

II. CONHECIMENTO PROTOCRISTÃO DA TRADIÇÃO


             Na cristandade da idade apostólica, como colhemos dos autores neotestamentários, era vital um preciso e articulado conhecimento da Tradição e das tradições. O termo “tradição” tinha caráter polissêmico, e o conceito de Tradição e o de tradições exprimiam-se em uma linguagem que podemos considerar especializada:

– uso absoluto do termo παραδοσις (tradição): Mc 7,3; 2Ts 2,15;

– Tradição como ato de transmitir (παραδιδοναι, παραδοσις) um conteúdo (traditio tradens): Mc 7,13; Lc 1,2; At 16,4; 1Cor 2,1; 11,23; 15,3;

– Tradição como ato de receber (παραλαμβανειν) um conteúdo (também traditio tradens): Mc 7,4; 1Cor 11,23; 15,3; Gl 1,9.12; 1Ts 2,13;

– Tradição como conteúdo (traditio tradita): doutrina cristã, evangelho em 1Cor 11,2. 15,1.3-5 (morte redentora, sepultamento e ressurreição de Cristo); Gl 1,9.11-12; 1Ts 2,13; 2Ts 2,15;

– Tradição ou tradições como modo de transmissão: escrita ou oral em 2Ts 2,15; escrita em At 16,14 (a lei de Moisés);

– Tradições como conteúdos: costumes e práticas religiosas dos cristãos em 1Cor 11,2-6; comportamento laborioso dos cristãos em 2Ts 3,6-13;

– Tradições como conteúdos: costumes judaicos em Mt 15,2; Mc 7,3-5.8-9.13; Gl 1,14; instituições veterotestamentárias em At 6,14;

– Tradição como conteúdos profanos: tradição dos homens, isto é, doutrinas de filósofos em Cl 2,8.

            Repetidamente se declarava a origem divina da tradição: Gl 1,11-12 e 1Ts 2,13 (Deus autor da Tradição); 1Cor 11,23; 15,2; Gl 1,11-12 (Deus [Cristo] > Paulo > cristãos); Jo 15,15 (Deus Pai > Logos/Jesus > discípulos); 1Jo 1,1 (Pai > Filho > testemunhas do Filho > crentes).

            É oportuno considerar especificamente o testemunho de Paulo sobre a instituição da Eucaristia: Eu recebi (παρελαβον) do Senhor o que vos transmiti (παρεδωκα): que o Senhor Jesus na noite em que foi traído, tomou o pão e, depois de ter dado graças, partiu-o e disse: Isto é o meu corpo, que é entregue por vós: fazei isto em memória de mim. Do mesmo modo, depois de haver ceado, tomou também o cálice, dizendo: Este cálice é a nova aliança no meu sangue; todas as vezes que o beberdes, fazei-o em memória de mim. Assim, todas as vezes que comeis desse pão e bebeis desse cálice, lembrais a morte do Senhor até que venha (1Cor 11,23-26; cf. 1Cor 10,16). Vemos aqui a copresença da Tradição e do seu conteúdo: 1) a origem divina da tradição: Cristo > Paulo > cristãos; 2) o conteúdo da Tradição a) o sacramento (copresença do pão e do vinho e da fórmula isto é o meu corpo […]; este cálice é a nova aliança no meu sangue […], pão/vinho e fórmula que a doutrina sacramentaria indicará depois, respectivamente, como  elementum e como verbum [Agostinho, In Io. Evang. 80,3] ou, aristotelicamente, como matéria e forma [Tomás de Aquino, Summa theol. III, q.60, 1.7]; b) a instituição do sacerdócio ministerial (“fazei isto em memória de mim”); c) toda a futura celebração da Eucaristia é a renovação do sacrifício redentor de Cristo (“todas as vezes que comeis desse pão e bebeis desse cálice […]”; 3) a mesma liturgia eucarística, a celebrada por Cristo e a futura e aquelas dos apóstolos e dos sucessores. Em substância: a liturgia, canal da tradição, como Lex credendi (pontos 1 e 2) e Lex orandi (ponto 3).         

            Todavia, em relação à Tradição como conteúdo doutrinal, é fundamental ter presente o duplo anátema lançado por Paulo, em Gl 1,8-9, a qualquer um que – seja também ele mesmo ou um anjo do céu – pregasse um Evangelho diferente daquele precedentemente pregado (por Cristo e pelos seus apóstolos). E em 1Cor 1,12 e 3,10-11, mesmo condenando as divisões internas na comunidade de Corinto de maneira não tão drástica como na precedente carta aos Gálatas (Simonetti, 1944, pp. 12 ss.), o apóstolo proclamava, todavia, que “ninguém pode colocar outro fundamento [da fé] além daquele já posto, que é Jesus Cristo”. Peremptórias são, pois, as sucessivas palavras de 1Tm 6,20: “Ó Timóteo, guarda o bem [depósito] que te foi confiado. Evita as conversas frívolas e mundanas, assim como as contradições de pretensa ciência”, e de 2Tm 1,14: “Guarda o precioso depósito, pela virtude do Espírito Santo que habita em nós”. São palavras que, em plena coerência com o mandato de Jesus aos seus apóstolos (ensinar todas as gentes e conservar todo seu ensinamento: Mt 28,20), solenemente afirmam o dever, para os próprios apóstolos e para os seus sucessores, da fidelidade a toda doutrina de Cristo e ao respeito pela sua integridade e pelo seu exclusivismo (na carta aos Gálatas). Estes enunciados foram o fundamento absoluto da estabilidade da Tradição.

            Confrontada com a Tradição da antiga aliança, a Tradição da nova, mesmo sendo prosseguimento daquela, revela a virada que, em relação àquela, ela constitui (Jesus mesmo em Mt 5,17: “Não julgueis que vim abolir a Lei ou os Profetas. Não vim para os abolir, mas para levá-los à perfeição”): é a Nova Aliança em Cristo, o qual transmite por meio dos seus apóstolos e dos seus sucessores a salvação a todos os seres humanos e até o fim do mundo.

            Finalmente, deve-se ter presente uma fundamental realidade. Jesus Cristo, que tinha ensinado só por meio da palavra viva, enviou os seus apóstolos para levar a todos os povos os seus ensinamentos a especificar-lhes os modos. E o ensinamento deles, como aquele do Mestre, foi oral (os Atos dos Apóstolos oferecem disso uma ampla documentação). Mas em certo momento, no âmbito da atividade evangelizadora dos apóstolos, muito daquilo que era anunciado e explicado oralmente sobre a vida e a doutrina de Jesus Cristo começou, por obra de alguns dos próprios Apóstolos e de seus discípulos, a ser redigido por escrito (o endereço crítico de assim chamada Formgeschichte, ou história da forma, procura reconstruir o processo de formação dos textos sinóticos, por meio de várias fases, da inicial transmissão oral dos atos e das palavras de Jesus até a sua definitiva fixaçãp literária). Eis, portanto, que no interior da Tradição, a exemplo do corpus dos livros veterotestamentários, formou-se o complexo dos escritos do NT, que vieram a se ajuntar àqueles do AT, os quais eram conservados e lidos em função do NT. Mas ocorre especificar que, mesmo com o instaurar-se, no seu interior, de textos escritos, a Tradição era, também, única e unitária: Tradição do ensinamento de Cristo que, nada comprometendo da sua unicidade e unitariedade, começava a realizar-se de duas maneiras, oral e escrita (exatamente como em 2Ts 2,15 o apóstolo citava as tradições [παραδοσεις] por ele transmitidas seja oralmente, seja por carta). Todavia na Tradição daquela ainda antiga fase estava virtualmente contida a distinção entre oralidade e texto escrito. É, pois, compreensível que no prosseguimento do tempo com o incrementar-se do recurso ao documento escriturístico no debate teológico e com a formação do cânon cristão das Escrituras, explicita-se a distinção entre Tradição não necessariamente especificada pelo adjetivo “oral”, mas também entendida como realidade oral, e o texto escriturístico, permanecendo a salvo que a Tradição e Escritura constituíam um só sagrado depósito da Palavra de Deus (CEV II Dei Verbum, 10, CCE 97). A liturgia, isto é, “a fração do pão” (a liturgia eucarística) e as várias orações, foi desde logo (At 2,42 e 46) importante componente da Tradição oral: assim também At 2,42 (“Eram assíduos no escutar o ensinamento dos apóstolos e na reunião fraterna, na fração do pão e nas orações”) bem mostra a copresença na inicial comunidade cristã de Jerusalém, da Lex credendi (a escuta dos apóstolos) e da Lex orandi (a fração do pão e as orações). A posterior história da Tradição na Igreja será também história da tradição na sua relação com a Escritura (NT e AT).

