Domingo, Dezembro 22, 2024

Algumas observações sobre a « Tradição viva »

 

O padre Bernard Lucien acaba de publicar o segundo volume da sua “Théologie Sacrée pour débutants et initiés” intituladoRévelation et Tradition.Les lieux médiateurs de la Révélation divine publique, du dépôt de la foi au Magistère vivant de l’Eglise[1].

Depois de ter exposto, numa primeira parte a natureza da Revelação divina como Palavra de Deus aos homens, e depois de ter posto à luz o caráter concluído desta Revelação (“Da Revelação divina ao depósito da fé”), ele expõe numa segunda parte a concepção católica da “Tradição, fonte da Revelação”. Um curto capitulo, que conclui esta parte, apresenta “Algumas observações sobre a “Tradição viva”. Agradecemos o autor por nos ter autorizado a reproduzir estas páginas que respondem as objeções muitas vezes levantadas. Esperamos que elas incitem o leitor a mergulhar nesta síntese magistral, resultado de todos os estudos do autor sobre a Tradição e o magistério[2].

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Segundo uma informação da revista Catholica[3], o padre Gilbert Narcisse, o. p., teria comentado, durante um recente colóquio sobre a interpretação de Vaticano II, contra a utilização da noção de «Tradição viva», em razão das suas ambiguidades. A partir do seu emprego por Johann Adam Möhler[4], célebre da escola de Tubingue, no segundo quarto do século XIX, esta expressão serviu com efeito, mais de uma vez, para veicular ideias muito contestáveis.

 

DOIS ERROS DE INTERPRETAÇÃO


Dois erros tentaram introduzir-se nos auspícios deste vocábulo. A primeira é a redução da Tradição ao magistério atual. Segundo Mons. Parente esse era, por exemplo, um dos erros presentes em Essai sur le problème théologique (1938) do padre Charlier, o. p. e em Une école de théologie, le Saulchoir (1936) do padre Chenu, o. p., ambos condenados pelo decreto do Santo Oficio: “Deve-se lamentar […] a estranha identificação da Tradição (fonte da revelação) com o magistério vivo da Igreja (guardiã e intérprete da divina palavra)”[5]. Esta «estranha identificação» tinha um precedente célebre nas palavras atribuídas a Pio IX: “A tradição, sou eu”[6].

    O outro erro mais ou menos nitidamente veiculado por alguns com o emprego desta expressão é uma negação da conclusão da revelação com a morte do último apóstolo. Este segundo erro, evidentemente, ausente na frase infeliz do bem-aventurado Pio IX, não era talvez estranho às teses dos padres Charlier e Chenu. Com efeito, o erro, nem sempre se afirma explicitamente. Antes, insinua-se, por uma sorte de atenuação crescente da distinção entre o aumento  objetivo do depósito da fé pelas novas revelações, e o crescimento subjetivo da compreensão do depósito pelo desenvolvimento homogêneo do revelado, mas sem nova revelação[7]. É este segundo erro que, muitas vezes na esteira do prolongamento do relativismo e do historicismo modernista, é evidentemente o mais virulento hoje. É, portanto, perfeitamente legítimo estar em guarda contra ele.

    Contudo, a expressão “Tradição viva” entrou na linguagem teológica corrente há muitas décadas, e encontra-se mesmo nos textos oficiais. É necessário, portanto, examinar em que medida se pode falar realmente de “Tradição viva”. Tem-se então a determinar, tão logo que se depare com esta expressão num texto, se o autor a emprega num sentido legítimo ou com uma conotação errônea.

 

TRÊS INTERPRETAÇÕES LEGÍTIMAS


Não é difícil ver que esta expressão é legitima segundo os três aspectos essenciais inerentes à Tradição divina: do ponto de vista do objeto, do ponto de vista do ato, do ponto de vista da causa transcendente.

            1°) Do ponto de vista do objeto, a Tradição é divina e viva porque o depósito revelado é transmitido explicitando-se. Aqui, a expressão não designa, portanto, nada mais que o fato do desenvolvimento homogêneo do dogma ao longo dos séculos. A expressão é, portanto, legítima. Mas é necessário precisar (se o empregamos neste primeiro sentido), em consideração às circunstâncias e aos erros do tempo presente, que este crescimento vital se produz no seio de uma permanência essencial: “no mesmo sentido, na mesma doutrina”. Este desenvolvimento não é um transformismo nem um evolucionismo.

          2°) Do ponto de vista do ato, a Tradição é dita viva porque esta transmissão opera-se primordialmente pelos atos humanos. Como o vimos, trata-se da pregação da Igreja (quer dizer, do ensino do magistério, segundo suas diversas modalidades) e da fé subordinada dos fiéis, que a testemunham de múltiplas maneiras.           

