O problema histórico: como se celebrou ao longo dos séculos?
1) A alta Antiguidade
A mais antiga menção formal ao altar cristão encontra-se em Santo Irineu.[1] Ela nada nos diz a respeito da atitude do celebrante. Igualmente nada se depreende dos afrescos nas catacumbas romanas que representam a “fractio panis” sob a forma dum banquete.
Não é absolutamente certo que afresco na capela dita “dos sacramentos”, no cemitério de Calisto, represente a celebração da Missa. Caso fosse estabelecido de maneira definitiva que tal afresco é eucarístico, disso se poderia deduzir que, aproximadamente pelo ano 200, o altar tinha frequentemente a forma de uma mesa redonda e pequena, sustentada por três pés. Talvez os fiéis, a uma distância adequada, cercassem o celebrante… Trata-se de conjectura, nada além disso.
Como se celebrava nas igrejas que sabemos terem existido em Roma no século III? Era de frente para o povo? Confessemos simplesmente nossa ignorância. É sabido, com efeito, que havia em Roma, quando da Paz da Igreja, em 313, vinte “tituli”, os quais correspondiam aproximadamente às nossas paróquias de hoje. “A despeito duma lenda recebida com frequência e cujo crédito persistente é especialmente singular, uma vez que ela não pode reivindicar para si o prestígio duma grande antiguidade, as catacumbas jamais foram, para os cristãos de Roma, mesmo em tempos de perseguição, o lugar habitual das reuniões litúrgicas. Era na própria cidade, dentro de seus muros, que se realizavam suas assembleias religiosas[2].” No máximo, celebrava-se o aniversário de alguns grandes mártires nas raras criptas das catacumbas, e isso perante um público bem restrito. Não há em qualquer cemitério romano uma câmara antiga capaz de receber mais de 80 pessoas ao mesmo tempo.
Além disso, a devoção litúrgica aos mártires, em Roma, não parece remontar a antes do ano 250, aproximadamente… Tem-se a impressão de que ela veio da África, onde decerto era mais antiga…
Nestes casos – bastante raros – de celebração nas catacumbas, se a tumba do mártir estivesse instalada num “arcosolium”, a celebração com certeza dar-se-ia de costas ao povo. Se a celebração, porém, tivesse lugar num oratório sobre a catacumba do mártir venerado, recaímos aqui no supracitado caso da celebração nas igrejas ou casas de Roma.
2) Da Paz da Igreja até o alvorecer dos tempos carolíngios
A disciplina evoluiu de forma um pouco diferente na Itália e fora dela, no resto do Ocidente. Isso porque sempre se tem, na Itália, os restos dum mártir num sarcófago. Essa tumba nunca é deslocada. O corpo do mártir nunca é repartido em relíquias particulares (exceto em Milão, onde o uso de dividir os corpos santos, próprio dos gregos, prevaleceu bem cedo). A referida tumba é, de ordinário, erigida “numa confissão”.
Na Itália, o altar único é erigido sobre uma confissão. Ninguém jamais modifica tais coisas e, caso o quisesse, tratar-se-ia de uma obra ocupada com nada menos que alterar as primitivas disposições.
Pode-se, no entanto, citar casos em que se fez tal alteração numa época ulterior. Foi o que aconteceu na basílica ambrosiana de Milão: as escavações de 1864 mostraram-no com farta evidência.[3] Mudou-se o lado do altar.
Mas é exceção extremamente rara.
A disposição universal é a de celebrar de frente ao povo.
Tudo é comandado pelo altar inviolável. A princípio, a orientação parece não ter desempenhado papel importante.
As antigas basílicas romanas, quanto são orientadas, são-no apenas de forma bastante aproximativa. O padre Grisar mostrou[4] que, em Roma, 43 igrejas eram orientadas, 45 voltadas ao Sul e 52, a Oeste. Algumas basílicas romanas, contudo, eram orientadas, como São Paulo Extramuros. Isso significa que sua entrada era a Leste, que os fiéis rezavam voltados a Oeste e que o bispo, olhando-os de frente, no altar, rezava voltado ao Oriente.
