Domingo, Dezembro 22, 2024

DEBATE: Se os muçulmanos creem em Deus (Carlos Alberto x Carlos Nougué)

Essa discussão teve lugar nas redes sociais entre o Sr. Carlos Alberto, exímio estudioso da Escolástica, e o prof. Carlos Nougué, conhecido gramático e professor de filosofia. O Sr. Douglas Bergamo se fez presente nessa discussão em favor do prof. Nougué. O tema do debate foi: “Se os muçulmanos creem (em certa medida) em Deus”. As mensagens dos interlocutores se encontravam em seus respectivos perfis no Facebook. Visando que essa interessante discussão não fique relegada a postagens no Facebook, que com o passar do tempo se tornarão de difícil localização, organizamos as mensagens em forma de Debate nesse espaço.
 
 
A ordem cronológica desse debate é a seguinte:
1. Em 24 de janeiro de 2021, o Sr. Carlos Alberto responde um questionamento em sua rede social Curiouscat, onde defende sucintamente a tese de que  os muçulmanos creem (em certa medida) em Deus;
2. Em 25 de janeiro de 2021, o prof. Carlos Nougué apresenta uma resposta à mensagem de Carlos Alberto;
3. Em 28 de janeiro de 2021, o Sr. Douglas Bergamo, em “carta”, apresenta um complemento à resposta do Prof. Carlos Nougué em face do Sr. Carlos Alberto; 
4. Em 28 de janeiro de 2021, o Sr. Carlos Alberto apresenta sua refutação à resposta do prof. Carlos Nougué;
5. Em 10 de fevereiro de 2021, o Sr. Carlos Alberto responde à “carta” do Sr. Douglas Bergamo.
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1. Em 24 de janeiro de 2021, o Sr. Carlos Alberto responde um questionamento em sua rede social Curiouscat, onde defende sucintamente a tese de que  os muçulmanos creem (em certa medida) em Deus.

“Adoramos o mesmo Deus que os muçulmanos?”
Outra resposta polêmica: sim, os muçulmanos creem (em certa medida) sem fé teologal naquilo que nós, com ela, também cremos. O nome “Deus” resguarda certo corpo predicativo em comum entre os católicos e os muçulmanos; quando ambos, p. ex., dizem que Deus é uno, imutável, simples, criador, governador, etc., e tais nomes (positivos e negativos; relativos e absolutos) pertencem única e exclusivamente Aquele que no Monte Sinai disse a Moisés: “Ego sum qui sum”.
A resposta pode parecer polêmica hoje, mas sempre foi corriqueira entre os teólogos escolásticos.
 
2. Em 25 de janeiro de 2021, o prof. Carlos Nougué apresenta uma resposta à mensagem do Sr. Carlos Alberto.
SE O DEUS DO ISLÃ TEM ALGO EM COMUM COM O DEUS CRISTÃO – EM RESPOSTA A CARLOS ALBERTO         

Nota prévia 1: este opúsculo foi escrito originalmente para o Facebook.

