Domingo, Dezembro 22, 2024

Igreja e Estado – Van Noort

Capítulo V

Igreja e Estado

I. Observações Preliminares

A relação entre Igreja e Estado é um problema delicado, prático e complexo. Delicado porque toca duas das mais profundas lealdades do homem: o patriotismo e a religião. É um problema prático: não se restringe à esfera silenciosa e erudita da especulação teológica ou filosófica. É um problema complexo: sua solução adequada envolve três ou quatro ciências distintas – teologia, direito canônico, ciência política e história. Nenhuma dessas ciências pode se dar ao luxo de negligenciar as outras ao escrutinar este problema [Nota: Embora cada uma dessas ciências tenha algo a contribuir para uma adequada compreensão e solução desse problema, o teólogo terá em mente que a teologia, além de ciência, é uma sabedoria. Funcionando precisamente como uma ciência, só poderia contribuir com sua própria visão especial do assunto; mas funcionando como uma sabedoria, pode lançar luz sobre as outras ciências. Tem um ponto de vista superior e pode discernir quando outra ciência está ultrapassando seus próprios limites. Para um artigo recente e interessante sobre o funcionamento da teologia como uma sabedoria, veja William O'Connor, "The Grandeur and Mistery of Theology", CTSA (1955). págs. 285-94]. Finalmente, é um problema explosivo porque envolve pessoas vivas que se sentem fortemente sobre o assunto e muitas vezes partem de princípios diametralmente opostos. A devoção à verdade não nos dá o direito de pisotear impiedosamente os sentimentos alheios; mas a caridade para com o próximo não justifica qualquer adulteração da verdade. De fato, um problema delicado.

Para evitar confusões e discussões desnecessárias, deve-se deixar claro o que será tratado aqui e o que não será.

O primeiro ponto a ser notado é que estamos aqui preocupados principalmente em afirmar os princípios teológicos envolvidos. Assuntos principalmente históricos, políticos ou canônicos serão mencionados apenas na medida em que estejam necessariamente interligados com uma apresentação teológica adequada. [Nota: Para um tratamento desse assunto do ponto de vista da filosofia política, ver Jacques Maritain, Man and the State; para uma excelente apresentação canônica do problema, ver L. Bender, Jus publicum ecclesiasticum (1948); para alguns antecedentes históricos sobre o problema Igreja-Estado do século XIX, ver E. E. Y. Hales, Pio Nono].

Em segundo lugar, estamos preocupados com os princípios que regem o relacionamento entre o Estado e a Igreja Católica Romana; não a relação entre o Estado e as Igrejas não católicas. A doutrina católica não discute este último ponto. [Nota: Bender, op. cit., pág. 200].

Em terceiro lugar, não estamos exclusivamente nem principalmente preocupados com o problema Igreja-Estado nos Estados Unidos da América. Este problema existiu por 1400 anos antes da América ser descoberta e provavelmente continuará por séculos depois que a civilização americana desaparecer como outras antes dela. Nossa preocupação é delinear os princípios imutáveis ​​pertinentes a qualquer época e que admitem aplicação analógica [Nota: Sobre este ponto ver Maritain, op. cit., pp. 156-57] às mais diversas situações. Devemos, no entanto, dedicar algum espaço à situação americana para o bem de nossos leitores americanos. Nosso objetivo nesta seção será duplo: (1) acalmar os medos honestos, mas equivocados, de muitos americanos não católicos – medos gerados em grande parte por uma caricatura da doutrina da Igreja conforme apresentada nos escritos de fanáticos; (2) para mostrar que não há incompatibilidade entre os princípios católicos e as tradições queridas desta terra, e nenhuma inconsistência entre o pensamento e a prática católica, desde que os princípios católicos sejam entendidos em todo o seu delicado equilíbrio. Este assunto aparecerá em duas scholia intitulados respectivamente: A posição dos não-católicos em um estado católico, e, Onde o "ideal" é inatingível.

Divisão de tratamento. Como se trata de uma discussão teológica, vamos primeiro considerar o magistério da Igreja para ver seu ensinamento positivo sobre esse problema. Em segundo lugar, daremos uma avaliação da força vinculante desse ensinamento.

 

Bibliografia Especial para Igreja e Estado

Livros e Documentos

 

BENDER, L. Jus publicum ecclesiasticum. Holland, 1948.

BILLOT, L. De ecclesia Christi, vol. 2. Rome, 1929.

BONGHI, A. Stato e Chiesa. Milan, 1942.

CAPPELLO, F. Summa juris publici ecclesiastici. Turin, 1932.

CORONATA, M. Jus publicum ecclesiasticum. Turin-Rome, 1934.

EDITORS OF "COMMONWEAL." Catholicism in America. New York, 1954.

EHLER, S., AND MORRALL, J. Church and State Through the Centuries. Westminster, Md., 1954.

GARRIGOU-LAGRANGE, R. De revelatione, vol. 2, 4th ed., pp. 411-25. Rome, 1945.

GILSON, E. The Church Speaks to the Modern World, New York, 1954.

GURIAN, W., AND FITZSIMONS, M. The Catholic Church in World Affairs. Notre Dame, Ind., 1954.

HALES, E. E. Y. Pio Nono. London, 1954.

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PIUS IX. Encyclical: Quanta cura, (Dec. 8, 1864) PIUS X. Encyclical: Vehementer Nos, (Sept. 8, 1906).

PIUS XI. Encyclicals: The Kingship of Christ, (Quas primas, Dec. 11, 1925); The Church in Germany, (Mit brennender Sorge, March 14, 1937).

PIUS XII. Encyclical: On the Function of the State in the Modern World, (Summi pontificatus, October 20, 1939); Christmas Message, Dec. 24, 1944; allocution to the Sacred College: Catholics and World Reconstruction, (Ancora Una Volta, June 1, 1946); Address to Catholic Lawyers of Italy, (Ci Riesci, Dec. 6, 1953); Address to Historians, (Sept. 7, 1955).

RUNCIMAN, S. The Medieval Manichee. Cambridge, 1955.

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Artigos e Ensaios

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FENTON, J. C. "Time and Pope Leo," AER, 114 (May, 1946), 369 ff."The Catholic Church and Freedom of Religion," AER, 115 (October, 1946), 286 ff. "The Status of a Controversy," AER, 124 (June, 1951), 451 ff. "Principles Underlying Traditional Church-State Doctrine," AER, 126 (June, 1952), 452 ff. "The Teachings of the Ci Riesci," AER, 130 (February, 1954), 114 ff. "Toleration and the Church-State Controversy," AER, 130 (May, 1954), 330 ff.

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YANITELLI, V. "A Church-State Controversy," Thought, 26 (Autumn, 1951), 443 ff. "A Church-State Anthology," Thought, 27 (Spring, 1952), 6 ff. (excerpts from J. C. Murray).

 

Artigo I

ENSINO DA IGREJA

I. Ensinamento Positivo da Igreja conforme encontrado no Magistério Ordinário

Ensinamento de Leão XIII

II. Princípios teológicos baseados nos ensinamentos de Leão

III. Princípio 1:

Deus é o autor de toda autoridade verdadeira, tanto civil quanto religiosa.

IV. Princípio 2:

Igreja e Estado são sociedades realmente distintas. Cada um é uma sociedade completa e independente em sua própria esfera.

V. Princípio 3:

Igreja e Estado não devem ser hermeticamente isolados um do outro. Eles devem cooperar pacificamente para benefício mútuo.

Scholion: O "Poder Indireto" da Igreja

VI. Princípio 4:

A Igreja transcende o Estado pela nobreza de sua natureza e de sua finalidade.

VII. Princípio 5:

Um estado realmente católico é per se obrigado a fazer profissão pública de catolicismo.

Significado do Princípio

Scholion 1: A posição dos não-católicos em um estado católico

Scholion 2: Onde o relacionamento "ideal" não é obtido

 

Artigo I

ENSINO DA IGREJA 

I. Ensinamento Positivo da Igreja conforme encontrado no Magistério Ordinário

O Concílio Vaticano pretendia discutir o problema da Igreja e do Estado, mas foi interrompido antes que tivesse tempo de considerar o assunto. O ensinamento da Igreja encontra-se, portanto, no magistério ordinário do Papa. Os lugares clássicos são principalmente, embora não exclusivamente, as encíclicas de Leão XIII. Pio XI e Pio XII precisaram ainda mais alguns pontos do ensinamento de Leão, reiterando-o em substância.

Ensinamento de Leão XIII

Antes de resumir os pontos ensinados por Leão, é importante notar que Leão se preocupa principalmente em afirmar qual é a relação ideal que deve existir entre a Igreja Católica e um Estado Católico [Nota: O termo inglês "estado" é, no mínimo, ambíguo. Pode significar qualquer coisa, desde uma massa amorfa de pessoas em uma determinada localização geográfica até o alto escalão do governo. Ao contrário, a língua latina tem quatro ou cinco palavras diferentes para designar as várias noções incluídas no significado de "Estado". Segundo Etienne Gilson: "do ponto de vista do uso do inglês, a palavra Estado é empregada corretamente na maioria das passagens das encíclicas. A palavra significa tanto o corpo político" quanto o que Jacques Maritain descreve como "aquela parte do corpo política especialmente preocupada com a manutenção da lei, a promoção do bem comum.'" Veja Gilson, tarifa e ordem pública e a administração de assuntos públicos." The Church Speaks to the Modern World (New York, 1954), p. 28. Gilson tem o cuidado de apresentar as nuances exatas dos vários termos latinos, "res publica", "civitas", "civilis potestas" etc. Pela delineação cuidadosa de Maritain das diferenças entre "nação", "estado", "corpo político”, etc., ver Man and the State (Chicago, 1951) pp. 1-12. Embora alguns filósofos políticos possam contestar o uso deste ou daquele termo para cobrir o mesmo conteúdo conceitual, não se pode negar a necessidade de distinções nesta questão de vocabulário político, nem a clareza de Maritain em precisar e justificar sua terminologia. Quanto ao termo "um estado católico", não é preciso cair na armadilha de reduzi-lo a um conceito puramente estatístico. Não é apenas uma questão de contagem: 90% faz um estado católico; menos de 90% um estado "pluralista". Analogamente, ninguém seria tentado a negar que existe uma Inglaterra apenas porque um grande grupo de irlandeses imigrou para Manchester; nem que exista uma realidade chamada América apenas porque várias centenas de milhares de americanos já foram companheiros de viagem do partido comunista. Sem discutir sobre o assunto, pode-se simplesmente descrever um estado católico como um país onde o povo como um todo – permitindo dissidentes individuais ou em grandes grupos – subscreve a filosofia de vida católica, historicamente se juntou à Igreja Católica e a aceita como o reino de Cristo na terra e aceita todas as verdades reveladas ensinadas por ela. É mais ou menos assim que aceitamos o conceito de estado americano como um grupo de pessoas comprometidas com um modo de vida americano, que historicamente aceitaram a Constituição e as tradições desta terra, sem se preocupar em contar cabeças para ver quais podem, em seus corações, ser anarquistas, ou podem ser amargurados por certos artigos da Constituição. Todos, católicos e não católicos, parecem ter uma visão tão saudável e ampla do assunto e, sem mais rodeios, classificam imediatamente como "países católicos" Itália, Irlanda, Polônia, Portugal etc. Pio XII ao se dirigir aos italianos (ver Ci Riesci) dá como certo que a Itália pode ser classificada como um estado católico, sem se preocupar com o fato de que existem grandes grupos de italianos que atualmente são comunistas. Para uma justificativa mais técnica desse uso da terminologia tradicional, veja George W. Shea, "Orientations on Church and State", AER, 125 (1951), 405-416.- Uma advertência final: dizer que um estado ou um país ser um "estado católico" não significa que seja necessariamente admirável em todos os seus aspectos. Assim como os indivíduos podem ser católicos, mas homens maus (porque falham em viver de acordo com os princípios católicos), também os "estados católicos" podem, de tempos em tempos em sua história, se comportar de forma vergonhosa ao trair os princípios católicos que deveriam seguir]. O papa está preocupado com a relação entre a Igreja e os Estados com um pano de fundo religioso pluralista apenas secundariamente e incidentalmente. Ainda assim, ao lidar com a última questão, o papa – em alguns parágrafos memoráveis ​​que citaremos mais adiante – mostra claramente como os governos católicos podem conceder plena liberdade religiosa a seus cidadãos não católicos sem ser inconsistentes com os princípios católicos.

Com este pano de fundo, podemos afirmar que a Immortale Dei (A Constituição Cristã dos Estados) de Leão XIII é uma espécie de Carta Magna que estabelece um projeto para uma sociedade católica ideal organizada de acordo com os princípios católicos. Nela se encontra seu ensinamento mais claro e completo sobre as relações entre Igreja e Estado em tal sociedade. [Nota: A encíclica Immortale Dei, datada de 1º de novembro de 1885, pode ser considerada a mais perfeita exposição e esclarecimento do problema da Igreja e do Estado contida nas cartas do Papa Leão XIII. Ela pressupõe uma concepção do Estado conforme aos princípios da filosofia cristã, isto é, aos princípios de São Tomás. O fundamento para tal doutrina é fornecido pelos ensinamentos do evangelho" (Gilson, op. cit., p. 157)].

Os principais ensinamentos da encíclica podem ser resumidos nos seguintes pontos:[Nota: Os números dados ao final de cada proposição são os números dos parágrafos usados na edição de Gilson da encíclica].

1. Deus é o autor de toda verdadeira autoridade, tanto civil quanto religiosa (3).

2. A autoridade de Deus respalda qualquer forma legítima de governo (4).

3. A Igreja não tem preferência por nenhum tipo de governo. Opõe-se apenas aos governos que pisoteiam os direitos de Deus ou os direitos do homem (4 e 36).

4. Em sua própria esfera, os governos civis devem se comportar como agentes da autoridade de Deus e, em sua preocupação com o bem-estar público, devem imitar o cuidado paterno e a justiça de Deus (5).

5. A sociedade civil, uma vez que deriva seus poderes de Deus, é, na ordem objetiva das coisas, obrigada a fazer profissão pública da religião estabelecida por Deus (7, 25, 26, 34, 35).

6. Igreja e Estado são duas sociedades distintas, completas e independentes (13).

7. O objetivo da Igreja é a eterna felicidade sobrenatural da humanidade; só ela possui autoridade sobre assuntos puramente espirituais (14).

