INTRODUÇÃO
O doutor de Hipona, muitas vezes, é usado por muitos protestantes como bandeira a favor daquilo que é popularmente chamado de “reforma” protestante. Com modos de pensar ultrapassados, tentam criar uma conciliação inexistente entre Agostinho e os “reformadores” protestantes. Será mesmo? Vejamos:
“(…) A doutrina agostiniana carrega, sobremaneira, uma marca católica e é radicalmente oposta ao protestantismo. É importante estabelecer este fato, principalmente pela mudança de atitude dos críticos protestantes a respeito de Santo Agostinho. Na verdade, nada é mais merecedor de atenção do que este desenvolvimento altamente meritório para a imparcialidade dos escritores modernos. A tese dos antigos protestantes é bem conhecida. As tentativas de monopolizar Agostinho para torna-lo um reformador de antes da Reforma foram certamente rejeitadas. (…) Na verdade, eles vão até o extremo, quando dizem que ele [Agostinho] é o criador do catolicismo. É assim que H. Reuter conclui seus importantes estudos sobre o doutor de Hipona: ‘Eu considero Agostinho o criador do catolicismo romano no ocidente… Esta descoberta não é nova, como Kattenbusch parece acreditar, mas na verdade há muito tempo já é reconhecida por Neander, Julius Köstlin, Dorner, Schmidt, etc.’ (…)”. (Portalié, Eugène. O ensino de Santo Agostinho de Hipona. Enciclopédia Católica, v. 2. New York: Robert Applenton Company, 1907.)
Depois de ver que diversos protestantes modernos confessam a catolicidade de Agostinho, torna-se oportuno para o católico estudar um pouco daquilo que Santo Agostinho ensinou em dois de seus mais famosos temas tratados em suas obras: as doutrinas da graça e do livre-arbítrio. O estudo abaixo foi retirado do Dicionário de Literatura Patrística, ed. Ave-Maria. Bom proveito, e ótima leitura:
A DOUTRINA
Com Agostinho de Hipona a teologia cristã da justificação alcança seu máximo grau de rigorismo e complexidade, realizando uma solução dialética da relação entre liberdade e graça ao mesmo tempo eminentemente católica (em sua intenção de ter em unidade perspectiva aparentemente inconciliáveis), e, no entanto, de tal maneira paradoxal e revolucionária em relação à tradição eclesiástica (na absoluta subordinação a liberdade e da mesma eclesiástica economia da salvação a uma graça inteiramente gratuita) a resultar em realidade catolicamente inassumível, a não ser através de censuras tácitas ou banalizantes, desnaturadoras normalizações. Causa da secular ambiguidade da recepção da teologia da graça de Agostinho é, de fato, sua exigência de reinterpretar toda a tradição católica (que com substancial continuidade afirma a unicidade do Deus da lei e do Deus da graça, a existência do livre-arbítrio, a plena responsabilidade do homem como pecador, a universalidade do chamado divino à salvação, a necessidade da mediação eclesiástica) a partir da recuperação e da absolutização de uma lógica paulina rigorosa, corretamente identificada como anúncio do caráter absolutamente indefinido do dom. A teologia da graça agostiniana resolve, portanto, em uma paradoxal, porque assimétrica, concordantia entre graça e liberdade, dom sobrenatural e dom natural, redenção e criação, predestinação e presciência, Espírito e Verdade, vontade e ordem, misericórdia e juízo, perdão e lei, poder e justiça, carisma e doutrina, evento carismático e sua institucionalização eclesiástica, portanto, entre paulinismo radical e antidualística (antimaniqueísta) ontoteologia platonizante. Se, em nível de teologia da justificação, é dominante o prevalecer do primeiro elemento da tensão dialética, que subordina a si o segundo, negar a realidade deste segundo significaria ao mesmo tempo afirmar uma niilística teologia irracional do acontecimento. Seria desconhecer a intenção católica de Agostinho, que é salvar a bondade de Deus e da criação, a liberdade da criatura e sua responsabilidade pela irrupção do mal no mundo, portanto, a realidade da existência como (antimaniqueia) manifestação da glória criadora de Deus. E veja-se que a radical paulinização à qual Agostinho submete seu herdado e persistente origenismo platonizante se concretiza em uma extraordinária capacidade de plena reativação da raiz semítica própria da escatologia profética e apocalíptica, que o catolicismo pré-agostiniano não tinha erradicado, ou minimizado em favor das componentes semíticas mais legalístico-sapienciais, precocemente entrelaçados com as helenísticas. Desse ponto de vista, a afirmação do absoluto da graça indevida não apenas reativa a identificação paulina da graça com a dimensão carismática do Espírito (a nova aliança escrita nos corações cf. 2Cor 3), melhor que com a lei ou a doutrina salvífica (a letra da velha aliança escrita sobre tábuas de pedra por Moisés, coincidindo com a lei natural própria de todos os pagãos, segundo Rm 1), mas é capaz de reacender aquela espasmódica tensão escatológica própria do kerigma primitivo: Deus é Senhor iminente e imprevisível; o amor de Deus é eleição gratuita do último, daquele que não merece nada, de quem está desesperado e agonizante; a irrupção da graça – acontecimento histórico-econômico reduplicado em evento que transforma uma interioridade platonicamente pensada – é o fim do velho mundo, do mundo do pecado, a destruição do homem carnal, a redenção de uma natureza que, no mesmo momento em que é transfigurada graças à cruz de Cristo sobre a qual Deus morre (abissal escândalo ontológico!), é também condenada como corrupta, como ser que está morrendo (evidente escândalo ontológico!). Além disso, a teologia da graça agostiniana é do máximo interesse, visto que não se limita a prospectar uma doutrina da justificação absolutamente original e de tal profundidade e poder de revolucionar a história do pensamento ocidental, mas porque ela se afirma mediante um complexo processo de retractatio de uma perspectiva antes