    Notemos bem a dupla referência pelo que concerne a Tradição como ato, quer dizer como transmissão. O ato é: tanto o ensinamento magisterial, e nesse caso o sujeito deste ato é o magistério vivo, as pessoas que na Igreja possuem, direito divino, o poder magisterial (em poucas palavras: o papa e os bispos em plena comunhão com ele); quanto o ato de fé, interior e exterior (adesão e testemunho). Desse modo o sujeito deste ato é cada fiel católico, em plena comunhão com a hierarquia legitima e os outros fiéis.

    Explicitando mais claramente: do mesmo modo que, do lado magisterial, só se pode falar de maneira plena de ato de transmissão do depósito quando o magistério se exerce infalivelmente (o que acontece de maneira ordinária ao nível do magistério universal); do mesmo modo, do lado dos fiéis, só se pode falar de maneira plena de ato de transmissão do depósito revelado quando estes, atualmente subordinados ao magistério, testemunham de maneira (moralmente) unânime uma verdade revelada (ou conexa).           

    Este duplo componente do ato de transmissão do depósito revelado foi apresentado por Pio XII na bula da definição da Assunção, Munificentissimus Deus: 

Aqueles que foram estabelecidos bispos pelo Espirito Santo para governar a Igreja de Deus deram à uma e à outra questão uma resposta quase unanimamente afirmativa. Este acordo notável dos bispos e dos fiéis católicos que estimam que a Assunção corporal da Mãe de Deus ao céu pode ser definida como um dogma de fé, mostra-nos a doutrina concorde do magistério ordinário da Igreja, e a fé igualmente concorde do povo cristão – que aquele magistério sustenta e dirige – e manifesta portanto, por ele mesmo, e de uma maneira certa e isenta de todo erro, que este privilégio é uma verdade revelada por Deus e contida no depósito divino, confiado por Cristo à sua Esposa, para que o guarde fielmente e o faça conhecer de uma maneira infalível[8].

    Além do testemunho solene em favor das duas vias hierarquizadas, da Tradição-transmissão, este texto muito rico, falando de certeza absoluta e de isenção de todo erro, nos faz abordar o terceiro aspeto segundo o qual se pode falar legitimamente de “Tradição viva”.

            3°) Consideremos o ponto de vista da causa transcendente da Tradição divina. Aqui, e em primeiro lugar, a Tradição merece ser dita viva porque, de maneira contínua e permanente, sempre atual, Cristo exerce a sua função capital na Igreja por uma assistência proporcionada às diversas realidades que compõem a Igreja e pelo Espirito Santo que anima sobrenaturalmente, cada uma segundo sua condição, essas mesmas realidades. 

    Trata-se da essência mesma da doutrina da Igreja, Corpo místico de Cristo, cujo Espirito Santo é a alma, aplicada neste caso à Tradição. Na teologia clássica, ao menos desde o concílio de Trento, esta verdade traduz-se pela afirmação de uma dupla infalibilidade ordinária e permanente na Igreja: a saber a infalibilidade na fé do povo fiel tomado no seu conjunto (infallibilitas in credendo[9]); e a infaibilidade do corpo dos pastores (papa e bispos, juntos) no seu ensino (infallibilitas in docendo[10]). 

    Esta doutrina é bem conhecida e sustentada por todos os autores católicos. Uma boa apresentação, bem documentada, é dada por Gustave Thils, sob o titulo L’infaillibilité du peuple chrétiens in credendo: notes de théologie post-tridentine[11]. Os autores por vezes também falam, numa linguagem menos feliz, de infalibilidade ativa (para o corpo docente) e de infalibilidade passiva (para o povo fiel). Gustave Thils mostra, aliás, que, segundo o ensino mais comum dos autores, é a infalibilidade do povo cristão na sua fé que está em primeiro, e que serve muitas vezes de argumento, para os teólogos pós-tridentinos, para estabelecer a infalibilidade do magistério. É com certeza sobre esta doutrina que Pio XII, implicitamente faz referência no texto de Manificentissimus Deus citado um pouco mais acima. É bom lembrar também que os membros que constituem o corpo dos pastores, a Igreja docente, pertencem também, e em primeiro, à Igreja discente: eles também são fiéis (antes de serem pastores), e devem receber na fé tudo o que a Igreja já determinou. 