Tem-se forte impressão de que o hábito de rezar voltando-se ao Oriente não se estabeleceu em Roma a não ser com dificuldade. São Leão (†461), num sermão bastante áspero, reprova em certos cristãos que, antes de entrar na basílica, se voltem ao Oriente e se inclinem ao Sol nascente como fazem os pagãos. “Sem dúvida, diz o Papa, há nisso ignorância, bem como resquício pagão, e suas homenagens dirigem-se antes ao Criador da luz do que à luz ela mesma, que é uma criatura; convém, no entanto, abster-se de tal aparência de idolatria.”[5]
Na mesma época, São Paulino de Nola (†431) mostra-nos que fora de Roma havia maior preocupação quanto à orientação da oração. Ele se desculpa por não seguir o costume: “O aspecto exterior não a apresenta voltada ao Oriente, embora seja este o uso mais comum, mas à basílica de São Félix, meu senhor, para recordar sua memória.”[6]
No Ocidente, fora da Itália, raramente se instalava o altar sobre um túmulo de mártir ou sobre uma confessio (veja-se São Martinho de Tours); mais frequentemente eram instituídos sobre relíquias representativas chamadas brandea. Tal costume é-nos bem conhecido, especialmente graças a Gregório de Tours. Os brandea eram tecidos que haviam sido pousados sobre os restos de mártires ou de confessores, franjas de capas que ornavam os sarcófagos venerados, terra tomada dessas tumbas, o óleo das lâmpadas que ardiam junto aos restos mortais santos… Eis a espécie de relíquias que enviava São Gregório Magno à igreja de Santões (N.T. Saintes, Mediolanum Santonum), na Gália.
De tal diversidade resultam altares: 1º sobre corpos de mártires – que são imutáveis; 2º sobre brandea, fora da Itália, podendo estes últimos ser bem mais facilmente deslocados segundo as exigências da “oração orientada”, da qual falaremos em breve.
Sem entrar aqui, porém, nas questões obscuras dos dois grandes ritos mais comuns no Ocidente (o rito galicano e o romano), pode-se dar por certo que o celebrante que, em geral, o celebrante está de frente para o povo – não apenas na Itália, mas em todo o Ocidente latino.[7]
O rito ambrosiano atesta esse antigo uso de maneira curiosa: sempre se supõs que o sacerdote celebre voltado ao povo, de forma que não se volta em momento algum para dizer o Dominus vobiscum nem para abençoar. Ora, tal rito deve remontar a tempo bem anterior ao de nossos mais antigos textos ambrosianos, que são do século IX.[8] Ora: se é precisa a hipótese de Duchesne (Origines, p. 92), tendo a liturgia ambrosiana conservado traços galicanos o suficiente para que não haja dúvida a respeito de sua identidade primitiva com as liturgias transalpinas, está feita a demonstração: fora da Itália se celebrava de frente ao povo.[9]
Quanto ao rito romano, nosso Cânon, que não se alterou desde Gregório Magno, atesta o uso de então, que era de celebrar de frente ao povo.
Naquela época, com efeito, o Cânon é considerado consecratório em sua inteireza: isso explica perfeitamente as bênçãos que se seguem à grande elevação e, particularmente, a oração Supplices te rogamus, que ocupa o lugar próprio da epiclese nas liturgias antigas.[10]
Quando terminava o Cânon, o pontífice mostrava ao povo as espécies consagradas tomando a hóstia, que tocava a borda do cálice elevado à sua direita pelo diácono. O contato da hóstia no cálice tinha por propósito mostrar claramente a unidade do sacrifício.[11] É a nossa pequena elevação, da qual o povo nada mais vê.
O que importa sublinhar nessa missa antiga, celebrada de face ao povo, é a ideia – e sua realização prática – da unidade da Igreja representada pela unidade do altar – a unidade, estreita união do pontífice com seus presbíteros concelebrantes e os fiéis. Não há espectadores. Cada um desempenha seu papel nesta hierarquia que parte do mais humilde cristão, que canta responsos e hinos, e que, mediante a schola – os ministros – termina no pontífice.
“Por isso, fazemos memória tanto nós, vossos servos, mas também o vosso povo santo… Oferecemos à vossa sublime majestade… Suplicantes, nós vos rogamos… Fazei com que estas [oferendas] sejam levadas… ao vosso altar sublime.”
E cada um canta, ou ouve cantar, em sua língua materna. O latim da missa é compreensível a um homem do século VI – não o será mais nos séculos VIII ou IX, tendo-se desagregado muito rapidamente a língua latina. Cada um compreende o Cânon, entoado em alta voz pelo pontífice.[12]
A missa é uma coisa viva, tanto quanto a podemos representar. O povo dela participa ativamente; ele vê, pois as cortinas que circundam o ciborium são abertas nalguns momentos; ele ouve, ele compreende…[13]
E, diga-se desde logo, se alguns pedem que se volte hoje a esta celebração de face ao povo – em certos casos que precisaremos mais abaixo – não é tanto por gosto do arcaísmo que por esforço de pôr em prática, mediante um costume que choca nossos contemporâneos, algo dessa participação ativa na oração fundamental da comunidade cristã.