dominante, depois colocada em crise e superada, mas ao mesmo tempo reinterpretada e conservada como claramente subordinada, relativizada. É a questão do primeiro (dos diálogos de Cassicíaco ao De doctrina christiana) e do outro ou segundo (das Confessiones bem como da Opus imperfectum) Agostinho: um otimista apologeta da racional continuidade da real e íntegra capacidade da razão e do livre-arbítrio de se elevar até Deus, universalmente amoroso e justo; o outro trágico confessor da onipotência imperscrutável de Deus, da predestinada graça indevida e universal, perversa impotência do livre-arbítrio. Esta nítida distinção entre duas fases do pensamento agostiniano não é efetivamente uma mais ou menos recente invenção historiográfica, mas o dado evidente que nos é testemunhado pelo próprio protagonista (em Retractationes II, 1, 1; De praedestinatione sanctorum 3, 7 – 4, 8), que confessa abertamente ter – com a redação da quaestio do Ad Simplicianum dedicada à exegese de Rm 9 – mudado a perspectiva graças a uma iluminação divina, enquanto compreendeu que o homem é justificado pela graça absolutamente indevida, portanto, a própria fé é um dom de Deus e não – como, por exemplo, no Ambrosiaster ou em Ticônio – o único autêntico ato interior e meritório do homem que dá sua anuência à graça. A dramaticidade e a radicalidade dessa conversão estão, portanto, no passar de uma perspectiva cristã (aquela platonizante de um “origenismo revisto e corrigido”) para outra perspectiva cristã (já apenas recessivamente platonizante) inteiramente original que poderemos definir como paulinismo carismático, culminante na noção da onipotência de Deus, cujos decretos são imperscrutáveis para a razão humana. Finalmente, essa revolução teológica cristã especifica a descoberta da graça indevida predestinada e do escravo arbítrio como estrutura portadora de todo o pensamento maduro de Agostinho (desde 397!) e nada, de fato, como excesso polêmico confinável nos últimos vinte anos perturbados pela polêmica antipelagiana.
Como escritos reveladores do primeiro Agostinho – no qual a teologia da graça católica pré-agostiniana encontra perfeita realização, especulativamente restituída – pode-se indicar, além de De ordine, o De libero arbitrio, o De vera religione, e nos primeiros comentários paulinos, o próprio De doct. chr. Interrompido em 397 (e por cerca de trinta anos!), porque metido em crise pela revolução teológica de Ad Simpl. I, 2. Se a teologia da graça testemunhada no De doctr. chr. interrompido é evidentemente arcaica em relação à página das Confissões, a restituição da revelação cristã mediante uma ontoteologia platonizante – que é intermédio entre o origenismo capadócio e ambrosiano e o neoplatonismo pagão de Porfírio – é precocemente afirmada e limpidamente teorizada. Deus, absolutamente imaterial e imutável, é Ser, Verdade e Bem supremos (cf. De lib. arb II, 15, 39), onde tradição trinitária niceno-constantinopolitana e dialética neoplatônica das primeiras hipóstases divinas se fundem harmonicamente. O homem, criado à imagem de Deus-Trindade, é mens absolutamente imaterial, ser que pensa e vive (cf. De vera rel. 44, 82; 55, 113; De lib. arb. II, 18, 47), mas que pelo uso impróprio do mesmo bem que a identifica pessoalmente – a liberdade – pode pecar, pervertendo a ordem ontológica que subordina as realidades temporais, sensíveis e mutáveis a Deus eterno, imaterial e imutável; assim fazendo, porém, a alma desordena a si mesma (cf. I, 1, 3; III, 7, 21; De vera rel. 54, 104-106), tornando-se escrava das paixões, e por isso se torna inferior (cf. De lib. arb. I, 11, 22; 16, 34-35; II, 19-53 – 20, 54; III, 1, 1). Por outro lado, a liberdade da mens conserva a força de reconhecer a racional ordem ontológica e de transcender as realidades criadas e imperfeitas (para amar só relativamente), desejando conhecer e unir-se eternamente a Deus. O pecado de Adão, de fato, mesmo sendo um péssimo exemplo, também um ato que enfraquece a natural proximidade da mens em relação ao eterno modelo da Trindade, não corrompe intimamente nem a capacidade de escolha, nem a plenitude ontológica do próprio ser natural (cf. III, 5, 14-16; 18, 51 – 20, 55). Certamente, é necessário que Deus se revele para que a liberdade se destaque dos corpos e se transforme em verdades imateriais e em transcendência absoluta que dela é a fonte (cf. II, 13, 36). O encarnar-se de Cristo (supremo e imitável exemplum de virtude: cf. De fide e symbolo, 4, 6; De doct. chr. I, 11, 11) é o tornar-se sinal da Res absoluta, o devir sensível do Eterno (cf. De lib. arb. III, 10, 30; De vera rel. 16, 30; De doct. chr. I, 11, 11 – 14, 13; 34, 38), que permite à mens prisioneira dos sentidos acordar e retornar à própria pátria. A Escritura, a Igreja, o próprio Espírito obedecem à mesma lógica amorosa de socorro gratuito, de chamado persuasivo e de sustentação vivificante à liberdade humana (cf. II, 6, 78; I, 15, 14-18, 17; De lib. arb. III, 22, 65; De vera rel. 12, 24). O cristianismo, portanto, se resume na revelação da Lei, isto é, da verdade salvífica e do dever espiritual (encarnados em Cristo), daqui na doctrina do ordo amoris (cf. 16, 32 – 17, 33), à qual o homem deve corresponder com aplicação intelectual e empenho moral (“bono studio bonisque moribus”: De doct. chri. I, 10, 10), que se resume no dever da “gemina dilectio”, o amor de Deus e do próximo (cf. III, 10, 14). Torna-se evidente a polêmica antimaniqueia: 1) a criatura é livre e pode facilmente readquirir a própria inalienável identidade espiritual (cf. De lib. arb. I, 13, 29; III, 3, 7; 6, 19; 17, 48 – 18, 50); a salvação é alcançar de novo o homem interior racional, cujo olhar está por natureza metafisicamente aberto para a Luz – absolutamente transcendente, ou por graça do Criador imanente na intimidade racional da imagem – da eterna Verdade divina (cf. De vera rel. 39, 72; De magistro, 11, 38 – 12, 40; De lib. arb. II, 9, 26; 13, 36 – 15, 40). A doutrina da iluminação agostiniana (cf. De ordine, II, 2, 7; Soliloquia, I, 6, 12 e 8, 15; De lib. arb. II, 13, 36; II, 9, 26) – tentativa de recuperação e superação da reinterpretação cristã que Orígenes havia proposto da teoria platônica da preexistência das almas – é, em última análise, uma doutrina da graça ontológica. Insiste (com um sentimento de religiosa dependência e um pathos que o outro Agostinho reservará para a graça indevida) no evento gratuito que faz com que em toda mens criada resplandeça a própria eterna Verdade de Deus; de modo que ao assombro metafísico sucede o render graças e louvores pela misericordiosa e miraculosa imanência de Deus transcendente em todo ato intelectual de visão das verdades imutáveis. 