III. REFLEXÃO SOBRE A TRADIÇÃO E SOBRE A SUA RELAÇÃO COM A SAGRADA ESCRITURA


            O dever da firme manutenção da inviolabilidade da doutrina, confiada por Cristo aos apóstolos e por eles pregada, significava opor recusa, sempre, às doutrinas heréticas, recusa que já em período apostólico era oposta ao surgimento de heresias (como, por exemplo, em 1Cor 15,12, onde Paulo refuta e afasta a negação da ressurreição dos mortos). No findar da idade apostólica, ou no período pouco pós-apostólico, topamos com a, de autor ignorado, Didaché (“Doutrina”), a mais antiga fonte da legislação eclesiástica. Seu título completo Doutrina do Senhor através dos doze apóstolos destinada às gentes, é um perfeito reencontro com as palavras missionárias de Cristo aos seus apóstolos (“Ensinais todas as nações […] ensinando elas a observar tudo o que vos mandei”). Pois bem, exatamente a Didaché, em 5, 13 (SCh 248), prescreve: “Não abandoneis os mandamentos (εντολας) do Senhor, mas guardai (Φυλαξεις) aquilo que recebestes (παρελαβες), nada acrescentando, nada tirando”; e “se alguém ensinar-vos tudo o que vos foi anteriormente ensinado, acolhei-o. Mas se alguém, vindo de onde vier, tenha para vos ensinar uma doutrina para destruir, não o escuteis” (11, 1-2). É evidente, desde os elementos expressivos, a plena sintonia da Didaché com a realidade da Tradição e com o mandamento paulino da guarda da absoluta integridade do ensinamento trazido por Cristo e pregado pelos apóstolos. Clemente, terceiro sucessor de Pedro na Igreja de Roma (Irineu, Adv. Haer. 3,3; SCh 211; Eusébio de Cesareia, HE III, 15, 34: GCS 9/2), intervindo na sua carta aos Coríntios contra os dissídios que agitavam aquela comunidade cristã, exortava os destinatários do seu escrito a abandonar a conduta repreensível e retornar ao ideal tradicional de vida (paz, obediência a Deus, hospitalidade, caridade, humildade, concórdia, etc.), ideal que ele sustentava com muitos exemplos de santidade de vida hauridos da Sagrada Escritura. “Retornemos – escrevia (19, 2 [SCh 167]) – à meta da paz a nós transmitida desde o início (επι τον εξ αρχης παραδεδεμενον ημιμ της ειρηνης σκοπον)”. E indicava (7, 2) como parâmetro de vida dos cristãos a gloriosa e venerada “regra da Tradição” (τον […] της παραδοσεως […] κανονα). Era a tradição vista como regra ou norma (κανων) de vida do cristão, regra que se exprimia por meio de exempla escriturísticos de comportamento cristão: e o exemplum, pois, tornava-se em Clemente um modo da Tradição entendida como ensinamento moral. Sobre um plano, pois, mais geral, Clemente indicava a Tradição a sucessão: Deus > Cristo > apóstolos > sucessores dos apóstolos > sucessores dos sucessores (42, 1-2 e 44, 1-2). Chama agora a nossa atenção a carta aos Filipenses de Policarpo (pouco depois do ano 107), o qual, testemunha Irineu (junto com Eusébio, HE V, 20, 5), tinha tido o privilégio de sentar-se aos pés do apóstolo João e também (Irineu, Adv. Haer. III, 3, 4 [SCh 211]) tinha sido nomeado pelos mesmos apóstolos bispo de Esmirna. Drasticamente condenados os negadores da encarnação (condenação por ele expressa ecoando 1Jo 4, 2-3), da morte de Jesus na cruz, da ressurreição e do juízo, ele escrevia: “Abandonando a vaidade de muitos e as falsas doutrinas (‘falsos profetas’ em 1Jo 4,4), voltamo-nos para a doutrina a nós transmitida (επι τον […] ημιν παραδοθεντα λογον) desde o início” (7, 1-2 [SCh 10]). Não deve nos escapar que no conceito de tradição expresso pela Didaché, por Clemente e por Policarpo, não se faz distinção entre oralidade e texto escrito (a esse respeito note-se que Clemente e Policarpo mais vezes reproduzem passagens de algumas cartas neotestamentárias. Não falo de citações ou ecos de loghia de Jesus que vemos conservadas nos textos evangélicos, porque, tratando-se de palavras do Messias, elas podiam ser deduzidas da tradição catequética oral). Uma coisa, pois, em relação à defesa da paz e da reta doutrina cristã, deve ser salientada, respectivamente, nas enunciações de Clemente e Policarpo: a transmissão da paz e da reta doutrina “desde o início”. Isso significava afirmação da antiguidade da sua transmissão, antiguidade que tinha seu fundamento nos exempla de paz no AT, palavra de Deus, e antiguidade que tinha seu fundamento na origem divina da doutrina da encarnação e morte de Cristo, da ressurreição e do juízo: era a afirmação de um dos dois fundamentos da Tradição acima recordados, exatamente o da antiguidade (o outro era o da universalidade).

Mas se na Didaché,  em Clemente e em Policarpo, não existe distinção, por assim dizer, técnica entre os dois modos da Tradição, a situação muda em Pápias, bispo de Hierápolis da Frígia, autor, em 130, de uma Explicação das sentenças do Senhor (em 5 livros), que não nos foi transmitida, mas sobre a qual dá amplo testemunho a História Eclesiástica de Eusébio de Cesareia (III, 39). No proêmio da sua obra Pápias declarava ter recebido a fé, não dos apóstolos, mas da palavra dos seus discípulos (Eusébio, HE III, 39, 2). Dele colhemos o importante testemunho sobre o ensinamento oral destes últimos. Mas três fragmentos da Explicação e um testemunho de Eusébio sobre ela chamam particularmente a nossa atenção:

1)“Se em algum lugar me encontrasse com alguém que tivesse tido relação com os anciãos (os apóstolos), eu procuraria aprender os discursos dos anciãos: o que tinham dito André ou Pedro ou Felipe ou Tomé ou Tiago ou João ou Mateus ou qualquer outro dos discípulos do Senhor; e isso que dizem Aristião e o presbítero João (prescindamos neste lugar da questão dos dois João), discípulo do Senhor. Eu, com efeito, pensava que aquilo que eu podia colher dos livros não me ajudasse tanto quanto o que provinha da voz viva e duradoura (τα παρα ζωσης Φωνης και μενουσης) (em HE III, 39,4).

