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A Missa Nova é flexível ao retratar o inferno?

A Missa Nova é flexível ao retratar o inferno?

 

Pe. Brian Harrison O.S.  01/05/2006

Tradução: Gustavo Lopes

 

Estou longe de ser um entusiasta acrítico de todas as mudanças litúrgicas específicas introduzidas após o Vaticano II, mas uma melhoria definitiva é a maior variedade de leituras das Escrituras agora proclamadas na Missa. Entre alguns de nossos irmãos, entretanto, o novo lecionário recebeu uma recepção bem fria. Recentemente eu li uma crítica afirmando que o novo lecionário exclui muitas das severas leituras bíblicas sobre a ira de Deus, o Juízo Final, o inferno, ou pelo menos que relega essas leituras às missas durante a semana para que pelo menos 90 por cento dos católicos praticantes — que vão à Missa uma vez por semana — nunca ouçam essas leituras proclamadas na igreja.

É uma alegação séria e, portanto, digna de investigação. Visto que as leituras do Evangelho são os textos liturgicamente mais proeminentes e mais frequentemente pregados na missa, vou me concentrar aqui nas leituras de Mateus, Marcos e Lucas.

Separando as ovelhas e cabras

Se nos concentrarmos nas advertências mais extensas e explícitas dos Evangelhos sobre o inferno, a passagem mais importante é a parábola do Juízo Final em Mateus 25, 31- 46. Inspirou algumas das realizações poéticas, artísticas e musicais mais importantes da cristandade, incluindo o grande afresco de Michelangelo que adorna a Capela Sistina, o Inferno de Dante, o canto Dies Irae e outras obras-primas. Nada nos Evangelhos supera esta representação extremamente dramática e apocalíptica do dia do Juízo Final:

Quando o Filho do Homem voltar na sua glória e todos os anjos com ele, sentar-se-á no seu trono glorioso. Todas as nações se reunirão diante dele e ele separará uns dos outros, como o pastor separa as ovelhas dos cabritos. Colocará as ovelhas à sua direita e os cabritos à sua esquerda…

Voltar-se-á em seguida para os da sua esquerda e lhes dirá: – Retirai-vos de mim, malditos! Ide para o fogo eterno destinado ao demônio e aos seus anjos. Porque tive fome e não me destes de comer; tive sede e não me destes de beber; era peregrino e não me acolhestes; nu e não me vestistes; enfermo e na prisão e não me visitastes. Também estes lhe perguntarão: – Senhor, quando foi que te vimos com fome, com sede, peregrino, nu, enfermo, ou na prisão e não te socorremos? E ele responderá: – Em verdade eu vos declaro: todas as vezes que deixastes de fazer isso a um destes pequeninos, foi a mim que o deixastes de fazer. E estes irão para o castigo eterno, e os justos, para a vida eterna. (Mt 25,31-33.41-46)

Na Missa Nova, esse leitura é prescrita para um dos domingos mais importantes do ano: a Solenidade de Cristo Rei, no ano A. Também é lido todos os anos na primeira terça-feira da Quaresma e é dada como opção no Comum dos Santos e das Santas, e nas Missas pelos defuntos. Mas esta grande parábola do julgamento universal no fim dos tempos nunca aparece na celebração da Missa Tridentina — nunca em um domingo ou em qualquer outro dia.

O aviso mais detalhado e angustiante de nosso Senhor sobre o julgamento particular que cada um de nós enfrentaremos imediatamente após a morte é encontrado na parábola do rico e Lázaro:

Ora, aconteceu morrer o mendigo e ser levado pelos anjos ao seio de Abraão. Morreu também o rico e foi sepultado. E estando ele nos tormentos do inferno, levantou os olhos e viu, ao longe, Abraão e Lázaro no seu seio.

Gritou, então: – Pai Abraão, compadece-te de mim e manda Lázaro que molhe em água a ponta de seu dedo, a fim de me refrescar a língua, pois sou cruelmente atormentado nestas chamas.

Abraão, porém, replicou: – Filho, lembra-te de que recebeste teus bens em vida, mas Lázaro, males; por isso ele agora aqui é consolado, mas tu estás em tormento. Além de tudo, há entre nós e vós um grande abismo, de maneira que, os que querem passar daqui para vós, não o podem, nem os de lá passar para cá.

O rico disse: – Rogo-te então, pai, que mandes Lázaro à casa de meu pai, pois tenho cinco irmãos, para lhes testemunhar, que não aconteça virem também eles parar neste lugar de tormentos.

Abraão respondeu: – Eles lá têm Moisés e os profetas; ouçam-nos!

