Terça-feira, Dezembro 3, 2024

Sobre as fontes da Revelação

 

Uma fonte? Duas fontes?


  

Também aqui, como tantas vezes nas discussões, cumpre começar definindo para evitar o equívoco.

Se por fonte entendemos o primeiro manancial de onde sai a água, a divina revelação brota de uma só fonte que é Deus. Deus, que nos falou muitas vezes e de muitas maneiras nos Patriarcas do Antigo Testamento e nos Profetas, e nos últimos tempos falou-nos pelo Filho (Hebr. 1,1). Também o Espírito Santo levou aos Apóstolos toda a verdade (Jo 14,26; 16,12). Em qualquer desses casos, a revelação é divina.

Mas todas estas maneiras como nos chegou a locução ou revelação divina, vemos que estão perfeitamente unidas entre si e formam uma só, compacta e homogênea revelação de Deus. Toda ela constitui a mensagem de Cristo e sua “boa-nova”, seu Evangelho. A revelação de Jesus Cristo, que é divina, por ser de pessoa divina, não veio desvalorizar o revelado por Deus no Antigo Testamento, mas cumpri-lo e aperfeiçoá-lo. A revelação do Espírito Santo, também divina e anunciada por Cristo, completa a mensagem de Jesus, levando aos Apóstolos o conhecimento pleno da verdade revelada por Cristo e ao desenvolvimento total desta mensagem.

Os Apóstolos transmitem a mensagem de Cristo, recebida da própria boca de Cristo ou pela inspiração do Espírito Santo; como recordavam e definiam os Concílios de Trento e Vaticano I (D 783, 1787).

Até aqui se pode falar de uma só fonte da revelação divina, enquanto brota de um só Deus e enquanto o conteúdo dessa mensagem é totalmente divino e homogêneo e forma uma perfeita unidade e harmonia.

Se passarmos a perguntar pelos meios ou canais que nos transmitem esta mensagem, então teremos que responder que há vários. Há a Sagrada Escritura, que inspirada pelo Espírito Santo e sendo Deus seu Autor, contém a palavra de Deus escrita. Há a tradição não escrita por Deus, mas comunicada por Deus, quer oralmente aos Apóstolos por Cristo, quer pelo Espírito Santo (sine scripto traditionibus: D 783), que contém também a mensagem de Cristo e constitui a palavra de Deus transmitida (D 1792). Se à Escritura e à Tradição chamamos fontes da revelação, já se entende que o fazemos em sentido de correntes de água, canais, por onde nos chega a mensagem que brota da única fonte manante, Deus. Os Apóstolos, S. Paulo em concreto, diziam: “Ficai firmes, irmãos, e guardai as tradições (paradoseis) que aprendestes, quer por nossa palavra, quer por nossas cartas” (2 Tes 2,15). Duas maneiras de as fazer chegar e transmitir a mensagem de Cristo e sua revelação: a palavra e a pregação apostólica, a tradição não escrita, e a carta, o escrito, a escritura inspirada.

Mas a Escritura e a Tradição divino-apostólica são fontes da revelação enquanto contêm essa mesma revelação. São correntes dessa mesma água que brota do manancial. Não são meros canais ou transmissores, como podem ser o Magistério da Igreja, a pregação unânime dos Padres e o consentimento dos teólogos e dos fiéis.

Mediante o Magistério da Igreja conhecemos a divina revelação; e por certo esse Magistério é para nós a norma próxima e imediata para a conhecer. Mas o Magistério não constitui ele mesmo, não faz ele mesmo a doutrina revelada; transmite-a, guarda-a, declara-a. Tampouco a pregação unânime do Padres faz a verdade revelada; é só um critério para a conhecer. O mesmo se diga do consentimento dos teólogos e dos fiéis. Esses consentimentos, do mesmo modo que o Magistério, são meios para conhecer o que Deus revelou. E nesse sentido podemos falar e se fala de diferentes fontes da doutrina revelada, que são o Magistério e o consentimento dos Padres, teólogos, fiéis. São fontes da doutrina teológica, porque são meios para argumentar e raciocinar em Teologia.

Mas a Escritura e a Tradição não são só meios para conhecer a doutrina revelada. São-no, sem dúvida. Mas além disso constituem eles mesmos essa doutrina revelada como já antes indicamos. Contêm-na e a transmite, certamente; mas além disso são lugares teológicos ou fontes teológicas constituintes.