2) o segundo fragmento testemunha que Marcos, companheiro e intérprete de Pedro, colheu fielmente seu evangelho do ensinamento oral de Pedro (ibid., III, 39, 15-16);

3) do terceiro fragmento aprendemos que Mateus reuniu por escrito (συνεγραψατο), em língua hebraica (hoje diríamos, sobretudo, em dialeto aramaico), os loghia do Senhor, e que cada um os interpretava segundo as próprias capacidades (ibid., III, 39, 17).

O fragmento transmitido no n. 1 nos fala, como também o próprio Pápias dizia no proêmio, do ensinamento oral não só dos apóstolos, mas também dos seus discípulos. O fragmento do qual se fala no n. 2, informando-nos sobre a gênese do Evangelho de Marcos proveniente da pregação de Pedro, atesta que Pápias conhecia o evangelho de Marcos e tinha consciência de sua origem diretamente apostólica. O fragmento do qual se trata o n. 3 prova que no tempo de Pápias existia já, do escrito originariamente aramaico do apóstolo Mateus, a tradução grega; do testemunho eusebiano do n. 4 entendemos que Pápias dispunha de 1Jo e de 1Pd. O conjunto desses dados nos diz, pois, que no tempo de Pápias estavam sendo usadas, da mensagem de Cristo, a Tradição oral (proêmio da Explicação e n.1) e a Tradição escrita (nn. 2, 3 e 4). Pápias (n. 1) preferia, como mais vital, a primeira: seu escrito, de resto, recolhia e explicava as palavras do Senhor (ver o título), as quais, desde as primeiras comunidades, eram ainda, paralelamente aos evangelhos escritos que as recolhiam, transmitidas oralmente.

O testemunho de Pápias era da primeira metade do século II e, se a função do cânon neotestamentário é a de recolher, conservar e transmitir os escritos remontantes aos apóstolos e separá-los daqueles pseudo-apostólicos, por meio das notícias por ele dadas sobre os evangelhos de Mateus e de Marcos, temos um jorro de luz sobre um antigo momento da formação do cânon neotestamentário. E daí é natural a passagem para o fragmento Muratoriano (EB 1, 1-7), composto em Roma pouco depois do pontificado de Pio I (140?-155?) (em EB, 1, 7 o anônimo autor cita o Pastor como escrito em Roma recentissimamente [nuperrime temporibus nostris] por Hermas, sob o episcopado do seu irmão Pio; Kidd, 1938, p. 272, o data entre o ano 175 e 200; no século II é datado em EB 1). Ele é um elenco analisado quase por completo dos escritos que em seguida constituirão o definitivo cânon neotestamentário (aí faltam a carta aos Hebreus, a carta de Tiago, as duas cartas de Pedro, a terceira carta de João). Trata-se de escritos que o fragmento apresenta como eclesialmente recepti; mas contextualmente ele cita outros escritos, que declara não acolhíveis na Igreja Católica porquanto apócrifos. Também o Pastor de Hermas, embora em si útil e louvável, não é admitido à leitura pública, visto que é de composição recentíssima (EB 1, 5-7). Na Igreja romana da segunda metade do século II existia, pois, um corpus oficial de escritos neotestamentários, o qual, mesmo não tendo ainda o cânon definitivo, mostra, todavia, que o cânon estava, lá, em avançadíssimo curso de formação. Exatamente pelo caráter da análise do elenco muratoriano nos apercebemos de como a formação do cânon visava conservar o conjunto dos livros neotestamentários transmitidos pela idade apostólica e para tutelá-los da intromissão de livros espúrios (para a complexiva história do cânon ver Zigernaus, 1990).

Exatamente no período da redação do romano Fragmento Muratoriano esteve em Roma, proveniente do Oriente, Egesipo (talvez um cristão de origem judaico-helenística). Como em outras Igrejas por ele visitadas, também em Roma – sobretudo em Roma – ele quis documentar-se, para resistir à insistência das heresias gnósticas, sobre a “Tradição sem erro”, aí conservada, “da pregação apostólica”, e o conjunto das suas experiências ele transmitiu em cinco livros de Memórias que não chegaram até nós (amplo testemunho sobre Egesipo encontra-se em Eusébio, HE IV, 22). Mas na segunda metade do século II (e talvez no início do século III) viveu, sobretudo, uma grande testemunha da Tradição: Irineu, bispo de Lion.

Nascido em Esmirna, Irineu, como ele mesmo reiteradamente recordava em uma sua carta (em Eusébio, HE V, 20, 5-7), tinha nela escutado, com viva atenção e cálida participação, o bispo Policarpo, enquanto na sua pregação falava das suas relações com o apóstolo João e com outras testemunhas oculares e auriculares de Jesus, dos seus milagres e do seu ensinamento. E acrescentava, Policarpo explicava tudo em plena conformidade com as Escrituras (a entender no sentido de que Policarpo reevocava as ações e as palavras do Messias, sempre remontando a tudo que, a respeito, foi profeticamente anunciado e “tipicamente” antecipado em âmbito veterotestamentário). Irineu, pois, havia se formado na fase ainda alta da Tradição, fase consistente na linha do ensinamento oral de Jesus e depois dos seus discípulos. Estes na sua catequese oral tinham reproduzido as palavras do Mestre, e depois também dos seus discípulos, veículos também eles orais do ensinamento messiânico (ver os casos de Pápias e de Policarpo): ele, em suma, por meio de Policarpo, estava em contato com a fase apostólica da Tradição.

Em função antignóstica era fundamental para Irineu o papel da Tradição: e sobre esta ele, na sua obra contra as heresias (Adversus haereses), exprimiu, mesmo de maneira não orgânica, uma verdadeira e própria doutrina. A Igreja universal – ensinava ele – recebeu a pregação dos apóstolos e, com ela, a fé, pregação e fé que a Igreja guarda com cuidado, como habitando uma só casa. Ela crê do mesmo modo que os apóstolos, como tendo uma só alma e um só coração, e prega, ensina e transmite aquela fé de modo unânime como tendo uma só boca. Mesmo na grande variedade geolinguística do mundo, a força da Tradição apostólica é uma e a mesma. E como o sol é um e o mesmo em todo o mundo, assim a luz que promana da pregação da verdade resplandece em toda parte e a todos os seres humanos ilumina (I, 10, 1-2; SCh 264; II, 9, 1: FCh 8/2; V, praef. e V, 20, 1: SCh 152). A Igreja universal é firme custódia da Tradição, da qual não admite redução ou “ampliação” (1, 10, 2). A verdade só pode ser alcançada na Igreja, na qual os Apóstolos derramaram, como em um rico depósito (in depositorum dives), toda a verdade. A verdade não deve ser procurada junto “dos outros” (os hereges), que são ladrões (fures et latrones: III, 4, 1: SCh 211) daquilo que pertence à Igreja. Todos os hereges são muito posteriores aos bispos que dos apóstolos receberam em confiança as Igrejas (V, 20, 1). Em caso, pois, de leve desacordo, deve-se recorrer às Igrejas mais antigas, de origem apostólica (III, 4, 2). Entre as Igrejas sobressai a de Roma, a maior e a mais antiga e conhecida por todos, fundada por Pedro e Paulo e dirigida por uma sucessão de bispos que Irineu proclamava ininterrupta até seu tempo. A Igreja universal deve estar em comunhão de doutrina com a Igreja de Roma pela sua mais prestigiosa origem (propter potentiorem principalitatem), Igreja depositária da tradição apostólica. A própria intervenção de Clemente, indicado por Irineu como terceiro sucessor de Pedro, nas discórdias internas da comunidade de Corinto era pelo bispo de Lion entendida como manifestação do papel primacial da cátedra episcopal da Urbe (sobre o papel da Igreja de Roma, ver III, 3, 2-4). A verdadeira gnose consiste na doutrina dos apóstolos, no antigo organismo da Igreja presente em todo o mundo, na especificidade do Corpo de Cristo constituída pela sucessão dos bispos. Este são os que garantem as Igrejas locais da parte dos apóstolos, na sua não enganosa custódia das Escrituras na Igreja, custódia que é pleníssima administração (pleníssima tractatio) das mesmas pela Igreja (IV, 33, 8: SCh 100). Lá onde o ensinamento escriturístico se cala, deve-se recorrer a tudo o que foi transmitido pelos apóstolos às Igrejas (III, 4, 1), isto é, à Tradição oral. Recapitulando, os traços salientes da doutrina de Irineu são: a apostolicidade e a universalidade da Tradição, com unidade da fé na universalidade; a conservação e a intangibilidade do depositum fidei; a guarda das Escrituras na Igreja, que dela é pleníssima administradora; a Tradição oral dos apóstolos a seguir como fonte da verdade no caso do silêncio do texto escriturístico; o recurso, nos casos de leves controvérsias sobre o conteúdo da Tradição, às Igrejas mias antigas, porquanto de origem apostólica; a necessidade do consenso doutrinal da Igreja universal com a Igreja de Roma. Mas nesse ponto precisamos ter presente três coisas: 1) no tempo de Irineu o Fragmento Muratoriano nos fala, como já vimos, da existência, na Igreja de Roma, de um corpus, cânon quase completo, de escritos neotestamentários; por sua vez, a afirmação ireniana da custódia das Escrituras na Igreja e do pleníssimo poder eclesiástico de administração das mesmas pressupõe o conhecimento, por Irineu, de um corpus, ou corpora, de textos escriturísticos de natureza canônica (mesmo se não definitivamente tal); 2) daí entendemos que a Escritura (tanto neotestamentária quanto veterotestamentária), ou Tradição escrita, coexistia já explicitamente com a Tradição oral e que delas, como proclama Irineu, a Igreja tinha custódia; 3) as doutrinas heréticas constituíam, para Irineu, uma novidade em relação à doutrina que os bispos tinham recebido dos apóstolos; e assim, “os outros” (em relação à Igreja), isto é, os hereges, eram por ele considerados ladrões. Com base nos objetivos pontos 1 e 2 e na afirmação ireniana da qual fala o ponto 3, passamos à original doutrina formulada pelo cartaginês Tertuliano na fase ainda católica de sua atividade (depois ele passou para o montanismo).

