“(…) De modo ainda mais vigoroso que no caso da doutrina da Imaculada, impõe-se, aqui, a objeção de que a ressurreição é um fato que deve ser testemunhado e transmitido, e que não pode ser imaginado. A partir dessa concepção, veio o veemente protesto da teologia alemã antes da proclamação do dogma, de modo mais incisivo na conhecida série de artigos de B. Altaner, que mostrou, com toda a sua erudição de historiador, que o testemunho que nossa afirmação encontra nas fontes não é anterior ao século V.[1] Fica claro, portanto, que não pode se tratar, aqui, de uma tradição histórica de um fato histórico, e que a afirmação é entendida erroneamente se examinada ou apresentada como tal. Nisso está a diferença decisiva da ressureição de Jesus, que, na verdade, ultrapassa a história e, nesse sentido, não apresenta um fato histórico comum; para ele, no entanto, é essencial que atinja a história e nela seja manifestada. O texto da bula dogmática de 1950 leva em conta essa diferenciação, à medida em que não fala de “ressurreição” (anastasis) com relação à Maria, mas de assumptio ad caelestem gloriam – não de “ressurreição”, mas de “assunção” em corpo e alma na glória celeste. Com isso, ela define claramente o conteúdo desse artigo de fé como uma afirmação teológica e não como histórica.
Porém, o que significa isso? Para um esclarecimento, teríamos de penetrar na história do desenvolvimento do dogma, assim como nos fatores determinantes para a sua formação. Seria possível, assim, mostrar que a decisiva força motriz dessa afirmação foi o culto a Maria; e que o dogma, por assim dizer, tem sua força motriz, tem sua origem e também o seu objetivo menos no seu conteúdo propositivo que na ação de homenagem e enaltecimento.[2] Pode-se reconhecer isso também no texto da proclamação dogmática, quando lá é dito que o dogma seja proclamado para a honra do Filho, a glorificação da Mãe e a alegria de toda a Igreja.[3] Esse dogma quis ser um ato de culto, na forma mais elevada de exaltação e louvor a Maria. Aquilo que faz o Oriente na forma de liturgia, de hinos e de ritos, acontece no Ocidente na forma de proclamação dogmática, que, por assim dizer, quis ser a forma mais solene de hinologia, e primariamente deve, assim, ser compreendida como um ato de culto. Isso diferencia os dois últimos dogmas marianos, em certo sentido, das formas mais antigas em que se configurou a confissão de fé eclesial, ainda que o caráter doxológico estivesse sempre presente, acentuado de modo mais ou menos incisivo.
Podemos dizer, então, que a proclamação dogmática de 1950 se trata de um ato de culto a Maria, que pretende ser a suprema e constante exaltação da Mãe, e liturgia da fé, por assim dizer, através da forma do dogma. A afirmação de conteúdo aqui feita está totalmente ordenada ao culto, mas o culto, em contrapartida, se serve desse conteúdo e encontra aqui a sua razão mais forte: o culto se liga àquela que vive, que está em casa, que está realmente além da morte e chegou à meta. Podemos também dizer: a fórmula da Assumpta explicita aquilo que é o pressuposto íntimo do culto. Ora, todo culto que se dá sob o predicado “sanctus” (-a) tem como pressuposto a vida com o Senhor; apenas tem sentido se aquele que é venerado vive e chegou à meta. Portanto, seria possível dizer que o dogma da Assunção seria simplesmente o mais alto grau de canonização, em que o predicado “santo” é atribuído em seu mais estrito significado, ou seja, com o seguinte significado: total e inteiramente na plenitude escatológica. Com isso, abre-se já o contexto bíblico fundamental que garante, em última instância, toda a afirmação dogmática. Se podemos, de fato, assegurar que o dogma da Assunção apenas transcreve em termos de conteúdo aquilo que é interiormente pressuposto e afirmado no grau supremo do culto, devemos nos recordar, no mesmo instante, que o próprio Evangelho profetiza o culto mariano e o exige: “Doravante, todas as gerações me chamarão de bem-aventurada” (Lc 1,48) – essa é a missão confiada à Igeja, e o seu registro em Lucas pressupõe que o louvor a Maria já existia na Igreja do seu tempo, e que ele o estende como uma incumbência da Igreja em todas as suas gerações. Ele vê o início desse louvor na saudação de Isabel: “Feliz aquela que acreditou (…)” (Lc 1,45).[4]