8. O objetivo da sociedade civil é o bem-estar terreno do homem; só ela tem autoridade sobre assuntos puramente seculares (14).

9. Igreja e Estado devem cooperar entre si em benefício de seus cidadãos comuns (14).

10. A ideia de que a autoridade civil tem origem última na multidão dos cidadãos e não em Deus é um erro filosófico e conduz a más consequências para a sociedade civil (25 e 31).

11. A liberdade é necessária à Igreja para o cumprimento da sua missão (34).

12. Em assuntos de jurisdição mista, a Igreja e o Estado podem chegar a um acordo harmonioso por meio de uma concordata (35).

13. Os católicos devem ter espírito público e fazer o possível, por todos os meios honrosos, para ajudar a restaurar a sociedade moderna aos ideais cristãos (44-46).

14. Nenhum método fixo pode ser prescrito para ajudar a cristianizar a sociedade moderna: os métodos variarão de acordo com o tempo, o lugar, as circunstâncias (46).

15. A doutrina exposta nesta encíclica é o ensinamento católico sobre a configuração ideal para uma sociedade organizada segundo os princípios cristãos (16, 35, 36, 40, 50).

 

II. Princípios Teológicos Baseados no Ensino de Leão

  O ensinamento do pontífice contido nesses pontos pode ser resumido nos seguintes cinco princípios teológicos:

1. Deus é o autor de toda verdadeira autoridade, civil e religiosa.

2. Igreja e Estado são sociedades realmente distintas. Cada um é uma sociedade completa e independente em sua própria esfera.

3. Igreja e Estado não devem ser hermeticamente fechados um do outro. Eles devem cooperar pacificamente para benefício mútuo.

4. A Igreja transcende o Estado pela nobreza da sua natureza e da sua finalidade.

5. Um Estado realmente católico é obrigado per se a fazer profissão pública de catolicismo. [Nota: Acrescenta-se o adjectivo "realmente" porque é possível que um Estado outrora católico se torne pluralista ou mesmo não-católico, digamos, por exemplo, pela apostasia da fé de metade dos seus cidadãos. (Veja Bender, Jus publicum ecclesiasticum, op. cit., p. 199, onde ele prevê e discute tal possibilidade.)]

 

III. Princípio 1

Deus é o autor de toda verdadeira autoridade, civil e religiosa.

Este princípio é uma verdade tanto da razão natural como da revelação. A razão indica que nenhum homem é uma ilha: ele precisa da companhia de seus semelhantes para viver uma vida plenamente humana. Nenhum homem pode ser simultaneamente agricultor, médico, advogado, engenheiro, físico, pedreiro, alfaiate, agente funerário e padre. Consequentemente, é um instinto da natureza do homem que o move a viver em sociedade: doméstica, civil ou religiosa. Uma vez que é impossível para uma multidão de homens viverem juntos harmoniosamente, a menos que haja ordem entre eles e alguma autoridade governante legítima para salvaguardar os direitos individuais de cada um e o bem comum de todos, a autoridade governante, como a própria sociedade, tem sua base última na natureza. Uma vez que Deus é o criador supremo de todas as coisas e todas as coisas dependem continuamente Dele, também toda sociedade genuína e natural tem Deus como seu autor último. Consequentemente, toda autoridade genuína sobre as sociedades é, em última análise, o resultado do desígnio de Deus, pretendido por Ele e delegado aos homens por meio de vários modos legítimos de organização de diferentes sociedades. Leão coloca o assunto apropriadamente desta maneira:

O instinto natural do homem o leva a viver na sociedade civil, pois ele não pode, se morar separado, fornecer a si mesmo os requisitos necessários à vida, nem obter os meios de desenvolver suas faculdades mentais e morais. Portanto, é divinamente ordenado que ele leve sua vida – seja familiar ou civil – com seus semelhantes, somente entre os quais suas várias necessidades podem ser adequadamente supridas. Mas, como nenhuma sociedade pode se manter unida a menos que alguém esteja acima de tudo, orientando todos a lutar sinceramente pelo bem comum, todo corpo político deve ter uma autoridade governante, e essa autoridade, não menos que a própria sociedade, tem sua fonte na natureza, e tem, consequentemente, Deus como seu autor. –Immortale Dei, Gilson ed., No. 3.

Esta mesma verdade que é alcançável pela razão natural também foi proclamada pela revelação de Deus. São Paulo lembra aos cristãos romanos em termos contundentes que eles devem respeitar e obedecer à autoridade civil, pois seu autor supremo é Deus:

Que cada um se submeta às autoridades governantes, pois não existe autoridade que não seja ordenada por Deus. E aquilo que existe foi constituído por Deus. Portanto, aquele que se opõe a tal autoridade resiste à ordenança de Deus, e os que resistem trazem condenação sobre si mesmos. . Assim, devemos nos submeter, não apenas por medo de punição, mas também por uma questão de consciência. (Rom. 13:1-6.)

Este princípio é tão sólido que alguém poderia se perguntar por que Leão XIII deveria enfatizá-lo tão longamente. A razão é que no liberalismo desenfreado do século XIX, várias teorias políticas estranhas sobre a origem do poder civil estavam em voga. Uma teoria – não menos aberrante pelo fato de ser extremamente popular – era a chamada “teoria do motorista de táxi” do governo. [Nota: Esta teoria está historicamente ligada à Revolução Francesa. Seu nome é encontrado explicitamente nas obras de Paul-Louis Courier (1773-1825). Sua formulação mais rica e menos elaborada encontra-se na filosofia de Rousseau. Para uma análise clara e breve dessa teoria e sua oposição radical a um conceito cristão de democracia, veja Yves R. Simon, "The Doctrinal Issue Between the Church and Democracy" em The Catholic Church in World Affairs, pp. 87114, editado por Gurian e Fitzsimons (Notre Dame, 1954)].

De acordo com esta teoria, os governantes são pura e simplesmente o instrumento da multidão. Nenhuma autoridade civil real, capaz de obrigar em consciência, existe e, consequentemente, nenhum dever de obediência correspondente.

Que se dissipem os últimos efeitos dos mitos tradicionais sobre a dignidade do governante: os homens do governo ficam reduzidos à condição de agentes, gerentes, secretários, instrumentos atravessados pelo poder, mas sem poder próprio. Eles recebem ordens, mas, apesar das aparências, não têm o direito de dar nenhuma ordem… Eles são líderes por ordem dos liderados. Sua liderança não envolve nenhuma autoridade. Embora seja permitido ao governante proferir sentenças gramaticalmente indistinguíveis de comandos, o governo, como empregados contratados e pagos, recebe as ordens dos governados e os conduz aonde eles querem ir. – Yves R. Simon, art. cit., pág. 91.

De forma extrema, essa teoria toma um rumo místico e a "vontade do povo" é glorificada como uma força impessoal e infalível que regula automaticamente todas as coisas para o bem comum.

Em suma, a origem e fonte última da autoridade civil não é Deus, mas o povo. O erro óbvio aqui é confundir um duto com um reservatório, uma linha telefônica com um dínamo. Porque a autoridade civil é canalizada através dos votos do povo, isso não significa que ela se origina do povo. Esta é precisamente a essência do protesto de Leão XIII contra uma falsa concepção de autoridade civil em voga em sua época:

A soberania do povo, no entanto, e isso sem qualquer referência a Deus, é considerada residir na multidão; que é sem dúvida uma doutrina extremamente bem calculada para lisonjear e inflamar muitas paixões, mas que carece de todas as provas razoáveis e de todo o poder de garantir a segurança pública e preservar a ordem. De fato, a partir da prevalência desse ensino, as coisas chegaram a tal ponto que muitos sustentam como um axioma da jurisprudência civil que as sedições podem ser legitimamente fomentadas. Pois prevalece a opinião de que os governantes nada mais são do que delegados escolhidos para realizar a vontade do povo; daí decorre necessariamente que todas as coisas são tão mutáveis quanto a vontade do povo, de modo que o risco de perturbação pública está sempre pairando sobre nossas cabeças. ID 31.

 
IV. Princípio 2

Igreja e Estado são sociedades realmente distintas. Cada um é uma sociedade completa e independente em sua própria esfera.

a. São sociedades realmente distintas. Mesmo que os mesmos homens possam ser membros da Igreja e cidadãos de um determinado país, isso não significa que a Igreja e o Estado de alguma forma se amalgamem em uma sociedade híbrida. Os homens podem pertencer tanto a um clube de xadrez quanto a um clube de golfe, mas isso não faz do xadrez um golfe, nem do golfe um xadrez. A prova mais simples para esta parte da proposição é que as sociedades são mais facilmente distinguidas pelos diferentes objetivos para os quais cada uma foi instituída. O objetivo da Igreja é a felicidade sobrenatural [Nota: Bender objeta que não é muito preciso distinguir Igreja e Estado como sociedade "religiosa x secular", como fazem Ottaviani e outros juristas. Em outra economia de coisas poderia ter havido uma religião puramente natural e então a base da divisão seria aceitável. Na verdade, porém, Deus instituiu uma ordem sobrenatural, uma religião sobrenatural e uma sociedade sobrenatural, a Igreja. Veja seu Jus publicum ecclesiasticum, pp. 26 e 43, onde ele escreve: "O objetivo de um é o bem natural supremo; o objetivo do outro é o bem supremo sobrenatural. Segue-se que agora temos duas sociedades, cada uma das quais tem como seu próprio fim algum bem completo ou um bem que é um fim último da vida humana. naquela ordem." Resumidamente, pela ordenança de Deus existem duas ordens. A Igreja está a cargo de um, a sociedade civil do outro. Cada um é supremo em sua própria esfera. A sociedade sobrenatural não pretende engolir a natural, nem vice-versa; eles são mutuamente complementares.] e eterna da humanidade; o objetivo da sociedade civil é o bem-estar temporal e, de fato, diretamente (per se), o bem-estar externo de seus cidadãos.

b. Tanto a Igreja quanto o Estado são sociedades completas. Uma sociedade completa ou perfeita é aquela cujo objetivo é supremo em sua própria esfera e que possui, pelo menos teoricamente, todos os meios necessários para atingir esse objetivo [Nota: O termo "sociedade perfeita", neste uso, não carrega nenhuma conotação de beleza ou imaculação. Significa simplesmente (perficere-perfectus) algo acabado ou completo. Perfeito, então, refere-se não à perfeição moral, nem à perfeição econômica, mas à perfeição estrutural.]. Qualquer sociedade que não possua um desses dois requisitos é necessariamente uma sociedade incompleta e imperfeita, destinada por sua própria natureza a fazer parte de alguma organização maior. A família, por exemplo, ainda que dotada de certos direitos inalienáveis, é uma sociedade incompleta, imperfeita. Ela precisa dos recursos da sociedade civil para ajudá-la a alcançar seus próprios objetivos.

Dificilmente alguém, exceto um anarquista, negaria que o Estado é uma sociedade completa ou perfeita. O mesmo não é verdade, no entanto, da Igreja. Um grande número de não-católicos falha em ver ou nega veementemente que a Igreja Católica Romana é uma sociedade completa ou perfeita. Eles a veem apenas como uma das muitas sociedades privadas e subordinadas contidas na estrutura do Estado. Apesar de seus protestos, devemos manter a verdade: a Igreja é uma sociedade completa ou perfeita e preenche todos os requisitos para tal. Na verdade, o objetivo da Igreja não é apenas supremo em sua própria esfera, é supremo sem reservas. Consequentemente, a Igreja possui em si mesma o poder pleno e supremo para ensinar, governar e santificar. Estes são os meios normais proporcionais ao seu objetivo. A rigor, também a Igreja pode, por direito próprio, exigir [Nota: Veja I Cor. 9:4-14] de seus súditos os bens temporais de que necessita para perseguir seu objetivo; na verdade, porém, prefere que eles cumpram tais obrigações voluntariamente. Observe a frase, por seu próprio direito. Assim como a Igreja não recebeu seu poder universal nem do próprio Estado, nem mesmo através da mediação do Estado, também possui o direito mencionado diretamente de Cristo e independentemente do Estado. Como disse Leão XIII:

O Filho unigênito de Deus estabeleceu na terra uma sociedade que é chamada de Igreja, e a ela entregou o sublime e divino ofício que havia recebido de Seu Pai, para ser continuado através dos tempos vindouros. -ID 8. [A Igreja] é uma sociedade constituída por direito divino, perfeita em sua natureza e em seu título, para possuir em si e por si mesma, por meio da vontade e bondade de seu Fundador, todas as provisões necessárias para sua manutenção e ação. -ID 10; itálico nosso.

c. Tanto a Igreja quanto o Estado são independentes em suas próprias esferas. Isso decorre do que já foi dito: uma sociedade completa ou perfeita, por ser autossuficiente tanto do ponto de vista de seu fim quanto dos meios para o fim, é, por isso mesmo, em sua própria esfera, independente de qualquer outra sociedade. O Estado, consequentemente, é independente dentro de seus próprios limites, isto é, em todas as questões puramente civis [Nota: Observe o modificador puramente: assuntos puramente civis, assuntos puramente religiosos. Alguns assuntos (geralmente descritos por teólogos e canonistas como assuntos mistos) como casamento e educação não são nem exclusivamente civis nem exclusivamente religiosos. Eles têm um aspecto sagrado e civil para eles: o aspecto sagrado pertence à província da Igreja; o aspecto civil à província do Estado. Para uma discussão completa deste assunto, consulte os canonistas. A apresentação de L. Bender sobre esse assunto é bastante original, provocativa e penetrante. Ver op. cit., cap. 6, pp. 201-16]. Por exemplo, estabelecer leis tributárias, promulgar códigos penais, fazer experimentos nucleares, salvaguardar a saúde pública, celebrar tratados com outras nações, erguer ou fazer barreiras tarifárias, salvaguardar a defesa da nação – essas várias e centenas de itens semelhantes pertencem, por sua própria natureza, à sociedade civil. Sobre tais assuntos, a Igreja não tem poder.

    O que quer que seja feito em assuntos temporais com referência ao objetivo temporal está fora do objetivo da Igreja. Agora, a norma geral é que as sociedades não têm poder sobre assuntos que estão fora de seu próprio objetivo. -Tarquini, Juris ecclesiastici publici Institutiones, 16ª ed., p. 49.

