NOTA: Originalmente publicado na edição de Novembro de 1999 da revista The Angelus, este artigo é a defesa precisa de um capítulo muito incompreendido da história da Igreja Católica. Jean-Claude Dupuis é PHD em historia pela Laval University de Quebec, Canadá.
Os supostos horrores da Inquisição costumam ser os primeiros argumentos dos inimigos da Igreja. Voltaire falou “daquele tribunal sangrento, aquela terrível lembrança do poder monástico”[1]. A lenda negra da Inquisição impregnou nossas mentes de tal modo que, hoje, a maioria dos católicos é incapaz de defender essa fase da história da Igreja. Na melhor das hipóteses, eles justificam a Inquisição lembrando que ela existiu num período muito mais bárbaro e violento que o da nossa época “iluminada”.
Os santos que viveram na época da Inquisição nunca criticaram-na, exceto para dizer que ela não combatia as heresias o suficiente. O Santo Ofício examinou minuciosamente os escritos de Santa Teresa D’Ávila para verificar se não se tratava de uma falsa mística, porque naquela época havia muitos falsos místicos na Espanha, como os Alumbrados[2]. Longe de enxergar nisso um sistema de intolerância, a santa confiou plenamente no julgamento do Tribunal, que não encontrou nada herético em seus escritos. Também é evidente que os santos nunca hesitaram em denunciar os abusos do clero: esta é uma das suas principais missões. Como alguém lida com o fato de que nenhum deles disse algo contra a Inquisição? Como explicar que a Igreja canonizou nada menos que 04 grandes inquisidores: Pedro, o Mártir (morto em 1252), João de Capistrano (morto em 1456), Pedro de Arbués (morto em 1485) e Pio V (morto em 1572)? O próprio São Domingos (morto em 1221) foi um dos primeiros inquisidores.
As críticas à Inquisição por autores católicos só começaram a aparecer no século 19, e apenas entre os católicos liberais, dado que os ultramontanos (movimento de católicos que buscam máxima fidelidade ao Papa) defendiam vigorosamente o Tribunal[3]. Antes da Revolução Francesa, o discurso anti-inquisição era especialidade dos protestantes. O historiador Jean Dumont, atualmente o melhor defensor da Inquisição[4], ressalta que gravuras do século 16 retratando Autos de Fé (anúncio público da sentença dos investigados pela Inquisição) exibiam construções com telhado triangular. Este tipo de arquitetura era comum nos Países Baixos e no vale do Reno, não na Espanha. Esse detalhe revela as origens protestantes das gravuras. De fato, a lenda negra da Inquisição é produto da propaganda protestante, que foi transmitida ao século 18 pela filosofia iluminista, ao século 19 pela Maçonaria e ao século 20 pela “democracia cristã”.
Como se não bastasse, os mais sérios estudos históricos demonstraram que a Inquisição era um tribunal honesto, que buscava mais a conversão dos hereges que sua punição; um tribunal que condenou poucas pessoas à morte, e que empregou tortura apenas em casos excepcionais[5]. No entanto, a lenda negra da Inquisição ainda circula na opinião pública. Voltaire disse que uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade, mas o motivo fundamental da persistência dessa lenda é outro. Será trabalho perdido provar que a Inquisição não foi tão terrível quanto acreditávamos. Isso não vai convencer o público moderno, porque é o princípio da repressão religiosa que é inaceitável hoje. Então, para entender o evento histórico da Inquisição, é preciso compreender primeiro a doutrina tradicional da Igreja Católica sobre a liberdade religiosa.
O Direito à Exclusividade Religiosa
O princípio da liberdade religiosa está em completa ruptura com a tradição da Igreja. O Syllabus dos Erros (1864) particularmente condena os seguintes erros:
§ 24) A Igreja não tem poder de empregar a força nem poder algum temporal, direto ou indireto.
§ 77) Na nossa época já não é útil que a Religião Católica seja tida como a única Religião do Estado, com exclusão de quaisquer outros cultos.
§ 79) É falso que a liberdade civil de todos os cultos e o pleno poder concedido a todos de manisfestarem clara e publicamente as suas opiniões e pensamentos produza corrupção dos costumes e dos espíritos dos povos, como contribua para a propagação da peste do Indiferentismo. [6]
A doutrina do Syllabus, que reconheceu o poder da Igreja e do Estado de intervir em matéria religiosa, estava de acordo com a tradição católica. O Papa Leão X (1513-1521) condenou a ideia de Lutero que a Igreja não tinha o direito de queimar hereges. Bellarmino e Suarez também defenderam o direito da Igreja impor a pena de morte, desde que a sentença seja executada pelo poder secular, isto é, pelo Estado[7]. S. Tomás de Aquino apoiou o uso de coerção, até mesmo física, para combater heresias. S. Agostinho apelou à autoridade imperial (romana) para suprimir o cisma donatista. O Antigo Testamento punia com a morte idólatras e blasfemos.
O poder da coerção religiosa repousa nos deveres do Estado para com a verdadeira religião. A lei divina não se aplica apenas aos indivíduos: ela inclui toda a vida social. O Cardeal Ottaviani resume as consequências dessa doutrina:[8]
- A profissão social, não apenas privada, da religião do povo;
- Legislação plenamente inspirada pelo conceito de pertença ao Corpo Místico de Cristo;
- A defesa do patrimônio religioso das pessoas contra qualquer tentativa de privar o povo do tesouro que é a sua fé, e da paz religiosa (Duties of the Catholic State in Regard to Religion, 1953, traduzido pelo Pe. Denis Fahey, CSSp, p. 7)
Os partidários da liberdade religiosa sempre invocam a tolerância e a caridade evangélica contra a doutrina tradicional da Igreja, que prega o dever da intolerância contra as falsas religiões. Este conflito não passa de um sofisma. É certo que Nosso Senhor Jesus Cristo teve compaixão dos pecadores, mas ele demonstrou severidade implacável com os hereges da época, os fariseus. Os modernistas evitam as passagens do Evangelho que mostram a firmeza de Cristo. Não é o inferno, que é o castigo por não crer (Marcos 16:16), muito pior do que o mais terrível castigo que um tribunal humano pode impôr? São João proíbe até mesmo receber hereges (2 João vs 10). São Paulo milagrosamente cega o falso profeta Barjesus[9]. São Pedro não hesita em condenar à morte Ananias e Safira, que roubaram a Igreja (Atos 5:1-11).