Nota prévia 2: nosso Congresso Tomista, que se realizará em março próximo e que está anunciado desde nada menos que 7 de outubro de 2019, contará entre seus palestrantes com alunos meus da Escola Tomista. Depois de quase quatro anos de estudo comigo, começarão a exercitar-se para seu futuro magistério. Será para eles um exercício, e só mentes enfermas podem ver nisso, de minha parte, um recurso para tornar-me líder. Mas, contra o que pensam e fofocam tais mentes enfermas, a maioria dos palestrantes do Congresso não é de alunos meus. E entre estes – se é que continuam a aceitar meu convite, feito em meados do ano passado – estão dois jovens que não só não são atualmente alunos meus, mas nunca o foram: Leandro Bezerra e Carlos Alberto. São ambos impressionantes: domínio total do latim, leitura vasta de S. Tomás, dos tomistas e dos escolásticos em geral. Leandro Bezerra não é católico; é protestante, e digo que meu convite a ele para participar do Congresso se deve em parte a seu mérito próprio, em parte a meu interesse em que se converta ao catolicismo (e catolicismo tradicional). É pois também um convite interessado. Carlos Alberto creio que é já católico. Com ambos, todavia, já mostrei publicamente e privadamente que tenho divergências. Com Leandro, por exemplo, quanto à analogia. Quanto a Carlos Alberto, as divergências têm-se mostrado mais agudas. Há uma semana, por exemplo, ele defendeu em suas páginas a possibilidade de conciliação entre tomismo e fenomenologia. Respondi-lhe publicamente, sem citar-lhe o nome, com o post “O Pecado Filosófico de Angelismo”. Mas agora tenho de citar-lhe o nome, porque a divergência aqui é muito mais grave: trata-se do que ele escreveu no post cujo print colo abaixo. Leiam-no, pois, antes de ler-me a resposta. Mas digo: nada disto, para mim, implica que não o queira no Congresso (se ele mesmo já não o quiser, são outros quinhentos), até porque nosso Congresso tem caráter tão amplo, que eu ia convidar para palestrar dois tomistas que, no entanto, muito infelizmente, preferiram participar do Congresso de não tomistas sobre trivialidades tomistas. Escolheram seu lado (aliás, já havia muito o tinham escolhido; mas isto é assunto para outros posts). Agora, a breve mas creio que conclusiva resposta a Carlos Alberto.
1) Antes de tudo, em privado Carlos Alberto me disse que sua opinião se funda em determinadas autoridades, a saber: “Suárez, Lugo, Gonet, Billuart e tantos outros (tomistas e não-tomistas)”. Antes de tudo, diga-se que o argumento de autoridade é por vezes validíssimo: ou seja, se se trata da autoridade do magistério autêntico da Igreja, da das Escrituras, da da tradição, da do consentimento unânime dos Padres quanto a questões de fé e de costumes, e da de S. Tomás, justamente porque é o Doutor Comum da Igreja e porque “sua doutrina”, como disse Pio XI, “é a única que a Igreja fez sua”. Quanto aos demais, o argumento de autoridade nada ou pouco vale. É verdade que devo mais reverência a um Caetano ou a um Báñez que a um Billuart ou a um De Prado. Ainda assim, contudo, não estamos atados a eles por vínculo de autoridade; aliás, o mesmo S. Tomás, conquanto lhe devamos docilidade máxima, não deixa de merecer alguns pouco reparos, até porque sua doutrina, conquanto tenha sido em essência a mesma ao longo de toda a sua produção filosófica e teológica, amadureceu: por exemplo, livrou-se da sombra aviceniana e boeciana para alcançar perfeitamente o eixo de seu pensamento (a distinção real entre essência e ato de ser); mas, dado o ambiente em que se encontrava o nosso Doutor, por vezes até na Suma Teológica ele deixa de usar uma linguagem propriamente tomista para atingir um público majoritariamente aristotélico-platônico. – Quanto porém especialmente aos autores referidos por Carlos Alberto, a nenhum o tenho por autoridade em grau algum. Billuart é de um tomismo que, na terminologia do P. Calderón, eu chamaria fast-food, embora me tenha valido dele na questão disputada “Do Papa Herético”. Gonet e Lugo, nunca os li; mas tampouco me parece que estejam entre os maiores. Quanto todavia a Suárez, meu rechaço é amplo e profundo. Talentosíssimo metafísico, sua metafísica no entanto incorre na superficialidade do “essencialismo” (de que tratarei no livro Questões Metafísicas), além de padecer os efeitos nefastos de sua fracassada síntese de tomismo e scotismo. O pior, porém, reside em sua doutrina política: aprofunda os erros nominalistas do mau tomista Vitoria, nega a ordenação essencial do poder temporal ao poder espiritual, e traz para o seio do cristianismo algo análogo à “vontade geral” de Jean-Jacques Rousseau. (Quanto à doutrina política de Suárez, tratá-la-ei detidamente em “Da História e Sua Ordem a Deus”, apêndice único de meu Comentário ao Apocalipse).
2) Para nós, nesta vida, há dois modos de conhecer a Deus: pelas só luzes da razão (é o que se dá na metafísica, ciência divina); ou por revelação e fé, a partir de cujos princípios se constitui a teologia sagrada (em que a razão se ordena essencialmente à fé); conquanto se possa e deva assinalar um terceiro modo: pela razão iluminada pela fé, com o que se atinge a perfeição da metafísica (perfeição efetivamente só alcançada, porém, por S. Tomás, como o mostrarei nas já referidas Questões Metafísicas). Pois bem, pelas só luzes da razão conheceram a Deus os maiores filósofos pagãos: Anaxágoras e Parmênides conquanto ainda muito primariamente, Sócrates, Platão, Aristóteles sobretudo, Plotino muito imperfeitamente, etc. Mas nenhum deles foi capaz de atingir a perfeição possível do conhecimento de Deus, e isto se deve antes de tudo ao pecado original, cujos efeitos tiraram aos homens a capacidade de conhecer naturalmente a Deus de modo tão perfeito como Adão o conhecera. Como quer que seja, nossa razão é capaz em princípio de conhecer que Deus é, que sua essência é Ser, que portanto Ele é o próprio Ser subsistente por si mesmo, que Ele é eterno, infinito, sumo bem e criador do céu e da terra (embora muitos tomistas não considerem que nossa razão seja capaz por si de alcançar a criação ex nihilo [de nada]; mas defenderei minha posição em livro). Ou seja, pela própria razão podemos superar o apofaticismo absoluto de um Maimônides ou de um Plotino, e conhecer não só que Deus é, mas de certa maneira algo de sua mesma essência. – Por revelação e fé, no entanto, conhecemos de Deus várias “coisas” que não nos é possível de modo algum alcançar pela razão, a mais importante das quais é que, embora Ele seja substancialmente uno, é também trino: Deus são três relações hipostasiadas. Não se trata de distinção de razão, mas de três Pessoas reais. Tampouco nos é acessível senão pela fé que Cristo é uma só pessoa com dupla natureza divina e humana, que Maria o deu à