Domingo, Novembro 17, 2024

A Colegialidade

 

Estudo do Cardeal Journet[1]

 

A propósito da colegialidade, trata-se da questão mais ampla das grandezas da hierarquia, mais precisamente dos poderes hierárquicos dos apóstolos, do Soberano Pontífice, dos bispos, que somos levados a debater.

Lembremo-nos em primeiro lugar que as grandezas divinas da hierarquia, essenciais à Igreja peregrina e que são o privilégio de alguns, não são valores supremos; eles estão ao serviço das grandezas mais divinas de santidade que são ofertadas a todos, representadas por estes “dons superiores” dos quais São Paulo recomenda aos Coríntios de aspirar, a saber, a fé, a esperança e esta caridade que não passa e que cada alma traz consigo no além como seu tesouro supremo (1 Cor., 13, 6 e 13).  Aqui estamos, portanto, obrigados a deixar fora da nossa pesquisa o que, no entanto, na Igreja, é principal; que o leitor nos perdoe e que não esqueça.

Lembremos ainda que os poderes hierárquicos são de dois tipos: 1° os poderes de ordem, da qual depende a validade do culto cristão: celebração do sacrifício da missa e sacramentos; eles conferem uma consagração ontológica, diáconos, padres, bispos; são indeléveis, agem por via de eficiência instrumental (interior influxus); 2° os poderes magisteriais ou poderes de anunciar em nome de Cristo as coisas que se deve crer e fazer no seu reino; são conferidos por designação ou por delegação expressa ou tácita, são revogáveis, agem por via moral de proposição em matéria seja especulativa e doutrinal, seja prática e disciplinar (exterior gubernatio). Deixando de lado tudo o que concerne os poderes de ordem, desviaremos portanto, nossa atenção sobre os únicos poderes de ensinar e de governar.

 

Poderes magisteriais extraordinários e intransmissíveis, e poderes magisteriais ordinários e transmissíveis

Os poderes de anunciar com autoridade as coisas que se deve crer e fazer no reino de Cristo foram dados sob dupla forma: 1° pelos poderes extraordinários destinados durante o período apostólico para fundar a Igreja quanto a sua aparição no tempo, à maneira como os obreiros fundam um edifício que lhes subsiste; 2° pelo poderes ordinários destinados durante o período pós-apostólico para conservar a Igreja, isto significa a fundá-la quanto a sua permanência no tempo, à maneira como as fundações e finalmente a rocha suportam todo o edifício. Ora, os apóstolos receberam de uma maneira igual os poderes extraordinários, mas de uma maneira desigual os poderes ordinários. Enquanto apóstolos, eles são iguais para construir a Igreja e Pedro é somente primus inter pares; mas entre eles é pastor e os outros ovelhas, eles são desiguais nos poderes que transmitirão aos seus sucessores para reger até ao fim do mundo a Igreja de Cristo. A distinção é capital. É suficiente para clarificar inicialmente nosso debate.

 

Igualdade dos apóstolos no apostolado

No dia de Pentecostes, o carisma do apostolado desce não somente sobre o conjunto do corpo apostólico, mas inteiramente sobre cada um dos apóstolos em particular: “Apareceu-lhes então uma espécie de línguas de fogo que se repartiram e pousaram sobre cada um deles, e começaram a falar em outras línguas… Então Pedro, pondo-se de pé com os Onze, levantou a voz…” (Atos, 2, 3-4, 14.) Os apóstolos podem certamente agir em conjunto, como durante o “Concílio de Jerusalém” (Atos, 15, 28), mas cada um deles recebe inteiramente de Deus a graça do apostolado. Pode ser designado pelos outros para cumprir uma missão particular: “Os apóstolos que se achavam em Jerusalém, tendo ouvido que a Samaria recebera a palavra de Deus, enviaram-lhe Pedro e João.” (Atos, 8, 14.) Não é, portanto nem dos outros nem do “Colégio” que toma sua autoridade. Confortado pela graça excepcional do apostolado, cada um deles pode, sem risco de cisma, fundar as Igrejas locais; cada um deles pode escrever epístolas canônicas; cada um deles é iluminado pelo duplo carisma profético da revelação (apocalypsis) e da inspiração (theopneustia). Os apóstolos fundam ex aequo a Igreja (Ef., 2, 20); eles são os doze fundamentos e as doze portas da nova Jerusalém (Apoc., 21, 18-21). Esta autoridade extraordinária é intransmissível.