No verdadeiro Evangelho não existe essa tibieza moral e doutrinária que os modernistas chamam de “tolerância” ou “liberdade de consciência”. Cristo foi paciente e misericordioso com pecadores arrependidos, mas Ele nunca reconheceu o direito de errar. Ele condenou publicamente os pregadores obstinados de erros. A atitude adotada pela Inquisição contra os hereges é comparável àquela do Nosso Senhor.
O argumento anti-inquisição resulta da confusão entre a liberdade de consciência e a liberdade religiosa. O ato de fé precisa ter livre consentimento, dado que ele é um ato de amor a Deus. Amor forçado não é amor. É por isso que a Igreja sempre se opôs às conversões forçadas. As famosas gravuras retratando monges que empunhavam o crucifixo aos índios, enquanto o soldado ameaça-os com a espada, é fruto da propaganda protestante. Se uns poucos monarcas forçaram o batismo de povos conquistados, como o fez, por exemplo, Carlos Magno na Saxônia (em 780), isto foi feito contra a vontade da Igreja.
Mas se a Igreja reconhece a liberdade de consciência do indivíduo no íntimo do seu ser, se o indivíduo é livre para, arriscando sua salvação, recusar a fé, não significa que ele tem o direito de propagar seus erros e levar outras almas para o inferno. A Igreja respeita a liberdade de consciência individual, mas não a liberdade de expressar e propagar falsas doutrinas.
No entanto, apesar da Igreja negar o direito à expressão pública de falsas religiões, ela não necessariamente as persegue. Para evitar um mal maior, como a guerra civil, a Igreja pode tolerar outros credos. Isto foi o que Henrique IV fez em 1598, quando promulgou o Edito de Nantes, que garantiu certa liberdade aos protestantes franceses. Mas essa tolerância não é um direito. Quando as circunstâncias políticas permitem, o Estado católico tem o dever de restabelecer os direitos exclusivos do Catolicismo, como Luís XIV fez quando revogou o Edito de Nantes em 1685. O Papa elogiou o “Rei Sol” por tomar essa medida.
Naturalmente, a doutrina tradicional da Igreja sobre a exclusividade religiosa só se aplica aos países onde o Estado é oficialmente católico. A harmonia entre o clero e o Estado é a ordem normal nessas sociedades. Sobre esse aspecto, a Inquisição foi um modelo de harmonia entre a Igreja e o Estado, dado que o tribunal exercia dupla jurisdição, religiosa e civil.
A ideia central da Inquisição é que a heresia professada publicamente é um crime similar a qualquer outro[10]. Se a religião é o fundamento da moral, e a moral é o fundamento da ordem social, decorre que a falsificação da fé leva, em última instância, ao caos social. São Tomás compara os hereges aos falsificadores, que eram condenados à fogueira na Idade Média. Logo, o Estado, como guardião da ordem pública, tinha o dever de combater a heresia. Mas na sua esfera de competência ele era incapaz de distinguir entre heresia e ortodoxia. Por isso ele deveria depender de um tribunal eclesiástico.
É preciso ter em mente, acima de tudo, que a Inquisição não se preocupava com as opiniões privadas dos hereges, mas apenas com a propagação pública de heresias. A Inquisição não cometeu nenhum crime contra a consciência individual, agindo apenas contra as atividades públicas dos hereges.
Para entender a lógica da Inquisição, é preciso se libertar da mentalidade naturalista peculiar à cultura atual. Nas sociedades cristãs do Antigo Regime, a vida sobrenatural era muito mais importante que a vida natural. Se um assassino do corpo era condenado à morte, muito mais motivos teria o herege para ser condenado, uma vez que ele levava outras almas ao inferno, e a morte da alma, eterna, é muito pior que a morte do corpo.
Obviamente, a visão de mundo que fundamenta a lógica da Inquisição, repousa no princípio de que a verdade e o erro são objetivos, que a fé católica é verdadeira e que existe a condenação eterna. Estas ideias são impossíveis de serem assimiladas pelas mentes modernas, mergulhadas no relativismo. Um relativista é incapaz de compreender a Inquisição. Ele vai se escandalizar com a barbaridade dos tempos antigos e com o obscurantismo da Igreja; ele vai se contentar em fazer julgamentos que não levam em conta a época dos fatos. Mas o historiador precisa tanto compreender quanto explicar. Para fazer isso, ele precisa deixar o modo moderno de pensar e se colocar na cosmovisão da época que ele estuda[11]. Então ele poderá compreender a Inquisição, e isso o fará, quase que inevitavelmente, justificar as ações do Tribunal.