2) O pecado, pois, não contradiz nem corrompe de modo nenhum a positividade do ser criado; antes, toda realidade é, não obstante a possibilidade de que a liberdade criatural a degrade, manifestação da graça ontologicamente operante: platônica e originariamente o mal não existe (a não ser como alienação de um bem inferior do bem absoluto), porque todo ser é bom (cf. De lib. arb. II, 20, 54), porquanto depende do Ser absoluto, Bem absoluto e Verdade incontrovertível. 3) A graça do Deus de amor não está absolutamente em contradição com a Lei, apesar de seu cumprimento espiritualizado, visto que o cristianismo é a revelação da eterna, universal e nunca discriminante, invariável justiça ontológica – “Lex summa ratio…, segundo a qual os maus merecem a infelicidade e os bons merecem a felicidade” (De lib. arb. I, 6, 15) – que, como Verbum ou Veritas, governa toda a realidade criada e providencialmente organizada por Deus: “A Verdade está perto de todos aqueles que de todo o mundo se convertem para ela porque a amam e para todos é sempiterna… Admoesta de fora e ensina desde dentro” (De lib. arb. II, 14, 38). O Verbo, portanto, não atua potentemente a conversão interior das criaturas, mas de todo modo chama, ensina, ordena e admoesta, não obstante, de maneira amorosa e persuasiva, isto é, não irresistivelmente (cf. De vera rel. 16, 31; De lib. arb. II, 14, 30 – 15, 31; 16, 41; III, 1, 3; sobretudo III, 19, 53; 25, 74-75; Epistolae ad Galatas expositio, I, 43, 8; 46, 6-9; 60, 2; 62, 1; Epistolae ad Romanos inchoata expositio, 9, 6; 15, 4; 16, 7-19, 11; De diversis quaestionibus LXXXIII, LXVI e LXI, 7) para que a liberdade escolha transformar-se de cupiditas para caritas (cf. De doct. chr. III, 10, 15-16; 15, 23; 21,31; I, 35, 39; II, 9, 14; Exp. Gal. 51, 4; 20, 5; 42, 12; 46, 6; 51, 1-6; De div. quaest. LXXXIII, XXXV, 2; XXXVI, 1; LXXI, 1; De agone Christiano, 6, 6-7, 7; 13, 14; 33, 35), conhecendo e amando não mais as realidades tempoais e materiais, mas aquelas eternas e inteligíveis (cf. De lib. arb. I, 15, 32). A graça, pois, não é tanto um ato carismático, e sim essencialmente – ainda origenianamente – um dom ontológico, que irradia eterna e universalmente a maravilhosa luminosidade da Verdade, Mestre interior de cada mens, criada como sua imagem (cf. II, 1, 3), luminosa refração. De maneira que a única escolha autêntica que a liberdade pode realizar é a de reapropriar-se de si mesma, dominando em si própria a possibilidade do pecado (cf. I, 8, 18-11, 23; 16,35; De vera rel. 41, 78; 46, 87; 48, 93).
Este coerentíssimo, racionalista e otimista sistema da graça, capaz de harmonizar admiravelmente tradição católica e ontologia neoplatônica, é colocado radicalmente em crise pela redação da resposta à II questio sobre Rm 9, 10-29 dada por Agostinho para Simpliciano, sucessor de Ambrósio como bispo de Milão e ele mesmo intelectual platonizante: Ad Simpl. I, 2, efetivamente, afirma teses revolucionárias, brotadas do impor-se do texto paulino sobre as mesmas resistências de Agostinho (cf. Retr. II, 1, 1: “Eu me irritei por defender o livre-arbítrio da vontade humana, mas venceu a graça de Deus”) e interpretadas como iluminação gratuita de Deus em sua mente (cf. De praef. Sanct. 4, 8): 1) A graça que escolhe a criatura (Jacó) é de todo incondicionada, totalmente independente de qualquer mérito do homem; o dom é tal somente se indevido, dado gratis, sem que o homem possa identificar-lhe uma razão. Apenas a liberdade de Deus e não a liberdade do homem distingue os chamados eleitos (cf. Ad Simpl. I, 2, 13). 2) A graça é, portanto, predestinada e insondável (cf. 16; 22); a eleição é já claramente distinta da presciência, visto que Deus escolhe Jacó sem que ele tenha tido qualquer mérito, portanto, independentemente da presciência de seus atos (cf. 4-6; 8; 11; 22). 3) A fé mesma é um dom indevido de Deus e não a meritória anuência do homem a seu chamado (cf. 7; 9; 21). 4) A onipotência de Deus move a vontade do homem como e onde quer (cf. 12-13), tanto que a mesma vocatio divina determina a vontade do homem, nada absolutamente remetendo a seu consenso: “Nosso querer é obra de sua misericórdia… O chamado divino a tal ponto é eficaz (effectrix) sobre a vontade, que todo chamado a segue” (12-13). De fato, a eficácia da graça não pode estar em poder do homem, de outra maneira isso tornaria sem sentido a vontade eterna e absoluta de Deus, para a qual é absurdo não poder de algum modo realizar seu objeto na vontade criada (“Com ninguém Deus usa de misericórdia em vão”: 13), chamando-a de maneira adaptada a côngrua, portanto infalível e irresistível (cf. 13-14 e 17). A operação interior do Espírito não é de modo algum uma violência coercitiva, que constrinja a vontade do homem, mas sim uma irresistível capacidade de enamorar (deletare), ascender, excitar, apaixonar, arrastar a vontade (cf. 21), que age a partir de uma nova, dada, espiritual concupiscência: “Nós não podemos nem querer nem correr se ele não nos move e não nos estimula” (21). Se, pois, a obra da justificação é tanto de Deus que chama quanto do homem que segue o chamado, esta é determinada infalivelmente po aquela, tanto que o sinergismo tradicional é inteiramente superado na afirmação da causalidade divina no próprio desejo voluntário do homem (cf. 10; 12). 