3) As exigências da oração orientada
Hoje em dia, dizem alguns: “Se o sacerdote há tanto tempo celebra a missa de costas ao povo, é certo que bem rápido se viram as inconveniências do uso contrário, tendo-se renunciado a ele por boas razões…” Tais boas razões, nós as deduzimos dos inconvenientes de hoje – os quais não havemos de, à frente, dissimular –, mas eis aí um belo anacronismo… A verdadeira razão é totalmente outra – ou, mais exatamente, há duas razões: a) o cuidado com a orientação na oração; b) as missas privadas.
Vejamos em primeiro lugar, neste título, as exigências da oração orientada.
Em meio aos cristãos do Oriente, não há dúvida de que, antes da Paz da Igreja, se tenha rezado dirigindo-se a Leste. Pelo ano 306, em Tmuis, no Egito, as atas do Martírio de Fileas e Filoromo no-lo atestam: “Quando chegaram ao lugar do suplício, Fileas estendeu as mãos em direção do Oriente e disse com voz forte: ‘Meus filhinhos bem-amados, vós que buscais a Deus, sede vigilantes etc.’”[14]
Também não há dúvida de que o bispo rezava voltado ao Oriente na basílica de Tiro,[15] cuja dedicação deu-se em 315. Eusébio, que nos conservou, não sem alguma secreta condescendência, o discurso que o pontífice pronunciou em tal ocasião, diz: “Grande vestíbulo, bastante elevado, ergue-se pelo lado do Sol nascente, e dá aos que estão longe dos sagrados recintos o desejo de ver o que há em seu interior.”[16] O povo, pois, na prece comunitária, ficava voltado ao Ocidente, mas o bispo rezava voltado ao Oriente.
No Ocidente, nós vimos que, ao menos em Roma, o costume da oração orientada não foi de pronto aceito… Nele se via algum resquício de paganismo. Na cristandade latina, o que importava, em época remota, era que, se as disposições da confessio o permitissem, o bispo rezasse voltado ao Oriente. A prova notável disso nos é dada pela basílica de São Paulo Extramuros.
De fato, a primeira basílica, a de Constantino, tinha a entrada no lado oriental e seu altar do mesmo modo se voltava ao Oriente. Os fiéis rezavam voltados ao Ocidente, com o Papa a eles voltado.
Na segunda basílica, cujo édito chegou até nós (ele é do ano de 386), a entrada encontrava-se no Ocidente e toda a construção foi invertida, excetuado o altar, pois convinha que o pontífice rezasse sempre voltado ao Oriente. Até o incêndio de 1823, de todas as basílicas papais, a de São Paulo era a única onde o pontífice rezada de costas ao povo. Não há dúvida de que a razão decisiva à época tenha sido a orientação.[17]
Na reconstrução da basílica atual, não se tocou no sarcófago do Apóstolo, mas foi invertido o altar. Disso resulta que o pontífice reza efetivamente de face ao povo, mas voltado ao Ocidente.
Dito de outra forma, ao final do século IV, a exigência é de que o bispo reze voltado à região do Paraíso e das primeiras promessas. A região do Ocidente era considerada o reino de Satanás. Ao Ocidente voltava-se o futuro batizado para renunciar a Satanás, antes de descer à cuba batismal. Em Milão, ele devia até mesmo cuspir em direção do Ocidente.[18]
Crê-se que esta exigência de orientação generalizou-se no Ocidente no século VI.
Ora: pouco a pouco, os fiéis quiseram rezar nas igrejas como rezavam em casa, isto é, voltados ao Oriente. Por que, na basílica, eles não rezavam como o bispo, voltados ao Oriente? Esta exigência do povo cristão impôs-se neste momento, de modo que, sendo construídas novas igrejas, inverteram-se os altares e foram modificadas as entradas. Bispo e povo voltavam-se ao Oriente, mas o bispo ficava de costas para o povo. A coisa era fácil fora da Itália, onde não havia altares com confissão, ou apenas poucos deles, mas apenas altares com brandea e outras relíquias representativas.[19] Com efeito, é isso que constatamos: o movimento começou fora da Itália.
Continuou-se certamente, contudo, a celebrar de frente ao povo:
a) Sobre os altares com confessiones – quase sempre, pois, na Itália;
b) Sobre os altares de catedrais, quando o trono do bispo encontrava-se na ábside;
c) Sobre os altares de antigas igrejas voltadas ao Ocidente, pois o bispo continuava a rezar voltado ao Oriente.