Conceber os hereges como ladrões (ladrões no sentido de que se arrogam o direito de ensinar em matéria que não lhes pertence, mas é propriedade exclusiva da Igreja a partir do mandato messiânico do qual fala Mt 28,19-20) torna-se enunciação jurídica de Tertuliano, que se serviu, para tal propósito, da conhecida prescrição (praescriptio). No direito processual romano a praescriptio era a objeção que permitia ao defensor firmar o processo na forma em que o havia formulado o querelante (praescriptio do verbo prae-scribere: a objeção, efetivamente, devia ser apresentada por escrito antes da intentio na formula do processo). Ela provocava a total rejeição da causa. A prescrição, cujo conceito de base já havia sido esboçada por Tertuliano no Apologético (47, 10; CCL 1), foi por ele desenvolvida em função anti-herética, em torno do ano 200, no livro A prescrição contra os hereges (De praescriptione haereticorum). A Escritura é o objeto da contenda entre a Igreja e os seus adversários, os hereges. Mas estes não podem servir-se dela, porque –sustenta Tertuliano – existe uma praescriptio que exclui qualquer argumento de natureza escriturística que eles queiram colocar em discussão: a Escritura, de fato, não pertence aos adversários. Ela pertence exclusivamente àqueles que possuem a fé ou regra de fé (por Tertuliano previamente enunciada em 12, 1-5; CCL 1). Quem, pois, são esses? Cristo confiou a missão de pregar o Evangelho apenas aos apóstolos: nenhum outro conhece o Pai senão o Filho e senão aquele ao qual o Filho o revelou (Mt 11,27), isto é, aos apóstolos, deve ser admitido como pregador do Evangelho (21, 1-2). Os apóstolos fundaram as Igrejas, anunciaram-lhes o Evangelho e confiaram a missão de anunciá-lo aos outros (daí a apostolicidade das Igrejas que derivam dos apóstolos). O que Cristo revelou aos apóstolos e que estes pregaram não se pode aprender senão das Igrejas que os apóstolos pessoalmente fundaram e pessoalmente instruíram tanto à viva voz quanto, posteriormente, por escrito (21, 3). A regra de fé é, portanto, possuída por aqueles que, dos apóstolos em diante, estão na Tradição. Portanto, toda a doutrina que concorda com a fé das Igrejas apostólicas deve ser considerada verdadeira, contendo ela o que as Igrejas receberam dos apóstolos, os apóstolos de Cristo, Cristo de Deus; ao contrário, devemos a priori recusar como mentirosa (de mendacio praieudicandam) toda a doutrina que não esteja em sintonia com a verdade das Igrejas, dos apóstolos, de Cristo e de Deus (21, 4-5). É clara, pois, tanto na vertente das Escrituras quando na da Tradição oral a função anti-herética do emprego tertuliânico da norma jurídica da praescriptio. Esta, na intenção do grande apologista, tira, sic et simpliciter, dos hereges o direito, por um lado, de agarrar-se à Escritura, que não lhes pertence, e, por outro, de ensinar, coisa que não lhes compete, sendo eles inteiramente estranhos à Tradição apostólica (isto é, Deus > Cristo > apóstolos) e episcopal (era, neste segundo caso, a afirmação do princípio da principalis veritatis e da posteritas mendacitatis, o que quer dizer, da “prioridade da verdade” e “da posteridade da mentira”: 31, 1).

Existe ainda um conceito de Tertuliano que deve ser aqui salientado. Como conclusão da regula fidei por ele enunciada no capítulo 13, o apologista afirma que essa regula, enquanto ensinada por Cristo, não admite que da parte cristã haja buscas, com exceção daquelas que são introduzidas pelas heresias e que tornam hereges (13, 6). Em  7, 12 escreve que nós cristãos não temos necessidade nem de curiosidade depois de Jesus Cristo, nem de busca depois do Evangelho: “Quando cremos, em nada mais desejamos crer; isto, de fato, acima de tudo cremos, não existe outro em quem precisar crer” (7, 13). De resto, é significativo o que ele escreveu algumas linhas antes: “Não nos interessam aqueles que inventaram um cristianismo estóico e platônico e dialético” (7, 11). Era a afirmação do primado da teologia positiva sobre a teologia especulativa (isto, não obstante, em linhas mais teórica que prática, sendo copiosa a atividade tertuliânica de debate teológico imposto pelas heresias).

Essa é a doutrina sobre a Tradição expressa pelo Tertuliano católico. Mas a antiquitas como garantia da Tradição não podia mais ser bem digerida por Tertuliano tornado seguidor do montanismo, que para ele, objetivamente, novitas. Eis porque a sua formulação de um novo conceito: aquilo que refuta a heresia não é a novitas, mas a veritas (“Cristo, nosso Senhor, chamou-se verdade” – Jo 14,6 –, não o costume. Se Cristo existe sempre e é anterior a todos, igualmente a verdade é coisa antiga e eterna […] Não tanto a novidade, mas sim a verdade é que refuta a heresia. Qualquer coisa que tenha sabor de aversão à verdade, essa será heresia, até mesmo o antigo costume”; De virg. vel. 1, 1-2: CCL 2).