Geralmente distinguem dois tipos de Inquisição: a Inquisição Medieval (1233-século 18) e a Inquisição Espanhola (1480-1834). Frequentemente, a primeira é chamada de Inquisição “religiosa” e a última de Inquisição “política”, mas essa divisão não se sustenta, uma vez que os Tribunais eram criação conjunta da Igreja e do Estado. Foram alguns autores católicos, bem intencionados porém mal informados, que criaram essa divisão, para tentar tirar dos Papas o “horror” da Inquisição e depositá-lo na conta dos reis espanhóis[12]. De acordo com eles, existiu a Inquisição “boa”, medieval, que pretendia apenas proteger a fé, e a Inquisição “má”, espanhola, que pretendia reforçar o absolutismo real. Mas essa divisão não tem fundamento. A Inquisição Espanhola não era mais violenta ou mais política que a Inquisição Medieval. As duas inquisições são melhor compreendidas considerando-se os inimigos que cada uma combateu: os Cátaros e os Marranos.
A Ameaça dos Cátaros
A heresia dos cátaros espalhou-se por toda a Europa entre os séculos 11 e 13. Ela prosperou especialmente no Languedoc (sul da França), daí o nome de heresia albigense (da cidade de Albi), pelo qual a heresia também é conhecida. A palavra “cátaro” vem do grego katharos, que significa “puro”. Na verdade, chamar o movimento cátaro de heresia cristã não é apropriado; ele mais parece uma nova religião[13]. Sua origem continua obscura, mas sua doutrina se parece com as filosofias gnóstica e maniqueísta que circularam no Oriente Médio durante os séculos 3 e 4. Note também que a Maçonaria alega ser herdeira dos mistérios iniciáticos dos cátaros, através dos Templários.
De acordo com os cátaros, dois deuses dividiram o universo. O deus bom criou o mundo espiritual, e o mau criou o mundo material. O homem é fruto dos dois deuses. Ele é um anjo caído aprisionado num corpo. Sua alma veio do deus bom, mas seu corpo veio do deus mau. O objetivo do homem seria libertar a si mesmo da matéria através da purificação espiritual, que demandaria uma série de reencarnações.
Como todos os hereges, os cátaros diziam que sua doutrina era o verdadeiro Cristianismo. Eles mantiveram a terminologia cristã mas distorceram suas doutrinas. Eles diziam que Cristo era o anjo mais perfeito de todos e que o Espírito Santo era uma criatura inferior ao Filho. Também ensinavam que o Antigo Testamento era obra do deus mau, enquanto o Novo Testamento era fruto do deus bom. Eles negavam a Encarnação, a Paixão e a Ressurreição de Jesus, e afirmavam que a Redenção resultou mais dos ensinamentos evangélicos que da morte na Cruz.
Os cátaros diziam que a Igreja se corrompeu desde a época de Constantino, e eles rejeitavam todos os sacramentos. Sem dúvida, o movimento cátaro foi uma forma de paganismo com um toque de Cristianismo, o que o torna semelhante ao Budismo em certos pontos.
Se o mundo material é intrinsecamente mau, a ética cátara condenava todo contato com a matéria. Casamento e procriação eram proibidos porque ninguém podia colaborar com o trabalho do Diabo, que procurava aprisionar almas em corpos. Como a morte era a libertação, o suicídio era encorajado. Eles aplicavam a “endura” (jejum forçado) aos doentes e às vezes até às crianças, matando-os por inanição, para acelerar o retorno da alma ao Céu. Os cátaros se recusavam a fazer juramentos sob o pretexto de que Deus não se misturaria com assuntos materiais. Toda forma de riqueza era condenada.
Os cátaros desejavam alcançar um estado de “desencarnação” similar dos fakirs (ascetas hindus). Além disso, os cátaros negavam o direito do Estado declarar guerra ou punir criminosos.
Obviamente, uma religião dessas não atrairia muitos fiéis. Por isso o movimento cátaro criou duas classes de fiéis: os “perfeitos” e os simples crentes. Os primeiros, poucos em número, eram os iniciados, que viviam em comunidades isoladas inteiramente obedientes à moral cátara. Os segundos, a vasta maioria, viviam livres de qualquer dever moral, tanto em matéria sexual quanto em assuntos comerciais.
Os cátaros não se submetiam às leis cristãs que proibiam a usura e estabeleciam o princípio do preço justo. O crente cátaro tinha a garantia de ir para o Céu: bastava receber, antes de morrer, o “consolamentum”, um tipo de extrema-unção.
Imoralidade sexual, contracepção, aborto, eutanásia, suicídio, capitalismo brutal, intenso materialismo e salvação para todos; é impressionante perceber como a moral cátara parece com o liberalismo moderno.
Os cátaros ensinam uma moralidade dupla: ascetismo para a minoria e libertinagem para a maioria, com o agravante da garantia de salvação eterna com pouco esforço. Agora é possível compreender porque essa heresia fez tanto sucesso.
Entretanto, a imensa maioria das pessoas permaneceu fiel ao Catolicismo. Os cátaros eram basicamente os mercadores urbanos. Eles não eram muitos, talvez 5% ou 10% da população do Languedoc, mas eram ricos e poderosos. Alguns praticavam a usura. O conde de Toulouse (França), o nobre mais importante do Languedoc, aderiu à heresia cátara.
Longe de serem pobres vítimas indefesas duma Inquisição fanática, os cátaros formavam um grupo poderoso e arrogante que propagava uma doutrina imoral, oprimia os camponeses católicos e perseguia padres. Eles assassinaram até o Grande Inquisidor, São Pedro Mártir (também conhecido como São Pedro de Verona).
A Igreja mostrou grande paciência antes de tomar medidas contra a ameaça cátara. As heresias albigenses foram condenadas no Concílio de Toulouse em 1119, mas até 1179 Roma se limitou a enviar pregadores ao Languedoc, tais como São Bernardo e São Domingos. Estas missões tiveram pouco sucesso.
Em 1179, o Terceiro Concílio Laterano solicitou a intervenção das autoridades civis. O rei da França, o rei da Inglaterra e o imperador alemão já haviam iniciado, por iniciativa própria, a repressão da heresia cátara, porque esta ameaçava a ordem social por suas doutrinas perversas sobre a família e os juramentos.