Mas a Igreja não é menos independente em sua própria esfera. Consequentemente, pode por direito inalienável ensinar sua doutrina em todo o mundo, exercer sua jurisdição e poderes sacerdotais em todos os lugares, e assim por diante, sem necessitar de qualquer autorização ou permissão da sociedade civil. O Estado não tem poder sobre questões puramente religiosas. É por isso que os apóstolos nunca procuraram governantes civis para pedir permissão para pregar o evangelho, fundar igrejas ou realizar atos de adoração. Aliás, quando necessário, os apóstolos rejeitaram abertamente a intervenção dos poderes seculares, apelando para a sua própria autoridade – uma autoridade concedida por Deus. Veja Atos 4:18-20; 5:29, 40-42. A Igreja sempre reivindicou sua independência por suas palavras, ações e muito sangue.

A independência de cada sociedade em sua própria esfera é claramente destacada por Leão XIII nestas palavras:

O Todo-Poderoso, portanto, deu a responsabilidade da raça humana a dois poderes, o eclesiástico e o civil, sendo um colocado sobre as coisas divinas e o outro sobre as coisas humanas. Cada um em sua espécie é supremo, cada um tem limites fixos dentro dos quais está contido, limites que são definidos pela natureza e objeto especial da província de cada um, de modo que há, podemos dizer, uma órbita traçada dentro da qual a ação de cada um é colocada em jogo por seu próprio direito nativo. -ID 13.

Alguns objetam que a Igreja não pode ser considerada uma sociedade completa e independente porque não possui seu próprio território. Esta é uma rejeição ingênua. A terra inteira é o território da Igreja em assuntos espirituais:

Jesus então aproximou-se deles e disse-lhes as seguintes palavras: "Foi-me conferida autoridade absoluta no céu e na terra. Ide, portanto, e iniciai todas as nações no discipulado: batizai-as em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, e ensina-os a observar todos os mandamentos que te dei. E assinala: estou contigo todos os tempos enquanto durar o mundo." – Mateus, 28: 18-20.

Não há nada de contraditório na ideia de um mesmo território e os mesmos homens estarem simultaneamente sujeitos a dois poderes, cada um deles independente em sua própria esfera; a razão é que cada sociedade tem seu próprio campo de atividade: uma se encarrega dos assuntos espirituais, a outra se encarrega dos assuntos civis. Conflitos podem, é claro, surgir e historicamente surgiram. Tais conflitos surgem acidentalmente: isto é, não pelo simples fato de haver duas sociedades, mas pelo fato de que indivíduos, laicos ou eclesiásticos, podem ultrapassar seus próprios limites, e invadir o território do outro. Meios legítimos de resolver tais disputas pacificamente estão sempre à mão. Leão XIII previu esta objeção e respondeu-lhe com a sua sabedoria habitual. Tais disputas sempre podem ser resolvidas pela revisão das esferas respectivas das duas sociedades em relação ao assunto em questão, ou por acordo contratual explícito, "concordats", entre Igreja e Estado traçando linhas rígidas de demarcação em áreas onde as disputas são passíveis originar:

Tudo o que, portanto, nas coisas humanas é de caráter sagrado, tudo o que pertence por sua própria natureza ou em razão do fim a que se refere, à salvação das almas ou ao culto de Deus, está sujeito ao poder e julgamento da Igreja. Tudo o que deve ser enquadrado na ordem civil e política está devidamente sujeito à autoridade civil. O próprio Jesus Cristo ordenou que o que é de César seja dado a César, e que o que pertence a Deus seja dado a Deus. -ID 14.

Há, no entanto, ocasiões em que outro método de concórdia está disponível em prol da paz e da liberdade: queremos dizer quando os governantes do Estado e o Romano Pontífice chegam a um entendimento sobre algum assunto especial. Em tais ocasiões, a Igreja dá prova notável de seu amor maternal, mostrando a maior bondade e indulgência possíveis. -ID 15.
 

V. Princípio 3

 Igreja e Estado não devem ser hermeticamente isolados um do outro. Eles devem cooperar pacificamente para benefício mútuo.

Este princípio deve ser mantido contra aqueles que proclamam como um dogma auto evidente que deve haver "um muro de separação" entre a Igreja e o Estado. Esses autodenominados "liberais", embora concedam teoricamente a liberdade da Igreja, pelo menos afirmam o seguinte: pela própria natureza do caso (per se), a melhor relação e a devotamente desejada em todas as circunstâncias é que o A Igreja não deve dar atenção ao Estado, e o Estado deve ignorar a Igreja. Observe as palavras: "pela própria natureza do caso" o melhor e desejável "sob todas as circunstâncias". Uma coisa é aceitar uma separação completa (no sentido de não-cooperação) entre Igreja e Estado em uma determinada situação, e acolher esse estado de coisas como o único sensato nas circunstâncias dadas. É um cavalo de uma cor totalmente diferente considerar tal estado de coisas como ideal per se.

Aqui estamos apenas discutindo princípios. Não estamos perguntando o que pode, pode ou deve ser bem-vindo neste ou naquele conjunto de circunstâncias ("hipótese"). Estamos simplesmente perguntando o que deveria ser estabelecido como um princípio positivo ("tese"), prescindindo de qualquer contexto histórico dado, para uma relação ideal entre Igreja e Estado em um país católico. Em outras palavras, qual relação é per se ideal – mesmo que em um determinado contexto histórico alguma outra relação possa ser bastante boa – e, consequentemente, o que todo homem católico deveria honestamente e sinceramente gostar de ver onde e em qualquer medida que um determinado conjunto de circunstâncias justifique isto? Pois a doutrina liberal, no sentido acima descrito e em nenhum outro sentido, foi condenada no Sílabo de Erros: "A Igreja deve ser separada do Estado, e o Estado da Igreja" (DB 1755). Leão XIII repetidamente condenou esta doutrina liberal do século XIX como perniciosa. Veja as encíclicas, Arcanum (10 de fevereiro de 1880); Immortale Dei (novembro de 1885); Libertas (20 de junho de 1888); Longinqua (6 de janeiro de 1895).

E era pernicioso. O tipo de liberalismo que Leão XIII estava protestando é óbvio pela lista detalhada de reclamações que ele levanta. O liberalismo do século XIX usou a "separação entre Igreja e Estado" como um grito de guerra. Com isso, o liberal do século XIX não significava a separação das duas sociedades, mas a subjugação da Igreja ao Estado; negação de seus direitos mesmo em sua própria esfera:

Eles reivindicam jurisdição sobre os casamentos dos católicos, mesmo sobre o vínculo, bem como sobre a unidade e a indissolubilidade do matrimônio. Eles se apoderam dos bens do clero, alegando que a Igreja não pode possuir propriedade. Por fim, eles tratam a Igreja com tal arrogância que, rejeitando inteiramente seu título à natureza e aos direitos de uma sociedade perfeita, eles sustentam que ela não difere em nada das outras sociedades do Estado e, por isso, não possui nenhum direito nem nenhum poder legal de ação, exceto o que ela detém pela concessão e favores do governo. Se em qualquer Estado a Igreja mantém seu próprio acordo publicamente firmado pelos dois poderes, os homens imediatamente começam a clamar que os assuntos que afetam a Igreja devem ser separados dos do Estado. . .. Consequentemente, tornou-se prática e determinação sob esta condição de política pública (agora tão admirada por muitos) proibir totalmente a ação da Igreja ou mantê-la sob controle e escravidão ao Estado. As promulgações públicas são em grande parte enquadradas com esse design. A elaboração de leis, a administração dos assuntos do Estado, a educação ímpia da juventude, a espoliação e supressão das ordens religiosas, a derrubada do poder temporal do Romano Pontífice, todos visam igualmente a esse fim – paralisar a ação de instituições cristãs, restringir ao máximo a liberdade da Igreja Católica e restringir todas as suas prerrogativas. -ID 27-29. [Nota: A condenação do pontífice não é uma condenação do genuíno liberalismo (ver ibid., n. 38-39 e também a encíclica Libertas); é simplesmente um engano de uma filosofia anti-religiosa mascarada sob um nome nobre].

Quão sensato e razoável é que a Igreja e o Estado em um país católico devam cooperar harmoniosamente ficará claro a partir dos seguintes pontos:

a. A Igreja e o Estado possuem os mesmos súditos. A menos que eles resolvam em acordo amigável questões que são de interesse mútuo (assuntos mistos), facilmente surgirão brigas. Essas brigas prejudicam tanto a Igreja quanto a sociedade civil. O cidadão perplexo pego no meio de tal conflito ou se afastará de seus deveres religiosos; ou deixará de exibir o respeito e a obediência que deve à autoridade civil. A cooperação harmoniosa, portanto, é algo a ser buscado por ambos os lados.

b. Ainda que os objetivos do Estado e da Igreja sejam distintos e pertençam a esferas distintas, Deus não os instituiu de maneira que não haja relação entre eles, ou de maneira que o Estado e a Igreja não tenham a menor necessidade de um outro. Leão afirma que o Deus Onisciente não age dessa maneira (veja ID 13-14). A prática sincera da religião e a busca da santidade muito contribuem, ainda que indiretamente, para a felicidade temporal. Inversamente, a tranqüilidade na sociedade e a distribuição equitativa dos bens materiais são uma grande ajuda, ainda que indiretamente, para a santificação das almas e a salvação eterna (cf. ID 20). Se, então, cada sociedade pode ser muito beneficiada na busca de seu próprio objetivo pela ajuda indireta da outra, a própria razão sugere que elas não devem ignorar uma à outra, mas devem cooperar pacificamente. Tal cooperação deve ser especialmente bem-vinda pelo Estado porque a Igreja pode continuar a existir e funcionar sem qualquer ajuda do Estado (desde que não seja perseguida pelo Estado), enquanto a sociedade civil tem uma necessidade tão grande de religião que sem religião todas as coisas ficariam de pernas para o ar e a própria sociedade civil desmoronaria.

c. Finalmente, assim como os cidadãos individuais são obrigados a adorar a Deus, também a sociedade como um todo é obrigada a adorá-Lo. [Nota: Veja o primeiro volume desta série, The True Religion, no. 7, pág. 17]. Na verdade, é obrigado a adorá-Lo através da religião que Ele mesmo instituiu, a única religião verdadeira, o Catolicismo. Ora, se a sociedade civil, precisamente como sociedade, é obrigada a professar a religião católica não pode, sem violar a sua obrigação (para com Deus), comportar-se com total indiferença para com aquela Igreja na qual está incorporada a verdadeira religião [Nota: Observe que este terceiro argumento para a cooperação pacífica entre a Igreja e o Estado (derivado da obrigação da sociedade enquanto sociedade de adorar a Deus) refere-se a um Estado católico. Obviamente, ninguém – nem papa nem teólogo – espera que um país maometano ou Israel faça profissão pública de catolicismo: o catolicismo é a única, a verdadeira religião, mas eles não estão cientes do fato. A obrigação objetiva de todos os homens de abraçar livremente o catolicismo é para eles, subjetivamente, inexistente].

 

Scholion: O "poder indireto" da Igreja.

Embora a Igreja e o Estado tenham esferas diretas próprias, nas quais cada um exerce seu poder diretamente sobre os assuntos que lhe são confiados, seria um pouco ingênuo pensar que eles não se afetam indiretamente. A própria vida humana não é tão bem compartimentalizada que se possa dizer: "aqui está a esfera política, aqui está a esfera religiosa, aqui está a esfera médica, aqui está a esfera educacional". Pode-se raciocinar abstratamente dessa maneira, mas na vida concreta, real, a unidade dos sujeitos vivos que entram na política, na medicina, na educação ou na religião impede essa feliz vivissecção mental. [Nota: Assim, encontramos estadistas tendo que redigir leis protegendo a sociedade da venda muito fácil de drogas perigosas; encontramos médicos fazendo lobby político para impedir a medicina socializada; educadores entrando na política para garantir salários adequados aos professores e clérigos fazendo sermões contra ideias políticas ou práticas sociais que ameaçam minar a moralidade pública].

Se a Igreja tem leis sobre jejum e abstinência, isso afeta indiretamente o mercado econômico: menos carne é vendida na sexta-feira. Se a Igreja prescreve o descanso do trabalho servil no domingo, isso novamente afeta indiretamente a vida econômica: pois um grande número de pessoas não trabalhará em fazendas ou fábricas um dia da semana. Da mesma forma, se o Estado recruta homens para o exército, isso afeta indiretamente a vida da Igreja: a frequência masculina à missa nas paróquias diminui e o número de curas em uma paróquia diminui à medida que muitos deles se tornam capelães. Novamente, se o estado tem leis de incêndio que restringem o número de pessoas em um determinado espaço, as pequenas igrejas podem ter que manter metade de sua congregação em pé nos degraus da frente. As leis estaduais contra o bingo diminuem os retornos para caridade, etc.

Além desses efeitos quase fortuitos um sobre o outro, que são triviais demais para uma discussão séria, a Igreja e o Estado necessariamente têm um efeito indireto um sobre o outro em áreas que são de interesse mútuo. Estes são apelidados por teólogos e canonistas de assuntos mistos. As mesmas coisas ou ações concretas podem ter vários aspectos simultaneamente. Sob um aspecto, eles podem ser espirituais e pertencer diretamente à província da Igreja; sob outro aspecto, são seculares e pertencem à província do Estado. O exemplo mais óbvio e mais conhecido nesta área é um casamento entre pessoas batizadas, (Bender op. cit., "Potestas Indirecta," p. 119). Tal casamento é simultaneamente um sacramento e um contrato. Um e o mesmo ato de consentimento produz tanto efeitos sobrenaturais (graça santificante) como efeitos naturais (obrigação de viver juntos, sustentar e educar os filhos, direitos de herança, etc.; ibid.). A mesma realidade concreta, portanto, cai diretamente no âmbito da Igreja e do Estado: a Igreja tem poder direto sobre o aspecto sobrenatural do casamento (tudo o que diz respeito ao casamento como sacramento: sua forma correta, sua indissolubilidade, etc.): o Estado tem poder direto sobre o aspecto natural do casamento (os efeitos contratuais como obrigação de alimentos, leis de herança, etc.).