    Esta doutrina católica é infelizmente desconhecida, até mesmo negada, por muitos autores “tradicionalistas”, em particular entre aqueles que se ligam mais estreitamente à Fraternidade sacerdotal São Pio X[12]. Foi o que permitiu, primeiro a Paulo VI e depois a João Paulo II[13], falar de uma concepção errônea da Tradição de alguns tradicionalistas. Com efeito, negar diretamente ou indiretamente a infalibilidade permanente, quotidiana, do magistério ordinário e universal (reunido ou disperso)[14], é verdadeiramente desconhecer um aspecto essencial da Tradição ativa, cujo magistério vivo é a componente principal (o povo fiel sendo o componente subordinado). E se, com isso, mantem-se o caráter regulador do que foi crido “sempre e em toda a parte”, introduz-se uma “noção contraditória da Tradição[15]”. Com efeito, é precisamente porque o magistério ordinário e universal, em cada época, transmite infalivelmente (sob a assistência divina permanente) o depósito revelado concluído com a morte do último apostolo e porque, correlativamente, o povo fiel tomado no seu conjunto, em cada época, é infalível na sua adesão devota, que o que foi crido “sempre e em toda parte” é regra de fé.

  O papa Bento XVI apresentou esta doutrina da Tradição viva do lado de sua causa transcendente, com o vigor e a clareza teológica de sempre, numa audiência geral, no dia 10 de Maio de 2006:

Segundo estes testemunhos da Igreja antiga, a apostolicidade da comunhão eclesial consiste na fidelidade ao ensinamento e à prática dos Apóstolos, através dos quais é garantido o vínculo histórico e espiritual da Igreja com Cristo. A sucessão apostólica do ministério episcopal é o caminho que garante a fiel transmissão do testemunho apostólico. O que os Apóstolos representam no relacionamento entre o Senhor Jesus e a Igreja das origens, representa-o analogamente a sucessão ministerial no relacionamento entre a Igreja das origens e a Igreja atual. Não é uma simples concatenação material; é o instrumento histórico do qual se serve o Espírito para tornar presente o Senhor Jesus, Chefe do seu povo, através de quantos são ordenados para o ministério através da imposição das mãos e da oração dos bispos. Mediante a sucessão apostólica é Cristo que nos alcança: na palavra dos Apóstolos e dos seus sucessores é Ele quem nos fala; mediante as suas mãos é Ele quem age nos sacramentos; no olhar deles é o Seu olhar que nos envolve e nos faz sentir amados, acolhidos no coração de Deus. E também hoje, como no início, o próprio Cristo é o verdadeiro pastor e guarda das nossas almas, que nós seguimos com grande confiança, gratidão e alegria.[16].

    É verdade que aqui Bento XVI só fala, em virtude do seu tema próprio (os apóstolos e seus sucessores) da Tradição ativa exercida pelos pastores. Mas o cardeal Ratzinger tinha fortemente afirmado o outro aspecto num texto memorável:

    Isto não significa que os crentes possuem a omnisciência do conteúdo, mas indica a veracidade da memória cristã que tem sempre necessidade de aprender, mas que sabe distinguir, na sua identidade sacramental, entre o desenvolvimento da lembrança e sua destruição ou falsificação. Na crise atual da Igreja, fazemos a experiência da força desta memória e da verdade da palavra apostólica; mais que as indicações hierárquicas, é a força de distinção da simples memória da fé que permite o discernimento dos espíritos[17]. 

 

CONCLUSÃO


Em definitivo, e tomando cuidado de afastar os erros relativistas e evolucionistas, deve-se reconhecer a tripla legitimidade da noção de “Tradição viva”, primeiramente porque o depósito revelado, objetivamente concluído, é transmitido explicitando-se; em segundo, porque este depósito é transmitido por atos humanos de pregação e de testemunho de fé; terceiro porque esta transmissão está divinamente assegurada, durante séculos, pela a ação viva e transcendental de Cristo e do Espirito Santo.

 Bernard LUCIEN

 Bernard Lucien, padre da arquidiocese de Vaduz (Liechtenstein), ensina teologia em várias casas de formação sacerdotal. Autor de Qu’est-ce que la théologie? La “doctrine sacrée” selon saint Thomas (Nuntiavit, 2007) e de Les degrés d’autorité du magistère (Feucherolles, La Nef, 2007).

 

[1] Cf. à recensão no presente numero, pp. 91-99.

[2] Disponível pelas edições Nuntiavit, 10 impasse de la Chapelle, 89150 Brannay (www.nuntiavit.org). Preço: 19 €.