luz virgem, que no final dos tempos os mortos ressuscitarão, que os eleitos de Deus o conhecem e conhecerão por essência na Jerusalém Celeste, etc. Como, todavia, se deixados entregues à sua só razão, só poucos homens ascenderiam ao conhecimento de Deus e só depois de muito tempo e, ademais, com mais ou menos imperfeição (como foi o caso dos filósofos pagãos), Deus nos entrega como artigos de fé “coisas” que a razão poderia em princípio alcançar: Creio em Deus todo-poderoso, por exemplo. É da misericórdia de Deus para com seus eleitos. E mesmo os que podemos alcançar pela razão que Deus todo-poderoso é devemos igualmente tomar como de fé tais artigos. – Como no entanto S. Tomás olhou do cume da fé para a razão que tenta por si ascender ao conhecimento de Deus, ele conseguiu o que Aristóteles não alcançara em sua metafísica: a perfeição desta ciência divina. Pobre e bravo Aristóteles: sem a luz da fé e vítima, ele também, dos efeitos do pecado original sobre nossa inteligência, galgou genial e esforçadamente a mesma e altíssima montanha em cujo cume se viu Tomás, para porém não chegar a atingir este cume e descer rapidamente por falta de fôlego.
3) Pois bem, o que o islã diz de Deus não o diz pelas luzes da razão natural, senão que o crê revelado por Deus mesmo. Nunca houve por aquelas terras um Sócrates, um Platão, um Aristóteles que tivessem antecedido essa suposta revelação. É certo que houve dois grandes filósofos muçulmanos: Avicena e Averróis. Mas eles não fazem senão refratar, pelas lentes algo míopes de Alexandre de Afrodísias e, de certo modo, do mesmo neoplatonismo, o dito por Platão e por Aristóteles. Mais que isso, contudo: para eles havia uma como dupla verdade, a revelada e a filosófica, que não necessariamente deveriam conciliar-se entre si, como se Deus, que é autor não só da revelação mas da mesma razão humana, pudesse contradizer-se de qualquer modo. Portanto, o expresso pelo islã quanto a Deus nada tem que ver com a metafísica.
4) Mas Carlos Alberto, como se pode ler no print abaixo, diz que o Deus do islã e o Deus do cristianismo compartilham “certo corpo predicativo comum”. Ora, como diz S. Tomás na Suma Teológica, ou a verdadeira fé é íntegra (isto é, professa todos os artigos da fé), ou não passa de mera opinião (ainda que se negue tão somente um de tais artigos). Mas o islã nega que Deus uno seja também trino, que Cristo seja Deus, etc. Logo, sua fé não pode passar de opinião (a não ser que caiamos no nefando relativismo religioso vaticano-segundo). Sendo assim, o referido “corpo predicativo comum” não passa de mera semelhança ocasional, ou seja, material, não formal. Não dizer isto, contudo, como não o diz Carlos Alberto, é “vender gato por lebre” e contribuir para debilitar a verdadeira fé, ainda que não tenha sido esta a intenção do nosso Carlos.
Objeção: lê-se no número 225 do Catecismo Maior de São Pio X: “Quem são os infiéis? Os infiéis são aqueles que não foram batizados e não creem em Jesus Cristo, seja porque creem e adoram falsas divindades, como os idólatras; seja porque, embora admitam o único Deus verdadeiro, não creem em Cristo Messias, nem como vindo na pessoa de Jesus Cristo, nem como havendo de vir ainda: tais são os maometanos e outros semelhantes” (destaque nosso). Mas, se admitem o Deus verdadeiro, então é verdade que quanto a Ele o islã e o cristianismo têm um corpo predicativo comum e formal, não material. Logo, não procede a crítica a Carlos Alberto.
Solução: como se lê em “Dificuldades quanto aos Catecismos de São Pio X”, opúsculo de meu livro Estudos Tomistas II, “em 1905 São Pio X promulgou uma versão revista de um catecismo de 1765, à qual chamou Compendio della dottrina Cristiana (Compêndio da Doutrina Cristã), atualmente conhecido como Catechismo Maggiore (Catecismo Maior). Seu fim era algo distinto do fim do Catecismo Romano. Este, escrito por uma pequena comissão de cardeais sob supervisão e direção diretas de São Pio V, sem deixar de ser instrumento de formação do povo cristão, visava eminentemente à unificação doutrinal, donde sua considerável extensão. O Catecismo Maior, por seu lado, visava eminentemente à formação do mesmo povo cristão. Mas em outubro de 1912 o santo Pontífice publicou um novo catecismo, de feição algo diferente da do primeiro, ou seja, ainda mais breve (433 perguntas e respostas) e de caráter ainda mais pedagógico, chamado Catechismo della dottrina Cristiana (Catecismo da Doutrina Cristã). Reimpresso numerosas vezes e de difusão ininterrupta em quase todas as línguas ocidentais, este catecismo formou gerações e gerações no século XX, até à tragédia do Concílio Vaticano II. Não se sabe por quê, porém, no Brasil até muito recentemente só teve tradução e curso o Catecismo Maior, ao contrário do que se deu nos demais países. Mas o fato é que o segundo catecismo se publicou, apenas sete anos após a publicação do primeiro, para substituir este. Muito provavelmente, o santo Papa havia considerado insuficiente o primeiro para o fim primordial de seu Pontificado, a saber, a ‘instrução religiosa do povo cristão e em particular das crianças, [porque] grande parte dos males que afligem a Igreja provêm da ignorância de sua doutrina e de suas leis […]’ (da ‘Lettera di approvazione del nuovo catechismo’). Mas muito provavelmente também pesaram em sua decisão de lançar o segundo catecismo algumas imprecisões que havia no primeiro”. Uma delas é justamente o que se diz no número 225 e que transcrevi acima. Tal imprecisão teria decorrido, talvez, do mesmo estado de insuficiência tomista que marcou aquela época (e que não se começaria a superar senão com a promulgação das “24 Teses Tomistas” pelo mesmo S. Pio X e por Bento XV). Mas que fosse imprecisão vê-se pelo que se lê no número 125 do novo catecismo: “Chi sono gl’infedeli? Gl’infedeli sono i non battezzati che non credono in alcun modo nel Salvatore promesso, cioè nel Messia o Cristo, come gl’idolatri e i maomettani”, ou seja: “Quem são os infiéis? Os infiéis são os não batizados que não creem de modo algum no Salvador prometido, isto é, no Messias ou Cristo, como os idólatras e os maometanos”. Expurgou-se assim a imprecisão. E, se estas são palavras de sempre do magistério autêntico da Igreja, há que acrescentar-lhes outra sentença sempre expressa não só pelo mesmo magistério, mas pelo consentimento unânime dos Padres (lugar teológico que havemos de receber como de fé, segundo o definido pelo Vaticano I): os deuses de todas as religiões não cristãs são falsos. É verdade que, se a verdade não comporta mais e menos, a falsidade sim: algo pode ser mais ou menos falso. Mas o mais ou menos falso sempre será falso. Ou isso, ou se cai – repita-se – no relativismo e indiferentismo religioso, verdadeiro veneno para a fé. 
AMDG  
 