Daí não ser raro falar da Escritura e da Tradição como de duas fontes da doutrina revelada. Os autores de Teologia usaram e usam esta expressão em seu tratado De fontibus revelationis (por ex., Hurter, Van Noort, Felder, Specht, Zubizarreta, Tanquerey…).

Também os documentos eclesiásticos, como a encíclica Humani generis de Pio XII[1].

E é, portanto, uma maneira legítima de falar. Mas será mais ou menos oportuna segundo os tempos e os lugares.

 

Está toda a revelação na Escritura?


 

É sabido que os protestantes do século XVI queriam se contentar somente com a Escritura. Não reconheciam como verdades reveladas as que se disseram vir pela Tradição.

E, pelo contrário, o Concílio Tridentino teve particular empenho em definir como dogma de fé, desde o princípio de suas reuniões, que a revelação divina é contida, além da Escritura, na Tradição não escrita, recebida de Jesus Cristo pelos Apóstolos, ou ditada a estes pelo Espírito Santo (D 783). É a Tradição divino-apostólica, que a Igreja nos transmite com seu Magistério e sua pregação. As verdades reveladas que vêm pela Escritura e as que vêm pela Tradição as recebe o Concílio “com igual afeto de piedade” (pari pietatis affectu) (D 783). E, com efeito, o Concílio depois se baseia na Escritura e na Tradição, quando dá razões e explica as verdades que define.

Quer com isso indicar o Concílio que algumas verdades reveladas somente se encontram na Escritura, e outras somente se encontram na Tradição? A primeira fórmula proposta ao exame dos Padres (23 de março de 1546) poderia ter dado vez a esta interpretação “vendo que esta verdade [revelada] estão contidos parte (partim) nos livros escritos, e parte (partim) nas tradições não escritas…” Mas a fórmula aprovada (8 de abril de 1546) omite este sentido parcial, e põe simplesmente um et “…vendo que esta verdade e disciplina estão contidos nos livros e (et) nas tradições não escritas…”

Concebe-se, então, que as verdades contidas na Escritura podem também estar na Tradição, e, vice-versa, as verdades da Tradição podem também estar na Escritura. O sentido exclusivo somente é possível se se contrapõe “Escritura” a “Tradição não escrita” e enquanto não escrita. Porque então, se não está escrita, repugna que esteja na Escritura. Mas também poderia se conceber o termo sine scripto traditiones em um sentido mais amplo: “prescindindo da Escritura, tradições procedentes por via oral diretamente de Jesus Cristo ou da inspiração direta do Espírito Santo aos Apóstolos”. Claro está que, ainda procedendo por via oral de Jesus Cristo ou por inspiração do Espírito, se conservaram na Igreja mediante os escritos dos Papas, Santos Padres, teólogos… E também poderiam achar-se nas Escrituras inspiradas.

O que sim é claro e manifesto é o grande empenho do Concílio Tridentino em atribuir à Tradição um valor não menor que o da Escritura para achar a doutrina revelada e combater assim os erros protestantes. Mais adiante os teólogos pós-tridentinos, desenvolveram a doutrina do Concílio, expuseram a teoria da Tradição distinguindo tradições constitutivas (se aquelas verdades não se encontram na Escritura), inhesivas (se se encontram explicitamente na Escritura), e declarativas (se somente implicitamente se encontram na Escritura).

Mas, sobretudo no último decênio, o impulso cobrado pelas tendências ecumenistas e a nobre tendência de chegar a uma aproximação com os protestantes difundiram a opinião de que todos os dogmas que os católicos dizem ter por tradição estão de alguma maneira na Sagrada Escritura. Defendem tal opinião Geiselmann, Daniélou, Semmelroth, Van Leeuven… e outros. Com isso se aproximam mais ao ponto de vista protestante; enquanto, por outra parte, os protestantes se aproximam ao ponto de vista católico estimando mais e valorizando melhor a Tradição dentro da Igreja e a explicação das Escrituras na Igreja.

Se se emprega a fórmula “de alguma maneira estão na Escritura todos os dogmas revelados”, poderá parecer a muitos, e de fato parece, bastante equívoca. Porque se de alguma maneira se pode afirmar uma coisa, também de alguma maneira se pode afirmar o contrário.

O que nos parece importante é precisar bem o sentido em que se quer afirmar que todas as verdades de fé definidas pela Igreja estão na Escritura. Por isto se impõe outra vez aqui procede com distinção.