 

Desigualdade da herança transmitida pelos apóstolos

Enquanto depositários exclusivos da autoridade magisterial extraordinária e intransmissível destinada a fundar a Igreja, os apóstolos são, portanto, iguais entre si. Mas nós já tínhamos dito, os apóstolos são, além disso, os primeiros depositários da autoridade magisterial ordinária e transmissível, destinada a conservar a Igreja que eles confiam a seus sucessores, e sobre este ponto a igualdade cessa entre eles. A herança que Pedro deixa a Roma é diferente da herança que Paulo deixa a Tito e a Timóteo: Visto que Paulo está subordinado a Pedro.

Um só deles é constituído pastor de todas as ovelhas e de seus cordeiros (João, 21, 15-17). Um só deles recebe as chaves do Reino e é estabelecido como rocha, isto é como última base visível sobre a qual a Igreja não cessará de repousar (Mat., 16, 18). Um só deles, quando ele “estiver de volta”, terá missão especial de fortalecer os seus irmãos (Luc, 12, 32).

 

A autoridade suprema, concentrada no primado inalienável, é participada pelo colégio 

“O que desligares na terra será desligado nos céus…” (Mat., 16, 19.) “O que ligardes  na terra será ligado no céu…” (Mat., 18, 18). O mesmo poder de ligar e de desligar é, portanto, dado inteiramente primeiro a Pedro sozinho, que é a rocha, depois àqueles que com ele ligarão e desligarão. Há, portanto, em direito divino dois sujeitos, dois exercícios de autoridade magisterial permanente, transmissível, necessária à conservação da Igreja. Mas estes dois sujeitos, estes dois exercícios apenas são inadequadamente distintos, pois, a presença de Pedro é requerida tanto num como noutro. A Nota explicativa o recordará: “A distinção não é entre o pontífice romano e os bispos tomados coletivamente, mas entre o pontífice romano sozinho (seorsim) e o pontífice romano juntamente (simul cum) com bispos” (N. 3.)

Em outros termos, no período pós-apostólico, a autoridade suprema não se repartia entre os bispos como as chamas de Pentecostes para ser inteiramente em cada um deles; ela será toda inteira, de uma parte concentrada num só deles, e de outra parte participada colegialmente pelos que lhe são unidos. E a luz profética que ilumina o exercício desta autoridade não será mais o carisma da revelação e da inspiração, mas a luz profética de uma assistência divina, absoluta ou prudencial.

O Papa é sujeito do poder supremo e pleno na Igreja universal. O colégio episcopal, em união com o pontífice romano, seu chefe, e nunca sem este chefe, é também sujeito do poder supremo e pleno sobre a Igreja universal.

O colégio ou corpo episcopal é de direito divino. Seu chefe, designado pela Igreja, tem imediatamente de Cristo sua autoridade.  Os bispos tornam-se membros: a) inicialmente pela consagração episcopal, que lhes confere uma qualificação ontológica indelével; b) plenamente, pela chegada de uma determinação canônica ou jurídica, emanada da autoridade suprema, e donde  resultará para o sujeito consagrado sua comunhão hierárquica com o chefe do colégio e seus membros. (Nota explicativa, n. 2.)

 Esta determinação canônica, expressa ou tácita, emanada do Soberano Pontífice, tem valor de simples condição designando o sujeito consagrado do qual Cristo conferiria imediatamente participação à jurisdição colegial? Ou tem valor de delegação transmitindo ao consagrado, pela mediação do Soberano Pontífice, participação desta jurisdição colegial? Nos dois casos, a jurisdição colegial é de direito divino, e nos dois casos a jurisdição dos membros é em direito divino subordinada àquela de seu chefe.

Retenhamos que, por si mesmo, o colégio episcopal unido ao seu chefe não tem mais autoridade que o seu chefe sozinho, – é impossível, – mas há mais participantes à autoridade suprema na Igreja universal, e é para eles um grande privilégio e uma grande responsabilidade.

 

Como entender isso?

O Papa veria o seu poder pessoal se diluir no colégio onde o seu papel fosse arbitral e nada mais? Neste caso, os textos evangélicos significando a prerrogativa excepcional e inalienável que Pedro devia transmitir aos seus sucessores, perderiam com isso o sentido que lhe dá a fé católica.

A verdade é outra. O Papa guarda integralmente no colégio o seu cargo de vigário de Cristo e pastor da Igreja universal (Nota explicativa, n, 3). O que se pensa, se quisermos uma imagem, à uma luz que, sem nada perder de sua intensidade, torna por acréscimo luminoso, ativo e vivificante todo o meio pelo qual ela se reflete. A ajuda providencial prometida a Pedro e aos seus sucessores toma, sem nenhuma dúvida possível, a forma de uma assistência divina pessoal, mostrando-se normalmente, seja recorrendo, seja sem recorrer à colegialidade.