5) A humanidade pós-queda é uma massa damnationis (cf. 17; 19-20; 22) e o livre-arbítrio do homem é naturalmente prisioneiro do mal, de uma solipsística “concupiscência carnal” (20), portanto incapaz do mínimo desejo de conversão a Deus, como do mínimo ato natural de autêntico amor pelo próximo. Aqueles que não são eleitos são justamente odiados por Deus (como Esaú: cf. 16), porque abandonados a seu natural, voluntário pecar, que Deus não quis remir (é esta a obduratio Dei da qual fala Paulo: cf. 15) e que não obstante pune: “Deus abandona quando não chama de modo tal a estimular à fé” (14). 6) Contrariamente a tudo que afirmava o primeiro Agostinho, inteligência metafísica e virtudes morais não são de modo algum garantias ou condições meritórias do agir misericordioso de Deus, mas sim, ao contrário, atos mais ou menos ocultos na soberba, censurados por Deus, que escolhe Saulo, perseguidor e blasfemador, as prostitutas, os ignorantes, não os oradores, os sábios, os ascetas (cf. 22). A derrubada do primeiro Agostinho – e de toda a tradição católica precedente – é sistemática e radical: a teologia do outro Agostinho se torna trágica, a antropologia (do Adão decaído) profundamente pessimista. O que o primeiro Agostinho confiava ao livre-arbítrio do homem se torna, agora, efeito da eterna, predestinada eleição, portanto da ação operante do Espírito no eleito; a teologia “clara” de Deus como verdade universalmente irradiante é substituída pela teologia “escura” de Deus como onipotência eletiva que molda e ordena a seu gosto vasos de ira e vasos de misericórdia (cf. 18), portanto como vontade insondavelmente discriminante, incondicionada e – para a razão do homem – incompreensível, imperscrutáel, absolutamente excedente, objeto da emudecida adoração: “Misteriosa justiça inacessível à medida humana… Mas, se isso nos perturba, que ninguém resista a sua vontade, porque ajuda quem quer e abandona quem quer, quando um e outro, o ajudado e o abandonado, pertencem à mesma massa de pecadores e, embora ambos mereçam o castigo, a um todavia é pedido contas do pecado e ao outro é perdoado; se, pois, isso nos perturba, ‘ó homem, quem és tu, para discutir com Deus?’ (Rm 9,20)” (16-17).
As próprias Confissões – obra que marcou uma época teológica e antropologicamente revolucionária – podem ser compreendidas em profundidade unicamente na base dessa nova doutrina: Agostinho, seguindo o exemplo de Paulo, se confessa como perverso pecador (confessio pecati) indevidamente salvo pela graça de Deus (confessio laudis ou gloriae), que liberta instantaneamente (portanto sem qualquer mérito anterior) seu livre-arbítrio, de todo impotente numa prisão de pecado mortal, dando-lhe um novo desejo: “Com a tua mão, explorando a profundidade da minha morte, limpaste desde o fundo do abismo de corrupção do meu coração. Isto aconteceu quando mão mais quis o que queria eu, mas quero o que querias tu. Onde estava meu livre-arbítrio durante uma série tão longa de anos? De quão profundo e tão secreto abismo foi tirado num instante, a fim de que eu submetesse o pescoço a teu jugo suave e as costas a teu fardo leve, ó Cristo Jesus, meu apoio e meu redentor?” (IX, 1, 1). Obedecendo a uma estrutura cristológica (a salvação é o Eterno que irrompe no tempo, libertando da morte e do pecado), os primeiros dez livros da autobiografia do indigno eleito representam o singular testemunho do eterno mistério da predestinação, que transforma Agostinho do esquecimento de si e da alienação (inconsciente e perversamente trinitária!) no nada, no erro, na concupiscência (cf. I, 20, 31) à memória de Deus Trindade (cf. livro X). O abismo da memória humana, incapaz de conter e abranger a si mesma, encontra-se eternamente contida na eterna Memória divina, portanto “existencialmente” despossuída, invadida, arrancada de seu perverso, alienado e imanente solipsismo. “Tarde te amei, beleza tão antiga e tão nova, tarde te amei. Sim, porque estavas dentro de mim e eu te procurava fora. … Estavas comigo, mas eu não estava contigo. … Mas tu me chamaste e o teu grito ressoou forte na minha surdez. Fulguraste e o teu esplendor dissipou a minha cegueira. Difundiste a tua fragrância e respirei e anseio por ti, provei e tenho fome e sede de ti, tu me tocaste e eu fiquei ardendo de desejo da tua paz. … Toda a minha esperança está colocada na imensa grandeza da tua misericórdia. … Ó amor, que sempre ardes sem jamais te extinguires, Amor, Deus meu, inflama-me! Ordena a continência, eis te peço, concede-me o que mandas e manda o que quiseres” (X, 27, 38 e 29, 40). A graça é um poder absolutamente antigo, porque ato eterno de uma vontade que cria e predestina, e sempre nova, porque ato escatológico, incondicionado, livre do devir e do perseverar acontecendo, como subtrair-se. A interioridade da graça não é mais aquela do iluminante ato ontológico que cria e mantém no ser o ato espiritual da mens. É o desejo do próprio Espírito Santo que cria e move o desejo convertido, convertendo-o violentamente de sua solipsística alienação, visto que a origeniana doutrina dos sentidos espirituais não é mais a alegoria da interioridade intelectual da mente imagem. É a revelação da passividade da vontade do eleito, arrancado de si e tornado órgão, dócil instrumento da graça. Portanto, a possibilidade de colocar em prática a lei e de realizar boas obras – de conter na unidade da verdade e da vida virtuosa uma criatura verdadeiramente dispersa na multiplicidade de seu pecaminoso vazio – depende unicamente da graça, que dá a realização daquilo que Deus manda (“Da quod iubes et iube quod vis” X, 29, 40; 31, 45; 37, 60).