O rico replicou: – Não, pai Abraão; mas se for a eles algum dos mortos, arrepender-se-ão. Abraão respondeu-lhe: – Se não ouvirem a Moisés e aos profetas, tampouco se deixarão convencer, ainda que ressuscite algum dos mortos. (Lc 16, 22-31)

No novo lecionário, essa parábola é a leitura do Evangelho para o 26° Domingo do Tempo Comum, Ano C, e também é lido anualmente na quinta-feira da 2° Semana da Quaresma. Também nunca aparece na celebração da Missa Tridentina, no domingo ou em um dia de semana.

Uma das advertências mais extensas e gráficas sobre o inferno é encontrada no Evangelho de Marcos. Combina passagens paralelas em Mateus (5, 29-30 e 18, 6-9), mas adiciona a elas:

Mas todo o que fizer cair no pecado a um destes pequeninos que crêem em mim, melhor lhe fora que uma pedra de moinho lhe fosse posta ao pescoço e o lançassem ao mar! Se a tua mão for para ti ocasião de queda, corta-a; melhor te é entrares na vida aleijado do que, tendo duas mãos, ires para a geena, para o fogo inextinguível onde o seu verme não morre e o fogo não se apaga. Se o teu pé for para ti ocasião de queda, corta-o fora; melhor te é entrares coxo na vida eterna do que, tendo dois pés, seres lançado à geena do fogo inextinguível onde o seu verme não morre e o fogo não se apaga]. Se o teu olho for para ti ocasião de queda, arranca-o; melhor te é entrares com um olho de menos no Reino de Deus do que, tendo dois olhos, seres lançado à geena do fogo, onde o seu verme não morre e o fogo não se apaga. (Mc 9, 42-48)

Encontramos essa passagem no novo lecionário para o 26° Domingo do Tempo Comum, Ano B, como parte de uma passagem mais longa (Mc 9, 38-43; 45; 47-48) que começa com a abertura de Jesus aos discípulos independentes que não estavam entre os Doze escolhidos. Os versículos 40-49 são lidos todos os anos na quinta-feira da 7° Semana do Tempo Comum.

Mais uma vez, essa leitura nunca ocorre nas leituras dominicais anuais da Missa Tridentina. A passagem paralela de Mateus ocorre uma vez a cada sete anos, quando a festa de São Miguel Arcanjo cai em um domingo. A passagem completa de 29 de setembro no antigo rito (repetida na Festa dos Anjos da Guarda em 2 de outubro) é Mateus 18, 1-10. Esses versículos parecem ter sido escolhidos especialmente com os protetores angélicos das crianças em mente, porque eles começam com o louvor de Nosso Senhor pela simplicidade desses “pequeninos” e terminam com sua revelação de que “no céu seus anjos sempre contemplam a face de meu Pai que está no céu ”:

Mas, se alguém fizer cair em pecado um destes pequenos que crêem em mim, melhor fora que lhe atassem ao pescoço a mó de um moinho e o lançassem no fundo do mar. Ai do mundo por causa dos escândalos! Eles são inevitáveis, mas ai do homem que os causa! Por isso, se tua mão ou teu pé te fazem cair em pecado, corta-os e lança-os longe de ti: é melhor para ti entrares na vida coxo ou manco que, tendo dois pés e duas mãos, seres lançado no fogo eterno. Se teu olho te leva ao pecado, arranca-o e lança-o longe de ti: é melhor para ti entrares na vida cego de um olho que seres jogado com teus dois olhos no fogo da geena. (Mt 18, 6-9)

Esta é a única grande advertência do Evangelho sobre o julgamento e a condenação que aparece nas leituras do rito tridentino — e nos dias em que aparece, as orações na missa são mais propensas a enfatizar a doutrina da Igreja sobre os santos anjos.

Não fizemos milagres em seu nome?

O novo lecionário de fato apresenta uma das “grandes armas” de nosso Senhor sobre o fogo eterno do inferno em uma missa dominical em cada ano do ciclo de três anos, quando Mateus, Marcos e Lucas são usados ​​para as leituras do Evangelho no Tempo Comum. Mas duas passagens se destacam das outras por causa de sua extensão e severidade explícita. Uma é Mateus 7, 21-27, a respeito da casa construída sobre a areia — a perdição daqueles que escutam as palavras de Jesus mas as ignoram. Esses versículos são precedidos por outros que explicitamente refutam o sofisma moderno de que, embora o inferno sem dúvida exista, esperamos que ninguém realmente vá para lá. O Senhor não apenas afirma que “muitos” serão excluídos do Reino dos Céus, mas Ele também faz a terrível admoestação de que entre aqueles “muitos”, haverá almas presunçosas que se consideravam bons cristãos e esperavam plenamente a glória eterna:

Nem todo aquele que me diz: Senhor, Senhor, entrará no Reino dos céus, mas sim aquele que faz a vontade de meu Pai que está nos céus. Muitos me dirão naquele dia: Senhor, Senhor, não pregamos nós em vosso nome, e não foi em vosso nome que expulsamos os demônios e fizemos muitos milagres?