Do conceito tertuliânico da suficiência da regula fidei ensinada por Cristo é natural a passagem para o alexandrino Orígenes (185 ca.-253). Fundamental nesse ponto é o amplo prefácio (SCh 253) por ele anteposto a Os princípios (Περι αρχων), obra que nos foi transmitida por meio da tradução que dela foi feita por Rufino (De principiis). O Cristo Logos (Verbo) de Deus – assim ensina o grande mestre da escola de Alexandria – não só se exprimiu por meio das palavras por ele proferidas durante a sua missão terrena, mas tinha estado já em Moisés e nos profetas, os quais, sem o Logos de Deus, não teriam podido profetizar o Cristo: o que eles disseram ou fizeram, haviam-no dito e feito porque cheios do Espírito de Cristo. E Cristo, também depois da sua ascensão, continuou a falar nos apóstolos, como indica Paulo (2Cor 13,3) (I praef. 1: SCh 253). Visto que entre os crentes em Cristo muitos estão em desacordo sobre muitos argumentos, dos mínimos aos máximos, Orígenes entende necessário estabelecer uma segura e manifesta regula fidei. E ensina: 1) seja conservada a pregação eclesiástica, que é a Tradição apostólica pela sucessão episcopal, Tradição custodiada nas Igrejas; 2) pregando a fé em Cristo, os apóstolos transmitiram, sobre argumentos por eles entendidos necessários, seu ensinamento em forma claríssima, mas deixaram a demonstração racional dos seus enunciados àqueles que tivessem merecido os dons excelsos da palavra, da sabedoria e da ciência concedidos pelo Espírito Santo; 3) de outras verdades os apóstolos afirmaram a existência (dixerunt quidem quia sint), mas a respeito delas calaram a modalidade e a origem (quomodo autem aut unde sint, siluerunt) cuja busca deixaram aos mais estudiosos e capazes de receber a sabedoria (ibid. 2-3). Tudo quanto foi enunciado na parte do prefácio até aqui recordado (parágrafos 1-3) mostra-nos com toda clareza que Orígenes considerava a Escritura e a Tradição fontes da doutrina cristão. Portanto, o grande alexandrino passa a enunciar difusamente a regula fidei, pouco a pouco distinguindo, em relação a quase todos os seus artigos (com exclusão daqueles sobre Deus Pai e sobre Jesus Cristo, nos quais ele não via matéria de distinção), entre quanto foi explicitamente enunciado pela pregação apostólica e eclesiástica (o quia) e quanto foi pedido à pesquisa dos mais estudiosos (o quomodo e o unde) (parágrafos 4-10). O Espírito Santo (ibid. 4): os apóstolos transmitiram que o Espírito é associado ao Pai e ao Filho na honra e na dignidade; mas não fica claro se ele nasceu ou não nasceu, ou se também ele deva ser entendido como filho de Deus ou não. O que, na medida das nossas forças, deve ser buscado com base na Sagrada Escritura e indagar com agudeza e engenho. A alma (ibid. 5): ela que tem uma substância e uma vida própria, depois da sua partida deste mundo, segundo os seus méritos ou deméritos herdará a vida e a bem-aventurança eternas ou será destinada ao fogo e aos suplícios eternos, e a pregação eclesiástica definiu que toda alma é racional e dotada de livre arbítrio e de vontade. Não de discerne, porém, por pregação suficientemente clara se ela nasce da inseminação (ex seminis traduce: o traducionismo), tanto que a sua propriedade ou substância se encontre já inserida na semente corporal, ou se tem um início diferente, e se este início seja por geração ou por infusão de fora. Quanto ao diabo, seus anjos e as potências inimigas (ibid. 6): a pregação eclesiástica ensinou a sua existência (quonian [= quia] sint), mas não expôs com suficiente clareza a sua natureza e seu modo de ser (quomodo sint). Encontramo-nos diante, como se vê, da coexistência, na doutrina origeriana, da teologia positiva e da teologia especulativa: e évidente progresso sobre o conceito tertuliânico (todavia mais teórico que prático, como já vimos) do primado daquela sobre esta. Exatamente a busca do unde e do quomodo, isto é, a teologia de tipo especulativo, que Orígenes valoriza, teve o mérito de produzir o crescimento do conhecimento humano em matéria de conteúdo da Tradição. E, antes de ir além, é oportuno salientar que, se no tempo de Pápias e depois de Irineu e Tertuliano era bem explícita a concreta a distinção entre Tradição oral e Tradição neotestamentária escrita, com Orígenes vamos além: temos a atividade literária de natureza exegética sobre livros não só veterotestamentários, mas também neotestamentários.

Agora é oportuno colher a presença do sentido da Tradição na liturgia documentada na Tradição Apostólica (‘Αποστολικη παραδοσις), obra de incerta origem e datação, mas provavelmente conhecida em Roma nos primeiros anos do século III, e na controvérsia batismal disputada entre Estevão, bispo de Roma e Cipriano, bispo de Cartago, na metade do século III. Na epiclese para a consagração episcopal testemunhada na Tradição apostólica temos a invocação a Deus para que sobre o candidato por ele escolhido para o episcopado se difunda a virtude do “Espírito soberano”, por Deus mesmo dada a seu dileto Filho Jesus Cristo e por Cristo concedida aos santos apóstolos e pelos apóstolos transmitida à Igreja por ele estabelecida, como templo de Deus, em cada região (3: SCh 11): transmissão, portanto, da virtude do Espírito ao longo da linha da Tradição: Deus > Cristo > apóstolos > Igreja. A controvérsia batismal referia-se ao batismo de hereges: repeti-lo ou não? Cipriano sustentava a necessidade de rebatizar, em sintonia com a prática africana (sucessivamente testemunhada como próprias dos Afros [donatistas] rebatizadores e condenada pelo Concílio de Arles no ano 314: ES 123). Mas Estevão (254-257), considerando válido o batismo administrado pelos hereges, sustentava a necessidade de não o repetir para os convertidos. Já autor de uma carta de ameaça de excomunhão aos bispos da Cilícia, Capadócia, Galácia, enquanto rebatizadores dos ex-hereges (testemunho em Eusébio, HE VII, 5, 4), ele enviou uma severa carta a Cipriano (temos a notícia dela pela carta 74 do mesmo Cipriano ao bispo Pompeu: CCL 3 C), na qual ele, em nome da Tradição, firmemente recusava, como inovação, o rebatismo (a chamada de atenção de Estevão é textualmente transmitida por Cipriano no e ibid. 1, 1: ES 110). Mas com outra tão grande firmeza o bispo de Cartago recusava a injunção de Estevão, acusando-a de ser, exatamente ela, privada de suporte da Tradição (2, 2). Mas precisamos dirigir a nossa atenção para as palavras com que Estevão apelava para a Tradição: nihil innovetur nisi quod traditum est. Esta frase aparece como contraditória e os estudiosos, sem formalizar-se sobre a sua estrutura, entenderam suficiente enunciar-lhe a substância em termos, mais ou menos, de “nenhuma inovação, só a Tradição!”. Mas ao verbo innovetur é oportuno dar o significado não de inmutare (“mudar, transformar”), mas de aliquid novi inducere (documentação em ThLL VII, 1, s.v. innovo, 1718, 79 ss.), para a qual o significado da frase de Estevão é: “Nada de novo seja introduzido [para quanto concerne ao tratamento dos hereges] se não aquilo que foi transmitido”. Qual era o elemento da Tradição que devia ser introduzido e que para Estevão era considerado novo? A imposição das mãos, que imediatamente depois do seu pronunciamento Estevão recomendava, pertencia à Tradição desde o alvorecer da Igreja: os Atos dos Apóstolos a documentam para a consagração dos diáconos (6, 6), para a confirmação dos batizados (8, 17; 19, 6), para o ato de cura milagrosa (28, 8); no ato de despedir de uma pessoa (13, 3). Sucessivamente ele era sinal de santificação dos audientes, ato do exorcista nos ritos sobre os catecúmenos, ato no rido de reconciliação dos penitentes, ato no rito de conferir a ordem sagrada, ato no rito da confirmação (Vagaggini, 1999, PP. 234, 235, 318, 380, 398, 403) Em Roma (testemunha a Tradição apostólica, cit., 21) a imposição da mão acompanhava as três imersões batismais do catecúmeno escandidas pela enunciação, da parte deste, da sua adesão, respectivamente, às três partes do símbolo a ele propostas em forma interrogativa pelo ministro do batismo. Portanto, a imposição das mãos estava bem consolidada e de emprego muito variado na Tradição a partir de idade apostólica. Eis então que, separada de qualquer dos atos rituais tradicionais pouco antes recordados e realizada nos confrontos dos ex-hereges, ela era, objetivamente, uma novidade, mas uma novidade na Tradição da imposição das mãos. Exatamente tal novidade é que o papa Estevão recomendava. Este, portanto, é o valor no complexo de toda a passagem estefaniana transmitida ad litteram  por Cipriano: “Se uma pessoa vem a vós de qualquer seita, nada de novo seja introduzido – portanto nenhum rebatismo que está fora da Tradição – se não aquilo que está na Tradição, tanto que se lhe imponha a mão em penitência” (e a imposição das mãos pertencia também, como já recordei, ao rito da reconciliação do penitente). Sobre o fundamento da exegese que demos, concluímos que Estevão, conhecedor da Tradição apostólica (testemunho dos Atos) e eclesiástica da imposição das mãos, prescrevia que esta última, já aplicada aos penitentes de pecado, fosse estendida aos penitentes para o mais específico pecado de heresia: graças a essa provisão do pontífice romano se realizava portanto um desenvolvimento homogêneo do rito, de ordem apostólica, da imposição das mãos em transmissão da graça do Espírito Santo.