 
3. Em 28 de janeiro de 2021, o Sr. Douglas Bergamo, em “carta”, apresenta um complemento à resposta do Prof. Carlos Nougué em face do Sr. Carlos Alberto.
Recebi de Douglas Bergamo esta magnífica carta (e-mail), onde ele reformula os argumentos que expus quanto a se têm algo em comum o Deus islâmico e o Deus cristão:
Estimado prof. Carlos Nougué
Li com interesse seu recente artigo sobre a não identidade entre o Deus dos cristãos e o dos muçulmanos, tema sobre o qual venho refletindo há tempos e que me causa certa perplexidade devido às afirmações em contrário de alguns documentos conciliares como, e.g., a declaração “Nostra Ætate”, consagradas pelo atual Catecismo. Já tive a oportunidade de debatê-lo em privado com um meu ex-professor de Navarra, mas não chegamos a nenhuma conclusão satisfatória.
Dei-me pois a liberdade de imiscuir-me na discussão e “complementar”—ou, antes, reformular—seus ótimos argumentos contra os dois pontos falhos da tese do sr. Carlos Alberto:
(1) Entre o Deus dos cristãos e o dos muçulmanos falta não só verdadeira “comunidade predicativa” (i.e., um conjunto de atributos comuns), senão que, mesmo entre predicados nominalmente semelhantes, falta não raro verdadeira “comunidade nocional” (i.e., identidade de conteúdo ou razões formais). Com efeito, embora católicos e muçulmanos prediquem de Deus os mesmos atributos, absolutos (como “onipotente”) ou relativos (como “criador”), daí não se segue que entendam a mesma coisa por tais nomes:
Para os primeiros, a não-contradição é um “limite de razão” à onipotência divina, que se estende a tudo quanto pode participar da perfeição do esse, enquanto que, para os segundos, a onipotência é tomada como poder irrestrito, até mesmo para fazer absurdos;
Para os primeiros, a criação é “ex nihilo” no sentido de não pressupor nada prévio a Deus, que atua desde si mesmo e em virtude de sua própria potência ativa, enquanto que, para os segundos, o “nada” é tomado como certo “estado pré-criacional” caracterizado como um âmbito de essências intrinsecamente possíveis não atuais.
Daí se vê que o Deus dos cristãos é todo-poderoso, mas também sábio; o dos muçulmanos é um tiranete e por isso voluntarista. O Deus dos cristãos é criador, por absolutamente primeiro e independente; o dos muçulmanos tende a equiparar-se a um demiurgo platônico, embora não atue sobre uma matéria informe. 
(2) Ademais, o hábito da fé, como qualquer hábito, se especifica por seu objeto “per se”, e não por seu objeto “per accidens”. Ora, o objeto per se do hábito da fé teologal, ao contrário dos atributos divinos demonstrados pela Filosofia primeira, não pode ser conhecido pela só razão antes de Deus o revelar, nem sequer quanto ao an sit. Sucede porém que objeto per se primário da fé teologal é a deidade em si mesma, i.e., os mistérios sobrenaturais referentes à própria substância divina, dos quais a Trindade de pessoas é evidentemente o principal. Os muçulmanos, no entanto, por negarem a revelação cristã e, com isso, todos os artigos nela contidos explícita ou implicitamente, negam a Deus tal como Ele é em si mesmo. Por conseguinte, não se pode dizer nem que “creiam” (a não ser equivocamente) nem que se refiram ao “mesmo Deus” que nós, ainda que, “dato sed non concesso”, atribuam ao que entendem por “Deus” os mesmos atributos que lhe reconhecemos os fiéis cristãos (e.g., unidade, simplicidade, eternidade etc.), independentemente do modo de conhecimento.
(Nesse quesito, a fé informe e puramente natural dos demônios é mais “propriamente” fé do que a “fé opinativa” dos maometanos, pela maior credibilidade com que os anjos caídos conhecem o fato da revelação manifestado e corroborado por milagres e proposto pela Igreja)
 