Por fim, é preciso assinalar que o altar era orientado, de ordinário, nas igrejas com forma de cruz grega ou redondas, sendo ele posto no centro. Era assim nas igrejas que imitavam a famosa basílica do Apostoleion (N.T.: antiga Igreja dos Santos Apóstolos), em Constantinopla. Assim era a Igreja de São Nazário, em Milão, anteriormente dedicada aos Apóstolos; assim também a primitiva Igreja dos Santos Apóstolos em Roma.[20] Nessas igrejas, que tinham quatro naves com igual comprimento, havia igualmente quatro entradas. Pode-se ter certeza, igualmente, de que o altar encontrava-se no centro das igrejas com formato redondo. Com ou sem razão, a planta dessas igrejas parece depender, no mais das vezes, daquela pertencente à Anástasis (N.T.: Igreja da Ressurreição), de Jerusalém. Assim é em Santo Estêvão Redondo, em Roma – onde o Papa Teodoro (642-649) fez a primeira translação oficial de relíquias; em São Benigno, em Dijon, posteriormente remodelada; em Ferrières-en-Gâtinais (N.T.: comuna no centro-norte da França) etc.
O que teve, porém, uma influência muito mais considerável foi a introdução da missa privada e, por consequência, da multiplicidade de altares.
No Ocidente, a celebração de missas privadas remonta a tempos bastante remotos: São Gregório Magno celebrava todos os dias, mas isso era visto como anomalia. Como a ampliação da missa privada deu-se na era carolíngia, a questão será estudada no título seguinte.
Em suma: Nos séculos IV, V e VI, o uso geral é a celebração de face para os fiéis.
Nos séculos VII e VIII, caminha-se para a celebração de costas ao povo, a começar pelas igrejas recentes, e isso para que os fiéis rezem voltados ao Oriente.
4) A partir da época carolíngia
Passa a predominar, claramente, a celebração de costas ao povo.
a) Nas missas solenes: Os Ordines Romani, editados por Mabillon e reproduzidos por Migne;[21] o Ordo de Santo Amando, editado por Duchesne,[22] e outras fontes não deixam dúvida a respeito disso… Amalário († perto de 850), em sua principal obra, que é verdadeira enciclopédia litúrgica, o De Oficiis, dá por suposto que habitualmente o celebrante volte-se para dizer o Pax vobis ou o Dominus vobiscum (o De Oficiis encontra-se no tomo 99 da Patrologia Latina).
Parece que a partir de Carlos Magno, do lado de cá dos Alpes, a prática atual (N.T.: i.e., de costas ao povo, já que o texto é anterior ao CV II) tinha-se tornado universal. Nada se opunha à inversão do altar e, ainda, muitas igrejas foram então reconstruídas ou restauradas. Os altares com confissão eram praticamente ignorados; o trono do bispo encontrava-se à direita do santuário (exceto em Lion); o sarcófago do santo, enfim, encontrava-se ou sob o altar, ou no fundo do santuário. O remanejamento deste altar-mor deu-se sem dificuldade.
O padre Braun, S.J., autoridade na questão (Der Christliche Altar), não conhece, na época carolíngia e para cá dos Alpes, senão dois altares voltados à nave, a saber: a) O altar do monastério de Petershausen, na diocese de Constança, instituído em 983. Quis-se ali copiar o uso de São Pedro, em Roma. Toda igreja monástica baseava-se na planta da basílica do Apóstolo; b) A catedral de Cantuária, segundo a descrição de Edmero († por volta de 1124).
As mais notáveis exceções (i.e., missa de frente ao povo) encontram-se em Roma e na Itália, por volta do ano 1000. O que as comanda é alguma das seguintes razões: I) Não modificar o aspecto primitivo da confessio; II) O coro está voltado ao Ocidente. Insiste-se bastante em que o pontífice reze voltado ao Oriente; III) A cathedra foi mantida no fundo da ábside; IV) Quis-se aumentar o espaço reservado aos fiéis (como exemplo, cf. a cripta da catedral de Anagni).
b) Nas missas privadas: a nova disciplina da missa rezada é muito clara na época carolíngia.
A multiplicidade de altares não foi provocada, como sucedeu mais tarde e até os nossos dias, pela introdução de oratórios, de capelas pertencentes a confrarias ou consagradas a devoções particulares. Não vemos em parte alguma que se tenha dado importância aos altares secundários nas mais antigas igrejas com múltiplos altares de que temos notícia: São Galo, São Filiberto de Grandlieu, São Martinho de Tours etc.
A partir do século VI – e o costume ir-se-ia ampliando –, além da missa episcopal, a única primitiva, tornou-se costume que os padres celebrassem todo dia uma missa privada.
Aproximadamente na mesma época, introduziu-se o costume de sepultar sob o pavimento das igrejas. As missas devocionais “pro dormitione”, antes celebradas nos cemitérios, passaram a sê-lo nos templos.
As convenções entre mosteiros, a partir do século VIII, tiveram influência decisiva sobre a prática da celebração privada. Tais convenções previam que cada monastério celebraria um certo número de missas pelos religiosos cujo falecimento fosse notificado.