Podemos agora voltar-nos para Agostinho. Dele não temos uma mais ou menos orgânica doutrina da tradição, mas, em relação a questões específicas, não faltam enunciações, de sua parte, de alguns conceitos. A questão do batismo dos hereges foi retomada por Agostinho que, no seu tratado sobre o batismo (De baptismo, do ano 400 aproximadamente), colocou-se ao lado de Estevão e subtraiu dos donatistas a autoridade de Cipriano, sobre cujo fundamento eles propugnavam o rebatismo (II, 12: CSEL 51). Ele explicava a resistência de Cipriano em relação a Estevão com o fato de que aquele problema não tinha sido, precedentemente, de maneira adequada tratado, e recordava que a posição de Estevão foi pois confirmada pelo já recordado Concílio de Arles, que sancionou a unicidade do batismo (ES 123). De resto, para o bispo de Hipona a consuetudo de não repetir o batismo provinha da Tradição apostólica: “Muitas coisas não se reencontram nas cartas dos apóstolos nem em sucessivos concílios, e, todavia, acredita-se que elas, enquanto custodiadas pela Igreja universal, não foram transmitidas e recomendadas senão pelos apóstolos” (ibidem). Análogo conceito, sempre em relação com a unicidade do batismo, temos em ibid, V, 31. Uma coisa, nos dois trechos do De baptismo aqui considerados, podemos colher: à apostolocidade, por via oral, pode-se remontar também partindo da só universalidade (primeiro trecho: “elas [muitas coisas], enquanto [quia] guardadas pela Igreja universal”, foram “transmitidas e recomendadas […] pelos apóstolos”; segundo trecho: “São muitas as coisas que a Igreja universal possui e que por isso mesmo [et ob hoc] se acreditam prescritas pelos apóstolos, embora não se encontrem escritas”). Em outra passagem da mesma obra (IV, 31), a propósito do batismo das crianças, se afirma, também na ausência de pronunciamentos conciliares, a apostolicidade da Tradição com base nos critérios da universalidade (universa ecclesia) e da antiguidade (semper). Na carta 54 (a Januário, 1, 1-2; CSEL 34/2), Agostinho distingue entre as prescrições não escritas, mas tradicionalmente observadas na Igreja universal porquanto recondutíveis aos apóstolos, ou a concílios plenários, e consequentemente vinculantes para todos (como os solenes aniversários da paixão, ressurreição e ascensão do Senhor e da vinda do Espírito Santo) e as observâncias locais (disciplina em matéria de jejum, de quotidianidade ou não da comunhão eucarística) deixadas à liberdade de cada um (com a sugestão agostiniana ao cristão piedoso para acostumar-se à observância da Igreja local em que ele venha a se encontrar). E a distinção, como se vê, entre a Tradição (universal) e as tradições (locais). E no seu livro sobre o culto aos defuntos (De cura pro mortuis gerenda, de 421-422 ou 424-425), em relação à oferta do sacrifício em sufrágio dos defuntos dos quais em 2Mc 12,43, Agostinho afirma que, quando também as Escrituras a tal propósito totalmente se calam, não pouca, todavia, seria a esse respeito a autoridade da Igreja universal, em cujas igrejas se efundem preces a Deus pelos defuntos (3: CSEL 41). Daí concluímos, à luz do quanto apenas chegamos a entrever, como implícita mas segura consequência de tal universalidade era, para Agostinho, a recondutibilidade do rito pro defunctis aos apóstolos. O hiponense, pois, outra coisa não fez senão retomar, da Tradição, os tradicionais conceitos da universalidade e da apostolicidade. Na sua obra Contra Juliano (421-422) vemo-lo, pois, apelar para Ambrósio, João de Constantinopla (Crisóstomo), Basílio e outros (I, 30: PL 44, 661-662), ora aos santos e doutíssimos nos ensinamentos divinos Irineu, Cipriano, Retício, Olímpio, Hilário, Ambrósio, Gregório, Inocêncio, João, Basílio, Jerônimo (II, 33: PL 44, 697): cf. também a incompleta obra antijuliana, de 429-430, n. 117 (PL 45, 1125). São Patres, “plantadores, irrigadores, edificadores, pastores, depois dos apóstolos, sobre os quais cresceu – afirma ele – a santa Igreja” (II, 37: PL 44, 700).

Mas Agostinho voltou a sua atenção também para a Tradição escrita. No livro II (composto em 397) do seu tratado sobre a instrução cristã (De doctrina Christiana) ele oferece um cânon pensado dos livros do AT e do NT (parágrafo 13: CCL 32; comentário em Simonetti, 1994, pp. 430 ss.). O bispo de Hipona estava consciente de que no cânon, já quase constituído por ao menos um par de séculos, se colhia também alguma diferença entre a Igreja e Igreja (assim, o cânon agostiniano coincidia com o cânon da Igreja de Roma [a. 382, ES 179 e 180], e ambos tinham alguma diferença em relação ao de Cirilo de Jerusalém [metade do século IV, EB 9 e 10], que não continha os dois livros dos Macabeus e o Apocalipse de João). Portanto ele afirmava, a respeito, a necessidade de seguir a autoridade da maioria das Igrejas católicas, sobretudo aquelas fundadas pelos apóstolos e destinatárias das suas cartas (12: CCL 32): os conceitos da universalidade e da apostolicidade era, portanto, por ele assumidos como critérios de identificação canônica das Escrituras.

            Uma última coisa. Era vital um ato de fé não eclesialmente público, isto é, não litúrgico, como era o símbolo batismal. Era em sede literária a assim chamada regula fidei (ou veritatis) enunciada como base do consequente tratado teológico (Irineu, Tertuliano, Orígenes) e como profissão de fé do cristão ortodoxo contra as heresias. Riquíssima é a presença da expressão regula fidei nos escritos de Agostinho. Dela se podem individualizar três funções: regula fidei se refere ao critério objetivo de interpretação da Escritura, indica o Símbolo da fé e os seus artigos definidos pela Igreja, indica o reto comportamento e a reta doutrina e é, pois, garantia do viver em comunhão eclesial (amplo exame disto em Mendoza, 1992).