Este não é o único caso em que a mesma realidade concreta pode estar diretamente sujeita ao poder da Igreja sob um aspecto e diretamente sujeita ao poder do Estado sob outros aspectos. Por exemplo, os assuntos econômicos e políticos parecem pertencer exclusivamente ao Estado, mas freqüentemente têm aspectos morais. Ao julgar esse aspecto moral de um assunto econômico ou político, a Igreja não estará saindo de sua própria esfera; o aspecto moral está sob o poder direto da Igreja. O comunismo, por exemplo, não é simplesmente um fenômeno político; é também uma filosofia de vida ateísta. Como tal, a Igreja tem todo o direito de condená-la e proibir seus membros de se juntarem a ela. Se eles obedecerem em um determinado país católico, o partido comunista deixará de existir lá. Embora esteja perfeitamente dentro de seu direito de condenar o aspecto moral do comunismo – seu propósito é conduzir os homens à vida eterna e um dos principais meios é apontar o que leva a esse objetivo e o que o afasta – ele afeta indiretamente a vida do Partido Comunista. Da mesma forma, na esfera econômica, realidades concretas como os sindicatos colocam problemas que não são de interesse exclusivo do economista ou do político. Algumas questões são morais: um homem tem direito a um salário digno? O sindicato tem direito de greve? Quais são as condições para uma greve justa? etc. Nestas e outras questões semelhantes, um aspecto de uma realidade concreta cai diretamente sob o poder da Igreja; e outro ou vários aspectos estão diretamente sob o poder do Estado.

Que a Igreja tem algum poder sobre os assuntos temporais, tem o direito de intervir neles e julgá-los, nenhum teólogo negaria. A proposição oposta foi explicitamente condenada: "A Igreja não tem o poder de usar a força, nem tem ela qualquer poder temporal, direto ou indireto" (carta apostólica, Ad apostolicae, 22 de agosto de 1851). Quando os teólogos defendem o poder da Igreja sobre assuntos temporais, eles estão afirmando apenas este ponto: a Igreja pode julgar sobre assuntos temporais quando e na medida em que esses assuntos tenham uma conexão definida com o bem-estar espiritual, isto é, na medida em que tal controle seja necessário se a Igreja deve ser capaz de prover seu próprio objetivo especial, a salvação das almas.

Como descrever esse poder da Igreja de intervir em assuntos temporais? Embora, como foi dito acima, todos os teólogos admitam o direito da Igreja de intervir nos assuntos temporais na medida em que tenham uma conexão com seu objetivo espiritual, sua terminologia teológica para descrever o mesmo fenômeno não foi a mesma em todas as épocas, nem igualmente preciso. Como Bender afirma sabiamente:

Sabemos que o que vale para as outras ciências, também vale para o ensino e a ciência dos teólogos: eles não são e nem sempre foram perfeitos. Mesmo ao explicar uma verdade conhecida por eles a partir de assuntos que estão contidos na doutrina da fé e na prática tradicional, os homens geralmente progridem gradualmente. -Op. cit., pág. 118.

Ele então passa a aplicar essa norma geral ao assunto que estamos discutindo aqui. Ele aponta que São Roberto Belarmino, ao descrever a intervenção da Igreja nos assuntos temporais, a descreveu sob a fórmula: o poder indireto da Igreja. Embora ele afirme que São Roberto estava ensinando exatamente a mesma doutrina que descrevemos acima, Bender acha que uma terminologia mais precisa deve ser usada porque teólogos não profissionais podem entender mal a frase, tanto quanto muitas pessoas entendem mal a frase extra ecclesiam nulla salus. Embora não rejeite a terminologia de Belarmino – é tradicional e suficientemente clara para os teólogos – ele prefere uma terminologia mais exata. Vários outros teólogos modernos pensam da mesma maneira.

No século XVII, o famoso teólogo São Roberto Belarmino, ao explicar e justificar como a Igreja poderia usar seu poder para intervir em muitos assuntos temporais e naturais, propôs seu ensinamento sobre o poder indireto da Igreja.

Parece-nos que Belarmino, com sua teoria, fez muito para explicar e justificar as extensões do poder eclesiástico a muitos assuntos seculares. Mas o uso da expressão que se tornou habitual – "poder indireto" não parece louvável em todos os aspectos. Se a realidade designada por esta frase não for explicada com lucidez, podem surgir confusões com bastante facilidade. Pois se alguém lê que a Igreja tem um poder direto sobre os assuntos espirituais e um poder indireto sobre os assuntos temporais, é facilmente levado a pensar que a Igreja possui um duplo poder, um direto e outro indireto. Em nosso julgamento, isso é um erro. Mantemos a mesma doutrina de Belarmino sobre o poder da Igreja, seu objeto e sua extensão, porque em todos esses assuntos somos todos obrigados a manter a doutrina contida na tradição da Igreja. Ainda assim, parece-nos que a mesma doutrina deveria ser proposta de outra maneira. -Loc. cit., pág. 118.

O ilustre autor passa então a descrever com alguma extensão o assunto que já resumimos anteriormente: ou seja, a razão pela qual o poder espiritual da Igreja pode chegar até mesmo em questões temporais é que uma e a mesma realidade concreta pode ter vários aspectos. A Igreja toca diretamente o aspecto espiritual da questão e indiretamente afeta o Estado apenas na medida em que a mesma realidade concreta pertence ao Estado sob outro aspecto. O mesmo vale no sentido inverso. O que fazer caso surja um conflito entre Igreja e Estado sobre a mesma realidade concreta que pertence a ambos sob aspectos distintos, traz à discussão o quarto princípio.

 

VI. Princípio 4

A Igreja transcende o Estado pela nobreza de sua natureza e de sua finalidade. Num Estado católico, portanto, prevalecem os direitos da Igreja.

Sempre que Deus estabelece algo, Ele o estabelece de maneira ordenada. Consequentemente, se Deus deseja que existam duas sociedades perfeitas que simultaneamente se esforcem para prover o bem-estar completo dos mesmos cidadãos, deve existir alguma relação ordenada entre essas sociedades: alguma norma pela qual possíveis conflitos no campo de assuntos mistos possam ser resolvidos. . Uma vez que nenhuma dessas sociedades está sujeita à outra (cada uma é suprema e independente em sua própria esfera), obviamente nenhuma pode simplesmente comandar a outra sociedade. A norma para resolver os direitos conflitantes deve ser encontrada, não na esfera do poder, mas da dignidade. Se uma sociedade é mais nobre tanto em sua natureza quanto em seu objetivo do que a outra, então a própria razão sugere que a sociedade mais nobre deve prevalecer. Isso não significa que a outra sociedade fique sujeita ou subordinada à sociedade mais nobre; significa simplesmente que cede ou adia livremente seus direitos em uma dada situação em prol do bem-estar comum. Que a Igreja supera eminentemente o Estado em dignidade por causa da dignidade transcendente de seu objetivo e de sua natureza (como o Corpo Místico de Cristo) dificilmente precisa ser declarado. Deus, então, como Bender coloca, não teve que promulgar instruções explícitas dando precedência à Igreja sobre o Estado: esse fato está implícito nos próprios objetivos que Ele estabeleceu para cada um:

Deus, a única Autoridade Suprema que está acima dessas duas sociedades perfeitas que Ele instituiu, não estabeleceu explicitamente uma norma para lidar com este caso [conflitos em "assuntos mistos"]. Não havia necessidade de fazê-lo. Pois o próprio estabelecimento da Igreja e do Estado, tais como são com sua própria natureza e objetivos próprios, afirma implicitamente a norma. A única solução razoável, e consequentemente querida por Deus e a ser observada por nós, é a que aplica esta norma: se duas sociedades, não subordinadas uma à outra, sob diversos aspectos têm domínio sobre a mesma matéria e num dado caso concreto os regulamentos de ambos os poderes não podem ser observados, um poder deve ter precedência e o outro deve ceder. Se um poder é obviamente muito mais nobre e muito mais digno do que o outro, esse é o poder que deve prevalecer…

Segue-se que, se surgir oposição entre um ato de autoridade eclesiástica e um ato de autoridade civil, é direito da Igreja que sua ordenação seja mantida e prevaleça; e a autoridade civil tem a obrigação jurídica, fundada na lei divina, de acatar as questões que a Igreja ordena, deixando de lado sua própria ordenação – Ibid., p. 124.

Muitos teólogos descrevem essa precedência dos direitos da Igreja pela fórmula: "a subordinação indireta do Estado à Igreja" ou "o Estado está indiretamente sujeito à Igreja". Embora o ensinamento que eles dão seja o mesmo que acabamos de esboçar, as fórmulas usadas são, em nossa opinião, menos precisas para expressar a realidade. Eles poderiam facilmente ser mal interpretados para soar como se o Estado não fosse uma sociedade independente. Como uma sociedade pode ser simultaneamente "sujeita" ou "subordinada" e ainda assim "independente"? O adjetivo indireto esclarece um pouco as coisas, mas não completamente. Sentimos com Bender que:

Seria doutrinariamente mais correto falar não da sujeição, por mais indireta que seja, mas da precedência da outra sociedade. Normalmente usamos a palavra [precedência] em casos desse tipo. Por exemplo, quando dois homens que não estão sujeitos um ao outro se aproximam da mesma casa. Se o espaço permitir, ambos procedem juntos e não há necessidade de uma norma de ação. Mas se eles têm que passar por uma porta tão estreita que não podem passar por ela simultaneamente, algum tipo de norma de ação torna-se imperativo. Se alguém diz que é mais adequado que Tito entre primeiro, não quer dizer com isso que o outro homem seja "sujeito" a Tito, ou "subordinado" a ele, nem mesmo indiretamente. Ele simplesmente reconhece que as duas pessoas não são iguais em dignidade, e dessa mesma desigualdade ele deduz que é correto que Tito preceda o outro. -Ibid., pp. 125-6.

Duas consequências decorrem imediatamente deste princípio: (a) O Estado não pode, apenas por sua própria fantasia e com absoluto desrespeito pela Igreja, estabelecer leis sobre assuntos mistos. Assuntos mistos, como mencionado anteriormente, são assuntos que são, embora sob diferentes aspectos, simultaneamente espirituais e civis [Nota: Sobre a dificuldade de definir "assuntos mistos", ver Bender, op. cit., pág. 201]. Por exemplo, assuntos relacionados com casamento, instituições públicas para crianças, educação e coisas semelhantes, são assuntos mistos. Em tais assuntos, o Estado deveria obedecer às leis da Igreja, ou então o Estado deveria entrar em alguma concordata com a Igreja [Nota: Para uma discussão sobre a natureza e extensão das concordatas, ver Bender, op. cit., pp. 217-232. O mesmo autor trata dos direitos da Igreja e do Estado relativos ao matrimônio e à educação não sob o título de "Assuntos mistos", mas em um capítulo especial intitulado: Questões especiais sobre a cooperação da Igreja e do Estado (pp. 201-216). Suas críticas contra um Estado católico que obrigaria todos os seus cidadãos a passar por uma cerimônia de casamento civil são extremamente lógicas (ibid, pp. 206-209)], eliminando precisamente a jurisdição de cada sociedade. A Igreja, como a própria história o atesta, respeitará sempre as necessidades e os direitos do Estado nestas questões. Ele percebe melhor do que ninguém que não há autoridade senão de Deus, e a injunção de sua Cabeça: "Dai a César o que é de César".

(b) A Igreja não deve se envolver na política; nem nos assuntos administrativos de qualquer governo. Mas se, em questões mistas, os governantes civis infligirem danos à religião ou ferirem os direitos naturais do homem por leis injustas, a Igreja pode declarar que tal lei não obriga a consciência, ou mesmo que os cidadãos não devem obedecer a tais leis. Pode, finalmente, quando os governantes são católicos, como é o caso da hipótese que estamos discutindo, advertir, repreender e até aplicar punições espirituais como a excomunhão, a tais governantes tirânicos. [Nota: Este último ponto mencionado, de sanções espirituais, parecia horrível para o liberal do século XIX. Após as sérias experiências com os Estados totalitários do século XX, mesmo os não-católicos puderam avaliar melhor como é saudável ter algum poder que possa pelo menos colocar um freio moral no Estado quando ele beira a tirania. Veja, por exemplo, o escritor não católico E. E. Y. Hales: Ele morreu como um herói para seus seguidores; para o mundo, aparentemente, um fracasso. Poucos homens ponderados, em 1900, pensaram que ele estava certo. Era preciso encontrar desculpas para o Syllabus – melhor, até, esquecê-lo. Mas nós, hoje, que conhecemos os filhos e netos do liberalismo europeu e da revolução, que vimos Mazzini transformar-se em Mussolini, Herder em Hitler e os primeiros socialistas idealistas em comunistas intransigentes, podemos, a partir de uma nova perspectiva, considerar mais uma vez se Pio Nono, ou os crentes otimistas em um progresso infalível, como seu amigo culto Pasolini, terão, aos olhos da eternidade, o melhor do argumento.-Pio Nono (New York, 1954), p. 331].

Objeções: Alguns estadistas acham que esse ensinamento sobre a primazia dos direitos da Igreja, em um conflito sobre assuntos mistos, representa um perigo real para o Estado, já que a Igreja poderia ultrapassar seus limites legais. Quão infundado é esse medo deve ficar claro a partir deste único fato: a força física está sempre do lado do Estado, enquanto a Igreja tem apenas a força moral do seu lado. É por isso que, mesmo na Idade Média, as querelas que surgiam entre o poder secular e o poder espiritual eram quase sempre causadas pela usurpação dos direitos da Igreja pelo Estado e não vice-versa. Até mesmo Augusto Comte (o fundador do Positivismo e nenhum amante da Igreja) admitiu este fato candidamente:

Quando se examina hoje, com uma imparcialidade verdadeiramente filosófica, o conjunto dessas grandes lutas que tantas vezes ocorreram entre as duas potências durante a Idade Média, rapidamente se reconhece que elas foram quase sempre essencialmente defensivas por parte do poder espiritual, que mesmo quando recorria às suas próprias armas poderosas, muitas vezes não fazia mais do que lutar nobremente pela razoável manutenção de uma justa independência, que o real cumprimento da sua missão lhe exigia, mas sem poder, na maioria dos casos, fazê-lo com sucesso. –Cours de Philosophie Positive, 2ª ed., V, 234.

A objeção é levantada: ninguém deve atuar como juiz em seu próprio caso. Mas se se trata de decidir, em assuntos mistos, se o aspecto sobrenatural da questão é mais importante do que o aspecto natural ou civil, só a Igreja pode tomar essa decisão, pois só a Igreja é a autoridade competente na esfera sobrenatural. E, nesse caso, estaria atuando como juiz em causa própria.