Na origem do mosteiro beneditino, os religiosos não eram revestidos do sacerdócio e não aspiravam a ele. Não havia senão o número de padres que fosse preciso às necessidades espirituais rigorosas dos monges – número, portanto, muito pequeno. Pouco a pouco, no entanto, elevou-se ao sacerdócio certo número de religiosos de coro que superava as necessidades do mosteiro. Temos algumas indicações a respeito do número de monges-sacerdotes na Alta Idade Média:
Em São Ricário, sob Angilberto (†814), dentre 300 monges havia 32 sacerdotes que, além das duas missas conventuais, celebram privadamente em diferentes altares.[23]
Em São Dinis, no ano de 838, dentre 123 monges há um é bispo, 33 presbíteros, 17 diáconos, 24 subdiáconos, sete acólitos.[24]
Em São Galo, sob o abade Salomão (†920), havia 42 sacerdotes, 24 diáconos, 15 subdiáconos, 20 pueri (N.T.: pueri altaris ou monasterii eram meninos cantores. V. verbete puer in Du Cange).[25]
Não se conhece testemunho decisivo sobre a época definitiva de introdução da missa privada e de sua generalização. Tudo que se pode dizer é que ela estava plenamente estabelecida quando entraram em uso os missais, pois a redação dos missais não remonta a período anterior às missas privadas. Até esse momento, cada um tinha – permitam-me a expressão – apenas o livreto próprio de sua função: o sacerdote servia-se do sacramentário; o diácono, do evangeliário; o subdiácono, do epistolário; os cantores, dos antifonários. Na missa rezada, porém, o presbítero tinha de ler o evangelho, as epístolas, hinos etc., uma vez que substituía diácono, subdiácono e coro. O livro contendo todas as leituras do celebrante foi chamado de Missale plenarium. O início desse desenvolvimento é visível em alguns sacramentários do século VII. No século IX, algumas missas cotidianas frequentemente rezadas (missa do comum dos santos) encontram-se com bastante frequência nos sacramentários, acompanhadas da epístola, do evangelho e da parte própria do coro. O Missale plenarium completo é do século X. A partir do século XIII, ele é o único a ser empregado.
Eram necessários altares para celebrar, pois subsistia a antiga disciplina:
Apenas uma missa cotidiana sobre o mesmo altar, como outrora relembrara o décimo cânone do Concílio de Auxerre (em 578?).[26]
Havia um evidente conflito entre tal regra litúrgica e o uso da celebração cotidiana que tendia a se estabelecer. Para resolver o conflito, era suficiente erguer novos altares. Foi o partido que se tomou em toda parte.
Como se dispunham esses altares? Quanto aos treze altares da igreja de Saintes, à qual o Papa São Gregório Magno enviou os brandea,[27] nós o ignoramos.
Mais tarde, no tempo de Carlos Magno, somos bem informados do assunto pela famosa planta da abadia de São Galo. “É um desenho acompanhado de legendas que tornam fácil sua interpretação. Não é, sem dúvida, senão um projeto e nada prova que tenha sido algum dia executado; mas seu valor não é menor por conta disso, pois ele nos mostra da forma mais clara como é que a gente entendia, pouco depois de 800, a construção dum grande mosteiro e quais formas e disposições ela dava às igrejas abaciais.” (Lasteyrie)
Na igreja de São Galo, além do altar-mor, há onze altares: três na grande nave e quatro em cada uma das naves laterais. Cada um desses altares está no eixo da nave, de modo que os fiéis, se houver alguns deles para assistir a essas missas privadas, podem sem dificuldade circundar o altar.[28]
Assim colocados, bem no meio das naves, tais altares certamente atrapalhavam bastante a passagem dos fiéis e oficiar neles devia ser difícil. Para se livrar de tal embaraço, teve-se a ideia de organizar os altares face ao Oriente nas pequenas ábsides construídos para os receber. É bem claro que tais altares estavam de costas ao povo.
No final do século VIII, o Papa Adriano I (772-795) fez construírem-se três ábsides em Santa Maria in Cosmedin, fato consignado pelo Liber Pontificalis, certamente porque era algo de novo. Daí vieram as absidíolas do transepto de São Filiberto de Grandlieu, em seu estado primitivo (819); daí igualmente, sem dúvida, os três altares erigidos aproximadamente em 791 pelo abade Itério em São Paulo de Cormery, em Turene. Assim, o sacrifício litúrgico deixava sua marca no monumento.