Lembre-se que o sistema feudal dependia do juramento que um homem fazia a outro. Negar o valor do juramento era tão grave para a sociedade medieval quanto a negação da autoridade da lei na sociedade moderna.
Como se não bastasse, os pregadores cátaros passaram a encorajar a anarquia e a comandar milícias armadas, conhecidas por diferentes nomes nos países onde atuaram (“cotereaux”, “routiers”, “patarins”, etc). Estas milícias saqueavam igrejas, assassinavam sacerdotes e profanavam a Eucaristia. Os cátaros foram tão violentos e sacrílegos quanto os Protestantes do século 16 ou os revolucionários franceses de 1793. Em 1177 o rei da França, Filipe Augusto, precisou exterminar 7 mil desses loucos, e o bispo de Limoges marchou contra 2 mil anarquistas. Acontecimentos idênticos ocorreram na Alemanha e Itália. Em 1145, Arnaldo de Brescia e seus “patarins” conquistaram Roma e exilaram o papa. Ele proclamou uma república e permaneceu no poder por dez anos, até a cidade ser tomada pelo imperador alemão Frederico Barbarossa e ele ser condenado à fogueira pelo imperador. O movimento cátaro provocou desordem social em toda a Europa, e reinava sobretudo no Languedoc.
Em 1208, homens de Raimundo VI, conde de Toulouse, assassinaram o legado papal, o Beato Pedro de Castelnau. Finalmente, Inocêncio III decidiu conclamar a Cruzada contra os Albigenses. Ela foi liderada por franceses do norte sob o comando de Simon de Montfort. Os cátaros resistiram por 04 anos (1209-1213) e rebelaram-se novamente em 1221, o que mostra sua força. Sua última fortaleza, Montségur, só foi conquistada em 1244. Mas este não foi o fim da heresia cátara: ela se transformou numa sociedade secreta, de modo bem semelhante à Maçonaria.
Como em toda guerra, foram cometidos excessos na Cruzada Albigense. A tomada de Béziers (1209) foi um grande massacre. Era impossível saber quem eram os cátaros e quem eram os católicos na população da cidade. Dizem que o legado papal, Arnaldo de Citeaux, exclamou: “Matem todos eles. Deus saberá quem é católico”. Esta afirmação é apócrifa e provavelmente faz parte do imaginário anticatólico, mas serve para demonstrar um fato inegável: os cátaros, que praticaram a usura e a imoralidade por tanto tempo, atrairam a ira do povo sobre si.
A Inquisição conteve o massacre que ocorreria em toda a Europa, distinguindo os hereges dos fiéis, e os líderes dos seguidores, aplicando penas proporcionais aos vários graus de heresia.
Por fim, a Inquisição foi um trabalho humanitário: ao punir severamente os líderes, ela salvou a massa dos cátaros, que era mais vítima do que responsável pela heresia. Ao caçar os hereges que se esconderam, ela evitou o renascimento do movimento cátaro e de toda a desordem social e moral que essa heresia provocou.
Um historiador hostil à Inquisição não hesitou em concluir que na Cruzada Albigense
“a causa dos fiéis (católicos) não era outra que a da civilização e do progresso… Se esta crença (a heresia cátara) conquistasse a maioria dos fiéis, ela levaria a Europa de volta à selvageria dos tempos primitivos”[14]
A Ameaça dos Marranos
Agora vamos avançar alguns séculos e atravessar os Pireneus (montanhas na fronteira entre a França e a Espanha) para estudar a outra ameaça que a Inquisição conseguiu vencer: os Marranos.
A Espanha Medieval estava dividida em vários reinos cristãos e islâmicos. Em 1469, o casamento de Isabela, rainha de Castela, e Fernando, rei de Aragão, facilitou a unificação da Espanha e permitiu que a Reconquista terminasse ainda em 1492, com a tomada de Granada.
Também havia na Espanha, desde o início da Idade Média, uma comunidade judaica considerável. Judeus, cristãos e islâmicos não viviam separados, mesmo que suas relações nem sempre tenham sido pacíficas. Um grande número de judeus se converteu ao Catolicismo mas continuou a praticar o Judaísmo em segredo.
Lembre-se que o Talmude permite ao judeu fingir conversão para evitar perseguição. Estes judeus pseudo-cristãos eram os Marranos.
Contrariando o que todo mundo acredita, os marranos não se converteram sob ameaça, apesar dos pogroms (surtos de perseguição contra os judeus) de 1391. Os marranos pretendiam se infiltrar na sociedade cristã para controlá-la. Sua estratégia de alianças matrimoniais era muito eficaz, tanto que no século 16 a maioria das famílias nobres da Espanha possuía alguns judeus entre seus ancestrais. Cervantes refere-se a esse fenômeno de ascensão social quando Sancho Pança diz a Dom Quixote: “que eu cristão-velho sou, e para ser Conde isto me basta.“, ao que o Quixote responde: “E até sobeja – disse D. Quixote – e ainda que o não foras, que importara isso para o caso?”[15]
Isabela de Castela quase se casou com um rico agiota marrano, Pedro Giron, mas Deus não permitiu isso. O Shylock[16] castelhano morreu no caminho para ver sua noiva, depois de se recusar a receber os Sacramentos cristãos e blasfemar o Santo Nome de Jesus.