Resposta: O axioma de que ninguém deve agir como juiz em seu próprio caso é um axioma sólido e geral; mas não possui validade absoluta e universal. Se for impossível, pela natureza do caso, ter outro juiz – se não houver autoridade superior disponível – pode-se atuar como juiz em seu próprio caso. Se, por exemplo, a Suprema Corte quisesse reverter uma de suas próprias decisões anteriores, à luz de novas evidências, ela teria que julgar seu próprio caso porque legalmente não há um tribunal superior de apelação. A autoridade máxima em qualquer esfera, em outras palavras, é necessariamente o juiz de todos os casos nessa esfera, inclusive os seus próprios. Se a Igreja não julgasse e estabelecesse a extensão de sua autoridade, esta tarefa – na opinião dos que propõem a objeção – caberia à autoridade civil; mas nesta alternativa, o Estado estaria atuando como juiz em seu próprio caso. Pois o que estamos discutindo é justamente a marcação de linhas de demarcação para as esferas próprias dessas duas sociedades, Igreja e Estado. O significado do axioma, então, não é: agir como juiz em seu próprio caso é sempre e em toda parte errado. O verdadeiro significado é que atuar como juiz em causa própria é normalmente perigoso e, portanto, na medida do possível, tal procedimento deve ser evitado e proibido por lei. No caso em questão – julgando a extensão do poder do sobrenatural – é impossível ter outro juiz senão aquela sociedade à qual o próprio Deus confiou o cuidado da realidade sobrenatural, a Sua Igreja. (Bender, op. cit., p. 94).

Objeção: Uma objeção final é levantada de que mesmo que a posição da Igreja seja teoricamente sólida, ela ainda é perigosa na prática. Homens sendo homens, mesmo os eclesiásticos podem abusar da autoridade legítima.

Resposta: É preciso admitir francamente que há perigo. Mas o perigo de abuso necessariamente acompanha o uso. E o axioma geral: abusus non tollit usum é válido aqui também. A única maneira de evitar a possibilidade de abuso de autoridade, civil ou eclesiástica, seria eliminar completamente a autoridade. Isso, por sua vez, apenas induziria um perigo ainda maior à anarquia da sociedade; não dizemos nada sobre tal abolição ser contra a instituição da autoridade de Deus. Nenhum homem razoável esperaria que a sociedade pudesse existir sem alguma autoridade. A resposta de Bender a esta objeção parece bastante sensata:

Objeção: Não há perigo de abuso, quando a decisão é deixada para as pessoas que são participantes diretos do caso? Parece que devemos responder que há algum perigo. Mas o perigo de abuso está sempre presente sempre que você usa [uma coisa boa]. Se alguém deseja suprimir todo o perigo de abuso de poder e autoridade, ele deve remover completamente o poder e a autoridade dos homens. Não diríamos que um homem está fazendo um julgamento selvagem se ele fosse da opinião de que nada na história da humanidade jamais foi objeto de tantos abusos e abusos tão terríveis quanto a autoridade civil suprema. No entanto, ninguém jamais propõe, ou pelo menos propõe sabiamente, que devamos acabar com essa autoridade suprema. Nesta vida não esperamos ser capazes de eliminar todo perigo de abuso, pois isso é algo impossível. Nossa obrigação é ordenar a vida social de tal maneira que o perigo de abuso seja reduzido ao mínimo possível sem, entretanto, causar ou introduzir maiores perigos ou males definidos. Ainda que o fato de a autoridade eclesiástica ter o direito de decidir os próprios limites de seu próprio poder implique a possibilidade de algum abuso dessa competência, seria errôneo concluir que a concessão, em tais matérias, dessa competência não foi feita de acordo com plano de Deus e para a utilidade da raça humana. Alguém deveria ter competência em tais assuntos. Na prática, essa competência teria de ser conferida aos governantes supremos da Igreja ou aos governantes civis. Dificilmente alguém negaria que a última alternativa não apenas não diminuiria o perigo de abuso, mas o aumentaria enormemente. -Ibid., pp. 97-98.

É perfeitamente verdade que os princípios explicados acima não podem, na maioria das vezes, receber sua plena aplicação, porque a unidade religiosa foi dilacerada em quase todas as nações anteriormente católicas. Apesar disso, não é justo que os membros da Igreja se calem – aliás, não são livres para o fazer – sobre os direitos da Igreja que os seus adversários atribuem ao Estado como fonte de todos os direitos.

Obviamente, não esperamos, nem podemos razoavelmente exigir que os não-católicos, sejam eles protestantes, judeus, agnósticos ou ateus, reconheçam plenamente os direitos da Igreja enquanto não reconhecerem a Igreja pelo que ela é: o Corpo Místico de Cristo e do Reino de Deus na terra. Os fatos de que Deus instituiu uma ordem sobrenatural e uma sociedade sobrenatural são conhecidos apenas pela revelação e pela fé. De fato, todo o cerne do problema Igreja-Estado para os não-católicos reside não nas consequências lógicas que a Igreja deduz de suas premissas, mas nessas próprias premissas. Hipoteticamente, eles podem ver a lógica de concluir que deve haver uma cooperação harmoniosa entre o Estado e a Igreja Católica Romana se: (1) Jesus Cristo é realmente o Filho de Deus; (2) Jesus Cristo instituiu uma igreja real destinada a toda a humanidade; (3) aquela igreja estabelecida por Cristo não é outra senão a Igreja Católica Romana. Se os não-católicos negam qualquer uma dessas três premissas, eles necessariamente e logicamente negam as conclusões da Igreja sobre a relação Igreja-Estado. Essas premissas são tratadas antes do problema Igreja-Estado. É claro que se um não-católico desconhece totalmente essas premissas anteriores, é impossível fazer com ele uma discussão inteligente do problema Igreja-Estado, mesmo em termos hipotéticos.

Mesmo que os não católicos ainda não os reconheçam ou reconheçam, nossa amada Mãe a Igreja ainda possui aqueles direitos e prerrogativas que ela recebeu, não dos governantes deste mundo, mas de Jesus Cristo, o Rei dos séculos, para a salvação de tanto indivíduos quanto nações.

 

VII. Princípio 5

Um Estado realmente católico é per se obrigado a professar o catolicismo publicamente.

Terminologia. O termo "estado" usado aqui significa principalmente o "corpo político" (os cidadãos individuais vistos como uma entidade coletiva) e, secundariamente, governantes governamentais funcionando precisamente como representantes do corpo político. O termo "Estado Católico" foi descrito anteriormente (ver p. 349 nota).

Significado do princípio. A proposição afirma simplesmente que o povo de um Estado católico deve proclamar abertamente sua lealdade a Jesus Cristo e à Sua Igreja e deve realizar atos públicos de culto católico. Esta proposição baseia-se na proposição anterior, já estabelecida (ver A Verdadeira Religião, n. 7), de que o homem como ser social, ou que a sociedade enquanto sociedade tem a obrigação de prestar culto público a Deus porque Deus é o seu autor último.

Uma vez que a sociedade depende continuamente de seu Criador, ela deve reconhecer essa dependência por meio de atos apropriados de adoração. Esta obrigação decorre diretamente da lei natural. Num país católico, esta obrigação de oferecer culto público é simplesmente precisa. Resumidamente, se o homem como ser social é obrigado a adorar a Deus não apenas em particular, mas também publicamente, qualquer sociedade que saiba que Deus revelou a religião católica é obrigada a honrar a Deus por meio do culto católico. Falando, como o contexto claramente mostra [Nota: "Não é difícil determinar qual seria a forma e o caráter do Estado se ele fosse governado de acordo com os princípios da filosofia cristã." -ID 3. E ainda: "Tal, então, como apontamos brevemente, é a organização cristã da sociedade civil; não moldada de forma imprudente ou fantasiosa, mas derivada dos princípios mais elevados e verdadeiros, confirmados pela própria razão natural." -ID 16], de um Estado Católico (e de um Estado Católico em sua relação ideal com a Igreja), Leão XIII coloca a questão de forma muito clara:

Em consequência, o Estado [civitas – corpo político], constituído como é, está claramente obrigado a cumprir os múltiplos e pesados ​​deveres que o vinculam a Deus, pela profissão pública da religião. A natureza e a razão, que ordenam a cada indivíduo que adore devotamente a Deus em santidade, porque pertencemos a Ele e a Ele devemos retornar, visto que dEle viemos, vinculam também a comunidade civil por uma lei semelhante. Pois os homens que vivem juntos em sociedade estão sob o poder de Deus não menos do que os indivíduos, e a sociedade, não menos do que os indivíduos, deve gratidão a Deus que a criou e a mantém e cuja bondade sempre generosa a enriquece com inúmeras bênçãos. Uma vez que, então, ninguém pode ser negligente no serviço devido a Deus, e uma vez que o principal dever de todos os homens é se apegar à religião tanto em seu ensino quanto em sua prática – não a religião pela qual eles possam ter preferência, mas a religião que Deus ordena e que certas e mais claras marcas mostram ser a única religião verdadeira – é um crime público agir como se Deus não existisse. Da mesma forma, é pecado o Estado não se importar com a religião, como algo além de seu escopo ou sem benefício prático; ou de muitas formas de religião para adotar aquela que combina com a fantasia; pois somos absolutamente obrigados a adorar a Deus da maneira que Ele mostrou ser Sua vontade. Todos os que governam, portanto, devem honrar o santo nome de Deus, e um de seus principais deveres deve ser favorecer a religião, protegê-la, defendê-la sob o crédito e a sanção das leis, e não organizar nem promulgar qualquer medida que possa comprometer a sua segurança. Este é o dever obrigatório dos governantes para com as pessoas sobre as quais eles governam. -ID 6.

Pelas palavras do papa fica claro que esta obrigação de um Estado Católico de oferecer o culto católico público se aplica tanto ao corpo político (a cidadania coletiva) quanto à parte superior do corpo político (ou seus governantes).

Algumas distinções sobre o princípio. Três questões intimamente relacionadas, mas realmente distintas, fundamentam o princípio enunciado acima em termos genéricos. Deixar de mantê-los distintos, sentimos, causa confusão desnecessária [Nota: Sentimos que alguns dos escritos controversos empreendidos por teólogos católicos americanos nos últimos anos, abordando o problema Igreja-Estado, foram realmente ocasionados por uma falha em esclarecer as três questões distintas indicadas acima. Em outras palavras, achamos que grande parte de sua discordância nessa área foi mais verbal do que real, porque na verdade eles não estavam discutindo o mesmo problema. Falhando em separar as três questões separadas e em discuti-las separadamente, eles nunca realmente se juntaram ao assunto. Um lado estava empenhado em defender o princípio genérico de que "um estado católico per se é obrigado a professar o catolicismo publicamente" (no que eles estavam perfeitamente corretos); enquanto o outro lado (embora não negando esse princípio de forma alguma) estava preocupado com a questão mais sutil de saber se havia uma obrigação estrita de ter uma instituição jurídica do catolicismo como religião de estado. Quanto ao seu desacordo real em questões menores – particularmente o uso e a utilidade de várias fórmulas técnicas como "o erro não tem direitos", "a subordinação indireta do Estado à Igreja", "intolerância dogmática" etc., o leitor interessado encontre ampla bibliografia no início desta seção. Em vez de tentar qualquer julgamento prematuro e peremptório sobre qual lado teve o melhor argumento nos muitos assuntos abordados, preferimos prestar homenagem a ambos os lados com esta citação da Hierarquia de Saskatchewan: "Entre os estudiosos, uma discussão sobre a união ou separação da Igreja e do Estado há muito tem ocorrido. Nos últimos anos, muita luz foi lançada sobre as várias teorias das relações Igreja-Estado em uma série de artigos na American Ecclesiastical Review and Theological Studies" (The Catholic Mind, 54 [1956], p. 592)]. A primeira pergunta é: um estado católico é obrigado a professar o catolicismo publicamente? A segunda: existe algum modo especial em que essa profissão pública deve ocorrer? Em outras palavras, para cumprir a obrigação de professar publicamente o catolicismo é necessário um arranjo jurídico, uma declaração constitucional ou uma concordata oficial que estabeleça a religião católica como religião oficial do Estado e a Igreja Católica como igreja oficial do Estado? A terceira questão diz respeito às consequências que decorrem de uma resposta afirmativa às duas primeiras questões. Resumidamente, se um Estado Católico é obrigado a professar publicamente o Catolicismo, e se deve fazer tal profissão instalando juridicamente o Catolicismo como religião do Estado, o Estado também é obrigado a proibir o reconhecimento jurídico de outras religiões e a tomar algum tipo de medida repressiva contra proselitismo de seitas não católicas?

Resumidamente, pensamos que as respostas a essas três perguntas fornecidas pelo ensino papal são as seguintes:

1. Um Estado católico per se é obrigado a fazer profissão pública de catolicismo? -Sim.

2. É absolutamente necessário que tal profissão tome forma jurídica ao instituir o catolicismo como religião do Estado (como tal proclamada na constituição do Estado)? Não, não é absolutamente necessário. Mas é o ideal católico – algo a ser esperado e bem-vindo, a menos que, em determinadas circunstâncias, faça mais mal do que bem. Pio XII nos diz:

A Igreja não esconde que, em princípio, ela considera tal colaboração [isto é, entre a Igreja e o Estado em um país católico] normal e que ela considera a unidade do povo na verdadeira religião e a unanimidade de ação entre ela e o estado como um ideal.

Mas ela também sabe que por algum tempo os eventos têm evoluído em uma direção bastante diferente. -Discurso aos Historiadores (7 de setembro de 1955).

3. Ainda que um Estado católico faça profissão jurídica da verdadeira religião, estabeleça legalmente o catolicismo como religião oficial, pode também dar reconhecimento jurídico a outras e falsas religiões a bem da salvaguarda dos direitos de consciência e do bem comum. Os católicos devem, no entanto, deixar claro em tais convenções jurídicas que não estão subscrevendo o indiferentismo religioso.

4. Não há nenhuma obrigação per se por parte de um Estado Católico de suprimir as falsas religiões, nem qualquer direito concedido ao Estado por Deus para fazê-lo. Por acidente, para evitar o enfraquecimento da moralidade pública, ou para prevenir terríveis desordens na sociedade, qualquer estado católico ou não católico pode ser forçado a reduzir as atividades de uma religião realmente viciosa. Se, por exemplo, alguém revivesse o antigo costume de sacrificar bebês a Moloch, o Estado, como guardião do bem-estar público, seria obrigado a impedir que uma religião tão pervertida levasse suas ideias perversas à prática. Uma discussão mais completa dos pontos 3 e 4 será encontrada abaixo nos scholion intitulados: A posição dos não-católicos em um Estado Católico e Onde o "ideal" não é obtido. Ali se verá que não há nada inerente aos princípios católicos que cerceie os plenos direitos cívicos de qualquer cidadão, católico ou não católico.