A partir do século XIV, então, começa a época das confrarias. No mais das vezes, nas capelas construídas no período, o altar era orientado; necessidades práticas, contudo, igualmente fizeram que altares fossem postos contra pilastras, sobretudo quando as capelas não existiam. É o caso da primacial de Lion, onde há altares com todas as orientações.[29]
Esses altares estão sempre de costas ao povo. A moda dos retábulos, mesmo para o altar-mor, tornou, aliás, tal uso praticamente universal, mas as duas disciplinas ou costumes não foram nunca esquecidos e Durando de Mende, oráculo do Medievo no que toca à simbólica – e que passou quase toda a carreira junto à Cúria romana[30] – menciona ambos: “Ainda que Deus esteja presente em toda parte, o sacerdote no altar e durante os ofícios divinos deve, segundo decreto do Papa Vigílio, voltar-se ao Oriente para rezar. Disso decorre que, nas igrejas cuja entrada fica no Ocidente, o padre, ao celebrar a missa, volte-se para saudar o povo, pois apresentamos a Deus aqueles a quem saudamos, e em seguida, para rezar, volte-se novamente ao Oriente.
“Nas igrejas, porém, cuja entrada fica no Oriente, como em Roma, não há necessidade de se voltar para dar a saudação, e o presbítero que celebra nessas igrejas está sempre voltado ao povo…”[31]
De fato, na Idade Média, e especialmente na França, a orientação era regra. Em Paris, a igreja de São Bento, pertencente ao capítulo de Notre-Dame, não tinha a ábside voltada a Leste, recebendo o nome de Saint-Benoît-le-Benoustre, isto é, “o voltado ao avesso”.
Em resumo, tanto como resultado das exigências da oração orientada quanto – e sobretudo – pelo costume das missas privadas, universalmente celebradas no século X, em quase toda a parte o sacerdote passou a rezar de costas ao povo.
5) A devoção medieval, por caminho indireto, volta a algo do antigo costume, desejando ver a Hóstia consagrada
A participação dos fiéis na santa missa, ao longo dos séculos, deu-se em graus bastante diferentes – desde a participação de um único servidor na missa rezada até a participação “escalonada” da missa pontifical: povo, schola, ministros, subdiácono, diácono, pontífice, cada um cumprindo sua função. Sem exagero, pode-se dizer que nessa participação sempre houve, ao menos por um instante, para todos os fiéis, uma visão, uma apresentação das espécies consagradas. Ainda que se recue a tempos mui remotos, antes da comunhão, elevando a hóstia, o celebrante dizia: “Sancta Sanctis” (N.T.: “Coisas santas aos santos; o que é santo aos santos”). O rito da pequena elevação é igualmente antigo: ele é atestado desde o ordo I.
Ora, é curioso que os trabalhos recentes tenham mostrado com evidência farta[32] que, no Ocidente, a multidão do século XII tenha sentido certa tristeza saudosa por não nada mais ver do mistério após a consagração. A pequena elevação, efetivamente mantida na missa (exceto nos dominicanos), pois os gestos litúrgicos duram mais – e muito mais – que as fórmulas, não era mais vista pelo povo.
Eudes de Sully (bispo de Paris de 1196 a 1208) simplesmente regulamentou um rito que havia antes dele. Ele quis evitar a adoração do povo antes da consagração e prescreveu que o padre não elevasse a hóstia senão depois de a ter consagrado. Esse costume de elevar a hóstia deve ter nascido no curso do século XII. No estado atual das pesquisas sobre a questão, não se pode dizer mais que isso.
Assim, antes dos decretos do Concílio de Trento e a instituição da Congregação dos Ritos, uma devoção popular, como o desejo de ver a hóstia, podia integrar-se à missa, tendo em conta os poderes litúrgicos de que gozavam os bispos.
O mesmo desejo piedoso, aliás amplificado e talvez mal dirigido pelo clero paroquial, que levou, em muitos lugares, à multiplicação das saudações ao Santíssimo Sacramento em muitos lugares imediatamente após a missa – uma forma pouco litúrgica, decerto. É de ser perguntar se a celebração de frente para o povo não responderia melhor e de maneira litúrgica, desta vez, a essa necessidade piedosa.
Alguém poderia levantar como objeção os coros altos[33] (N.T.: elemento de arquitetura sacra presente nalgumas igrejas europeias, que separa a nave do presbitério de maneira análoga à iconóstose dos orientais).
Independentemente de qual seja o caráter artístico de certos coros que se conservaram, pode-se sustentar que erigi-los foi uma aberração da Idade Média tardia. O cardeal Wiseman pôde escrever, não sem algum senso de humor, que eles tiveram uma parcela de responsabilidade na passagem da Inglaterra ao cisma: a multidão não tinha mais afeição à missa que ela não mais via. Atrás do coro alto, pôde-se modificar tudo que a rainha Elisabeth quis.
Certamente que se pode muito bem afirmar ter havido outras razões, e decisivas, para o sucesso relativo da heresia no século XVI: a ignorância do clero, o abandono da pregação popular, o despertar das nações, a cupidez dos príncipes, o espírito de revolta e orgulho, os evidentes abusos da Cúria do final do século XV, e outras ainda…
O que resta é que reformadores heréticos e contrarreformadores católicos buscaram compreensibilidade, inteligibilidade… A contrarreforma católica dirigiu-se ao que era mais urgente: procurou instruir a respeito das verdades essenciais à salvação e a fazer rezar. Ela não parece ter buscado muito fazer que os fiéis participassem ativamente do sacrifício da missa e da liturgia.