Nessa mais primitiva forma do culto a Maria se reflete a unidade dos Testamentos, que é característica de todo o tema mariano: o Deus de Israel é chamado nominalmente pelos homens, a quem ele se mostrou grandioso, e em cuja vida se fez visível e presente. Eles são como que os seus nomes na história, através deles Ele próprio tem nome, através deles Ele se torna acessível. Ele se chama o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó; chama-lo equivale a chamar os Patriarcas, assim como, vice-versa, dizer o nome dos Patiarcas significa dele se lembrar e reconhecê-lo. Não invocar os homens em quem ele mesmo se faz visível significa ingratidão e falta de memória – e para a fé de Israel, no entanto, é justamente característico o fato de ela ter memória e de ser memória. O louvor de Maria insere-se, assim, naquela noção de Deus que liga os Patriarcas ao nome de Deus, e que sabe que, na exaltação dos Patriarcas se dá a exaltação de Deus. Uma vez tendo isso como estabelecido, não se pode, todavia, excluir do nosso contexto a interpretação que Jesus oferece em Mc 12,18-27, acerca de Deus Pai. Aqui ele relaciona o tema de Deus Pai com o tema da ressurreição, unindo os temas de tal modo que um condiciona o outro. Ele demonstra a ressurreição não a partir de textos isolados da literatura profética tardia ou da literatura apocalíptica (o que não teria efeito no diálogo com os saduceus), mas a partir do conceito de Deus: o Deus que se deixa chamar como o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó já não é um Deus dos mortos, mas dos vivos. A ressurreição mostra que esses nomes fazem parte do próprio nome de Deus: “Quanto aos mortos que hão de ressurgir, não lestes no livro de Moisés, no trecho sobre a sarça, como Deus lhe disse: Eu sou o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacó? Ao, ele não é Deus de mortos, mas sim de vivos. Errais muito!” (12,26s). O direito ao culto carrega consigo a certeza da vitória sobre a morte, a certeza da ressurreição.[5]
Certamente ergue-se, aqui, uma vez mais, uma objeção. Poder-se-ia dizer: vitória sobre a morte sim; mas por que na forma suprema, escatológica e definitiva, assim como está indicado na fórmula “corpore et anima” (que se poderia ser traduzida simplesmente, de fato, em “português”, pelo termo “escatológico”)? Ora, aqui se poderia responder da forma mais clara possível: isso é permitido simplesmente pelo fato de que esse nome – Maria – está no lugar da própria Igreja, da sua condição de estar definitivamente redimida. Antes de aprofundar essa informação, será oportuno discutir mais um pensamento mediador, que também desempenha um papel significativo no texto da proclamação dogmática.
Assim como a vida do homem é constituída e está imersa em um mundo onde a morte é a condição da vida, assim também o nascimento é sempre ambivalente: ele é, ao mesmo tempo, um morrer e um devir. A sentença de Gn 3,16 descreve exatamente esse destino do homem; a ambiguidade da figura de Eva exprime essa ambiguidade do devir biológico: o nascimento é uma parte da morte, ele se dá sob o signo da morte e remete a ela, que, em certo sentido, ele antecipa, prepara e também pressupõe.[6] Gerar a vida significa, sempre, e ao mesmo tempo, abrir-se a si mesmo ao morrer. Se, todavia, Maria é realmente geradora de Deus, se ela gera aquele que é a morte da morte, aquele que é a vida, pura e simplesmente, então esse “ser-Mãe-de-Deus” é realmente um “novo nascimento” (nova nativitas): um novo tipo de gerar em meio ao antigo, assim como Maria, enquanto membro da Antiga Aliança, é a Nova Aliança inserida na Antiga. Esse nascimento não é um morrer, mas um devir, uma irrupção da vida que desfaz o morrer e o deixa para trás, definitivamente. A denominação “Genitora de Deus” remete, assim, por um lado, para trás, para a Virgem: essa vida não é concebida no morrer e devir cotidianos, mas é puro início; ela remete para adiante, para a Assunção: desse nascimento não vem morte alguma, somente vida. Essa nova “geração” não está condicionada à sua retirada da antiga, mas realiza o caráter definitivo do todo.