Pelo fato de ser chefe do colégio, o Papa pode sozinho fazer certos atos que não pertencem de maneira nenhuma aos bispos, por exemplo, convocar o colégio, e dirigi-lo, aprovar suas normas de ação, etc. (Nota explicativa, n. 3.)

Quando se pede a razão pela qual o Salvador quis este duplo sujeito, este duplo exercício, pessoal e colegial, dum único poder supremo, a resposta será, parece que uma tal disposição está requerida em razão da tensão resultante na Igreja de uma parte entre sua unidade, e de outra parte entre sua catolicidade. O exercício pessoal parece pré-posto à salvaguardar, não exclusivamente mas, ao menos, principalmente, a unidade da Igreja universal; enquanto que o exercício colegial parece pré-posto à salvaguardar, não exclusivamente, mas principalmente, a catolicidade, quer dizer a inserção em cada povo do mundo – e segundo modalidades que lhes tornam de alguma maneira conaturais, – da única e indivisível Igreja, que é a esposa.

Nós recordamos os grandes traços da doutrina católica da colegialidade, remetida em causa ainda recentemente. Isto nos permitirá tocar brevemente a uma segunda questão, teológica também, e igualmente redebatida, esta da relação das Igrejas locais à Igreja universal.

 

O drama das Igrejas do Oriente 

Os apóstolos haviam recebido duplos poderes: tanto extraordinários e intransmissíveis, de construir a Igreja, quanto ordinários e transmissíveis, de conservar a Igreja. O que vai acontecer na hora da passagem da idade apostólica à idade pós-apostólica? Os poderes extraordinários caem, os poderes ordinários são despidos.

É uma das crises mais graves que a história da Igreja conheceu. Roma não pode ignorar qual privilégio recebeu de Pedro. Mas nas Igrejas que se encontram fora do domínio de sua próxima influência, vê-se produzir uma certa hesitação. Tudo parecerá por vezes acontecer como se tivesse acreditado que os bispos sendo sucessores dos apóstolos, seria-lhes suficiente estarem de acordo para poder criar através de sua comunhão, e dispensar à Igreja universal, esta forte unidade que os apóstolos podiam lhe assegurar enquanto vivos. Nossos irmãos ortodoxos e anglicanos pensam poder hoje reclamar-se da eclesiologia de Inácio de Antioquia e de Cipriano de Cartago.

Havia, portanto, uma parte de ilusão, que, no entanto, nunca conseguiu triunfar universalmente. Não se podia passar do governo dos apóstolos ao governo dos bispos sem desnivelamento; e o que, seguindo o plano providencial, era destinado a restabelecer o equilíbrio necessário à vida e à unidade da grande Igreja, era o pleno exercício do primado romano. Esta verdade, Roma não podia esquecer.

Desde então, uma questão se punha a todos. Se em cada Igreja local há uma lei de estrutura, cuja existência é atestada nas cartas de um santo Inácio de Antioquia e, mais tarde, em De unitate Ecclesiae de um são Cipriano, que a unidade sobrenatural de crença e de ação só se faça à volta do bispo, esta lei de estrutura não é transponível num plano superior? A unidade incomparavelmente mais rica  e mais difícil de crença e de ação de sua Igreja universal, Cristo a quis, para o período pós-apostólico, sem reunir os seu cordeiros e ovelhas sob um pastor supremo? A resposta está no Evangelho: “Simão, filho de Jonas, me amas mais do que estes?… Apascenta os meus cordeiros, apascenta as minhas ovelhas.” (Joao, 21, 15-18.) Estes, eram os Onze.

Mais uma coisa. Há, isto é exato, similitude de estrutura entre a Igreja local e a Igreja universal. Numa e noutra, as grandezas da hierarquia estão ao serviço das grandezas mais preciosas de santidade. O pastor é para o rebanho, não inversamente. E, portanto, o pastor de uma Igreja local não é designado pelo seu rebanho, mas por Cristo sobre este rebanho; e igualmente o pastor da Igreja universal das ovelhas de Cristo não é designado pela Igreja universal, mas por Cristo sobre a Igreja universal, para o bem dela.

 

NOTA

[1] Tomamos conta neste texto observações que nos foram dadas. Poderemos nos referir à Eglise du verbe incarné, 12, p. 186 e 494; e à Nova et vetera, 1965, n°2, p. 120 e s.

Este estudo está destinado a aparecer no editorial do numero 3, 1969, de Nova et vetera.

 

PARA CITAR


JOURNET, Cardeal Charles. A Colegialidade. <http://www.apologistascatolicos.com.br/index.php/concilio-vaticano-ii/colegio-dos-bispos/817-a-colegialidade>. Desde 02/09/2015. Tradutor: Faustino Sassoma Muhongo.

 

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