A suspensão do Concílio o impediu de terminar a formulação da doutrina católica sobre a Igreja, ainda que tal formulação tenha sido em grande parte preparada. É por isso que se limitou à publicação da Constituição Pastor aeternus sobre as prerrogativas do Pontífice romano, a outra parte sendo deixada para tempos melhores.
Desde então, a teologia sobre a Igreja fez progressos importantes, e a Constituição Lumen gentium representa, para esses estudos e suas conclusões, uma atualização qualificada. Já a encíclica Mystici Corporis, de 29 de junho de 1943, ilustrando a estrutura da Igreja com a imagem bíblica do “Corpo místico”, tinha apresentado uma síntese doutrinal extremamente rica. A atual Constituição recolhe essa herança e a completa com todos os outros elementos dos quais se serve a Revelação para prefigurar ou apresentar o mistério da Igreja. É assim que a primeira característica do exposto do Concílio sobre a Igreja, é sua inspiração bíblica. Está aí o resultado de vastas e profundas pesquisas positivas que, ao curso dos últimos cinquenta anos, foram o fermento de nossa teologia.
Tudo isso conduziu a destacar um outro aspecto muito importante da eclesiologia: a história da Salvação. A Revelação apresenta, com efeito, o mistério da Igreja exclusivamente na perspectiva de Redenção. Ela apenas continua os eventos das origens que nos conduziram e nos conduzem ainda à salvação. É nessa luz bíblica e nessa perspectiva histórica que deve ser compreendido o esplêndido capítulo II da Constituição, que constitui igualmente a cabeça de toda sua primeira parte. A Igreja é o povo de Deus, esse povo reunido pelo Messias de todos os lugares da Terra, vivificado pelo Espírito na unidade e que está em marcha para retornar à Casa definitiva do Pai.
É nessa mesma perspectiva que deve ser compreendido o caráter sacramental da Igreja. É a primeira vez que essa expressão é empregada em um documento do magistério solene, mas ela já era familiar a muitos teólogos. A Igreja se realiza e vive seus momentos primeiros por meio de sacramentos. É por isso que ela é o sacramento fundamental de nossa Salvação, ou seja, o símbolo que transmite à comunidade humana a palavra salvadora de Deus. E mesmo, em certo sentido, a Igreja é, ela mesma, essa palavra, diversamente formulada no tempo e no espaço, segundo as diversas exigências da humanidade. Essa dimensão profunda do mistério da Igreja não coincide perfeitamente com sua estrutura jurídica, mas ela tem sua fonte primária no poder operante do Espírito. Onde está o Espírito de Deus que opera a unidade, lá está a Igreja que surge e toma vida. As estruturas jurídicas, mesmo de origem divina, existem somente em função dessa vitalidade essencial da Igreja, que é a salvação em ato. Tais são as considerações que conduziram o Concílio a ressaltar a função do episcopado e da hierarquia como um serviço oferecido à comunidade dos homens.
É próprio da hierarquia difundir e nutrir a vida dos filhos de Deus pela administração dos sacramentos e pregação da Palavra, sob a condução do Pastor eterno, e de seu Vigário, o Bispo de Roma.
Como sucessores do Colégio Apostólico, os bispos têm o encargo de governar a Igreja universal, em uma unidade profunda de disciplina, de fé e de caridade com seu chefe, o sucessor de Pedro.
É igualmente nessa luz que deve ser considerada a natureza dos leigos. Eles não constituem uma parte passiva e acidental da Igreja, mas são um aspecto essencial de sua vida e de sua missão. A inserção da força de salvação em todas as dimensões da criação e da história não pode se efetuar sem a presença ativa dos leigos. Onde ela faltar, a Igreja não pode cumprir sua missão em toda sua plenitude.
Essa concepção da Igreja como presença visível do Espírito, e não somente como sociedade estruturada, deu ocasião de exaltar a função de Maria, Mãe da Igreja. Esse título não foi empregado na Constituição, mesmo que esta lembre diversos outros títulos, como o de Mediadora. Mas os Padres do Concílio, e todos os que assistiram à sessão de encerramento da terceira sessão, expressaram seu consentimento por uma calorosa ovação ao Santo Padre quando ele solenemente atribuiu a Maria o título de “Mãe da Igreja”. Essa aprovação entusiástica, sob as abóbadas da basílica vaticana, apresentava-se como o eco da alegria do povo cristão que, em Éfeso, em 431, levou os padres em triunfo após a proclamação de Maria, Mãe de Deus.
Nesse momento, e paralelamente ao fechamento de todos os trabalhos do Concílio, enquanto o Papa e o representante do patriarca Athenagoras se davam o beijo da paz, que simbolizava o fim de uma dolorosa incompreensão, os assistentes tiveram a impressão de ouvir todas as vozes da longa história da Igreja. Nunca antes se teve tanta certeza de que a Igreja, pela ação do Espírito, é uma comunhão de fé, uma comunhão de vida, e sobretudo uma comunhão de amor.
Cardeal ALFREDO OTTAVIANI
PARA CITAR
OTTAVIANI, Cardeal Alfredo. Commentaire de S. Em. le cardinal Ottaviani sur le "De Ecclesia". La Documenta Catholica, ano 1966, pp. 709-711. Disponível em <http://www.apologistascatolicos.com.br/index.php/concilio-vaticano-ii/eclesiologia/925-comentario-do-cardeal-ottaviani-sobre-de-ecclesia-lumen-gentium> Desde 13/11/2016. Tradutora: Milena Popovic (L'école – Curso de Francês).