Encarecidamente,
Douglas.
 
4. Em 28 de janeiro de 2021, o Sr. Carlos Alberto apresenta sua refutação à resposta do prof. Carlos Nougué.
 
SE O DEUS DO ISLÃ TEM ALGO EM COMUM COM O DEUS CRISTÃO – UMA RÉPLICA A CARLOS NOUGUÉ.
(1) — Esclarecimentos.
Há poucos dias em uma plataforma de perguntas respondi brevemente a (árdua) questão da crença em comum dos católicos e muçulmanos sobre o mesmo Deus. Como sinalizei na própria resposta: tratava-se de algo polêmico, com amplo respaldo, porém, nos doutores escolásticos. Assim, me atendo sobretudo ao que ensinaram Suárez, Lugo, Hurtado, Gonet, Billuart e outros, argumentei afirmativamente, que creem, em certa medida, no mesmo Deus.
A afirmação encontra seu fundamento, como veremos, em princípios diferentes, mas antes de responder cada objeção, prosseguirei no esclarecimento dos últimos eventos:
1. Em primeiro lugar, gostaria de agradecer ao senhor Carlos Nougué pelo honroso convite para participar do Congresso Tomista. De minha parte, não poderia estar mais feliz em contribuir para este evento, que é notoriamente fruto de anos de esforço e dedicação ao magistério tomista. Comparecerei com felicidade!
2. Em segundo, sobre as objeções endereçadas a postagem que fiz na plataforma de perguntas: gostaria de destacar, em tempos turbulentos, a forma gentil e respeitosa com que foram endereçadas. Postura rara em nossos dias, mas que é, sem dúvida, uma das notas do verdadeiro tomista: a docilidade e a boa vontade para com o próximo. Tentarei retribuir o tratamento da melhor maneira que posso.
3. Em terceiro, as objeções, em si, são bem extensas e tocam em assuntos que considero distintos; as organizarei em tópicos separados para melhor compreensão da resposta.
Começando por uma das divergências “agudas” com o senhor Nougué:
(2) — O tomismo fenomenológico e o pecado de “angelismo”.
Este ponto foi mencionado de relance na resposta do senhor Nougué e agora aproveito o ensejo para respondê-lo.
O texto mencionado por ele, postado em minhas redes, se chama “Outra prosa sobre o tomismo e a fenomenologia”, onde desenvolvo brevemente quatro pontos que aqui condenso: 1. Injustiças de bons tomistas (como Van Riet) à fenomenologia enquanto postura metódica; 2. Apreciações realistas da fenomenologia (de Edith Stein, passando por Delannoye, Kremer, Klimke e Conrad-Martius até Feuling); 3. O giro aristotelizante desta postura em Millán-Puelles; 4. O dever de docilidade do bom tomista ante a “nova escolástica”.
Neste último ponto, aliás, sinalizo que tal empreitada de compatibilização exige certa agudeza de intelecto, uma vez que frente às fenomenologia(s) é necessário separar o joio do trigo: e entre o joio menciono explicitamente o intuicionismo de Husserl! O senhor Carlos Nougué, por outro lado, denuncia no quarto ponto de seu texto-resposta, “O pecado filosófico de angelismo”, que Husserl e sua epoché “ou seja, (sic) a suspensão do juízo mediante a qual, segundo ele, podemos alcançar a essência das coisas”, também incorrem no pecado de angelização do homem.
Antes de dissecar esta declaração, é necessário iluminar algumas perdoáveis imprecisões da fala de nosso tomista: entre as três reduções fenomenológicas (alguns elencam até mesmo seis) comentadas por Husserl, a primeira, i. e., a “epoché”, não envolve ainda o instante da intuição eidética ou visão das essências. A primeira redução fenomenológica é, como disse Husserl em “Aufsätze und Vorträge”, o método de purificação radical do campo fenomenológico da consciência de todas as intromissões de realidades objetivas e consiste em tomar o conhecido suspendendo o juízo sobre o caráter existencial (até mesmo imanente) do objeto de conhecimento. É o colocar entre parênteses da crença na existência do mundo que constitui a postura ou atitude natural à vista do mesmo.
Estamos diante da redução temática, do lugar transcendental da fenomenologia, que como bem sinalizou Puelles, consiste em uma atitude neutra inserida no que poderíamos chamar de “via cartesiana”. Discernindo, finalmente, o resultado de cada redução, chegamos agora na intuição das essências (que a interpretação luftiniana apelida de “via psicológica”) e a considerando desde o escopo crítico do senhor Nougué, não podemos senão conceder o seu parecer em relação ao angelismo.
Concedendo, contudo, ainda é urgente dizer: semelhante crítica já era conhecida por tomistas-fenomenólogos como Edith Stein, que a menciona expressamente em “Was ist Philosophie?”; Millán-Puelles também estava ciente dos problemas do intuicionismo husserliano e o rechaça com nitidez tanto em “El problema del ente ideal” como em “Teoría del objeto puro”.
O tomismo fenomenológico de Stein tratou de diluir a redução eidética ao “intus-legere” de St. Tomás; quanto ao caráter mais geral da intuição fenomenológica, rejeita abertamente que tal se dê sem alguma elaboração intelectual (especialmente para o que os husserlianos chamam de “verdades essenciais”). Para ela, diferente de seu antigo mestre, todo conhecimento “in statu viae” é mediado por alguma destas três classes de meios: 1. A mediação da luz do intelecto; 2. A mediação das espécies, por meio das quais o intelecto conhece; 3. Pelos objetos de experiência, por meio do qual conhecemos outros objetos de experiência.
Millán-Puelles (que está longe de ser um eclético), seguindo uma orientação mais próxima do aristotelismo, considera a “Wesensschau” husserliana à luz de seu abstratismo: a intuição eideatória corresponderia à simples contemplação verificada pelo intelecto paciente, ignorando justamente aqueles outros momentos em que se verifica a conversão dos dados sensíveis em pura ideia. Mas por ignorar aqueles outros momentos é que o ponto de partida de Husserl (e de suas provas) é inválido: não por constituir, argumenta Puelles, um plano noemático, mas sim por ser um plano puramente noemático quando deveria pertencer, antes de tudo, ao âmbito precisivamente abstrato.
