Domingo, Dezembro 22, 2024

De tuis donis ac datis

The Canon of the Mass and liturgical reform, 1967 – Cipriano Vaggagini

Capítulo 5: A documentação dos projetos B e C conforme a Escritura, os Padres e a Liturgia

Tradução: Gustavo Lopes

47. De tuis donis ac datis. Esta ideia é de origem bíblica: “tudo vem de ti, e o que temos te dado é o que já recebemos das tuas mãos” (1 Cr 29,14). Nas anáforas gregas, a fórmula ta se ektônsôn é frequentemente encontrada neste ponto da anamnese, por exemplo, as anáforas bizantinas de São Basílio e de São João Crisóstomo; as anáforas gregas e coptas alexandrinas de São Basílio; e a anáfora grega de São Marcos, preservada para nós na anáfora copta de São Cirilo.

O significado da fórmula é este. O pão e o vinho são tomados como um símbolo e, por assim dizer, uma amostra de tudo o que o criador nos deu, e que agora estamos oferecendo espontaneamente de volta a ele em reconhecimento grato de sua bondade e de seu domínio soberano.

Com o uso desta fórmula, portanto, estamos agregando à teologia do sacrifício toda a ideia do valor cósmico da Eucaristia, tema magnificamente desenvolvido por Santo Irineu no decorrer de sua polêmica contra os gnósticos. Os seguintes textos dos escritos de Santo Irineu implicam toda uma teologia sobre a oferta de dons, uma teologia que já contém as sementes daqueles grandes temas que as diferentes liturgias, especialmente a romana, viriam a desenvolver:

“Ele deu instruções a seus discípulos para oferecerem a Deus as primícias de suas próprias coisas criadas—não como se pensasse que ele precisava delas, mas para que não fossem estéreis ou ingratos. Assim, ele tomou o pão, que vem da criação, e deu graças dizendo: ‘Isto é o meu corpo.’ O copo de vinho, também, que vem da criação a que pertencemos, ele declarou ser o seu sangue; e ele ensinou que esta era a nova oferta da nova aliança. É esta oferta que a Igreja recebeu dos apóstolos e que agora oferece em todo o mundo a Deus—a Ele, que nos dá o nosso próprio alimento como primícias dos dons que nos faz sob a nova aliança.

“Tudo isso foi predito por Malaquias, um dos Doze Profetas, nestes termos: ‘Não tenho prazer em vocês, diz o Senhor Todo-Poderoso, e não aceitarei sacrifícios de suas mãos. Mas desde o nascer do sol até o seu lugar, o meu nome é glorificado entre as nações, e em todo lugar incenso e puro sacrifício são oferecidos a muitos nomes; porque o meu nome é grande entre as nações, diz o Senhor, o Todo-Poderoso.’ Isso obviamente significava que o antigo povo deixaria de fazer ofertas a Deus, e que em vez disso um sacrifício puro seria oferecido a ele em todos os lugares, e seu nome seria glorificado entre as nações.” (Adv. Haer., IV, 17, n.5; SC, 100, 590 ff.)

“Visto que a Igreja faz a sua oferta com sinceridade, o seu dom é devidamente considerado como puro sacrifício perante Deus… Pois é justo que apresentemos uma oferta a Deus, e sempre testemunhemos a nossa gratidão ao nosso criador, por  oferecendo-lhe as primícias da sua criação, com uma esperança firme e com uma caridade ardente. E só a Igreja oferece esta oblação pura ao criador, oferecendo-lhe com ações de graças as coisas tiradas de sua própria criação… Mas como podem eles (os hereges gnósticos) possivelmente afirmar que o pão eucarístico é o corpo de seu Senhor, e o cálice seu sangue, se ao mesmo tempo eles negam que ele é o Filho do criador do mundo, que é sua Palavra—por meio de quem as árvores dão frutos, nascentes fluem, e por meio de quem ‘a terra dá primeiro a planta, depois a espiga e depois o grão cheio na espiga’?

“Novamente, como eles podem dizer que nossa carne se corrompe e não ganha vida, quando é nutrida pelo corpo e sangue do Senhor? Portanto, que eles mudem sua maneira de pensar ou se abstenham de oferecer essas coisas. Quanto ao nosso modo de pensar—está de acordo com a natureza da Eucaristia e, por sua vez, é confirmado pela Eucaristia. Pois na Eucaristia oferecemos a Deus o que é seu, proclamando congruentemente a comunhão e a unidade entre a carne e o Espírito. Pois assim como o pão, produzido da terra, não é mais pão comum depois de ter recebido a invocação de Deus, mas é a Eucaristia—composta de duas realidades, uma terrestre e outra celestial; da mesma forma, nossos corpos não são mais corruptíveis depois de terem recebido a Eucaristia, mas agora possuem a esperança da ressurreição.