Entretanto, encontra-se aqui também a ligação com o dogma da Imaculada; ela poderia ser descrita, de modo aproximado, da seguinte maneira: onde está a totalidade da graça, está a totalidade da salvação. Onde a graça não se encontra na precariedade do “justo pecador e simultaneamente”, mas é puro “sim”, aí não tem espaço algum a morte, o pilar do pecado. Certamente, cabe agora, com isso, a pergunta: o que significa, afinal, a assunção em corpo e alma na glória celestial? O que significa, afinal, “imortalidade”? E o que significa “morte”? Por si só o homem não é jamais imortal; apenas no outro e para o outro, provisoriamente, em caráter experimental, fragmentariamente na criança e na fama; definitivamente, e de modo verdadeiro, somente naquele que é totalmente Outro, e a partir dele: Deus. Somos mortais por causa daquela autarquia conveniente do “querer-permanecer-em-si-mesmo”, que acaba se mostrando uma ilusão. A morte, enquanto fracasso da autarquia, enquanto impossibilidade de se dar consistência a si mesmo, não é meramente um fenômeno somático, mas um fenômeno humano de profundidade totalizante. Lá, porém, onde não há a tentativa, em nós inata, de uma autarquia, lá onde há a pura autoexpropriação daquele que não se funda sobre si mesmo (= Graça!), aí não há “morte” (ainda que haja um fim somático), mas o homem como um todo entra na salvação, pois ele, como totalidade, sem redução alguma, está eternamente na memória de Deus, geradora de vida, que o sustenta, tomando-o, tal como é, em sua própria vida.[7]
Com isso, porém, retornamos àquilo que havíamos recordado anteriormente. Quem pode ser glorificado e louvado com o nome de Deus vive, assim afirmamos todos nós. E acrescentamos: em Maria, e apenas nela (até onde sabemos), isso vale de um modo definitivo, que não é mais uma simples promessa ainda não cumprida, mas á é realidade. A esse propósito, Col 3,3 parece-me ter algum significado: “Vós morrestes e a vossa vida está escondida com Cristo em Deus”. Isso pretende afirmar que há algo como uma “ascensão” da pessoa batizada, de que fala de modo explícito Ef 2,6: “Com ele nos ressuscitou e nos fez assentar nos céus, em Cristo Jesus”. O batismo, de acordo com esse texto, é participação não apenas na ressurreição, mas também na ascensão de Jesus. O batizado, enquanto batizado e na medida em que o é, está já agora inserido na ascensão, e vive lá a sua vida oculta (sua vida verdadeira!), no Senhor elevado ao céu. A fórmula da “Assunção” de Maria em corpo e alma perde, a partir desse texto, todo e qualquer caráter especulativo e arbitrário; ela é, de fato, apenas a forma suprema de canonização: afirma-se que, naquela que deu à luz o Senhor “antes com o coração que com o corpo” (Santo Agostinho), de cuja fé (ou seja, o conteúdo íntimo do batismo) pode-se dizer, portanto, que é ilimitada, segundo Lc 1,45, naquela, então, em que toda a essência do batismo se realiza, a morte foi engolida pela vitória de Cristo, e nela tudo aquilo que ainda resiste ao batismo (à fé) foi superado totalmente pela morte da vida terrena. E assim conclui-se essa afirmação, que, baseada no próprio Novo Testamento, tem sua fusão entre Lc 1,45 e Ef 2,6 sua plena evidência pessoal em Maria, novamente em uma estreitíssima ligação com os contextos tipológicos que viemos examinando todo esse tempo: aquela que é inteiramente batizada é, enquanto realidade pessoal da verdadeira Igreja, a certeza da salvação dessa Igreja, não apenas verbalizada como promessa, mas personificada corporalmente; nela a Igreja encontra-se já redimida: o novo Israel não é mais rejeitado. Ele já entrou no céu, e sobre isso há preciosos textos patrísticos que, objetivamente, porém, apenas desenvolvem aquilo que já se encontra na Bíblia.[8]
Para concluir, mais uma observação. Lucas relata no episódio da visita de Maria a Isabel, que João “estremeceu de alegria no ventre” (1,44) ao ressoar a saudação de Maria. Para expressar a alegria, ele utiliza a mesma palavra, σχιρτάν (“saltar”), que também usou como expressão para a alegria daqueles que são tocados pelas bem-aventuranças (Lc 6,23). Em uma das antigas traduções gregas do Antigo Testamento, também se encontra esse termo, quando se descreve a dança de Davi diante da Arca da Aliança que finalmente retorna à pátria (2Sm 6,16, Símaco).[9] Talvez Laurentin não esteja totalmente equivocado quando acha que toda a cena da Visitação tenha sido construída em paralelo com o retorno da Arca à pátria, de modo que o salto da criança seria a continuação do júbilo extático de Davi diante da garantia da proximidade de Deus. Seja como for, porém, aqui se exprime algo que se perdeu quase completamente para nós, em nosso século crítico, mas que é intimamente parte da fé: para esta é essencial o júbilo diante da Palavra que se fez Homem, o salto diante da Arca da Aliança, na alegria esquecida de si mesma daquele que reconheceu a proximidade redentora de Deus. Somente quando entendemos isso, podemos compreender também o culto mariano: para além de todos os problemas, ele é a ação de se deixar tomar pelo encanto da alegria de que existe, indestrutível, o verdadeiro Israel; é o lançar-se bem-aventurado no júbilo do Magnificat e, com isso, é louvor daquela de quem a Filha de Sião é devedora, e a quem ela traz dentro de si, como a verdadeira, incorruptível e indestrutível Arca da Aliança.[10] (…)”
Fonte: (Bento XVI, Papa, 1927-. A filha de Sião: a devoção mariana na Igreja / Joseph Ratzinger; [tradução Ney Vasconcelos]. – São Paulo: Paulus, 2013. p. 57-66)
REFERÊNCIAS E NOTAS:
[1] B. Altaner, Die Frage der Definibilität der Assumptio B.M.V., in: Theol. Revue 44 (1948), 129-140; cf. M. Schmaus, Katholische Dogmatik V Mariologie (Munique, 1955), 232ss.