Em suas obras não vemos a presença de uma “epoché”, nem algum resquício do intuicionismo gnosiológico. Em Puelles a via psicológica recebe outra roupagem: não é mais intuição, mas pura respectividade à consciência da objetualidade formal, que não é alcançada através de uma “intentio directa” (que seria pré-reflexiva e pré-fenomenológica), porém, sim mediante um ato de reflexão cujo efeito formal é, justamente, a fenomenicidade do objeto (que determina a consideração material do mesmo). Tampouco há propriamente suspensão, porque a atitude fenomenológica é pura objetivação e explicitação do conteúdo noemático que está “in actu signatu” na objetualidade material.
Mas onde estará Husserl na fenomenologia de Millán-Puelles? O pai da fenomenologia ainda está presente, em certa medida, no ambiente temático desta ciência: a análise fenomenológica se limitaria, no reconhecimento do efeito da reflexão que explicita a objetualidade formal (respectividade do objeto enquanto objeto) ante a consciência pura, a descrição com “la máxima lealtad y pulcritud”, nos dizeres de Puelles. Por isso, a descrição feita dessa forma deve ser fenomenológica no sentido de ser reservada ao que é manifestado de forma explícita na atitude reflexiva, o que coincide com o que Husserl postula para o que é apenas descrição eidética.
Escapa Millán-Puelles, desta forma, com êxito: tanto do “joio” de Husserl como do “angelismo” mencionado pelo senhor Carlos Nougué. Diga-se o mesmo para Edith Stein (autora com quem divirjo em questões cruciais): tanto ela como Puelles conheciam bem os defeitos do intucionismo e em especial o filósofo espanhol tratou bem de escapar deste “pecado”.
(3) — Apreciação do que disse o senhor Nougué sobre os autores mencionados.
No primeiro tópico de seu artigo-resposta, o senhor Nougué logo no início enuncia o seguinte: “Antes de tudo, diga-se que o argumento de autoridade é por vezes validíssimo: ou seja, se se trata da autoridade do magistério autêntico da Igreja, da das Escrituras, da tradição, da do consentimento unânime dos Padres quanto a questões de fé e de costumes, e da de S. Tomás, justamente porque é o Doutor Comum da Igreja”.
Precisando este ponto de vista, acrescento ainda que o argumento de autoridade é também válido para outros lugares teológicos (dos onze elencados por Melchor Cano no “De Locis Theologicis”): sem exclusão do lugar teológico auxiliar próprio que pertence aos doutores escolásticos. Em razão disso, na verdade, é que citei autores da escola; para no contexto da teologia especulativa herdar maior plausibilidade na sentença defendida, especialmente pelo conjunto de teólogos escolásticos dos séculos XVII e XVIII que a patrocinaram. Na disputação escolástica, como certamente sabe o senhor Nougué, nem sempre podemos recorrer a critérios certos da tradição divina.
Acerca dos comentários do senhor Nougué a cada autor em particular:
1. Sobre Gonet e Billuart: ambos estão, por assim dizer, na mesma estatura intelectual e fazem parte da elite do tomismo francês nos séculos XVII e XVIII, junto com Goudin e Contenson. Apesar de não possuírem a autoridade de um João Capréolo ou de um Caetano, seus nomes continuaram aparecendo nos tratadistas dos séculos seguintes (como Sanseverino, Zigliara, Del Prado, Liberatore, Urráburu e outros) e também na maior parte dos teólogos moralistas, sempre com muita autoridade, ao lado de nomes como o de João de S. Tomas (!) e dos Salmanticenses.
São tomistas que ganharam prestígio dentro e fora dos umbrais da ordem dominicana: foram gigantes e estão longe, penso eu, do tomismo “fast-food” denunciado pelo pe. Calderón. Mas considerando que fossem, quem dera se houvesse mais tomistas “fast-food” em tempos áridos como os nossos.
2. Sobre Suárez e Lugo: o primeiro é, como ironizava Cornélio Fabro (para ira do padre Descoqs), um “exímio” eclético; o segundo, Santo Afonso o reputava como o primeiro em autoridade, depois de St. Tomás, em matéria moral. Suas “Disputationes scholasticae et morales” formam, nas palavras do historiador Mário Méndez, um monumento da teologia espanhola; monumento tal que o fez ser reputado entre os maiores da Companhia de Jesus (ao lado de Suárez, Vásques, Arriaga e Molina). Está, pois, sem dúvidas, entre os grandes escolásticos e é uma lástima que contemporaneamente seja conhecido apenas por sua teoria monetária e sua concepção de preço justo.
Isto, no entanto, não significa que eu concorde com o núcleo de seu pensamento: sabemos que Lugo rejeitava, p. ex., a distinção real entre essência e ser; sabemos também que, por influência de Suárez e Escoto, não aceitava a mediação do “verbum mentis” e que acolhia certo intuicionismo. São várias as teses do tomismo “dissidente” que são admitidas pelo Card. Lugo e que eu, em virtude do tomismo “caetanista” que adoto, rejeito fortemente. Diga-se o mesmo para Suárez, de suas influências extraídas de Escoto como seu “essencialismo” em metafísica; conquanto ache um exagero a crítica gilsoniana a este aspecto do pensamento suarista (desconheço se o senhor Nougué a acolhe ou se assume uma outra versão).
Quando cito a Suárez, a Lugo, a Ripalda ou a Hurtado, o faço na medida em que estão em conformidade com o que penso ser reto e verdadeiro em St. Tomás, que quero ter, como dizia Molina, antes como patrono do que como inimigo. Neste caso em particular, há o fator de que a concepção suarista e lugoniana de infidelidade encontra antecedentes até mesmo em Caetano!
(4) — Resposta às objeções do senhor Carlos Nougué.
Finalmente chegamos! Para facilitar, reproduzirei os pontos da crítica que considero capitais e em seguida os responderei detidamente:
1. Objeção: “Pois bem, o que o islã diz de Deus não o diz pelas luzes da razão natural, senão que o crê revelado por Deus mesmo. Nunca houve por aquelas terras um Sócrates, um Platão, um Aristóteles que tivessem antecedido essa suposta revelação. É certo que houve dois grandes filósofos muçulmanos: Avicena e Averróis. Mas eles não fazem senão refratar, pelas lentes algo míopes de Alexandre de Afrodísias e, de certo modo, do mesmo neoplatonismo, o dito por Platão e por Aristóteles. Mais que isso, contudo: para eles havia uma como dupla verdade, a revelada e a filosófica, que não necessariamente deveriam conciliar-se entre si, como se Deus, que é autor não só da revelação mas da mesma razão humana, pudesse contradizer-se de qualquer modo. Portanto, o expresso pelo islã quanto a Deus nada tem que ver com a metafísica.”