A teologia do outro Agostinho, já perfeitamente colocada em evidência com as Confissões, encontra, pois, seu rigorismo na controvérsia com os pelagianos, surgida a partir do ano 411 e continuada até sua morte, em um crescendo de recíproca violência polêmica. Desde o peccatorum meritis et remissione se reforça com nitidez a identificação da humanidade com uma universal massa damnationis. Daí a necessidade do batismo de crianças, sem o qual também elas, que mesmo que não se possa dize serem responsáveis por qualquer pecado pessoal, são destinadas à condenação pela culpa de Adão, a elas transmitida desde a concepção. No ato procriador, de fato, se dá o cume daquela concupiscentia sexual interpretada como desordem psicológica (as paixões do corpo prevalecem sobre a natural hegemonia da mens racional), evidente testemunho da perversão da natureza criada à imagem de Deus. Se, portanto, em toda nova criatura humana a graça criadora de Deus coloca no ser uma natureza boa, esta é contrariada desde sua concepção, porquanto sexualmente contaminada pela culpa do pecado. Este corrompe o mesmo espontâneo deseja, pervertido na raiz, onde evidente é a importância temporal nefasta dessa doutrina sobre a valorização do corpo e da sexualidade na cultura ocidental. A obra-prima de toda a controvérsia antipelagiana é, não obstante, o De Spirito et littera: o espírito não é mais identificado com uma realidade ontológica, divina pois absolutamente imaterial, ou com a qualidade do desejo teologicamente orientado, livremente assumido pela criatura, mas com o Spiritus, a Caritas como pessoal ao trinitário, que permite a reta cognitio de Deus e o reto amor Dei. Deus, pois, não e apenas objeto absoluto, a suprema verdade ontológica e moral que realiza o natural desejo do sujeito finito, mas o indisponível Sujeito do sujeito remido. A identidade profunda do si mesmo é totalmente despossuída: no Dom que o move, o sujeito é libertado de si e do todo colocado na liberdade do Outro, que nunca é definitivamente possuído, mas sempre é confessado como acontecimento por vir, inteiramente gratuito, portanto racionalmente incondicionado e imprevisível. Se não se revela como Espírito intrinsecus operante, Deus mesmo acaba por ser uma littera, uma realidade imperativa conhecida apenas forinsecus conhecida e amada somente extrinsecamente, portanto pervertida em ídolo da criatura, íntegra em seu perverso solipsismo. Assim, através da mesma cognitio Dei, o livre-arbítrio decaído entende na realidade absolutilizar a si mesmo, o próprio amor sui, relativizando o próprio Absoluto. Mas se o Espírito é o indevido ato de graça que irrompe miraculosamente na vontade perversa e a transforma para si, evidentemente o permanecer Deus, simples, extrínseca littera para o conhecimento perverso da criatura depende de seu misterioso não se revelar, de seu não querer se dar como graça intrinsecamente operante, mas sim sobretudo unicamente como objeto de doctrina lex suprema (veterotestamentária, mas racionalmente alcançada pelas mesmas mentes pagãs), até mesmo como graça, mas simplesmente persuasiva, não obstante extrínseca ao dinamismo perverso da liberdade decaída. Isso significa que a oposição entre littera e Spiritus não se prende apenas à relação cognoscitiva do homem com Deus, mas também da diferente modalidade econômico-reveladora do próprio Deus, uma universal e imperativa, a outra não universal, isto e, singular e gratuita. Por trás da oposição littera/Spiritus esconde-se não apenas oposição entre a antiga (Deus se limita a escrever sobre as tábuas de pedra da Lei, deixando que o coração do homem permaneça de pedra: cf. De Sp. et litt. 17,30; Contra duas epistulas Pelagianorum, I, 18, 36 – 20, 38; De gratia et libero arbítrio, 14, 29; 16, 32) e nova aliança (Deus escreve no cor lapideum humano para torna-lo cor carneum: cf. De Sp. et litt. 16, 28 – 19, 32; 20, 35 – 21, 36; De grat. et lib. arb. 7, 16-17; 14, 28 – 15, 31), mas a mesma oposição predestinada entre eleitos e rejeitados, daí o eterno diversificar-se da vontade de Deus. Qualquer doctrina da ordem ontoteológica (a judaica da lex, a platônica da analogia e da transcendência do Fundamento, a origeniana, protoagostiniana e pelagiana da Res per signa, que consideravam a natureza como continuum positivo que permite ao homem elevar-se para Deus), culminante em Deus Veritas, não revela a Deus como ato de misericórdia, mas como ato de juízo, pois não revela Deus como filho crucificado e ressuscitado (portanto, como aquele em que a natureza se revela morta e ressuscitada apenas na graça de Deus) e como Espírito, Caritas absoluta interiormente atuante. Portanto, não só a lex judaica, mas a própria doctrina christiana, ou a lex espiritual biblicamente deduzida in De doct. chr. é apenas littera vã e condenadora, signum incapaz de poder anagógico, se não operado pelo Spiritus: a salvação “é obra da graça. Quem a recebe, se antes era do inimigo da doutrina salutar revelada nas Sagradas Escrituras, torna-se amigo delas; não é obra nem mesmo da própria doutrina revelada, porque todos aqueles que a leem e a escutam, sem a graça de Deus tornam-se adversários ainda mais ferozes. A graça de Deus não consiste, pois, no lire-arbítrio nem na lei ou na doutrina, como devaneava a heresia pelagiana, mas nos é concedida, para toda e qualquer ação, pela vontade de Deus… A lei ou a doutrina divina, embora santa, justa e boa, mata se não a vivifica o Espírito que nos torna capazes de segui-la, não já com o escutá-la, mas com o observá-la, não com o lê-la, mas com o amá-la… Não devemos, pois, dizer que a graça é a doutrina, mas devemos reconhecer que é verdadeira graça aquela que faz de maneira com que a doutrina nos ajude, enquanto vemos que se ela falta, a mesma doutrina se torna até mesmo nociva”(Ep 217, 3, 11 – 4, 12; cf. De gratia Christi, I, 24, 25);