[2] Um detalhado material a esse respeito em R. Laurentin, La question mariale(Paris, 1963).
[3] DS 3903.
[4] Cf. sobre isso F. Mussner, Lk 1,48f; 11,27f und die Anfänge der Marienverehrung in der Urkirche, in: Catholica 21 (1967), 287-294.
[5] Apresentei esses contextos mais pormenorizadamente em minha contribuição Taufe, Glaube and Zugehörigkeit zur Kirche, in: Internat. kath. Zeitschrift 5 (1976), 218-234.
[6] As religiões do mundo expressam isso frequentemente de modo profundo. Algo de importante acerca do assunto pode ser encontrado na dissertação, ainda não publicada, de B. Adoukonou, Jalons pour une théologie africaine. Essai d’une Herméneutique chrétienne du Vodoo dahoméen. Na religião do vodu (em sua forma experimentada em Daomé [Benin]), tratada por Adoukonou, após o nascimento de uma criança são enterrados sua placenta e seu cordão umbilical, em um enterro solene, e em um círculo que simboliza o tempo; sobre o túmulo é plantada uma árvore – símbolo da vida: o parentesco entre nascimento e morte, viver e morrer, que está no ponto central dessa religião como um todo, é aqui apresentado no ritual.
[7] Apresentei detalhadamente a problemática da imortalidade e da ressurreição, que não pode ser aqui desenvolvida mais extensamente, em minha escatologia, que aparece como Volume IX da obra Kleiner katholischen Dogmatik, editado por J. Auer junto comigo no outono de 1977 em Pustet.
[8] Cf. H. Rhaner, Himmelfahrt der Kirche (Freiburg 1961); do mesmo autor, Mater Ecclesia. Lobpreis der Kirche aus dem ersten Jahrtausend christlicher Literatur(Einsiedeln-Köln, 1944); ainda do mesmo autor, Maria und die Kirche (Innsbruck, 1951); K. Delahayne, Erneuerung der Seelsorgsformen aus der Sicht der frühen Patristik (Freiburg, 1958).
[9] Cf. R. Laurentin, Struktur und Theologie der lukanischen Kindheitsgeschichte (Stuttgart 1967) 91-94. As provas apresentadas por Laurentin para o paralelismo entre Lc 1,39 e 2Sm 6,2 não são, certamente, conclusivas, mas parece-me que têm sua importância subestimada por Schürmann, o.c., p. 64s, n.161. No sentido de Laurentin, em uma visão positica, Stöger, o.c., 54s; Nellessen, o.c., 108.
[10] Sobre a temática geral do livro seria necessária, ainda, a referência a W. Beinert, Heute von Maria reden (Freibug, 1974); ª Müller, Du bist voll. Der Gnade(Alten, 1957); sobre o culto mariano, a tradução do escito apostólico Mariales Cultus, de Paulo VI, introdução de W. Beinert: Die rechte Pflege und Entfaultung der Marienverehrung (Leisterdorf, 1974), assim como W. Beinert (org.), Maria heute ehren (Freiburg, 1977); sobre a mariologia do Vaticano II: R. Laurentin, La Vièrge au Concile (Paris, 1965); G. Philips, L’Église et son Mystère au deuxième Concile du Vatican (Paris, 1968) 207-289; 322.
PARA CITAR
RATZINGER, Joseph. A Assunção Corporal na Glória Celestial. Disponível em: <http://apologistascatolicos.com.br/index.php/apologetica/virgem-maria/793-a-assuncao-corporal-na-gloria-celestial> Desde: 06/05/2015.