[3] Bernard Dumont e Cyrille Dounot, « Compte rendu du colloque de 15 et 16 mai 2009 organisé à Toulouse par la Revue thomiste et l’ISTA sur le thème : “Vatican II : rupture ou continuité ? Les heméneutiques en présence” », in Catholica, n° 104, été 2009, p. 138. Na hora em que escrevemos (Fevereiro de 2010), as actas não estavam publicadas ainda. G. Narcisse é aliás, o autor de uma introdução à teologia: Premiers pas en théologie, coll. «Bibliothèque de la Revue thomiste», Saint-Maur, Parole et Silence, 2005. Nesta obra, ele aceita sem reserva a expressão « Tradition vivante » : cf. pp. 333-335.

[4] Cf. Pierre Chaillet, s. j., «La Tradition vivante», in Revue de sciences philosophiques et théologiques, 1938, pp. 161-183 ; Joseph Ranft, «La Tradition vivante. Unité et développement», in L’Eglise est une. Hommage à Möehler, Paris, Bloud & Gay, 1939, pp. 102-126. Mais recentemente, sob o título geral  Aux Origines de l’école catholique de Tübingen, Paris, Cerf, 2007, na versão publicada em françês a Brève introduction à l’étude de la théologie (1816) de Johann Sebastian Drey, fundador desta escola e mestre de Möehler. Esta publicação inclui diversas contribuições, nomeadamente do cardeal Joseph Ratzinger, do cardeal Walter Kasper e de Max Seckler. Cf. pp. 35-37 uma descrição da «influência histórica impressionante» de Möehler (no plano das idéias teológicas).

[5] Cf. Osservatore romano, 9-10 fevereiro de 1942.

[6] R. Aubert, Le Pontificat de Pie IX, Tournal, Bloud & Gay, 1952, p. 354. O autor desta obra sustenta a autenticidade desta frase.

[7] Orientamos o leitor a ler o capitulo 2 da obra, que trata do deposito da fé, pp. 43-64.

[8] 1er novembre 1950. Cf. le volume des Enseignements pontificaux (Solesmes) sur Notre-Dame, au n° 492.

[9] « Infalibilidade no exercício da fé » : expressão técnica designando a existência de uma assistência divina permanente preservando do erro in rebus fidei morum o povo fiel no seu conjunto.

[10] « Infalibilidade no exercício do ensino » : expressão técnica designando a infalibilidade que pertence ao magistério da Igreja.

[11] « Bibliotheca Ephemeridum Theologicarum Lovaniensium », Paris-Louvain, Desclée de Brouwer-E. Warny, 1963.

[12] Sobre este assunto ver o capítulo IV da nossa obra Les degrés d’autorité du magistère, Feucherolles, Le Nef, 2007. Desde então a situação não melhorou a este respeito. É preciso esperar que as “discussões doutrinais” entre a Santa Sé e a Fraternidade São Pio X abordem também, sem hesitações e escapatórias, esta questão da autoridade magisterial, e segundo seus diversos modos de infalibilidade.

[13] Motu proprio Ecclesia Dei adflicta  do dia 2 de Julho de 1988, § 4. Não dizemos que todos os tradicionalistas caem sob esta critica pontifical, longe disso! Ademais, uma vez admitida a doutrina católica sobre este ponto, a crise da Igreja com toda a sua extensão e gravidade, incluindo à diversos graus de responsabilidade hierárquica, está sempre presente.  Mas a existência deste erro em vários tradicionalistas é um fato comprovado e a acusação  pontifical não é desprovida de importância. Talvez as justas denúncias dos erros “modernistas” teriam mais peso se os que os proferem começassem por limpar em frente de suas portas.

[14] Quando ele propõe diretamente uma doutrina como revelada ou ligada à revelação, e não em cada uma de suas afirmações, mesmo unânimes.

[15] Jean-Paul II, loc. cit.

[16] La Documentation catholique, n° 2360, 18 juin 2006, p. 554, col. 2, ultimo § e p. 561, col. 1, § 1. Faremos referência também às audiências de 26 de Abril e 3 de Maio que abordam já o tema da Tradição.

[17] Extraido de Appelés à la communion, Comprendre l’Eglise aujourd’hui, Paris, Fayard, 1993, p. 155.

 

FONTE


LUCIENC, Bernard. Quelques remarques sur la “Tradition vivante”. Revue Sedes Sapientiae, n. 111, pp. 23-31.

 
 
PARA CITAR


LUCIEN, Pe. Bernard. Algumas observações  sobre a « Tradição viva ». <http://www.apologistascatolicos.com.br/index.php/concilio-vaticano-ii/revelacao/800-algumas-observacoes-sobre-a-tradicao-viva> Desde 26/06/2015. Tradutor: Faustino Sassoma Muhongo.

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