Os marranos não se contentaram em se infiltrar na nobreza espanhola; eles também se infiltraram no clero. Naquela época, fazer uma coisa era fazer a outra, dado que os escalões superiores do clero normalmente vinham da nobreza. Alguns sacerdotes marranos ensinavam o Talmude nas suas igrejas. O bispo de Segovia, Juan Arias de Ávila, concedeu um enterro judaico a seus pais, que renunciaram ao Cristianismo. O bispo de Calahorra, Pedro d’Aranda, negou a Trindade e a Paixão de Cristo. A Castillan Jewish Encyclopedia afirma que os marranos “procuravam debilitar o Catolicismo espanhol”.
Na sua Histoire des Marranes (1959), o especialista judeu Cecil Roth escreve:
“A vasta maioria dos conversos (outro nome dos marranos) trabalhou de maneira insidiosa por seus próprios interesses dentro dos corpos políticos e religiosos, condenaram, muitas vezes abertamente, a doutrina da Igreja e contaminaram por sua influência todo o corpo dos fiéis. A judaização do Catolicismo espanhol sob a influência dos marranos explica em parte a popularidade de Erasmo de Roterdã, precursor de Lutero, nesse país. Roma temia seriamente o surgimento de um reino judeu na Espanha”[17]
Um segundo problema se somou ao problema religioso. Os marranos compraram cargos públicos em várias cidades espanholas, esmagando os cristãos-velhos sob o peso dos impostos. Ocorreram alguns levantes populares contra o poder marrano em Toledo e Ciudad Real em 1449. Os marranos retomaram o controle dessas cidades em 1467 e massacraram muitos cristãos-velhos. Outros massacres aconteceram em Castela (1468) e Andaluzia (1473). A Espanha estava à beira de uma guerra civil racial e religiosa. Esta guerra, que seria terrível, foi evitada graças à Inquisição.
Nem todo judeu convertido era marrano. Vários dentre eles eram católicos sinceros. Um exemplo é Santa Teresa d’Ávila, neta de um marrano que foi condenado pela Inquisição.
De fato, os judeus verdadeiramente convertidos eram os maiores inimigos dos marranos. Os antigos rabinos Salomão Halevi e Yehoshua Ha-Lorqui, respectivamente bispo de Burgos sob o nome de Pablo de Santa Maria, e Irmão Jerônimo da Santa Fé, escreveram violentos artigos contra o Judaísmo.
O historiador Henry Kamen nota que os principais polemistas anti-judaicos eram ex-judeus. Foram eles que clamaram por um Tribunal da Inquisição para distinguir entre os convertidos sinceros e os falsos. O primeiro Grande Inquisidor espanhol, Tomás de Torquemada, era um judeu convertido. Além disso, muitos marranos judaizaram sua fé apenas por causa de tradições familiares ou de má formação católica. A Inquisição precisava distinguir os marranos que intencionalmente alteraram a integridade da fé e aqueles que eram vítimas de catequização insuficiente.
A Inquisição Espanhola foi criada por uma bula papal em 1478. A ação desse Tribunal protegeu a Igreja espanhola e evitou um pogrom generalizado. Diante da ameaça dos marranos, assim como no caso dos cátaros, a Inquisição procurou neutralizar os líderes da heresia a fim de poupar a maioria dos hereges.
O Processo Inquisitorial
O processo inquisitorial variou de acordo com o país e a época, mas alguns traços básicos são claros. De maneira geral, a Inquisição concedia ao acusado de heresia todas as oportunidades possíveis de defesa, e apenas punia severamente os “irredutíveis”, aqueles que se obstinavam em rejeitar a fé. A Inquisição procurou educar tanto quanto reprimir, de forma que algumas vezes seu trabalho consistia mais em erradicar superstições populares do que lutar contra os subversivos. O procedimento judicial sempre era acompanhado por pregações solenes.
Quando o tribunal da Inquisição se instalava numa cidade, ele proclamava um tempo de perdão de 01 mês. Nesse período, os hereges que confessassem espontaneamente suas faltas tinham a garantia de receber apenas penitências leves e secretas. Depois deste prazo, os inquisidores publicavam um edital de fé ordenando todos os cristãos, sob pena de excomunhão, denunciar os hereges e aqueles que os protegiam. A Inquisição não comandava uma polícia secreta ou uma rede de espiões. Ela contava com a colaboração dos católicos, de forma que, na prática, ela agia mais como guardiã do consenso social do que como um opressivo órgão estatal.
A Inquisição Católica não se parece em nada com as inquisições totalitárias do século 20. Ela não procurava encontrar traidores a qualquer preço. Seu único alvo eram os propagadores de heresias, principalmente os líderes. A Inquisição não se ocupava da consciência dos hereges, apenas com sua ação exterior.
O Papa confiou a Inquisição Medieval aos dominicanos e franciscanos. Estas duas ordens religiosas, recentemente fundadas, davam sérias garantias de probidade e santidade. O conhecimento teológico e canônico dos inquisidores era notável. Podemos dizer que a Inquisição foi confiada à elite do clero medieval. Diferente dos tribunais revolucionários de 1793, os tribunais da Inquisição nunca foram presididos por fanáticos, corruptos e pervertidos.
O inquisidor não julgava sozinho. Ele era assistido por alguns assessores do clero local, de forma que podemos considerar isto o início do sistema de jurados. Além deles, o bispo auditava as sentenças e o acusado podia apelar ao Papa. É razoável concluir que o processo inquisitorial era adequado, até mesmo pelos padrões modernos. Contrariamente ao que foi dito, a Inquisição frequentemente absolvia os acusados. Bernardo Gui foi o severo inquisidor de Toulouse entre 1308 e 1323. Ele pronunciou 930 julgamentos, dos quais 139 eram absolvições.