Se nos é perguntado se todas as verdades de fé em seu sentido formal e próprio, ainda que seja somente implicitamente, se acham na Sagrada Escritura, não podemos contestar afirmativamente, porque algumas em seu sentido formal e próprio não as encontramos nela.

O primeiro, a mesma inspiração divina de todos e cada um dos livros canônicos, que é verdade que pertence à fé que foi definida em diferentes Concílios[2], se pode constar de alguns livros do Antigo Testamento e de outros do Novo pelo testemunho da Sagrada Escritura[3], não pode, contudo, constar de todos eles pela própria Escritura. O critério único universal para todos os livros é o Magistério da Igreja, que se baseia na divina revelação[4].

Outras verdades de fé definidas pela Igreja, como é a perpétua virgindade de Maria, depois do parto (D 256), será difícil mostrá-las somente pela Escritura.

O número setenário e exclusivo dos sacramentos (nem mais nem menos), definido no Concílio Tridentino (D 844), e o que não são sacramentos outros ritos, como o lavatórios dos pés (que não carece de simbolismo e, além disso, foi instituído por Jesus Cristo…), tudo isto não se vê que conste somente pela Escritura.

O tratado De sacramentis in genere é clássico para fazer ver o valor da tradição nas provas, que com freqüência adquirem seu pleno vigor unicamente pela Tradição. Tais seriam as teses sobre o caráter que imprimem três sacramentos, definido no Tridentino (D 852); sobre a validez do sacramento conferido em pecado grave (D 855), etc.

À tradição da Igreja atribui Santo Agostinho que não se voltem a batizar os que vem da heresia ou do cisma: “… A Igreja – disse – tinha aquele costume salubérrimo, corrigir nos mesmos cismáticos e hereges o mau, mas não iterar o que lhes havia dado; sarar o que estava ferido, não curar o que estava são. E creio que este costume vem de tradição apostólica, como muitas coisas que não se encontram em suas cartas nem nos Concílios posteriores, e contudo, posto que se guardam por toda a Igreja universal, se crê que somente pelos Apóstolos nos foram transmitidos e encarregados”[5].

Isto não obstante, se pensamos que não se pode dizer que todas as verdades de fé em seu sentido formal estão na Escritura, nem sequer implicitamente; mais facilmente poderíamos admitir que de uma maneira radical, de uma maneira fundamental (como se expressava alguns teólogos pré-tridentinos), ali podem encontrar-se. Porque rara será a verdade de fé que, neste sentido, não encontre seu fundamento e sua raiz na Sagrada Escritura.

É verdade que as Escrituras são escritos ocasionais e que seus autores não se propuseram entregar-nos neles sistematicamente toda a revelação. Mas se isto não se propuseram os autores humanos, o autor divino que os movia, cuja Providência estavam submetidos, bem pôde inspirar-lhes de tal sorte que nas Escrituras tivéssemos todo o principal de nosso dogma e tudo o que é raiz e fundamento de todas as verdades de fé.

Por isto escreviam alguns teólogos pré-tridentinos que tudo o que é necessário para salvar-se se encontra nas Sagradas Escrituras. São de J. Duns Scoto as seguintes terminantes palavras: “A Sagrada Escritura determina suficientemente as coisas necessárias para conseguir o fim, e que estas bastam”[6]

 



[1]Act. Apost. Sedis 42 (1950) 567 s.; D 2313-2314.

 

[2] Os enumeramos e citamos em nosso tratado De Sacra Scriptura (5ª edição, Madrid, 1962), n. 46 (“Sacrae Theologiae Summa”, vol. I, tract. IV).

 

[3] Ibid., n. 51.

 

[4] Ibid., ns. 43-54.

 

[5] De Baptismo, 2, 7, 12; ROUET DE JOURNEL, Ench. Patristicum, n. 1.623.

 

[6] In 1 Sent., Prolog., p. 2: Opera omnia (edit. Vaticana), I (1950), 85.

 

FONTE


NICOLAU, Pe. Miguel. Problemas del Concilio Vaticano II, Madrid, 1964, pp. 221-227.

 

PARA CITAR


NICOLAU, Pe. MiguelSobre as fontes da Revelação – Disponível em: <http://www.apologistascatolicos.com.br/index.php/concilio-vaticano-ii/revelacao/781-sobre-as-fontes-da-revelacao>. Desde 15/04/2015.

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