“De fato, oferecemos a Deus, não como se pensasse que ele precisava de alguma coisa, mas para dar-lhe graças pelos seus dons e assim santificar toda a criação. Pois embora Deus não precise de nada de nós, ainda assim precisamos oferecer algo a Deus. Pois embora ele não precise de nada, ele aceita nossas boas obras—e com um propósito: para ser capaz de nos dar em troca o seu próprio bem… Portanto, embora ele não precise dessas coisas, ele as pede de nós, e para nosso próprio bem—para que não sejamos infrutíferos. Por isso a própria Palavra mandava ao povo fazer ofertas: ele mesmo não precisava delas, mas era para que assim aprendessem a servir a Deus. Da mesma forma, portanto, ele deseja que ofereçamos nossos dons no altar regularmente e com frequência.

“Há então um altar no céu, para o qual nossas orações e ofertas são dirigidas; e também há um templo lá, como João diz que sou o Apocalipse: ‘O templo de Deus foi aberto’, bem como um tabernáculo: ‘Eis, ele diz, o tabernáculo de Deus com os homens’ ” (Adv. Haer., IV, 18, nn. 4-6; SC, 100, 606 ff.) (PG, 7, 1023-4; 1029 ff.)

Como já tivemos ocasião de observar (acima, p. 87), encontramos esta maneira particular de considerar a oferta das oblações bastante marcada no atual Canon Romano. Também está intimamente ligado, na liturgia romana, ao tema do “commercium”, ou troca. Na celebração eucarística, com a apresentação das nossas ofertas, estamos a oferecer a Deus algo que de facto vem de Deus, mas que Ele nos deu como nosso. Em uma espécie de troca sagrada, Deus aceita nossa oferta, e então a devolve para nós, de uma forma infinitamente mais preciosa, porque agora ela foi transformada no corpo e sangue de Cristo—e ao receber isso, somos preenchidos com toda bênção celestial. Para a aplicação eucarística deste tema da troca cf. o Sacramentário Leonino, nn. 88, 228, 433, 551, 560, 908; e o Sacramentário Gelasiano, nn. 165, 251.

[“Nós Vos rogamos, Senhor, que multipliqueis para nós os dons desta festividade sagrada, e enquanto renovamos os desejos de nossa salvação, também sejamos ajudados pela intercessão daqueles que Vos são agradáveis: por…” (n. 88); “Nós vos ofertamos, Senhor, os dons que nos destes para consagrarmos ao Vosso Nome, suplicando ardentemente que, do mesmo modo que no-los tornais sacramento, assim nos concedais que se tornem remédio sempiterno: por”. (228); “Santificai, nós Vos rogamos, Senhor, aquilo que dos frutos da terra mandastes consagrar ao Vosso Nome, de modo que torneis agradável a Vós mesmo nosso serviço e estabeleçais para nós o sacramento da nossa eterna salvação: por”. (443); “Ó Deus, que, não necessitando de dádiva alguma, nos dispensais todas as dádivas: recebei, propício, o que, daquilo que nos destes, quisestes que Vos oferecêssemos, não atribuindo apenas à nossa devoção aquilo que é Vosso, mas também, por meio destas ofertas, conduzindo-nos ao Reino dos Céus: por”. (551); “Nós Vos ofertamos, Senhor, os dons que nos destes, para que o auxílio das Vossas criaturas seja testemunha da nossa mortalidade, mas também obrem elas em nós o remédio da imortalidade: por”. (560); “Ó Deus, que fazeis crescer tanto o pão e o vinho destas oferendas aqui presentes como alimento do gênero humano e também os renovais como sacramento: concedei-nos, nós Vos rogamos, que seu efeito revigorante em nossos corpos também não falte às nossos almas: por”. (n. 908); “Fique satisfeito, ó Senhor, em receber os dons que misericordiosamente concedeste à tua Igreja para que ela possa oferecer e que poderás transformar no sacramento da nossa salvação. Por meio de Cristo”. (165) “Nós oferecemos a você, ó Senhor, estes dons que você mesmo concedeu; que eles atestem seu cuidado como Criador desta nossa vida mortal, e efetuem em nós a cura que nos traz a imortalidade. Por. (251) Tradutor Caio Lopes]

No contexto do nosso projeto, o de tuis donis ac datis aplica-se não só aos bens materiais, como na perspectiva cósmica de Irineu, mas também ao próprio Cristo, na medida em que é o maior dos dona ac data nos dado por Deus. O autor armênio do século XII, Nerses Lampron, estava assim perfeitamente justificado quando, ao comentar a fórmula do ofertório tua ex tuis offerimus per omnia et pro omnibus, escreveu: “Então o sacerdote acrescenta: Este dom que te ofereço, Senhor, como  embora fosse um homem tirado dentre nós e da nossa própria natureza, este dom é o seu Filho, a quem você deu à luz de forma inexprimível. E embora nós, seus servos, o consideremos um de nós, também confessamos que ele é Deus e igual a você. E agora o oferecemos de novo a ti, este Filho que nos deste, como oblação por todos e como dom de reconciliação” (citado por S. Salaville, sob “Epiclèse” em Dict. De Théol. Cath., VI, 1 (1913), 255, que se refere a Avechian, Sulle Correzioni dei Libri Ecclesiastici Armeni, Veneza, 1868, 343).

 

 

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