Resposta: Afirmar que o islã nada diz de Deus pelas luzes da razão natural é errôneo tanto pelo ângulo do testemunho do Alcorão, como dos próprios filósofos árabes. Assim como nas Sagradas Escrituras (v. g., Romanos, 1, 20) há claras menções a possibilidade de um conhecimento natural de Deus, ou seja, sem partir da revelação, também para o Alcorão é possível verificar naturalmente algum conhecimento dEle a partir dos “sinais dados para os sensatos” (C. 3:190; C. 2:164; C. 21:32, etc.): daí que Baydawi, teólogo persa e célebre comentador do Alcorão no século XIII, explicando a C. 21:32, também observe que tais sinais são, de fato, evidências da existência de Deus que descortinam sua unidade, poder e sabedoria.
Antes de comentar a perspectiva dos filósofos muçulmanos, devo sinalizar o que considero ser um erro de interpretação, já contraposto pela bibliografia contemporânea (veja-se, p. ex., o trabalho de Miguel Cruz, “Averroes: vida, obra, pensamiento, influencia”), do senhor Nougué acerca de Averróis: não, ele não defendeu a doutrina da dupla verdade atribuída depois pelos seus seguidores parisienses do século XIII (como Siger de Brabante), segundo o qual poderia haver uma verdade filosófica contrária a uma teológica sobre a mesma matéria, sem que, no entanto, nenhuma das duas tenha que ser falsa. É certo, porém, que subordinou o labor teológico ao filosófico: ao filósofo convém discernir e determinar quais conteúdos da revelação devem ser tratados alegoricamente ou literalmente. Mas este procedimento é justamente para evitar aquilo que denuncia o senhor Nougué: a contradição! Tal acusação contra a filosofia árabe é netamente falsa.
Ainda assim, mesmo concedendo tal interpretação, não se deduz jamais que o islã, enquanto tal, nada tenha a dizer de Deus pelas luzes da razão: por um erro em matéria filosófica não podemos desconsiderar na filosofia árabe, começando pelas escolas de Kalam (Ash’ari, Maturidi, Mu’tazili), passando pelo peripatetismo oriental de um Al-Kindi, de um Al-Farabi, de um Avicena e até de um Averróis, que esta tradição, como um todo, sempre esteve aberta à especulação metafísica do ser e atributos divinos. Por consequência, então o expresso pelo islã quanto a Deus tem a ver sim (!) com a metafísica; e esse expresso, enquanto se relaciona com o conteúdo natural que a razão humana pode alcançar, encontra um corpo predicativo formal com o Deus dos católicos.
Os motivos da formalidade do corpo predicativo veremos agora, no tratamento da próxima objeção.
2. Objeção: “Mas Carlos Alberto, como se pode ler no print abaixo, diz que o Deus do islã e o Deus do cristianismo compartilham “certo corpo predicativo comum”. Ora, como diz S. Tomás na “Suma Teológica”, ou a verdadeira fé é íntegra (isto é, professa todos os artigos da fé), ou não passa de mera opinião (ainda que se negue tão somente um de tais artigos). Mas o islã nega que Deus uno seja também trino, que Cristo seja Deus, etc. Logo, sua fé não pode passar de opinião (a não ser que caiamos no nefando relativismo religioso vaticano-segundo). Sendo assim, o referido “corpo predicativo comum” não passa de mera semelhança ocasional, ou seja, material, não formal. Não dizer isto, contudo, como não o diz Carlos Alberto, é “vender gato por lebre” e contribuir para debilitar a verdadeira fé, ainda que não tenha sido esta a intenção do nosso Carlos”.
Resposta: Agradeço ao senhor Nougué pela boa vontade no final. Jamais quis ser um vendedor de lebre, assim como jamais sugestionei, porque conheço bem a distinção posta por Suárez e Lugo entre crer sem fé teologal e crer com ela, que os muçulmanos reclamem para si alguma espécie de fé infusa quer integral, quer parcial ou qualquer coisa que seja. Não considero, portanto, que se debilite a verdadeira fé.
Rejeito, contudo, que o que alcançam os muçulmanos de Deus “ex virtute intellectuali” é mera opinião: o corpo teórico da vasta filosofia árabe é suficiente para, ao menos, descortinar algumas verdades do ser e atributos de Deus: que é uno, imutável, eterno, todo poderoso, criador e providente de todas as coisas, etc. Com base nisso, finalmente, podemos sinalizar uma coordenada sutil onde a formalidade do Deus católico se entrelaça com o que conhece, pela virtude natural da razão, um muçulmano: a comunidade predicativa do Deus Uno.
Se um muçulmano, não obstante, erra em seu juízo sobre alguma perfeição contida (formal, virtual ou eminentemente) nesta comunidade predicativa; julgando Deus não é livre ou que não é providente, tampouco podemos dizer que não conhece (múltipla e imperfeitamente) o verdadeiro Deus: mesmo rejeitando o formalismo metodológico de Escoto, que aqui é uma opção teórica, na doutrina da identidade/distinção de Suárez e St. Tomás ainda se resguarda a suficiência/constituição nocional de cada nome predicado, até pela razão dos nomes divinos não encontrarem sinonímia (S. Th., Ia parte, q. 13, art. 4), ou seja, a razão formal expressa por um não é idêntica, nem está explicitamente inclusa na do outro.
Desta forma, supondo que um muçulmano julgue que Deus é simples, uno e imutável e logo em seguida afirme que é também uno em pessoas, como nesta vida conhecemos a Ele (que é simples) por múltiplas noções é plenamente possível que, enquanto tal e tal juízo não incluir contradição formal entre si, se possa afirmar, por um lado, algo verdadeiro de Deus e algo falso pelo outro. Enquanto verdadeiro recai formalmente ao corpo predicativo comum sinalizado; enquanto falso recai na formalidade comum da infidelidade ou da ignorância (que pode ser inculpável segundo Lugo). Resguarda-se perfeitamente as duas coisas: “bonum ex integro et malum ex quolibet defectu”, nas palavras de Claude Fleury.
 