Os tempos não eram favoráveis: as teses desmesuradas dos heréticos, fazendo de cada cristão um ministro do Evangelho e abolindo o Sacramento da Ordem, de modo algum encorajavam a usar, na prática, dos textos escriturais sobre o “Sacerdócio dos leigos”, compreendido em sentido ortodoxo, que, a propósito, é relativo. O sentido da comunidade na oração litúrgica estava desvanecido, enfraquecido. A contrarreforma católica, tão benéfica, não foi acompanhada duma restauração litúrgica completa.
[1] Contra Haereses, lib. IV, cap. XVIII, 6; P.G., VII, 1029
[2] R. VIELLIARD, Recherches sur les origines de la Rome chrétienne, p.13.
[3] DE PUNIET, Pontifical Romain, t. II, p. 240
[4] Histoire de Rome et des papes, tradução Ledos, t. I, p. 374
[5] Sermão 27, n° 4; P.L., LIV, 219
[6] Epist., XXXII, 13, ad Severum; P.L., LXI, 337.
[7] DUCHESNE, Origines du culte chrétien, 5ª edição., pp. 89-110
[8] CABROL, Liturgia, p. 803
[9] Igualmente no rito mozárabe, pois se mostravam as espécies consagradas: “Sancta Sanctis” (cf. Dom CABROL, Liturgia, p. 819).
Duchesne reuniu numerosos partidários sobretudo na França, e notadamente Lejay.
Para os adversários da tese de Duchesne que vinculam a liturgia ambrosiana à latina, antes de sua evolução do século IV ao VI, recaímos no caso do rito romano, em que se mostravam as espécies consagradas: “Sancta sanctis.” O rito da pequena elevação é atestado desde o ordo I.
[10] É partir de Amalário (século IX) que se começa a explicar as cruzes após a consagração em sentido figurado (Eucharistia, p. 547). Por falta de senso histórico, triunfavam os protestantes: “A que servem essas bênçãos após a consagração?” Houve um momento de confusão entre os teólogos et Maldonado pediu que fossem suprimidas. A solução adequada do problema repousa sobre um correto entendimento do “desenvolvimento”. Foram os escolásticos quem primeiramente, com razão, preocuparam-se com o instante rigoroso da consagração. Antes dos primeiros de tais escolásticos, o problema não é posto nos termos modernos.
[11] Pius PARSCH, La Sainte Messe, pp. 222, 231; Eucharistia, p. 548
[12] Segundo Dom Cabrol, a récita secreta do Cânon no Ocidente remonta – talvez, pois, ao menos para Roma, não há texto decisivo – ao final do século VII.
[13] Em Cité Nouvelle, 10 de outubro de 1943, pp. 695-710, “Liturgie et rechristianisation”, o padre DONCOEUR escreve, p. 703 : “Sem dúvida, quando ele não mais compreendia o grego (o povo cristão),a Igreja lhe falou em latim. Bem rápido, porém, ele não compreendia o latim; e desde nossas origens francesas, desde de Genoveva e Clotilde etc.” O que dá a entender que Genoveva (420 ?-500?) e Clotilde (474?- 545) não compreendiam nada do latim da Igreja. Isso não é tão certo, ao menos para Santa Genoveva. É a partir de Gregório de Tours (544-595) que não há mais clérigos e leigos esforçando-se por ter um latim correto e que as leis, diplomas etc. redigem-se em baixo latim. No século VIII, algumas glosas de Reichenau atestam a existência do românico, e é em 81S que o concílio de Tours, talvez após constatar que os clérigos formados pelos novos estudos latinos não se fazem entender pelos fiéis, ordena ao clero que pregue em língua corrente onde seja necessário. Quanto a Santa Clotilde, é possível, embora incerto, que ela não compreendesse o latim. Ela era burgúndia e provavelmente nascida em Lion. Os bárbaros parecem ter conservado longamente sua língua, que, aliás, penetrou profundamente o léxico do latim falado na Gália.
(Cf. BRUNOT et BRUNEAU, Précis de grammaire historique de la langue française, pp. VII et VIII), Sobre o concílio de Tours do ano de 813, v. HEFELÉ-LECLERCQ, t. III, ,2ª parte, p. 1143, cânone 17 : “Cada bispo deve ter uma boa coleção de homilias que ele traduzirá, para que todos as possam compreender ‘in rusticam Romanam linguam aut Testiscam’ (o tudesco).”