O acusado podia defender a si mesmo ou utilizar um advogado, mas nem sempre era autorizado a escutar as testemunhas da acusação. Historiadores condenaram severamente esta natureza secreta do processo inquisitorial, mas é preciso considerar o contexto dos fatos. Os hereges que a Inquisição perseguia eram ricos e poderosos. Muitos tinham soldados a seu comando. Não raras vezes, testemunhas de acusação e até mesmo inquisidores foram assassinados. Testemunhar contra os líderes dos cátaros ou marranos era tão perigoso quanto testemunhar contra os chefões da máfia hoje. Em 1485, o Grande Inquisidor espanhol Pedro Arbués foi esfaqueado diante do altar por assassinos contratados pelos marranos. É por isso que a Inquisição protegia o anonimato de certas testemunhas. Ela só recorria aos depoimentos secretos em caso de necessidade.
O acusado também tinha benefícios. Ele podia apresentar, no início do processo, uma lista dos seus inimigos pessoais. Se uma testemunha de acusação se encontrava na lista, seu testemunho era automaticamente rejeitado. Além disso, o depoimento da testemunha anônima era tomado na presença do advogado do acusado. Nessas ocasiões, o advogado do acusado era indicado pelo tribunal, para garantir que a identidade das testemunhas não seria revelada. Mesmo assim, esses advogados não trabalhavam com menos empenho: vários juristas espanhóis se destacaram pelas defesas que fizeram em tribunais da Inquisição.
Perceba que o princípio da denúncia anônima não é, por natureza, um procedimento injusto. Atualmente é procedimento comum em vários países.
A outra grande crítica feita à Inquisição é o uso de tortura durante os interrogatórios. Novamente, é preciso colocar os fatos em contexto. O interrogatório inquisitorial não se parece em nada com as torturas sádicas da Gestapo ou KGB. Ele era relativamente brando quando comparado com as torturas impostas pela Justiça Comum da época. Três métodos eram empregados:
- A Garrucha era uma alavanca que esticava cordas amarradas aos pulsos do acusado. Quando era acionada, a alavanca elevava o acusado a certa altura, e depois soltavam bruscamente ou aos solavancos, o que causava dor intensa nos ombros do acusado.
- O Potro era uma tábua, algumas vinham com espinhos, na qual o acusado era amarrado. O torturador apertava as cordas, fazendo com que os espinhos ferissem a pele do acusado.
- A Toca era um funil de tecido colocado na boca do acusado. O torturador jogava água no funil, dando sensação de afogamento ao acusado.
O processo inquisitorial regulou minuciosamente as práticas de interrogatório. Para ser submetido à tortura, era preciso ser acusado por crimes muitos graves, e o tribunal devia ter indicios muito claros da sua culpa. O bispo local devia emitir sua concordância, o que protegia o acusado do zelo abusivo de algum inquisidor. O interrogatório com tortura não podia ser repetido. As instruções também determinavam a presença de um representante do bispo e de um médico durante o interrogatório, a proibição de colocar o interrogado em risco de vida ou de mutilação, e a obrigação de prestar cuidados médicos imediatamente após o interrogatório. Os doentes, idosos e grávidas eram dispensados de interrogatório sob tortura. Além do mais, a tortura era raramente empregada: em 1-2% dos processos, de acordo com Jean Dumont, ou 7-11%, de acordo com Bartolomé Bennassar.
É surpreendente descobrir que a maioria dos acusados suportou a tortura e foi, consequentemente, absolvida. Se o objetivo dos torturadores era, como podemos pensar, obter confissões a qualquer custo, então os inquisidores eram contraprodutivos. Pode-se questionar se o interrogatório sob tortura não era um último meio de defesa oferecido ao acusado, um tipo de teste judicial similar à Ordália medieval. Esta é, em minha opinião, uma hipótese a ser considerada.
A Ordália, ou “Julgamento Divino”, era um teste judicial comum até o ano 1000. O acusado provava sua inocência perante o tribunal pela prova de fogo, água ou espada. No primeiro caso, ele segurava carvão em brasa; se estivesse curado após certo período de tempo, o tribunal concluía que ele era inocente. No segundo caso, o acusado era amarrado e jogado num grande tonel de água; se ele flutuasse, que era o mais comum por causa do ar nos pulmões, o tribunal concluía que ele era culpado; se ele afundasse, era inocente. Por fim, a prova da espada era o duelo entre dois cavaleiros recrutados por testemunhas contraditórias: a vitória indicava qual delas dizia a verdade. A Igreja sempre lutou contra a Ordália, que era um método supersticioso herdado do código legal primitivo dos pagãos germânicos.
O uso de tortura como meio de obtenção de prova é chocante à mente moderna, mas foi um avanço comparado à Ordália. Não devemos esquecer que a tortura era muito mais comum nos processos criminais seculares. Além disso, o Grande Inquisidor S. João de Capistrano proibiu o uso da tortura na Inquisição já no século 15, mais de 300 anos antes do rei Luís XVI fazer o mesmo com a Justiça comum da França (apesar da Espanha ter restabelecido seu uso no período).
Mesmo assim, o processo inquisitorial foi um avanço na história legal. Por um lado, ele definitivamente descartou a Ordália, substituindo-a pelo depoimento de testemunhas, algo que se mantém ainda hoje nos sistemas legais. Por outro lado, ele estabeleceu o princípio do Estado como promotor. Até aquela época era a vítima que devia provar o crime, mesmo num processo criminal, e isso era especialmente difícil quando a vítima era fraca e o criminoso era poderoso. Mas com a Inquisição a vítima não era mais do que uma simples testemunha, assim como nos processos criminais de hoje. Era a autoridade eclesiástica que tinha o ônus da prova.