            Exatamente sobre este argumento da regula fidei passamos para o último (cronologicamente) grande teórico da Tradição na história da Igreja antiga: Vicente, monge na ilha de Lerinum (Lérins). Três anos depois do Concílio de Éfeso, por ele expressamente recordado (29, 7: CCL 64), portanto no ano 434, em um communitorium transmitido com o título Tratado em favor da antiguidade e da universalidade da fé católica contra as inovações ímpias de todos os hereges, o lerinense, sob o pseudônimo de Peregrinus (indicativo do seu status monacal: Luiselli, 1959), expôs uma orgânica doutrina da tradição, que constituiu uma verdadeira virada em relação às precedentes doutrinas. Sua intenção foi a de fornecer uma regula fidei ao bom cristão desejoso de se defender das heresias, uma regula fidei que lhe permitisse distinguir a verdadeira e íntegra fé das sempre ressurgentes heresias: uma regra (ou norma), portanto, para a fé do bom cristão (com fidei genitivo objetivo, diversamente do precedente emprego da fórmula regula fidei, onde fidei era genitivo subjetivo: isto é, a fé da tradição divino-apostólica como regra, ou norma, do nosso crer e da nossa vida). O bom cristão – escreve Vicente (2, 1) – tem um duplo baluarte a sua disposição: antes de tudo (primum) a autoridade da Lei divina, isto é, o cânon das Escrituras (cf. 2, 2), e depois (tum deinde) a Tradição da Igreja Católica. Observe-se o seguinte reepílogo: dentro do anúncio apostólico oral da mensagem evangélica tinham nascido os textos neotestamentários e foram acrescentados aos livros veterotestamentários e inicialmente constituíam, junto com a oralidade e a liturgia, uma só coisa, a Tradição, tanto que a distinção do texto escrito e do ensinamento oral era, mais que outra coisa, virtual; portanto, os textos escritos foram progressivamente organizados em cânon; começou, pois, com Hipólito autor de comentários escriturísticos, com Clemente Alexandrino e com Orígenes, e copiosamente se incrementou a literatura de exegese dos livros veterotestamentários e neotestamentários; Agostinho, além de ser eminentíssimo comentador da Sagrada Escritura, tratou também, no De doctrina Christiana, de hermenêutica escriturística; Vicente, finalmente, exprimia, como objeto de difusa opinião uma espécie de graduação: primum  a Escritura, tum deinde a Tradição. Esse rápido reepílogo nos faz colher a evolução, até o tempo de Vicente de Lérins, do senso patrístico do papel da Escritura em relação à Tradição oral: do primado atribuído à Tradição  oral sobre o texto escrito se acrescente ao primado atribuído ao texto escrito sobre a oralidade (primum […] tum deinde). Mas à possível objeção da inutilidade da Tradição da Igreja Católica, constante a perfeição do cânon escriturístico e constante a sua intrínseca suficiência para tudo (2, 2), Vicente contrapunha, como dado de fato (e a respeito exemplificava), as muitas interpretações não unívocas (non uno eodemque sensu) e heréticas do texto escriturístico e a conseqüente necessidade de que a linha interpretativa dos livros proféticos e apostólicos fosse orientada segundo a norma do sentido eclesial e católico (secundum ecclesiastici et catholici sensus norman dirigatur: 2, 3-4): a tradição, em uma, como garantia da autêntica interpretação do texto escriturístico. Eis, pois, a sua regula fidei: “Com o máximo empenho se deve ter firme aquilo em toda parte, sempre e por todos foi acreditado” (quod ubique, quod semper, quod ab omnibus creditum est): ou seja, seguem-se a universalidade, a antiguidade, o consenso (2, 5-6). A universalidade: se uma pequena parte da Igreja se separar da comunhão da fé universal, o cristão católico deverá seguir a universalidade; a antiguidade: se alguma nova heresia infectar não uma pequena parte, mas verdadeiramente toda a Igreja (por exemplo, o arianismo: 4, 3-7), o cristão católico deverá se ater à antiguidade; o consenso: se na mesma antiguidade se descobrir um erro compartilhado por algumas pessoas, ou também por uma cidade ou até mesmo por uma província inteira, o cristão católico prefira, se aí os houver, os decretos de um antigo concílio ecumênico, ou, na ausência deles, busque, compare e siga as opiniões daqueles que, permanecendo, mesmo em lugares e tempos diversos, em comunhão de fé com a Igreja Católica, se tornaram magistri probabiles (“mestres dignos de aprovação”) (cap. 3), enquanto testemunhas da Tradição. Mas na segunda parte do seu tratado Vicente repetidamente fala de universalidade e antiguidade, ou de consenso da universalidade e da antiguidade (20, 2; 24, 7; 26, 6; 29, 4; 33,6; cf. o mesmo título).

            E chegamos à virada. Já no fim do capítulo 22 Vicente exorta cada um – sacerdote ou intérprete das Escrituras ou doutor (parágrafo 6) – a empenhar-se, com as suas explicações, para que seja compreendido de maneira mais clara aquilo que antes tinha acreditado de modo mais obscuro, para que a posteridade se alegre por haver compreendido o que a antiguidade venerava sem entender, “mas – recomenda – ensina as mesmas coisas que aprendeste, embora, dizendo de uma maneira nova, tu não digas coisas novas” (cum dicas nove, non dicas nova: 22,7). Mas acima de tudo precisamos considerar o grande capítulo 23. Diante da doutrina vicentina da estabilidade da Tradição, fundamentada sobre a indestrutível conservação da integridade do depositum (cf. Gl 1, 8-9; 1 Tm 6,20; 2 Tm 1,14), por ele repetidamente recordada, eis levantar-se a objeção de um ideal interlocutor: “Não se terá, pois, na Igreja de Cristo, nenhum progresso da religião?” (23, 1). “Certamente – é a convicta resposta de Vicente – se houver progresso, e se for grandíssimo” (ibidem). “Mas que seja verdadeiramente progresso da fé, não mudança” (23, 2). Cresçam e fortemente progridam, com o passar dos séculos, tanto em cada indivíduo quanto em toda a Igreja, “a inteligência, a ciência, a sabedoria, mas para que isso esteja na específica natureza do seu objeto, isto é, no mesmo dogma, no mesmo sentido, no mesmo pensamento” (in suo dumtaxat genere, in eodem scilicet dogmate, eodem sensi eademque sententia: 23, 3). Toda a ampla passagem que segue (23, 4-19) é o desenvolvimento deste conceito. A religião das almas deve imitar o crescimento físico do ser humano. No homem existe muita diferença entre a meninice e a velhice, e, todavia, os membros do lactante continuam os mesmos no jovem e no idoso. E se bem que a condição e o aspecto de cada um e mesmo homem mudem, uma só e a mesma é, todavia, a natureza, uma só e a mesma é a pessoa. Não basta. “Se algo de novo se produz na idade madura, já preexistia no embrião (o conceito do desenvolvimento da semente até chegar à árvore e aquele dos membros humanos contidos em potência no embrião estão já, mas em outros contextos, respectivamente no De virginibus velandis, 1, 6 [CCL 2] de Tertuliano e no De civitate Dei de Agostinho, XII, 14 [CCL 48]), tanto que nada de novo se manifesta (proferatur) nos velhos que não tenha estado, já antes, escondido (latitaverit) nas crianças” (23, 6). Portanto, desenvolvimento homogêneo do dogma (in eodem dogmate): não progresso das verdades do depositum, mas progresso do seu conhecimento. Com o passar do tempo, “os dogmas da filosofia celeste adquirem evidência, luz, precisão, mas é indispensável que conservem a sua plenitude, a sua integridade, seu próprio sentido” (23, 13). Nos dogmas confiados a ela em depósito (cf. 1 Tm 6,20; 2 Tm 1,14) a Igreja nada transforma ou tira ou acrescenta (23,16), mas, com os seus decretos conciliares, outra coisa não faz senão se esforçar para que “se creia com maior conhecimento naquilo em que antes se acreditava com simplicidade, que mais ardentemente se pregue aquilo que antes se pregava mais apaticamente” (23, 18). Progresso, pois, cognitivo e expositivo consistente tanto na melhor compreensão de tudo já explicitamente enunciado no depositum, quanto na explicação de quanto implicitamente contido no explícito.