E, no entanto, eu lhes direi: Nunca vos conheci. Retirai-vos de mim, operários maus!…

Mas aquele que ouve as minhas palavras e não as põe em prática é semelhante a um homem insensato, que construiu sua casa na areia. Caiu a chuva, vieram as enchentes, sopraram os ventos e investiram contra aquela casa; ela caiu e grande foi a sua ruína. (Mt 7, 21-23.26-27)

Esse é o Evangelho para o 9° Domingo do Tempo Comum, Ano A, e também ocorre todos os anos na quinta-feira da 12° Semana. No antigo Missal, o Evangelho do 7° Domingo depois de Pentecostes inclui apenas o primeiro versículo citado acima. Ele vem como o último versículo da passagem prescrita, Mateus 7, 15-21 (esta passagem precisa não ocorre no novo lecionário, mas os versículos 15-20 são prescritos para a quarta-feira da 12° Semana do Tempo Comum), que é sobre conhecer as árvores por seus frutos, mas também inclui uma breve e simbólica alusão ao fogo do inferno:

Toda árvore que não der bons frutos será cortada e lançada ao fogo. Pelos seus frutos os conhecereis. Nem todo aquele que me diz: Senhor, Senhor, entrará no Reino dos céus, mas sim aquele que faz a vontade de meu Pai que está nos céus. (Mt 7, 19-21)

A última grande passagem do Evangelho advertindo sobre o julgamento e a exclusão eterna do Reino contém a explícita advertência de Jesus de que “muitos” não poderão entrar pela “porta estreita” que admite os justos à vida eterna:

Alguém lhe perguntou: Senhor, são poucos os homens que se salvam? Ele respondeu: Procurai entrar pela porta estreita; porque, digo-vos, muitos procurarão entrar e não o conseguirão. Quando o pai de família tiver entrado e fechado a porta, e vós, de fora, começardes a bater à porta, dizendo: Senhor, Senhor, abre-nos, ele responderá: Digo-vos que não sei de onde sois. Direis então: Comemos e bebemos contigo e tu ensinaste em nossas praças. Ele, porém, vos dirá: Não sei de onde sois; apartai-vos de mim todos vós que sois malfeitores. Ali haverá choro e ranger de dentes, quando virdes Abraão, Isaac, Jacó e todos os profetas no Reino de Deus, e vós serdes lançados para fora. Virão do oriente e do ocidente, do norte e do sul, e sentar-se-ão à mesa no Reino de Deus. Há últimos que serão os primeiros, e há primeiros que serão os últimos. (Lc 13, 23-30)

O novo lecionário destaca esta passagem de Mateus ao prescrevê-la para uma Missa Dominical, a 21° do Tempo Comum, do ano C. Também é designada todos os anos para a quarta-feira da 30° semana. Mas esta passagem está completamente ausente no antigo Missal.

Proclamado em Horário Nobre

Longe de omitir ou suavizar as duras palavras de Nosso Senhor sobre as últimas coisas, o novo lecionário programa todos os principais textos do Evangelho sobre julgamento e a condenação para o “horário nobre”: dois domingos no Ano A, um no Ano B e dois no Ano C. Todos os cinco também ocorrem anualmente nas missas durante a semana, de modo que os que vão às Missa diariamente ouçam severas advertências apocalípticas proclamadas em não menos que vinte dias ao longo de três anos. O contraste com as passagens do Evangelho escolhidas para o antigo rito romano dificilmente poderia ser maior. Com exceção de Mateus 18, 6-9, nenhuma dessas passagens-chave aparece em qualquer lugar no Missal/Lecionário pré-conciliar, e essa exceção ocorre na Missa dominical apenas uma vez a cada sete anos.

Talvez os católicos que frequentavam o antigo rito tenham ouvido — e ainda ouçam — muito mais sobre pecado, julgamento, ira e inferno porque muitos padres evitam esses tópicos e preferem homilias suaves e politicamente corretas, qualquer que seja a leitura do dia. A nova geração de padres mais jovens ordenados nos dois últimos pontificados são geralmente muito mais ortodoxos do que seus antecessores dos anos 60 e 70 e, consequentemente, essa tendência está mudando gradualmente. Mas qualquer viés homilético na Missa Nova é culpa dos “novos” padres e programas de seminário, não do novo rito da Missa de Paulo VI. Na verdade, é a Missa tradicional, não o Novus Ordo, que acaba sendo branda ao retratar o inferno.

 

 

 
 

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