Pela primeira vez em toda história da teologia patrística a graça redentora é concebida como irresistível: “Por isso, prestou-se socorro à fraqueza (infirmitati) da vontade humana tanto que ela se moveu pela graça divina inflexível e insuperavelmente (indeclinabiliter et insuperabiliter); por isso, embora fraco, não faltou e não foi vencida por qualquer adversidade… Para os fracos (infirmis: todos os homens remidos) cuidou para que graças a deu dom invencivelmente (invictissime) quisessem o que é bom e invencivelmente (invictissime) não quisessem abandoná-lo” (De corr. et grat. 12,38); a Deus “nenhum arbítrio humano resiste se ele quer salvar qualquer pessoa” (14, 43). Verdadeiramente Agostinho, autêntico cidadão romano, parece conceber o domínio da graça sobre o livre-arbítrio como um verdadeiro e próprio imperialismo teológico (frequentemente Cristo é definido imperator, enquanto é sabido que a comunidade dos eleitos é concebida como civitas): “Ele, de má, torna boa a vontade dos homens e, depois de tê-la tornado boa, dirige-a para as ações boas e para a vida eterna… De fato, o Onipotente atua (agit) no coração dos homens também o movimento de sua vontade… para inclinar sua vontade para onde quer que queira.” (De grat. et lib. arb. 20, 41; 21, 42-43). Por outro lado, é própria concepção bíblica de Deus como onipotente criador que explica o caráter irresistível de seu dom interior, que cria a Jerusalém celeste: “O Onipotente não pode querer em vão (inaniter) tudo aquilo que quis” (Ench. 27, 103), portanto “a vontade do Onipotente é sempre invencível (omnipotentis voluntas semper invicta est” (26, 102). Mas, com já se salientou, a ação irresistível da graça não aniquila o livre-arbítrio, não subtrai à vontade do homem a responsabilidade da fé, a obrigação de colocar em prática a lei espiritual, portanto, de esforçar-se para a perfeição, de ensinar a doctrina salvífica, exortando à virtude e à ascese cristãs (como se reforça sistematicamente nos últimos tratados anti ou semipelagianos dirigidos aos monges Adrumeto e aos provençais), todavia Agostinho não poderia de modo algum dizer-se católico se tornasse vã toda a economia salvífica eclesiástica. E, com efeito, o próprio crer (dom indevido da graça de Deus), que nutre espiritualmente toda obra boa, é ato livre da vontade humana, mas tal ato é realizado pelo Espírito, que invade o desejo espontâneo da criatura e enamorando-se dela. Os crentes, pois, “não se tornam fieis senão com o livre-arbítrio e, todavia, tornam-se tais em virtude da graça daquele que libertou do poder das trevas seu livre-arbítrio”(Ep. 217, 3, 8; cf. De grat. et lib. arb. 1, 1-3, 5; 9, 21; De pecc. mer. et rem. II, 5, 6; 17, 26 – 19, 33; De praed. sanct. 20, 42; De dono persev. 8,20). Assim, “é certo que somos nós a querer quando queremos, mas a fazer que queiramos o bem é ele… É certo que somos nós a fazer quando fazemos, mas é ele a fazer que nós façamos, fornecendo forças eficacíssimas (vires eficacíssimas) à vontade” (De grat. et lib. arb. 16, 32); “Nós, pois, queremos, mas é Deus quem atua em nós o querer; nós, portanto, agimos, mas é Deus quem atua em nós o agir, segundo seu beneplácito” (De dono persev. 13, 33). Essas evidentíssimas formulações dialéticas concordam catolicamente graça e livre-arbítrio, mas segundo uma inovadora (nunca proposta pela tradição católica precedente!) relação assimétrica, na qual aquela recria este, atualizando-o e convertendo-o, dando-lhe o desejo e a colocação em prática da lei. Deus realiza “seu intento também através da vontade dos próprios homens, porque tem o poder onipotente de inclinar os corações dos homens por onde quer… Age a partir de dentro, toma posse dos corações, move os corações e atrai os homens por meio de sua vontade que ele mesmo realizou neles” (De corr. et grat. 14, 45). Não apenas qualquer insustentável interpretação sinergística, mas também alguma acusação de incoerência ou de oscilação comprometedora é refutada pela rigorosa, reforçada introdução dialética destas afirmações. A graça dá ao livre-arbítrio do escolhido, no lugar da “concupiscentia mala” uma nova “concupiscentia bona” (De sp. et litt. 4, 6), uma “ineffabilis suavitas” (De grat. chr. I, 13, 14), uma “vitrix delectatio” (De pecc. mer. et rem. II, 19, 32). A “delectatio caritatis”, capaz de substituir a “delectatio peccati” (Opus imperfectum contra Iulianum, I, 107), determina um novo dinamismo espontâneo em seu desejo, nunca coarctado. Por outro lado, a mesma inovadora doutrina agostiniana do “servum arbitrium” (Contra Iulianum, II, 8, 23), do “arbitrium… peccati servum” (De corr. et grat. 13, 42; cf. Contra Epp. Pelag. I, 3, 6-7; III, 9, 25; IV, 3, 3; Op. imp. I, 79-82) restitui a liberdade do homem como irresistivelmente atraída pelo pecado, portanto como prisioneira de um dinamismo autístico e solipsístico, que Agostinho traduz na imagem profética do coração de pedra: “Este coração de pedra não significa outra coisa senão a vontade mais dura (duríssima), que absolutamente não se dobra diante de Deus” (De grat. et lib. arb. 14, 29). Ao contrário, o livre-arbítrio agraciado escolhe fazer espontaneamente (não invitus) apenas aquilo que agora deseja unicamente por graça de Deus; nem obviamente pode resistir, querer contra a graça que opera nele um novo querer, dando-lhe uma nova raiz ( = coração ou delectatio) do desejo. A graça, portanto, é ao mesmo tempo “praeveniens” (cf. De nat. et grat. 31, 35; Contra Epp. Pelag. II, 10, 21-22; De dono persev. 