 

Scholion 1. A posição dos não-católicos em um Estado católico.

Um ponto que incomoda os não-católicos de mente justa é o espectro de que, embora a Igreja Católica concorde com a liberdade religiosa naqueles países onde não tem uma maioria dominante, ela inverteria sua posição se os católicos se tornassem a maioria. [Nota: Parece difícil incluir nesta categoria de “mente justa” indivíduos como Paul Blanshard, ou Agnes Meyer, ou uma organização como o P.O.A.U. Por mais sinceros que sejam seus motivos pessoais, eles parecem estar sofrendo de um tipo de histeria de grupo que poderíamos rotular de eclesiafobia. Como John Courtney Murray aponta habilmente, espirituosamente, mas caridosamente, eles simplesmente reviveram de forma menos grosseira os antigos, histéricos e anticatólicos preconceitos dos dias de The Menace e Ku Klux Klan. ("Religious Liberty: the Concern of All," America [7 de fevereiro de 1948] pp. 513-16.) Com tais pessoas é difícil manter uma discussão inteligente. Como Maritain observa pertinentemente, nossos esforços para tornar o ensinamento católico nesta área inteligível devem ser direcionados principalmente para os não-católicos de mente aberta, não para aqueles cujas mentes estão temporariamente obscurecidas pelo fanatismo ou histeria: Estou me referindo a autores sérios, não ao Sr. Paul Blanshard. Seu tratamento da questão (American Freedom and Catholic Power [Beacon Press, 1949], cap. iii) não vale a pena discutir porque é simplesmente injusto, como o resto de seu livro, cujas críticas, em vez de esclarecer as coisas, são constantemente viciadas. pela interpretação tendenciosa e tortuosa, e que confunde todas as questões de maneira caluniosa, até atribuir à Igreja Católica "um sistema completo de fetichismo e feitiçaria". cit., pág. 184 n. 36]. Eles temem que, se a América se tornasse 90% católica, todos os protestantes, judeus, agnósticos ou ateus remanescentes seriam perseguidos ou, no mínimo, tratados como cidadãos de segunda classe. Eles sentem que esta é uma consequência lógica e inexorável do ensinamento de que existe apenas uma religião verdadeira, e que um Estado Católico é (per se) obrigado a fazer profissão pública dessa verdadeira religião.

Esse medo foi em grande parte engendrado pela caricatura da doutrina da Igreja apresentada pelos liberais do século XIX. Pode ter sido alimentada ainda mais por alguns teólogos excessivamente rígidos que consideravam que um Estado católico sempre seria obrigado a reprimir as seitas heréticas.

A melhor maneira de dissipar esse medo é mostrar que se trata de uma caricatura de simplificação excessiva, simplesmente acrescentando ensino papal explícito sobre o assunto em discussão [Nota: Não é incomum encontrar até mesmo os princípios mais fundamentais do cristianismo caricaturados por tal simplificação. Assim, a Trindade é apresentada como “três deuses”, a Encarnação significa que Cristo é um híbrido fantástico, “meio deus e meio homem”, a Redenção significa que Deus usou Cristo como um “menino chicoteado”, etc.]. Leão XIII, após apontar a obrigação de um Estado católico de reconhecer publicamente a verdadeira religião, afirma claramente:

Tampouco há razão para que alguém acuse a Igreja de carecer de gentileza de ação ou amplitude de visão, ou de se opor à liberdade real e legal. A Igreja, de fato, considera ilegal colocar as várias formas de culto divino em pé de igualdade com a verdadeira religião, mas, por isso, não condena aqueles governantes que, para garantir algum grande bem ou impedir algum grande mal, permitem pacientemente que o costume ou o uso sejam uma espécie de sanção para cada tipo de religião que tem seu lugar no Estado. E, de fato, a Igreja costuma prestar muita atenção para que ninguém seja forçado a abraçar a fé católica contra sua vontade, pois, como Santo Agostinho nos lembra sabiamente, "o homem não pode acreditar senão por sua própria vontade". -ID 36

Mais uma vez, o mesmo papa em sua encíclica Sobre a liberdade humana (1888) em sua discussão sobre a liberdade de consciência, depois de apontar o absurdo de pensar que existe algum direito [Nota: queremos dizer um direito moral, não civil] de adorar a Deus ou ignorá-lo por capricho, passa a estabelecer o princípio que governa a permissão paciente de males objetivos, incluindo o mal objetivo das falsas religiões. Este princípio é simplesmente um reflexo fiel do próprio método de governo de Deus. Embora Deus abomine o mal, Ele permite alguns males para prevenir outros ainda piores, ou para a proteção de algum bem maior:

No entanto, com o discernimento de uma verdadeira mãe, a Igreja pesa o grande fardo da fraqueza humana e conhece bem o rumo que as mentes e ações dos homens de nossa época estão tomando. Por isso, embora não conceda direito a nada senão o que é verdadeiro e honesto, ela não proíbe a autoridade pública de tolerar o que está em desacordo com a verdade e a justiça, a fim de evitar algum mal maior, ou de obter ou preservar algum bem maior. O próprio Deus em Sua providência, embora infinitamente bom e poderoso, permite que o mal exista no mundo, em parte para que um bem maior não seja impedido, e em parte para que um mal maior não ocorra. No governo dos Estados não é proibido imitar o Governante do mundo; e, como a autoridade do homem é impotente para impedir todo mal, ela deve (como diz Santo Agostinho) ignorar e deixar impunes muitas coisas que são punidas, e com razão, pela Divina Providência. Mas se, em tais circunstâncias, por causa do bem comum (e esta é a única razão legítima), a lei humana pode ou mesmo deve tolerar o mal, não pode e não deve aprovar ou desejar o mal por si mesmo; pois o mal em si, sendo uma privação do bem, se opõe ao bem comum que todo legislador é obrigado a desejar e defender com o melhor de sua capacidade. Nisto, a lei humana deve esforçar-se por imitar Deus, que, como ensina São Tomás, ao permitir que o mal exista no mundo "nem quer que o mal seja feito, nem quer que não seja feito, mas quer apenas permitir que seja feito, e isso é bom." Este dito do Doutor Angélico contém resumidamente toda a doutrina da permissão do mal. -Sobre a liberdade humana, Gilson ed., no. 33

O ensinamento de Leão de que as religiões não católicas, embora objetivamente falsas, podem ter status legal em um Estado católico e que seus adeptos não devem sofrer incapacidades cívicas por causa de suas convicções honestas, foi reiterado, endossado e apresentado em termos ainda mais fortes por Pio XII várias vezes. Em seu discurso aos advogados católicos italianos, Ci Riesci (6 de dezembro de 1953), ele apela a esse princípio de tolerância cristã do mal religioso ou moral objetivo em prol de um bem maior, mesmo quando um Estado católico possui o poder de reprimir tais males. Ele repreende fortemente a opinião de que, porque "o mal não tem direito objetivo de existir", sempre corresponde o dever de reprimi-lo. Em outras palavras, o papa repreende a declaração direta e sem reservas de que "tolerar males religiosos ou morais quando se tem o poder de detê-los é em si uma maneira imoral de agir". Ele aponta que, em algumas circunstâncias, a tolerância do mal não é apenas permissível, mas pode ser o melhor caminho a seguir. Ao estabelecer esses princípios, Pio XII apela não apenas ao princípio usado por Leão, mas também cita as palavras de Cristo sobre não tentar erradicar o joio antes da época da colheita:

Acabamos de apresentar a autoridade de Deus. Poderia Deus, embora Lhe fosse possível e fácil reprimir o erro e o desvio moral, em alguns casos escolher o “não impedimento” sem contrariar a Sua infinita perfeição? Será que em certas circunstâncias Ele não daria aos homens nenhum mandato, não imporia nenhum dever e nem mesmo comunicaria o direito de reprimir o que é errôneo e falso? Um olhar para as coisas como elas são dá uma resposta afirmativa. A realidade mostra que o erro e o pecado estão no mundo em grande medida. Deus os reprova, mas permite que existam. Daí a afirmação: o erro religioso e moral deve ser sempre impedido, quando possível, porque tolerá-los é em si imoral, não é válido absoluta e incondicionalmente.

Além disso, Deus não deu nem mesmo à autoridade humana um comando tão absoluto e universal em questões de fé e moralidade. Tal comando é desconhecido das convicções comuns da humanidade, da consciência cristã, das fontes da Revelação e da prática da Igreja. Para omitir aqui outros textos bíblicos que são aduzidos em apoio a este argumento, Cristo na parábola do berbigão dá o seguinte conselho: "deixe a cizânia crescer no campo do mundo junto com a boa semente em vista da colheita" (veja Mateus 13: 24-30). O dever de reprimir o erro moral e religioso não pode, portanto, ser norma última de ação. Deve estar subordinado a normas mais altas e gerais, que em algumas circunstâncias permitem, e talvez até pareçam indicar como a melhor política, a tolerância ao erro a fim de promover um bem maior.

Esclarecem-se assim os dois princípios aos quais se deve recorrer em casos concretos para responder à grave questão relativa à atitude que o jurista, o estadista e o Estado católico soberano devem adotar em consideração à comunidade das nações em relação a uma fórmula de tolerância religiosa e moral descrita acima. Primeiro: aquilo que não corresponde objetivamente à verdade ou à norma moral não tem direito de existir, de se difundir ou de ser ativado. Em segundo lugar: a falha em impedir isso com leis civis e medidas coercitivas pode, no entanto, ser justificada no interesse de um bem maior e mais geral. -Tradução de AER, 134 (1954), pp. 134-5 [Nota: A linguagem deste discurso é redigida com extremo cuidado, com muitas nuances. Um leitor comum, desacostumado com a precisão papal, pode concluir que o papa estava "se protegendo" da questão. "Por que ele simplesmente não disse 'sim' ou 'não'?" um leigo irritado pode perguntar. A razão é que não existem respostas simples para problemas em si mesmos delicados e complexos. Respostas simples são para problemas simples. O assunto aqui em questão envolve um delicado equilíbrio de princípios que não pode ser simplesmente esmagado, mas deve ser contrabalançado. O discurso era para mentes jurídicas, em fraseologia jurídica, e seria apreciado por mentes sintonizadas com os refinamentos da terminologia jurídica. Para uma análise cuidadosa deste discurso, veja o comentário de J. C. Fenton em "The Teaching of Ci Riesci," ibid., pp. 114-23].

Ainda mais recentemente, em seu Discurso aos Historiadores (7 de setembro de 1955), Pio XII afirma enfaticamente que a Igreja sempre respeitou e sempre respeitará a consciência dos não católicos, mesmo quando desaprova os princípios errôneos aos quais eles podem subscrever de boa fé. A posição deles é totalmente diferente da dos católicos apóstatas que deliberadamente rejeitam a fé na qual foram educados. A Igreja considera tais católicos como cometendo pecado por sua apostasia. Não culpa os não católicos que honestamente discordam. A Igreja respeita sua consciência enquanto rejeita seus princípios:

Que ninguém objete que a própria Igreja despreza as convicções pessoais daqueles que não pensam como ela. A Igreja considerou e ainda considera pecado o abandono voluntário da verdadeira fé. Ao começar por volta de 1200, tal deserção envolveu processos penais tanto por parte do poder espiritual quanto temporal, foi apenas para evitar a destruição da unidade religiosa e eclesiástica do Ocidente [Nota: Não houve protestantes envolvidos na inquisição medieval porque ainda não existiam protestantes. Como o erudito historiador não católico, Runciman, apropriadamente observa: "Escritores que procuram encontrar os herdeiros dos cátaros nos protestantes da Reforma ou mesmo nos primeiros protestantes que chamamos de lolardos e hussitas, fazem uma injustiça ao protestantismo". (The Medieval Manichee [Cambridge, 1955], p. 178). Todos os envolvidos eram católicos. Como tal, eles estavam sujeitos à jurisdição da Igreja e sujeitos às penalidades espirituais que ela tinha o direito de impor. O fato de esses católicos apóstatas também receberem punições do Estado (desde multas até exílio ou execução) deveu-se às circunstâncias peculiares da configuração medieval Igreja-Estado, em que ser católico era ser cidadão e vice-versa. Consequentemente, a heresia era considerada um crime simultaneamente contra a Igreja e o Estado. A mente moderna recua à simples menção da palavra "inquisição". Sem tentar desculpar muitos dos horrores reais que o acompanharam (extorsão de provas por tortura, testemunhas secretas, etc.), pensamos que pode ser dito com segurança que o público leitor em geral recebeu uma descrição muito mais horripilante de todo o negócio. do que a calma evidência histórica parece justificar. O maniqueu medieval (albigense) não era um dissidente teórico, apegando-se educada e sinceramente às suas convicções pessoais de consciência, como faria um professor universitário do século XX; ele parece ter sido um conspirador ativo contra a sociedade, como um comunista do século XX. Ele colocou suas idéias peculiares em ação. Muitas de suas ideias – como sua convicção da depravação básica do casamento ou seu direito de assassinar companheiros maniqueístas para evitar que recaíssem – eram, para dizer o mínimo, subversivas da sociedade. Concedendo generosas concessões a piedosos exageros, Runciman admite que essas teorias foram certamente sustentadas pelo maniqueu medieval e, pelo menos de tempos em tempos, realizadas na prática (cf. op. cit., p. 151, 158, 176-7). Mas a inquisição é um problema complicado demais para ser resolvido de maneira sumária. Para uma avaliação honesta da inquisição por historiadores católicos, veja Vacandard, The Inquisition, e Maycock, The Medieval Inquisition. Também vale a pena ler sobre este ponto o breve ensaio de Heinrich Rommen, professor de ciências políticas na Universidade de Georgetown, "The Church and Human Rights" em The Catholic Church in World Affairs (Notre Dame, Indiana, 1954), pp. 53, e o tratamento de Monsenhor Journet da inquisição em "A Igreja do Verbo Encarnado", I, 262-304. Nenhum dos historiadores, filósofos ou teólogos católicos mencionados acima tenta encobrir totalmente a inquisição; mas procuram colocá-lo em sua perspectiva adequada em relação ao meio medieval e torná-lo inteligível, pelo menos nesses termos. Runciman também, embora não católico, não parece surpreso com o fato de medidas repressivas terem sido tomadas contra o maniqueu medieval; era algo que se poderia esperar naturalmente nas circunstâncias dadas: Não é notável que a propagação do Dualismo tenha aterrorizado não apenas os clérigos de pensamento correto, mas também muitas das autoridades leigas. Foi considerado heresia, e corretamente considerado… Não há lugar para Cristo em uma religião verdadeiramente Dualista. Assim, todos os bons cristãos devem necessariamente lutar contra o Dualismo. E o Estado costuma apoiá-los. Pois a doutrina do Dualismo leva inevitavelmente à doutrina de que o suicídio racial é desejável: e essa é uma doutrina que nenhuma autoridade leiga pode considerar com aprovação. Além disso, havia outra razão pela qual a Igreja e o Estado detestavam a Tradição Dualista. Para eles, estava associado à obscenidade orgiástica. É possível descartar as horríveis insinuações de escritores ortodoxos como mera propaganda, mas a regularidade das acusações torna necessária alguma investigação. … De fato, o relato das orgias dualistas não pode ser totalmente fictício, o dualismo necessariamente desaprova a propagação da espécie. Portanto, desaprova o casamento muito mais do que a relação sexual casual, pois o último representa apenas um pecado isolado, enquanto o primeiro é um estado de pecado. Da mesma forma, a relação sexual de tipo não natural, ao eliminar qualquer risco de procriar filhos, era preferível à relação sexual normal entre o homem e a mulher. Além disso, até sua cerimônia de iniciação, o Crente Dualista era apenas uma criação do Diabo. Satisfazer seus apetites carnais não o tornaria pior.-Op. cit., 175-7].