O número de hereges queimados pela Inquisição foi muito exagerado. Juan Antonio Llorente é a origem desses números inflados, e muitas pesquisas ainda o utilizam como fonte [18]. Llorente foi um padre apóstata que se colocou a serviço da ocupação napoleônica da Espanha. Depois de caluniar a Inquisição, ele destruiu os arquivos, que poderiam contradizê-lo. Vários historiadores continuam a adotar números inflados graças ao viés antirreligioso[19]. Entretanto, números de tal grandeza são rejeitados desde 1900 por Ernest Schafer e Alfonso Junco. Historiadores honestos concordam que o número de vítimas da Inquisição Espanhola é bem menor do que o geralmente conhecido[20]. Jean Dumont estima em 400 execuções durante o reinado de 24 anos da rainha Isabela, A Católica. Isto é pouco comparado com as 100 mil vítimas do expurgo dos “colaboracionistas” franceses entre 1944-45, ou as dezenas de milhões mortos por comunistas na Rússia, China e outros países.
Note também que os condenados à morte nem sempre eram executados. Suas sentenças eram substituídas por tempo na prisão, ou os acusados tinham a efígie queimada[21]. Além do mais, nem sempre os condenados eram queimados vivos. Se eles demonstravam certo arrependimento, eram enforcados antes da fogueira. Lembre também que eram apenas os reincidentes obstinados eram condenados à morte.
Algumas pessoas julgam incoerente a atitude da Igreja, que pede para perdoarmos nossos inimigos mas impôs a pena de morte naquela época. Devemos lembrar que o dever da autoridade pública não é o mesmo do indivíduo. O dever da caridade obriga o indivíduo a perdoar mesmo o assassino de parentes próximos. Mas o primeiro dever de caridade do Estado é garantir a ordem pública, defendendo a integridade física e espiritual dos seus cidadãos. Se a pena de morte é necessária para assegurar a ordem, o Estado ou a Igreja podem recorrer a ela. O Catecismo da Igreja Católicapromulgado pelo Papa João Paulo II (parágrafo 2266) reconhece a legitimidade da pena de morte.
São Tomás de Aquino justificou a execução de criminosos ao observar que o medo da morte frequentemente facilitava sua conversão. Capelães de prisões podem confirmar que durante a época que a pena de enforcamento existia no Canadá, era raro um condenado subir ao cadafalso sem antes se confessar a um sacerdote. Deste modo, a punição temporal permitiu que o criminoso evitasse a punição eterna, o inferno. Visto desse ângulo, o Estado praticou verdadeira caridade. Libertar o criminoso alegando perdão, como é feito hoje, é conceder ao criminoso ocasião de recair no pecado e perder sua alma.
De qualquer modo, menos de 1% das sentenças da Inquisição condenavam o réu à morte. Na maioria das vezes, os hereges eram condenados a vestir uma cruz sobre suas roupas, a fazer peregrinações, a servir na Terra Santa ou se flagelar, frequentemente de maneira simbólica. Às vezes o Tribunal confiscava suas propriedades ou os aprisionava. As prisões da Inquisição não eram tão terríveis quanto dizem. Elas deviam ser mais confortáveis que a prisão comum, já que alguns criminosos alegavam heresias a fim de serem transferidos para as prisões da Inquisição. Além disso, os hereges frequentemente eram beneficiados com anistias. Em 1495 a rainha Isabela concedeu perdão geral a todos os condenados pela Inquisição.
A verdadeira história da Inquisição não tem nenhuma semelhança com a lenda negra espalhada pelos inimigos da Igreja. Bartolomé Bennassar, que não é defensor do Santo Ofício, escreveu em L’Inquisition Espagnole, XV-XIX siècle (1979):
“Se a Inquisição Espanhola era um tribunal como os outros, eu não hesitaria em concluir, sem sombra de dúvida, que era um tribunal superior aos demais…. Mais eficiente, sem dúvida, mas também mais preciso e mais cauteloso, apesar das falhas de alguns juízes que podem ter sido orgulhosos, arrogantes ou libertinos. Um tribunal que examina minuciosamente os depoimentos, que aceita sem hesitar as impugnações de testemunhas suspeitas (e frequentemente pelas menores razões), um tribunal que raramente emprega tortura e que, diferente dos tribunais civis, muito raramente condena alguém à pena de morte e apenas com muita cautela condena ao terrível castigo das galés. Um tribunal ansioso por educar, por explicar ao acusado porque ele estava errado, que admoestava e aconselhava, cujas penas graves atingiam apenas os obstinados.
…(Mas) a Inquisição não pode ser considerado um tribunal como os outros. A Inquisição não foi criada para proteger pessoas e propriedades de agressões. Ela foi criada para reprimir uma crença e um culto… ”[22]
Agora atingimos o centro da questão. Como um historiador competente e honesto, Bennassar só poderia rejeitar as calúnias que circularam por séculos sobre a Inquisição. Mas como um liberal e relativista, ele não podia aceitar o princípio que fundamenta essa instituição – o dever da repressão religiosa.
No fim das contas, a única falta que a Inquisição pode ser culpada pelos liberais é ter combatido as falsas religiões. Isso é esperado, dado que os liberais não acreditam que a Igreja Católica é o único caminho para a salvação. Eles não compreendem a finalidade sobrenatural da Inquisição.
Entretanto, aqueles que tem a Fé precisam compartilhar um julgamento positivo da Inquisição. Ao purificar a Igreja Católica espanhola da influência dos marranos, o Santo Ofício salvou a Espanha do protestantismo, livrando-a dos horrores da guerra religiosa que assolou a maior parte da Europa no século 16. Lembre-se que um terço da população alemã pereceu nas muitas guerras religiosas do período entre 1520 e 1648. Se a morte de algumas centenas de hereges permitiu que a Espanha evitasse tal conflito, é preciso concluir que o Santo Ofício prestou um serviço humanitário.