16, 41); “cooperans” (cf. De nat. et grat. 31, 35; De grat. et lib. 17, 33; Enarr. in Ps. 77, 8); “subsequens” (cf. De nat. et grat. 31, 35; Contra Epp. Pelag. II, 10, 22): precavém indevidamente a liberdade, atuando nela um novo dinamismo espiritual; coopera com o novo desejo espiritual do livre-arbítrio por ela mesma aceso, realiza e aperfeiçoa os esforços do livre-arbítrio por ela mesma aceso, realiza e aperfeiçoa os esforços do livre-arbítrio por ela mesma movido para o bem, tornado portanto capaz de merecer e de invocar um aperfeiçoamento posterior de seu desejo. Por isso qualquer merecimento da criatura é dom de Deus (cf. De grat. et lib. arb. 6, 13 – 8, 20). “Ele faz, sim, que nós queiramos sem necessidade de nós, mas quando queremos e queremos de maneira tal para agir, coopera conosco. Todavia, sem ele que age a fim de que nós queiramos ou coopera quando queremos, nós não somos competentes para nenhuma das boas obras de piedade” (17, 33). Se cada ato do homem é obra e dom de Deus, dependente da ação de sua graça que irresistivelmente inicia, desenvolve e realiza o dinamismo da liberdade, a ação de graça – não universal: evidentemente nem todos os homens querem o amor de Deus (genitivo subjetivo, mais que objetivo), portanto não são queridos por Deus, que nunca quer em vão – não pode senão depender de um decreto divino de predestinação (como obsessivamente é reforçado por Ad Simpl. I, 2 para Op. imp.). Presciência e predestinação, pois, não coincidem verdadeiramente: enquanto a presciência de Deus é o conhecimento de tudo isso que acontece e que, todavia, Deus quis que acontecesse, depois disto que ele mesmo pratica (o bem), e disso que realiza espontaneamente a criatura (o bem e o mal), a predestinação se identifica com a eterna vontade divina de praticar o bem, ou seja, é relativa unicamente ao que o próprio Deus realiza pessoalmente: “Predestinar é para Deus dispor suas obras futuras, exatamente isto e nada mais… Predestinar para Deus é conhecer com precedência aquilo que ele mesmo fará” (De dono persev. 17, 41; 18, 46).
O De natura et gratia é dedicado a aprofundar a conexão entre plano ontológico e plano carismático, pensada segundo uma modalidade ainda uma vez radicalmente inovadora em relação à tradição católica precedente. O âmbito da criação, desgastado pelo pecado, não era de fato descrito com tanta negatividade, daí a lição do Eclesiastes parecer reforçada por um eco radicalmente cético, embora a mesma persistente afirmação da bondade da natureza criada coexista com a confissão de sua paradoxal vacuidade por obra do mal (cf. Ench. 4, 13) e com a amarguíssima ironia que liquida como vão sofisma a platonizante objeção pelagiana (já origeniana e agostiniana) que o mal não tem realidade, porque não pode corromper a natureza criada por Deus (cf. 19, 21 – 23, 25). De fato, para o outro Agostinho, “a natureza foi ferida, machucada, danificada, arruinada: tem necessidade de uma sincera confissão e não de uma falsa defesa” (53, 62). Apenas a confissão dessa contradição ontológica e o confiar qualquer esperança na graça de Cristo e na ressurreição espiritual dada em seu Espírito podem cristologicamente manter juntos esse verdadeiro e próprio niilismo do pecado com a fé na bondade onipotente de Deus. De outro lado, se em Cristo o próprio Deus morre; se, pois, a natureza tem a necessidade de uma tão abissal e paradoxal salvação, o dano que a contradiz deve ser igualmente abissal e paradoxal. E, assim, a afirmação pelagiana de uma natureza e de uma liberdade humana ainda íntegras, não obstante o mau precedente do pecado de Adão, esvazia o mistério tremendo da encarnação de Deus em Cristo, degradado (como o mesmo Agostinho todavia havia feito até o De doct. chr. interrompido) como simples exemplo imitável: “Considerai agora o ponto essencial: como (Pelágio) tenta apresentar a natureza humana quase como se fosse absolutamente sem vícios… Nada foi ferido, nada machucado, nada enfraquecido e estragado… Mas, se o poder natural basta por si mesmo mediante o livre-arbítrio, seja para conhecer como viver, seja para viver bem, então Cristo morreu em vão e é anulado o escândalo da cruz… Vós, que procurais a justificação na natureza, decaíste da graça” (De nat. et grat. 19, 21 e 40, 47). A morte de Deus em Cristo, portanto, revela a morte da natureza (“natura moriens”: De gest. Pel. 9, 21), ou o Deus redentor demonstra que o Deus criador pôde – e quis: voltamos ao mistério impenetrável da predestinação! – ser contradito em sua vontade de plenitude do bem pelo pecado de Adão. Nesse sentido, ainda uma vez, a vontade redentora de Deus se revela não coincidente com a vontade criadora de Deus: enquanto esta quer paradoxalmente entrelaçar-se com o mistério da eleição da criatura escravizada ao pecado; enquanto esta quer provar, julgar e condenar toda a humanidade (que, no único homem verdadeiramente livre para determinar-se, precipita no nada da morte e do pecado), aquela quer absorver, perdoar e assumir um número restrito de escolhidos, indevidamente subtraídos de um universal destino de condenação. Note-se a forçada exegese de 1Tm 2,4 (in. Ench. 27, 103; Contra Iul. IV, 8, 22-24; De praed. sanct. 