Aos não católicos a Igreja aplicou o princípio contido no Código de Direito Canônico: "Ninguém seja forçado contra sua vontade a abraçar a fé católica" (Ad amplexandam fidem catholicam nemo invitus cogatur, cânon 1351). Ela acredita que suas convicções constituem uma razão, embora nem sempre a principal, para a tolerância. Já tratamos do assunto em nosso discurso de 6 de dezembro de 1953 aos advogados católicos da Itália.

Que os católicos americanos, tanto a hierarquia quanto os leigos, subscrevem esse ensinamento papal e estão genuinamente interessados ​​em salvaguardar todos os direitos e a dignidade de seus concidadãos não católicos é um fato fácil o suficiente para comprovar para qualquer pessoa disposta a fazer um pouco de pesquisa paciente. A famosa resposta do cardeal Manning a Gladstone sobre a questão da liberdade religiosa seria entusiasticamente endossada por qualquer católico americano e é apenas típica de declarações semelhantes de bispos americanos emitidas em vários momentos da história deste país [Nota: Veja, por exemplo, a declaração do falecido arcebispo John T. McNicholas: “Nós negamos absolutamente e sem qualquer qualificação que os bispos católicos dos Estados Unidos estejam buscando uma união da Igreja e do Estado por quaisquer esforços, próximos ou remotos. Se amanhã os católicos constituíssem a maioria em nosso país, eles não buscariam uma união entre Igreja e Estado”. – "The Catholic Church in American Democracy", comunicado de imprensa do NCWC, 26 de janeiro de 1948, conforme citado em J. Cavanaugh, Evidence for Our Faith (Notre Dame, Indiana, 1952), p. 296]:

"Se os católicos estivessem no poder amanhã na Inglaterra", escreveu o cardeal Manning, "nem uma lei penal seria proposta, nem uma sombra de restrição imposta à fé de qualquer homem. Gostaríamos que todos os homens acreditassem plenamente na verdade; a fé é uma hipocrisia odiosa para Deus e para o homem… Se os católicos fossem amanhã a raça imperial nesses reinos, eles não usariam o poder político para molestar o estado religioso hereditário e dividido do povo. Nós não fecharíamos nenhuma de suas Igrejas, faculdades ou escolas. Eles teriam as mesmas liberdades que desfrutamos como minoria." – Henry E. Manning, The Vatican Decrees in Their Bearing on Civil Allegiance citado em Maritain, op. cit., pág. 181.

Se a América algum dia se tornará 90 ou 95% católica, não sabemos. Talvez as bombas de hidrogênio excluam tal possibilidade; talvez daqui a duzentos anos todos os católicos americanos tenham apostatado da Igreja ou tenham sido jogados aos leões como seus ancestrais, por causa da histeria dos "verdadeiros romanos" que temem a derrubada dos deuses nacionais. Talvez a América se torne 100% católica e então não haverá mais ninguém para temer os perigos desconhecidos do catolicismo. Quem sabe? Existem muitas possibilidades, mas não pretendemos o manto da profecia. Para todos os que desejam profetizar, podemos apenas dizer: houve falsos profetas.

Finalmente, pode ser útil, em vez de tentar vislumbrar o futuro puramente hipotético, estudar algo do presente. Um país católico, que na sua constituição afirma publicamente a sua devoção ao catolicismo, não menos veementemente afirma os direitos dos seus cidadãos não católicos e reconhece o estatuto jurídico de várias religiões não católicas. Referimo-nos à República da Irlanda. Uma leitura atenta de trechos de sua constituição indicará que não há nada inerente aos princípios católicos que represente uma ameaça à liberdade cívica e religiosa:

CONSTITUIÇÃO DA EIRE

 1. Em nome da Santíssima Trindade, de quem é toda a autoridade e a quem, como nosso fim último, todas as ações, tanto dos homens quanto dos Estados, devem ser referidas,

Nós, o povo da Irlanda,

reconhecendo humildemente todas as nossas obrigações para com Nosso Divino Senhor Jesus Cristo… e procurando promover o bem comum, com a devida observância da Prudência, da Justiça e da Caridade, para que sejam asseguradas a dignidade e a liberdade do indivíduo, alcançada a verdadeira ordem social, a unidade de nosso país restaurada e a concórdia estabelecida com outras nações, por meio deste, adotamos e damos a nós mesmos esta Constituição. 

Direitos Pessoais

Artigo 40.º Todos os cidadãos são, como pessoas humanas, iguais perante a lei.

 

A família

Art. 41. O Estado reconhece a Família como unidade natural, primária e fundamental da Sociedade, e como instituição moral dotada de direitos inalienáveis ​​e imprescritíveis, antecedente e superior a todo direito positivo.

 

Educação

Artigo 42.º 1. O Estado reconhece que o educador primário e natural da criança é a Família e garante respeitar o direito e o dever inalienável dos pais de prover, segundo as suas possibilidades, o sustento religioso e moral, intelectual, físico e social educação de seus filhos.

2. Os pais são livres de ministrar esta educação no seu domicílio ou em escolas particulares ou reconhecidas e instituídas pelo Estado.

3. O Estado não obrigará os pais, em violação da sua consciência e preferência legal, a enviar os seus filhos para escolas estabelecidas pelo Estado, ou para qualquer tipo particular de escola designada pelo Estado.

 

Religião

Artigo 44.º 1. (i) O Estado reconhece que a homenagem do culto público é devida ao Deus Todo-Poderoso. Terá Seu Nome em reverência e respeitará e honrará a religião.

(ii) O Estado reconhece a posição especial da Santa Igreja Católica Apostólica e Romana como guardiã da Fé professada pela grande maioria dos cidadãos.

(iii) O Estado também reconhece a Igreja da Irlanda, a Igreja Presbiteriana na Irlanda, a Igreja Metodista na Irlanda, a Sociedade Religiosa de Amigos na Irlanda, bem como as Congregações Judaicas e outras denominações religiosas existentes na Irlanda na data de a entrada em vigor desta Constituição

2. (i) A liberdade de consciência, a livre profissão e prática da religião são, sujeitas à ordem pública e aos bons costumes, garantidas a todos os cidadãos.

(ii) O Estado garante não adotar nenhuma religião.

(iii) O Estado não deve impor nenhuma deficiência ou fazer qualquer discriminação com base na profissão religiosa, crença ou status.

(iv) A legislação que fornece auxílio estatal para escolas não deve discriminar entre escolas administradas por diferentes confissões religiosas, nem ser tal que afete prejudicialmente o direito de qualquer criança de frequentar uma escola que recebe dinheiro público sem frequentar instrução religiosa nessa escola.

(v) Toda denominação religiosa terá o direito de administrar seus próprios negócios, possuir, adquirir e administrar propriedades, móveis e imóveis, e manter instituições para fins religiosos ou de caridade.

(vi) A propriedade de qualquer denominação religiosa ou qualquer instituição educacional não deve ser desviada, exceto para obras necessárias de utilidade pública e mediante pagamento de indenização. – Igreja e Estado Através dos Séculos: Uma coleção de documentos históricos com comentários, trad. e ed. por S. Z. Ehler e J. B. Morrall (Westminster, Maryland, 1954), 595-9.
 

Scholion 2: Onde o relacionamento "ideal" não é obtido.

Ainda que o estabelecimento de relações jurídicas entre Igreja e Estado seja o ideal católico, a "tese" católica, não é necessariamente corolário, parece-nos, que qualquer outro arranjo seja necessariamente mau (per se malum). A dicotomia proposta: "ou você tem o ideal, ou você tem algo per se mau" certamente parece falsa. Existem muitas gradações entre o ideal e o mal: há o ideal (melhor), o melhor, o bom e, só então, o mal. A dicotomia é uma falsa apresentação de nossa posição, ou pelo menos uma representação excessivamente rígida dela por alguns teólogos católicos. O fato de a Igreja afirmar a superioridade da virgindade sobre o casamento não significa que ela o despreze, mas o venera muito. Da mesma forma, embora a Igreja elogie e deseje que seus membros busquem a relação Igreja-Estado ideal [Nota: O que poderia ser mais natural do que um povo profundamente católico desejar publicamente e com orgulho proclamar seu amor e lealdade a Jesus Cristo e à Sua Igreja? Todo povo, incluindo o americano, instintivamente proclama em voz alta suas lealdades e ideais nativos] por todos os meios honrosos, respeitando as consciências dos não-católicos em seu meio, ela de forma alguma despreza ou considera más outras relações exigidas por circunstâncias particulares. A Igreja não tem apenas um princípio a ter em mente – a obrigação do homem como ser social de fazer profissão social de sua religião – existem outros princípios católicos: que as pessoas individuais são obrigadas a seguir suas consciências, mesmo consciências errôneas; que nenhum homem pode ser constrangido a aceitar o catolicismo; e, finalmente, que o Estado tem a obrigação de prover o bem-estar comum de todos, não apenas de seus cidadãos católicos. Onde, então, o ideal é irrealizável sem dano a outros princípios, a Igreja se contenta com algo bom, embora menos bom. É por isso que o atual Santo Padre se esforçou especialmente para apontar explicitamente para a América para mostrar que a Igreja pode prosperar nas mais diversas situações:

A Igreja não esconde que, em princípio, ela considera tal colaboração [isto é, entre a Igreja e o Estado em uma nação católica] normal e que ela considera a unidade do povo na verdadeira religião e a unanimidade de ação entre ela e o estado como um ideal.

Mas ela também sabe que há algum tempo os eventos evoluíram em uma direção bastante diferente, ou seja, em direção à multiplicidade de crenças religiosas e concepções de vida dentro de uma mesma comunidade nacional, onde os católicos são uma minoria mais ou menos forte. Pode ser interessante e surpreendente para o historiador encontrar nos Estados Unidos da América um exemplo, entre outros, do modo como a Igreja consegue florescer nas situações mais díspares. -Discurso aos Historiadores.

Como assinala Pio XII na mesma alocução, a Igreja, ainda que a sua meta alcance a eternidade, como o seu Fundador, entrou em todas as complexidades do tempo. Sem abdicar de princípios, a Igreja adapta-se com uma flexibilidade admirável a todas as multitudinárias culturas por onde passou, sem se tornar simplesmente um artefacto de uma determinada época – antiga, medieval ou moderna. Seu objetivo em todas as épocas é principalmente religioso e moral, mas porque ela está situada em circunstâncias históricas e sempre tem o homem como seu objeto, a Igreja está interessada em tudo o que afeta a humanidade em qualquer período e se esforça para promover tudo que promova o bem-estar do homem:

A Igreja sabe que a sua missão, embora pela sua natureza e pelas suas finalidades pertença ao domínio religioso e moral, situada no além e na eternidade, penetra, no entanto, até ao próprio coração da história humana. Sempre e em toda a parte, adaptando-se incessantemente às circunstâncias do tempo e do lugar, ela procura modelar as pessoas, os indivíduos e, na medida do possível, todos os indivíduos segundo as leis de Cristo, alcançando assim a base moral da vida social. O objeto da Igreja é o homem naturalmente bom, imbuído, enobrecido e fortalecido pela verdade e graça de Cristo. -Ibid.

Essa simpatia da Igreja pelo homem governa não apenas suas relações com os indivíduos em qualquer época histórica, mas também as sociedades humanas. É por isso que ela mostra a mesma flexibilidade maravilhosa em lidar com tipos de Estado tão díspares. Embora seu ideal seja a colaboração íntima com o Estado entre um povo religiosamente unido, ela não hesita em entrar em concordatas com sociedades onde o fundo religioso pode ser pluralista. Em algumas concordatas, a Igreja e o Estado podem expressar suas convicções religiosas comuns; em outros, a Igreja pode simplesmente desejar uma honrosa independência para fazer seu próprio trabalho; em outros ainda, ela pode simplesmente querer ajudar a preservar a tranquilidade social, traçando linhas de demarcação entre o Estado e ela, evitando ou diminuindo a possibilidade de conflitos futuros:

Na história das relações entre a Igreja e o Estado, as Concordatas, como sabeis, desempenham um papel importante. … nas Concordatas, digamos, a Igreja procura a segurança jurídica e a independência necessárias à sua missão.

É possível, acrescentemos, que a Igreja e o Estado proclamem em Concordata as suas convicções religiosas comuns. Mas também pode acontecer que a Concordata tenha por objetivo, entre outros, prevenir conflitos sobre questões de princípio e evitar desde o início possíveis ocasiões de conflito. Quando a Igreja assina uma Concordata, a aprovação se aplica a todo o seu conteúdo.

Mas o significado mais profundo pode incluir matizes de significado sobre os quais ambas as partes contratantes conhecem. Pode significar uma aprovação expressa, mas também pode prever uma tolerância simples… de acordo com os princípios que servem de norma para a convivência da Igreja e seus fiéis com os homens e poderes de diferentes crenças. -Ibid.