Além disso, a Inquisição não salvou apenas a Espanha, mas toda a Igreja. No século 16 o mundo católico estava à beira da ruína, atacado pela revolução protestante no norte e pela expansão dos turcos no leste. A França, imersa na guerra civil, não podia mais proteger a Igreja. Foi a Espanha que salvou a Cristandade, especialmente na Batalha de Lepanto em 1571.
No plano espiritual, a Contra-Reforma foi uma obra espanhola; e se o Catolicismo espanhol teve uma participação tão benéfica no século 16, foi graças à Inquisição que defendeu sua integridade doutrinária no século 15. Talvez hoje a Igreja e a sociedade não estivessem neste estado lamentável se, nos séculos 19 e 20, houvesse uma Inquisição para nos proteger das heresias modernas.
Claro que não se deve propor o restabelecimento da Inquisição. Agora é tarde. A Inquisição só pode ser efetiva numa sociedade que já é profundamente cristã. É uma arma defensiva, incapaz de devolver a fé ao mundo. Hoje a Igreja está na fase da Reconquista.
Mas se não é mais o momento de restaurar a Inquisição, é preciso reabilitá-la aos olhos da história. Com todo o respeito àqueles que gostam de ver a Igreja rebaixar a si mesma, os católicos não têm nada a se envergonhar do trabalho do Santo Ofício.
[1] Voltaire, "Inquisition," Dictionnaire philosophique, dans OEuvres complètes, t.VII, Paris, Ed. Th. Desoer, 1818, pp.1309-1319.
[2] Uma seita do período, também conhecida como os "Illuminati."
[3] De Maistre, Joseph, "Lettres à un gentilhomme russe sur l’Inquisition espagnole," Oeuvres complètes, t.VII, Brussels, Éd. Société Nationale, 1838, pp.283-391; Morel, Jules, "Lettres à M. Louis Veuillot sur l’Inquisition moderne d’Espagne," Incartades libérales de quelques auteurs catholiques, Paris, Éd. Victor Palmé, 1869, pp.31-241.
[4] Dumont, Jean, L’Église au risque de l’Histoire, Limoges, Éd. Critérion, 1984, pp.171-231, and pp.343-413; L’Incomparable Isabelle la Catholique, Paris, Éd. Criterion, 1992, pp.79-110,
[5] Testat, Guy et Jean, L’Inquisition, Paris, Éd. PUF, collection "Que sais-je?", 1966, 126 pp.; Guiraud, Jean, L’Inquisition médiévale, Paris, Librairie Jules Tallandier, 1978, 238 pp.; Bennassar, Bartolomé, L’Inquisition espagnole XVe-XIXe siècles, Paris, Éd. Hachette, 1979, 397 p.
[6] N.T.: Extraído de: Papa Pio IX – "Syllabus" MONTFORT Associação Cultural http://www.montfort.org.br/index.php?secao=documentos&subsecao=enciclicas&artigo=silabo&lang=bra Online, 16/02/2016 às 14:32h
[7] Choupin, L., "Hérésie," Dictionnaire apologétique de la foi catholique, t. II, 1911, pp.442-457.
[8] Ottaviani, Alfredo, L’Église et la Cité, Rome, Imprimerie polyglotte vaticane, 1963, 309 pp.
[9] Atos 13:8-12
[10] Guiraud, Jean, "Inquisition," DARC, t. II, 1911m , col. 823-890; Vacandar, E., "Inquisition," DTC, t.VII, col. 2016-2068.
[11] O historiador católico faz até mais:ele julga os fatos à luz dos princípios católicos. Sobre isso, leia Dom Guéranger, "Le Sens chrétien de l’histoire" (Le Sel de la terre, 22, p.176).
[12] For example, Hefelé, Le Cardinal Ximenès, Paris Librairie Poussielgue-Rusand, 1856, 588 pp.
[13] Vernet, F., "Albigeois et Cathares," Dictionnaire de théologie catholique, t.I, pp.1987-1999.
[14] Léa, Henri-Charles, Histoire de l’Inquisition au Moyen Age, Paris, Éd. Jérôme Millon, 1986, 3 vols.
[15] Cervantes, Don Quixote, Book I, chap.21. (N. T.: utilizei o texto disponível online – acesso em 01/03/2016)
[16] Shylock: um agiota judeu da comédia de Shakespeare: O Mercador de Veneza.
[17] Roch, Cecil, Histoire des Marranes, Paris, Éd. Liana Lévi, 1990.
[18] Llorente, Juan Antonio, Historia critica de la Inquisicion en Espana, Madrid, Éd. Hiperion, 1981, (1st edition, 1822) 4 vols.
[19] Por exemplo, dentre os historiadores atuais, Pierre Dominique afirma que a Inquisição Espanhola condenou 178.382 pessoas, das quais 16.376 foram queimadas vivas. [L’Inquisition. Paris, Ed. Perrin, 1969]; Henry Kamen eleva o número para 341.021 condenados, dos quais 31.912 foram queimadosputs it up to 341,021 the number of condemnations, of whom 31,912 were burned [Histoire de l’Inquisition espagnole, Paris, Éd. Albin Michel, 1966]. Note that Kamen revised these figures downwards in a later edition of his book (1966, pp.298-299).
[20] Junco, Alfonso, Inquisicion sobre la Inquisicion, Mexico, Editorial Jus, 1959, pp.37-51.
[21] N.T.: uma “efígie” era um boneco que representava o acusado.
[22] Bennassar, Bartolomé, L’Inquisition espagnole XVe-XIXe siècle, Paris, Éd. Hachett, 1979, pp.389-390.
PARA CITAR
DUPUIS, Jean-Claude. Em Defesa da Inquisição. Disponível em: <> Traduzido por: João Marcos. Do Original em Inglês: <http://sspx.org/en/defense-inquisition>.