10, 19; Op. imp. II, 135-136; 147-148; 175; 209; Ep. 217, 6, 19), daí o ditado bíblico que afirma que Deus quer que todos os homens sejam salvos ser considerado inaceitável e distorcido na interpretação de que Deus quer que sejam salvos apenas todos aqueles que quis escolher, ou os homens de todos os gêneros de categorias; ou se confronta a insistente polêmica agostiniana contra o “paradisum Pelagianorum” (Op. imp. I, 67; II, 236; III, 160-162; IV, 114; V, 15; VI, 26-31), identificando com esta mesma existência não contrariada por qualquer pecado radical. Somente a atribuição a Adão de um pecado ontologicamente devastador, justamente punido por Deus, permite ter juntas racionalmente a perfeição da criação originária e a arrasadora evidência da morte e do mal na criação do Onipotente, concordando catolicamente (contra marcionitas, gnósticos, maniqueus) a justiça do Deus criador e juiz da liberdade do homem com a novidade do Deus redentor que, em Cristo, dá uma graça paulinamente indevida. E, com efeito, o terrível paradoxo, ao mesmo tempo eminente e subversivamente católico sobre o qual se funda toda a teologia do outro Agostinho é que o único Deus revela uma universal graça da criação inferior a uma não universal graça da redenção, isto é, o Deus cristão não quis dar a todas as suas criaturas aquela “maior… potentior gratia” (cf. De corr. et grat. 11, 29 e 31; 12, 32-33; Ench. 28, 106) que quis dar só aos eleitos, embora algumas criaturas tinham sido queridas por Deus apenas para revelá-las e puni-las – ainda que de modo totalmente justo – por sua livre vaidade. Em De corr. et grat. 11, 32 e 12, 34 (cf. De grat. chr. I, 3, 3) é exatamente afirmada a distinção entre:
a) a graça da criação (adiutorium sine quo non), necessária e suficiente, mas não absolutamente eficaz, enquanto remetia a Adão a plena responsabilidade do exercício do próprio livre-arbítrio, com o qual ele devia aceitar a ajuda de Deus e merecer com isso a eternidade;
b) a graça da redenção (adiutorium quo), necessária e absolutamente eficiente enquanto atuando irresistivelmente a boa vontade da criatura.
Certamente, se reapresenta a suprema questão da teodiceia: por que Deus não deu sua graça redentora já para Adão, ou por que o Verbo não se encarnou no primeiro homem criado? Por que tentar a humanidade, antecipadamente conhecida como lapsa, para depois remir apenas uma parte? Por que dar a Adão no éden apenas uma “umbra vitae” (Ench. 8, 25), para depois reservar a autêntica construção da civitas Dei para sempre limitada (porque historicamente e não protologicamente realizada) economia cristã da graça? A única resposta agostiniana – honesta e desanimadora – é a confissão do mistério da abissal predestinação divina eternamente disposta pelo Incondicionado, que não deve ao homem razão nenhuma de seu querer (cf. Ep. 186, 7, 22-24), mistério apenas iluminado (ou melhor, obscurecido!) pelo terrível, recorrente argumento da harmonia dos contrários (cf. Ad Simpl. I, 2, 18; De civ. Dei XI, 17-18; XVI, 26-27; Ench. 3, 11; 26, 100; De grat. et lib. arb. 20, 41 – 23, 45; De praed. sanct. 8, 16 – 19, 17; Ep. 190, 3, 9-12), segundo o qual, através da analogia antitética entre Adão (e a civitas ímpia) – lapso porque dotado de uma graça sinergisticamente atuante em conexão com sua liberdade – e Jesus (e a civitas Dei) – o homem predestinado indevidamente a unir-se com o Verbo – salientam a impotência condenadora da liberdade e da natureza humanas e a onipotência redentora da graça de Deus; daí, pois, a diferença entre o Deus criador e terrível juiz (ao criar uma natureza abandonada a sua perversa autonomia e depois justamente condenada) e o Deus redentor (que, em Cristo, se torna hipostaticamente um com o homem; em seu Espírito, se torna um com o desejo escolhido). Portanto, na cristologia agostiniana assiste-se à suprema verificação de sua teologia da graça e à coerentíssima, completa transformação da cristologia origeniana (cf. De princ.. II, 6, 3-6): se nenhuma liberdade preexiste ao nascimento mundano e nenhum mérito pode condicionar o milagre supremo da encarnação, com o qual o Verbo se une hipostaticamente a uma simples criatura, só a predestinação pode explicar a eleição do homem Jesus para se tornar hipostaticamente, inseparavelmente um com o Verbo: “Praeclarissimum lumen praedestinationis et gratie ipse Salvator” (De praed. sanct. 15, 30; cf. De Trin. XIII, 17, 22; XV, 19, 34; 26, 46; De pecc. mer. et rem. II, 17, 27; De civ. Dei X, 29, 1; Ench. 10, 34 – 12, 41; De corr. et grat. 11, 30; Op. imp. IV, 84-89).
FONTE:
Literatura patrística / sob a direção de Angelo di Bernardino, Giorgio Fedalto, Manlio Simonetti; [tradução José Joaquim Sobral]. São Paulo: Editora Ave-Maria, 2010. pp. 837 – 851.
PARA CITAR
BERNARDINO, A; FEDALTO, G; SIMONETTI, M (Orgs.). As doutrinas da graça e do livre-arbítrio em Santo Agostinho. Disponível em: <http://apologistascatolicos.com.br/index.php/patristica/estudos-patristicos/840-a-doutrina-da-graca-e-do-livre-arbitrio-em-santo-agostinho>. Desde: 15/12/2015.