Resumindo, a Igreja faz o melhor em qualquer sociedade – católica, protestante ou secular – para promover o bem-estar do indivíduo e o bem da sociedade como um todo. Ela respeita e defende toda autoridade civil legal como tendo Deus como seu autor final. Ela instrui os fiéis – sejam eles uma minoria ou uma maioria – a respeitar e obedecer à autoridade civil. Ela tenta ser "todas as coisas para todos os homens, a fim de ganhar todos os homens para Cristo". Santo Agostinho descreve lindamente essa atitude imutável em todas as épocas quando se dirige à Igreja Católica com estas palavras:

Tu ensinas e treinas as crianças com muita ternura; jovens com muito vigor, velhos com muita gentileza; como a idade não só do corpo, mas da mente de cada um exige. As mulheres sujeitas a seus maridos em obediência casta e fiel, não para satisfazer sua luxúria, mas para dar à luz filhos e participar das preocupações da família. Tu colocas os maridos acima de suas esposas, não para que eles brinquem com o sexo mais fraco, mas de acordo com os requisitos de afeto sincero. Tu sujeitas os filhos a seus pais em uma espécie de serviço gratuito, e estabeleces os pais sobre … Tu unes seus filhos com uma regra benigna não apenas na sociedade, mas em uma espécie de irmandade, cidadão com cidadão, nação com nação e toda a raça dos homens, lembrando-os de sua paternidade comum. Tu ensinas os reis a cuidar dos interesses de seu povo e admoestas o povo a ser submisso a seus reis. Com todo o cuidado, ensinas a todos a quem se deve honra, afeição, reverência, temor, consolo, admoestação, exortação, disciplina, censura e punição. Tu mostras que tudo isso não é igualmente incumbido a todos, mas que a caridade é devida a todos e a injustiça a ninguém. – De moribus i. 30. 63; ver identificação 20.

Para qualquer um que calunie a Igreja como sendo hostil ao Estado ou hostil ao bem-estar da sociedade, vale a pena ponderar profundamente a resposta de Santo Agostinho à mesma calúnia em seus dias:

Que aqueles que dizem que o ensino de Cristo é prejudicial ao Estado produzam tais exércitos como as máximas de Jesus ordenaram aos soldados que criassem; tais governadores de províncias; tais maridos e esposas; tais pais e filhos; tais mestres e servos; tais reis; tais juízes, e tais pagadores e coletores de tributos, como o ensino cristão os instrui a se tornarem, e então deixe-os ousar dizer que tal ensino é prejudicial ao Estado. Não, eles hesitarão em reconhecer que esta disciplina, se devidamente praticada, é o esteio da comunidade. -Epistula cxxxviii. 2. 15; ver ID 20

Leão XIII nos tempos modernos respondeu à mesma calúnia desta forma:

Portanto, quando se diz que a Igreja é hostil aos regimes políticos modernos e que ela repudia as descobertas da pesquisa moderna, a acusação é uma calúnia ridícula e infundada. Opiniões selvagens ela repudia, projetos perversos e sediciosos ela condena, juntamente com aquela atitude mental que aponta para o início de um afastamento voluntário de Deus. Mas, como toda verdade deve necessariamente proceder de Deus, a Igreja reconhece em toda verdade alcançada pela pesquisa um traço da inteligência divina. E como toda verdade na ordem natural é impotente para destruir a crença nos ensinamentos da revelação, mas pode fazer muito para confirmá-la, e como toda verdade recém-descoberta pode servir para promover o conhecimento ou o louvor de Deus, segue-se que tudo o que espalha o gama de conhecimento será sempre bem-vinda e até alegremente acolhida pela Igreja. Ela sempre incentivará e promoverá, como faz em outros ramos do conhecimento, todo estudo voltado para a investigação da natureza. Nessas buscas, se o intelecto humano descobrir algo não conhecido antes, a Igreja não se opõe. Ela nunca se opõe a procurar coisas que ministrem os refinamentos e confortos da vida. Longe, de fato, de se opor a eles, ela é agora, como sempre foi, hostil apenas à indolência e à preguiça, e deseja sinceramente que os talentos dos homens produzam frutos cada vez mais abundantes pelo cultivo e exercício. -ID 39.

 

Artigo II

VALOR TEOLÓGICO DO ENSINO DE LEÃO XIII

 

I. Observações Preliminares

II. O Ensinamento de Leão XIII é a Doutrina Católica:

1. A própria natureza de uma encíclica

2. Uma inspeção da própria Immortale Dei

3. O acordo unânime dos teólogos

4. Endosso papal subsequente

 

Artigo II

 

VALOR TEOLÓGICO DO ENSINO DE LEÃO XIII

 

I. Observações Preliminares

Acaba de ser apresentada uma breve síntese do ensinamento da Igreja sobre as relações ideais que devem existir entre a Igreja e o Estado num país católico. A maior parte desse ensinamento foi sintetizada por Leão XIII em sua famosa Immortale Dei e outras encíclicas relacionadas. Qual é o valor teológico do ensinamento de Leão neste assunto? Seus ensinamentos representam simplesmente seus pontos de vista como teólogo particular? É apenas um ensino autoritário garantido como seguro por um tempo, mas restrito em seu valor aos problemas peculiares que enfrentaram a Igreja em meio a um desenfreado liberalismo anti-religioso do século XIX? Ou é algo de aplicação universal, expressando claramente o pensamento da Igreja: uma norma perene para todos os teólogos e fiéis ao lidar com este problema sempre delicado e complexo da Igreja e do Estado?

Levantamos esta questão explicitamente porque, à luz de alguns escritos controversos recentes na América, não-teólogos e particularmente não-católicos podem chegar erroneamente – e não necessariamente por causa de qualquer um dos participantes teológicos no debate [Nota: Todos os teólogos envolvidos declararam enfaticamente sua lealdade e submissão aos ensinamentos de Leão; eles simplesmente discordaram sobre qual seria o entendimento adequado desta ou daquela seção de seus escritos] – à noção de que o ensinamento de Leão era algo meramente pertinente a um contexto histórico peculiar e, portanto, capaz de ser reformulado à luz de cada mudança de "constelação histórica", para usar a frase poética de Maritain. [Op. Cit., p. 160].

 

II. O Ensinamento de Leão XIII é a Doutrina Católica:

Uma análise do valor do ensinamento de Leão sobre a Igreja e o Estado pode ser obtida rapidamente a partir de uma breve consideração destes pontos: 1. a própria natureza de uma encíclica; 2. uma inspeção da própria Immortale Dei; 3. o acordo unânime dos teólogos; 4. o endosso dos ensinamentos de Leão pelos papas subsequentes.

1. A própria natureza de uma encíclica. Uma encíclica é um importante documento papal destinado a levar o ensinamento ordinário do papa a todo o mundo católico, mesmo que seja endereçado a alguma igreja em particular. Consequentemente, uma encíclica dá a opinião clara da Igreja sobre o assunto em discussão. Seu conteúdo visto como um todo exigirá sempre, no mínimo, um assentimento de obediência religiosa interna. No máximo, alguns de seus conteúdos podem exigir um consentimento da fé divina e católica: por exemplo, não é incomum que as encíclicas repitam pontos que já foram solenemente definidos pela Igreja. Para usar um rótulo abrangente, então, a melhor maneira de classificar o conteúdo de uma encíclica, visto como um todo, provavelmente seria: ensino católico. Esta é uma etiqueta elástica usada para cobrir uma variedade de assentimentos. Significa doutrina que é ensinada em todo o mundo católico e, portanto, não é algo do mero domínio da opinião. Para que ninguém confunda a importância das cartas encíclicas, o atual papa lembrou aos teólogos em seu Humani generis (12 de agosto de 1950) que as encíclicas exigem nosso consentimento. Eles são uma expressão do poder de ensino comum da Igreja, ao qual é correto aplicar a máxima de Cristo: "Quem vos ouve, a mim ouve".

2. Uma inspeção da própria Immortale Dei confirma o fato de que Leão não estava restringindo seu ensino apenas a uma situação especial que ele estava enfrentando, nem simplesmente expressando suas próprias opiniões como um teólogo particular. Repetidas vezes na encíclica ele se refere ao fato de estar exercendo seu ofício apostólico de mestre de toda a Igreja; em segundo lugar, que seu ensino sobre a Igreja e o Estado é, em última análise, fundamentado na revelação e na filosofia sólida. Algumas citações serão suficientes para mostrar isso claramente. Depois de afirmar que muitos tentaram elaborar planos para a sociedade civil com base em doutrinas diferentes das aprovadas pela Igreja Católica, ele escreve:

Mas, embora empreendimentos de vários tipos tenham sido realizados, é claro que nenhum modo melhor foi concebido para construir e governar o Estado do que aquele que é o crescimento necessário dos ensinamentos do evangelho. Consideramos, portanto, da mais alta importância, e um estrito dever de Nosso ofício apostólico, contrastar com as lições ensinadas por Cristo as novas teorias agora apresentadas a respeito do Estado. -2.

Tal é, pois, conforme indicamos brevemente, a organização cristã da sociedade civil; não moldado de forma imprudente ou fantasiosa, mas eduzido dos princípios mais elevados e verdadeiros, confirmados pela própria razão natural. -16.

Este, então, é o ensinamento da Igreja Católica sobre a constituição e governo do Estado. -36.

Visto que a verdade, quando trazida à luz, costuma, por sua própria natureza, espalhar-se por toda parte e gradualmente tomar posse das mentes dos homens, nós, movidos pelo grande e santo dever de nossa missão apostólica a todas as nações, falamos, como somos obrigados a fazer, com liberdade. -40.

Finalmente, no encerramento da encíclica, Leão afirma inequivocamente que seu ensinamento é dirigido não apenas a um país, mas a todo o mundo católico:

Isso, veneráveis irmãos, é o que pensamos ser nosso dever expor a todas as nações do mundo católico a respeito da constituição cristã dos estados e dos deveres dos cidadãos individuais. -50.

3. O acordo unânime dos teólogos. Finalmente, todos os teólogos e canonistas desde a época de Leão até o presente referem-se ao ensinamento de Leão como a fonte clássica do ensinamento da Igreja sobre as relações entre Igreja e Estado. Seria cansativo enumerá-los todos. Aqui estão alguns dos teólogos padrão: Billot, Tanquerey, Hervé, Pesch, Zapalena, Tromp, Garrigou-Lagrange, Parente e Salaverri. Aqui estão alguns dos canonistas padrão: Ottaviani, Cappello, Coronata e Bender. [Nota: 1. Os seguintes teólogos e canonistas apelam para a autoridade de Leão XIII como fonte de seus ensinamentos sobre as relações adequadas entre Igreja e Estado:Teólogos: L. Billot, De ecclesia Christi (3rd ed., 1929), II, passim and especially p. 82-93; R. Garrigou-Lagrange, De revelatione (4th ed., 1945), II, p. 411-9; J. M. Hervé, Manuale theologiae dogmaticae (5th ver. Ed., 1951), p.244-5; L. Lercher, op. Cit., p. 244-5; Parente, Theologia fundamentalis, op. Cit., 185-90; C. Pesch, Compendium theologiae dogmaticae (2nd ed., 1929), I, 160-3; I Salaverri, op. Cit., (1952), I, 805-17; A. Tanquerey, Synopsis theologiae dogmaticae (26th ed., 1949), I, 686-701. Canonistas: L. Bender, op. cit., p. 177-8; Capello, Summa iuris publici ecclesiastici (4th ed., 1936), p. 128-41; M. Coronata, Compendium iuris canonici (1937), p. 25-48; A. Ottaviani, Institutiones iuris publici ecclesiastici ), I, p. 157-72].

4. Endosso papal subsequente. Leão XIII, em sua própria encíclica, referiu-se ao fato de estar apenas repetindo e desenvolvendo o que os papas anteriores haviam ensinado sobre os mesmos princípios fundamentais. Ele cita explicitamente Gregório XVI e Pio IX (ID 34). São Pio X reiterou a condenação de Leão da doutrina liberalista da Igreja e do Estado em seu Vehementer Nos, dirigido à França em 1906 [Nota: Bender, op. cit., p. 178]. Pio XI repetiu a doutrina de Leão sobre a obrigação da sociedade civil de prestar culto público a Cristo Rei em sua encíclica Quas primas. [Nota: 4. See Pius XI, The Kingship of Christ (Quas primas), translated by Gerald Treacy (New York, 1944), nos. 20 and 24].

Se restasse alguma dúvida de que Leão XIII representou a mente clara da Igreja em seus ensinamentos sobre Igreja e Estado, Pio XII dissipou tais ilusões em seu recente Discurso aos Historiadores (7 de setembro de 1955). Observando que os estudiosos têm estado recentemente atentos à história das relações entre a Igreja e o Estado, o atual Santo Padre afirma que Leão colocou em uma espécie de fórmula as relações adequadas que devem existir entre as duas sociedades. Depois de afirmar que Leão deu "uma explicação esclarecedora" dessas relações em suas encíclicas Diuturnum illud (1881), Immortale Dei (1885) e Sapientiae Christianae (1890), Pio XII refere-se ao valor do ensinamento de Leão sobre a Igreja e o Estado nessas palavras:

Pode-se dizer que, com exceção de alguns séculos – tanto nos primeiros 1.000 anos quanto nos últimos 400 – a declaração de Leão XIII reflete mais ou menos explicitamente a mente da Igreja. Além disso, mesmo durante o período intermediário, havia representantes da doutrina da Igreja – talvez até uma maioria que compartilhava da mesma opinião. Para ver o original em francês, ver AAS, 47 (1955), 678.

Em outras palavras, Pio XII nos diz claramente que o ensinamento de Leão sobre a Igreja e o Estado representa em termos explícitos o que foi o ensinamento da Igreja Católica ao longo dos séculos – cerca de 1.400 anos – talvez com um breve interlúdio no qual o ensinamento da Igreja foi temporariamente obscurecido (a Era Medieval) – e que mesmo durante essa época havia representantes da verdadeira doutrina da Igreja. O ensinamento de Leo, portanto, não pode ser reduzido simplesmente a uma solução ad hoc produzida para atender às necessidades peculiares do século XIX. É a doutrina católica (doctrina catholica).

NOORT, VAN. Dogmatic Theology Vol. II Christ's Church, traduzido e revisado por J. Castelot e W. Murphy, The Newman Press, 1959, pp. 343-394. Tradução pt: Gustavo Lopes.

 

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