[14] Não há edição satisfatória dos “atos proconsulares” desses dois mártires. A passagem citada é tomada de empréstimo ao Acta Martyrum de Dom RUINART, com tradução do padre Pierre Hanozin, S. J. (cf. HANOZIN, Geste des Martyrs, pp. 231-237). “Reserva feita a muitos detalhes, a crítica do documento, escreve Hanozin, conclui por sua historicidade e o considera independente duma narração feita por Eusébio em sua História Eclesiástica.”
[15] Essa basílica foi reencontrada graças às escavações de Sepp. Veja-se a planta em J. STRZYGOWSKI, L’ancien art chrétien en Syrie (Paris, de Boccard, 1936), p. 24, fig. 9. Circundada dum muro que forma o recinto, a basílica tem cinco naves, com seu átrio e pórtico que se sobressaem à frente da parede do têmenos.
[16] Histoire ecclésiastique, tradução de Grapin, 1, X, cap. IV, n. 38, t. III, p. 107
[17] Isso desmente as seguintes linhas de BATIFFOL (Leçons sur la messe, p. 78-79) : “A liturgia romana do século VIII não havia aceitado essa inovação (a oração voltada ao Oriente) : na missa papal, o celebrante mantém o rosto voltado à assistência qualquer que seja a orientação da basílica” Em São Paulo Extramuros, nada disso havia.
[18] Dict. Arch., XII, 2667; S. Ambrósio, De Mysteriis, P.L., XVI, 108; DANIÉLOU, Le Symbolisme des Rites baptismaux, em Dieu vivant, I, pp. 17-28.
[19] No Ocidente, eram igualmente recebidas partes de corpos santos que cediam as cristandades da Ásia V. JEAN HUBERT, L’art pré-roman, Paris, 1938, pp. 169-170, e a carta (fig. 189) dos aportes de relíquias de mártires que foram feitas perto do final do século IV, para dedicarem-se os altares das novas igrejas episcopais da segunda de Narbona e da de Viena.
[20] GRISAR, Analecta Romana, pp. 612-627.
[21] P.L., LXXVIII, 937 e ss.
[22] Origines du culte chrétien, 5ª edição, pp. 475-501
[23] HARIULFO, Crônica, II. 2.
[24] FÉLIBIEN, Histoire de l’abbaye royale de Saint-Denis, pp. LVIII-LIX, n° 77.
[25] MABILLON, Annales, l. XLII, 40, t. III, p. 368.
[26] HEFELÉ-LECLERCQ, Histoire des Conciles, t. III, 1ª parte, p.216; esse cânone X passou ao Corpus Juris, dist. II, cap. 97, de consecratione: “Não se deve dizer, no mesmo dia, missa duas vezes sobre um mesmo altar, e quando o bispo tiver dito missa num altar, presbítero algum deve ali celebrar naquele dia.”
[27] P.L., LXI, 834
[28] A planta de São Galo encontra-se em R. DE LASTEYRIE, L’architecture religieuse en France à l’époque romane, 2ª ed., 1929, p. 141, fig. 124 A respeito de toda a questão da planta das igrejas, seguimos o notável livro de G. PIAT, L’art de bâtir en France, des Romains à l’an 1100, Paris, 1939, pp. 53 e ss., e JEAN HUBERT. L’Art préroman, Paris, 1938, notadamente pp. 51-53.
[29] Cf. a planta de São João no século XIV em ACHET, Pardon annuel, reproduzida em D. BUENNER, Le rite lyonnais, pp. 120-121.
[30] Cf. BATIFFOL, Études de liturgie et d’archéologie chrétienne, pp. 13-19
[31] Rationale divinorum off., lib. V, cap. II, n° 57, edição Barthélémy, t. III, p. 42
[32] P. THURSTON, S. J., DUMOUTET e outros: bibliografia, em Eucharistia, p. 360
[33] Durante a primeira metade do século XIII, os coros altos eram raros. Apenas pelo final desse século e sobretudo durante o seguinte (XIV) é que foram construídos. Nos séculos XV e XVI, também eram colocados nas igrejas paroquiais mais importantes; talvez ainda fossem construídos durante a Renascença: o da catedral de Tournai, erigido em 1573, é dos mais belos dessa época. O mais antigo da Bélgica (que subsiste) é o da igreja de São Pedro em Lovaina, remontando a 1490. Cf. REUSSENS, Archéologie chrétienne, t. fi, pp. 249-251. O defensor dos coros altos no século XVII (porque se começava derrubá-los) é J.-B. THIERS, Dissertations sur les jubés, Paris, 1688, 296 pp. in-18.
Chanoine M. Michaud. La Maison-Dieu : cahiers de pastorale liturgique, nº. 2, 1945, pp. 93-123. <https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k6555275r/f95.item>