            A doutrina do progresso, no decorrer do tempo, do conhecimento da verdade revelada, que não se transforma, mas permanece sempre a mesma, é, pois, um marco na história da Igreja antiga e posterior da Tradição. Mas o progresso do conhecimento colocará um problema: coincide a fé de nós cristãos com aquela fé dos Pais veterotestamentários? “Abraão – dir-se-á na Idade Média – acreditou no Cristo encarnado, mas são duas coisas bem diversas” (documentação em Schultes, 1922, p. 62). Mas Tomás de Aquino escreverá: “Tudo aquilo que no Novo Testamento é transmitido para se crer explicitamente e abertamente, é transmitido para crer-se, no Antigo Testamento, mas implicitamente e em figura [do Novo]” (Summa theol. , q. 107, a. 3, ad 1).

            O tratado de Vicente, a julgar pelos únicos quatro códices que nos foram transmitidos (todos de área francesa, sobre os quais ver Demeulenaere [ed.], 1985, pp. 134 ss.), foi quase desconhecido na Idade Média: o próprio Tomás de Aquino, que no comentário às Sententiae de Pedro Lombardo (III, q. I) e na Summa theol. , q. 1, a. 7, trata do aumento, no decorrer do tempo, dos artigos de fé e em outro lugar fala do desenvolvimento do implícito para o explícito, utilizando a imagem do desenvolvimento da semente até a árvore (Summa theol. , q. 107, r.), não cita Vicente (ou ao menos seu pseudônimo Peregrinus), nem dele traz eco. O escrito vicentino foi bem conhecido do século XVI em diante (Meslin, 1959, pp. 26 ss.). As suas palavras sobre o desenvolvimento homogêneo do dogma (crescat igitur […] in suo duntaxat genere etc. de 23, 3) foram retomadas seja pelo Concílio Ecumênico Vaticano I na constituição dogmática Dei Filius sobre a f´católica (COD², p. 809, 33 =  ES 3541), seja no juramento antimodernista decretado por Pio X em 1910 (ES 3541).

            O nosso caminho se desenvolveu por meio de várias reflexões patrísticas sobre a Tradição oral e sobre a sua relação com a Escritura. Mas aqui precisamos fazer três constatações para extrair delas outras tantas conclusões:

1)   Já contra a heresia adocionista havia se recorrido, da parte ortodoxa, aos testemunhos, em sentido ortodoxo, dos Patres; Agostinho, como já temos visto, invocou muitas vezes o testemunho dos precedentes Patres; Vicente, o monge de Lérins, recorreu também ao testemundo dos magistri probabiles do passado, um dos critérios de discernimento da fé contra as novidades heréticas. Pois havia se instaurado aquilo que chamamos de argumento patrístico, ou seja, o testemunho dos Padres como testemunhas da Tradição;

2)   Contra o adocionismo havia se invocado, da parte ortodoxa, o testemunho de salmos e hinos cantados pelas comunidades cristãs; na sua doutrina pneumatológica (27, 66: SCh 17). Basílio de Casareia citava a epiclese, na celebração eucarística, do Espírito Santo sobre o pão e o vinho, não documentada em sede escriturística, mas testemunhada pela Tradição não escrita (αγραΦος παραδοσις); Agostinho afirmava a necessidade do culto pelos defuntos apelando, além de a 2Mc 12,43, à sua prática eclesial universal e por isso mesmo de tradição antiga. Era, portanto, o sentido da lex orandi como canal da Tradição;

3)   Pápias havia afirmado o primado da oralidade sobre os textos escritos; Irineu admitia a possibilidade de que a Escritura calasse sobre algum argumento da fé, a ponto de afirmar a necessidade de recorrer, nesse caso, ao testemunho da Tradição oral. Para aqueles que negavam o valor da Tradição não escrita, Basílio, em relação à epiclese do Espírito Santo, opunha dados da Tradição, como demonstração de que nem tudo aquilo que é doutrinal e litúrgico está registrado na Sagrada Escritura. Também Agostinho admitia casos de silêncio da Escritura: assim, em relação à não repetição do batismo, ele reconhecia que nas cartas apostólicas muitas coisas não estão contidas, cuja apostolicidade todavia ele afirmava, sendo elas confiadas à Igreja universal; sobre a necessidade do batismo das crianças de fato ele apelava à prática universal e constante da Igreja, não ao explícito testemunho escriturístico, que ele sabia não existir. Mas, junto com muitos outros, testemunha o mesmo Vicente, estavam já com suficiência adquiridos, em tudo, o cânon escriturístico e o primado deste (primum  […] tum deinde). Colocava-se, portanto, a questão sobre a Escritura e a Tradição oral: uma questão destinada a permanecer. Ver o debate, a respeito, também na teologia moderna (escritos, por exemplo, de Beumer, Journet, Alonso, Monsegú, Brinktrine, Lang, Laboudette, Baraúna em ST). Mas uma coisa é de fide, a unidade incindível da Tradição e da Escritura: assim, o Concílio de Trento (sess. IV, 1546, COD², p. 663, 23 = ES 1501: “A verdade está contida nos livros escritos e nas tradições não escritas” à constituição dogmática Dei verbum, in CEV II (nn. 885 e 888: Tradição e Escritura em unidade de fonte divina e em unidade de desembocar soteriológica) até CCE 80.

Estando a ponto de concluir este argumento, voltamos ao conceito do monge lerinense do conhecimento da verdade do depositum como religio animarum (23, 4). Vicente mostra saber que aquele conhecimento é não só operação mental, mas também envolvimento da alma, do coração (cf. Jo 8, 31). A este propósito recorde-se o que os dois discípulos de Emaús disseram um ao outro, em relação à catequese que acabavam de receber do Ressuscitado, por eles ainda não reconhecido:  Não se nos abrasava o coração, quando ele nos falava pelo caminho e nos explicava as Escrituras. (Lc 24,32). Agostinho: “Se procura (Deus) para encontrá-lo com maior dulçor, a ele se encontra para buscá-lo com maior ardor” (De Trin. 15, 2, 2: CCL 50 A). “O cristianismo não é um sistema intelectual, um pacote de dogmas, um moralismo, mas um encontro, uma história de amor” (Ratzinger 2005). Bem vê, portanto Vicente de Lérins que com o progresso cognitivo da verdade da fé se firma o progresso espiritual do crente. Concluindo, o progressivo conhecimento do depositum, sem que este perca nada da sua substancial estabilidade, é processo vital, inesgotável ímpeto vital (sobre a Tradição entendida não na sua estabilidade, voltada para o passado, mas na sua dinamicidade como ato do transmitir, ver Cattaneo, 1999).

FONTE


Literatura patrística / sob a direção de Angelo di Bernardino, Giorgio Fedalto, Manlio Simonetti; [tradução José Joaquim Sobral]. São Paulo: Editora Ave-Maria, 2010. pp. 1583 – 1602. Transcrição: Lucas Oliveira.

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