 
 
1. Obs.: não acho necessário, frente ao que já apresentei, comentar também a questão do Catecismo Maior de Pio X. Deixarei para outra oportunidade.
2. Obs.: a imagem abaixo ilustra (ou tenta ilustrar) o corpo teórico que acabo de expor.
 
 
5. Em 10 de fevereiro de 2021, o Sr. Carlos Alberto responde à “carta” do Sr. Douglas Bergamo.

Ainda sobre os muçulmanos e uma resposta ao sr. Carlos Nougué.

— Resposta à “carta” de Douglas Bergamo.
Recentemente estive envolvido em uma polêmica com o sr. Carlos Nougué acerca da crença dos muçulmanos no Deus uno e verdadeiro. Eu, crendo estar em concordância com grandes escolásticos, sustive positivamente: que os muçulmanos, de fato, creem sob certo ângulo no mesmo “Ego sum qui sum” que nós, os católicos. 
Há poucos dias, contudo, o sr. Nougué também publicou uma pequena carta de um conhecido seu (não tenho certeza se é um aluno) que busca reformular os seus argumentos, e, assim, “refutar os dois pontos falhos” de minha tese. Pois bem, vejamos se foi exitoso.
O oponente em questão levanta duas objeções:
A primeira versa sobre o fato de que, supostamente, entre o Deus dos cristãos e dos muçulmanos não falta só certa comunidade predicativa (corpo de atributos comuns predicados a Deus enquanto uno), mas também uma ausência de corpo ou comunidade nocional (identidade, como argumenta ele, de conteúdo ou de formalidades). Desta forma, embora os católicos e muçulmanos atribuam a Deus os mesmos nomes absolutos e relativos, não se segue daí, finaliza o nosso objetante, que entendam a mesma coisa mediante tais signos.
A segunda objeção toca num ponto já comentado e suficientemente respondido por mim no artigo anterior: de que ao muçulmano escapa a “crença” em Deus com fé infusa, algo jamais negado pelo que escrevi ou pelos teólogos escolásticos que citei. Sobre semelhante questão, que creio ser um tanto óbvia para quem já perscrutou os limites da “congrua cogitatio” de Vásquez e dos suaristas posteriores, não comentarei por acreditar tê-la respondido de forma considerável no artigo anterior. Tocarei, portanto, na primeira objeção.
Esta objeção que apela à falta de “identidade nocional” entre os nomes divinos é, creio eu, um grande cavalo de troia para própria teologia católica: entre os teólogos escolásticos tampouco há uma plena conformidade entre a identidade nocional de muito nomes divinos (positivos e negativos; entitativos e operativos; incomunicáveis e comunicáveis, etc.), nem por isso dizemos que estão falando de “deuses” diferentes. 
Abundam os exemplos de discrepância: 1. Para Escoto (In Metaph. Aristotelis, Lib. IV, q. II), Andreas (Q. Metaphysicae, q. III) e outros célebres de seu liceu, a razão essencial da unidade divina expressa, sobretudo, um caráter positivo do que negativo ou privativo; em oposição, teólogos como Egídio Romano (Sententiarum I, Dist. XXIV, q. II), Soncinas (Q. Metaphysicales, Lib. IV, q. XXIII), o Flandrense (Metaph. Aristotelis, Lib. IV, q. III, art. VIII), Caetano (In primam partem, q. XI, art. I) e Javello (In Metaph. Aristotelis, Lib. X, q. I), assumem a razão nocional privativa deste nome.
2. Diferente do que ensinam os tomistas, para Escoto e sua escola a infinitude não é, como disse St. Tomás na Suma Teológica (Ia parte, q. VII, art. 1), um atributo negativo do ser divino, é antes um modo intrínseco de tal ser que expressa a constituição formal de sua essência. Acha-se, pois, como um modo intrínseco exclusivo do ser de Deus e primeiro princípio de onde se deduzem os demais atributos; como primeiro princípio, ademais, é formalmente distinto dos atributos restantes e é fundamentalmente o princípio de distinção entre o ser absoluto e as criaturas. 
Aliás, é conveniente lembrar que acerca da polêmica do constitutivo formal da essência divina dissentem os tomistas entre si e também em relação a posição de Escoto: para alguns o constitutivo formal é a imaterialidade absoluta (opinião de Arriaga); para outros é a intelecção atual (opinião de João de St. Tomás e Pedro de Godoy); para outros mais é a intelecção subsistente (opinião de Billuart e Gonet); para Capréolo, Bañez e Daelman, bem como maior parte dos tomistas dos séculos XIX e XX, é a asseidade; para Escoto e Caetano Felice é a infinitude radical. 
São dissonâncias que facilmente escapam ao fôlego, mas continuemos com elas.
3. Quanto a predicação da bondade, que é uma perfeição pura e transcendental, divergem mais uma vez os escolásticos sobre sua razão formal: para Herveo (Quodlibeta, III, q. II) a bondade denota formalmente apenas certa natureza absoluta; para Durando (Sententiarum II, Dist. XXXIV, q. II) a razão formal do bem denota somente uma disposição ou relação de conveniência para com algum apetite, nunca uma natureza absoluta; para o Ferrariense (Contra Gentes, Lib. I, cap. XXXVIII), Francisco Zumel (In primam partem, q. V, art. I) e Bañez (no mesmo lugar) a bondade denota, em primeiro lugar, uma natureza absoluta, porém conota secundariamente uma relação ao apetite, que em Deus seria sua mesma vontade.
4. Sem deixar de comentar os atributos relativos, também divergem os escolásticos sobre a razão formal da divina providência: com efeito, alguns instanciaram a providência nos atos do intelecto (opinião de Gonet, Billuart, Montoya e de vários tomistas); outros preferiram instanciá-la nos atos da vontade (opinião de Escoto, Mastrio, Boyvin e de vários escotistas); outros, finalmente, a instanciaram nos atos de ambos, i. e., da vontade e do intelecto (opinião de Suárez e do pe. Joseph Dalmau).
5. Como “coup de grâce” menciono, para concluir, que Escoto dissente de St. Tomás sobre o constitutivo formal da eternidade e Suárez (Disp. Metaphysicae, Disp. L, I-III) que destoa de ambos sobre a mesma matéria. Outro belo exemplo de diversidade nocional sobre o mesmo nome divino no amplo escopo da teologia católica.
Poderia, sem dúvida, elencar mais exemplos até nausear os ânimos, mas fiquemos por aqui. Levando o que disse o objetante às últimas consequências, somos inevitavelmente conduzidos a assumir que os teólogos católicos multiplicaram os deuses ao infinito: o Deus uno de que falou Escoto e os seus discípulos não seria o mesmo Deus uno comentado por St. Tomás e pelos tomistas; assim também para os demais atributos que concorrem com alguma divergência “nocional” entre os teólogos católicos.
Felizmente a Teologia Natural pode prescindir no seu exercício dos falsos dilemas, tal como o apresentado pelo sr. Douglas: o que não percebe o objetante é que, realmente, pelo fato de haver alguma divergência “nocional” sobre algum nome divino predicado a Deus, não se segue disto que entre cada razão formal concorrente e o nome divino predicado ocorra uma total equivocidade: v. g., o que entendem os escotistas por “ser eterno” difere do que entendem os tomistas através do mesmo signo; contudo, deduzir daí que a razão nocional predicada pelo escotista concorra com absoluta equivocidade em relação à noção tal como entendida pelo tomista é simplesmente falso. Tal incidente seria impedido pelo que os escolásticos denominam de “quid nominis”, que também está ligado, num sentido mais primordial, à “ratio formalis” da noção: logo, quando um tomista e um escotista predicam a unidade para Deus é impossível que não compreendam, num sentido geral, outra coisa que não a razão de que: Ele é uno e não múltiplo. 
Por maior que sejam as dissonâncias formais, elas não podem se estender até o ponto de obliterar todo “quid nominis” do termo predicado: quando um suarista julga, por exemplo, que Deus é bondoso, um adversário não pode entender, sob o mesmo contexto nominal-nocional, alfafa ou pão de queijo. Da mesma forma, poderíamos aplicar este raciocínio ao caso da Teologia Natural árabe: quando um muçulmano julga, no contexto da teologia racional, que Deus é uno, ele não pode, por maior que sejam suas discrepâncias nocionais, entender outra coisa que “é uno e não múltiplo”. É o que permite o intercâmbio entre projetos de teologia(s) naturais e o corpo predicativo comum que mencionei no primeiro artigo.
Consequentemente, creio resguardar as prerrogativas da Teologia Natural e seu amplo escopo de opiniões convergentes e dissonantes. A objeção feita pelo sr. Douglas, creio eu, passa longe de oferecer algum perigo ao artigo que escrevi anteriormente defendendo o corpo predicativo comum entre o catolicismo e o islamismo sobre o mesmo Deus. Apelando à via apagógica, poderíamos reduzir sua objeção como um derrotador da própria teologia católica, o que julgamos como um absurdo.
Por fim, reclama o sr. Douglas de um suposto “voluntarismo” da teologia árabe, sem desconfiar, ao que parece, que também existem apreciações voluntaristas de Deus na teologia católica: não é necessário recordar que um Escoto ou um Áquila assinalam por uma tríplice via (entitativa, operativa e objetual) que a vontade, em sentido absoluto, concorre com maior primazia até mesmo nos atos divinos, correto?
— Resposta ao sr. Carlos Nougué.
Serei curto e direto: o sr. Nougué, à vista de uma resposta que dei em uma plataforma de perguntas, me questionou publicamente se sou mais estudado que ele ou que o pe. Calderón. Antes de tudo, gostaria de esclarecer que a pergunta feita (na plataforma de perguntas) foi claramente provocativa: supõe, obviamente, alguma contradição entre ser estudado e, por outro lado, defender o CVII. A resposta que dei foi igualmente provocativa e não implica que não existam tradicionalistas sérios (apesar de, creio eu, ainda errados) que rejeitam o Concílio.
Como não tenho o condão de esquadrinhar intelectos, não posso responder com precisão o que perguntou o sr. Nougué. Respondo, contudo, que sou tão preparado quanto e assim encerro minha (curta) resposta.
 

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